O INTERESSANTE EM FRIEDRICH SCHLEGEL

Arlenice Almeida da Silva[1]

RESUMO: Busca-se neste artigo, em primeiro lugar, examinar a originalidade do conceito de interessante na obra Sobre o estudo da poesia antiga, do jovem Friedrich Schlegel, tendo em vista a singularidade da análise e do método empregados pelo autor para fundamentar a crítica de arte. Em segundo lugar, o texto procura ressaltar como, ao diferenciar a poesia grega da moderna, Schlegel constitui uma singular interpretação da poesia em geral, em diálogo aberto com Winckelmann e Schiller. E, fi nalmente, avaliar se, ao articular um discurso que aproxima história da arte e fi losofi a da arte, Schlegel logra superar defi nitivamente a “querela entre antigos e modernos”.  

PALAVRAS-CHAVE: Friedrich Schlegel. “Interessante”. Poesia antiga. Filosofi a da arte. História da arte.

E que fi losofi a resta ao poeta? A producente que parte da liberdade e da crença nela, e então mostra como o espírito humano em tudo imprime sua lei e como o mundo é sua obra de arte. (SCHLEGEL, Athenäum, fr. 168)

Friedrich Schlegel merece fi gurar na “vanguarda” do idealismo alemão, seja porque, com ele, a fi losofi a ganha uma infl exão de envergadura histórica, seja porque já é possível nele reconhecer um dos pressupostos conceituais da modernidade, a convergência entre crítica e arte.  Encontra-se um fi lósofo fronteiriço, pré-romântico e pré-moderno em muitos de seus fragmentos maduros, mas, sobretudo, já em uma de suas obras iniciais, Über das Studium der griechschen Poesie (Sobre o estudo da poesia grega), escrita entre 1794-96. Nesse estudo, pode-se examinar o modo pelo qual o autor interfere na “querela entre antigos e modernos”.  Qual a singularidade de sua análise? Trata-se de mais um elogio dos antigos contra os modernos, como em Winckelmann?

Ao concluir a longa argumentação na qual acredita ter superado defi nitivamente a disputa entre os antigos e os modernos, Schlegel presta uma discreta homenagem a Winckelmann, no último parágrafo do trabalho. Curiosamente, trata-se da única citação por meio da qual Schlegel reconhece ao mesmo tempo a dívida com “seu mestre”, “o primeiro a sentir a antinomia do antigo e do moderno”; mas, sobretudo, demarca a diferença entre a sua análise especulativa e a abordagem descritiva de Winckelmann, de 1755.[2] A novidade reside na envergadura da refl exão estética de Schlegel, que opera com um duplo procedimento, ao mesmo tempo unifi cador e descritivo, ao realizar uma história da arte que é simultaneamente uma fi losofi a da arte.  De um lado, diz ele, no Prefácio, escrito posteriormente, em 1797, que a “história objetiva da arte” é agora necessária e possível, pois com ela se pode descobrir o verdadeiro caráter da poesia moderna e, com base nesse ponto de vista, julgar a arte da época; para tal, “[...] uma história completa da poesia grega é a condição essencial para o aperfeiçoamento do gosto e da arte alemãs” (SCHLEGEL, 1996, p.52). De outro lado, uma “fi losofi a objetiva da arte” é igualmente possível e necessária, uma vez que se pode agora apreender os princípios da poesia antiga e da moderna, e, com ambos, a ideia de poesia em geral, isto é de “poesia objetiva”.

Com respeito ao método empregado no Studium-Aufsatz, como é mais conhecido, ressalte-se que essa dupla exigência, a da história e a da fi losofi a, é a primeira formulação daquilo que Schlegel, no fragmento 302 da Athenäum, nomeará de “pensamentos entremesclados”, desde que se entenda que os modestos “rabiscos e rascunhos da fi losofi a” aqui se apresentam com mais seriedade e rigor, ou seja, como o ponto de vista moderno e fi losófi co, que permite a interpenetração entre arte, ciência e fi losofi a.[3] Resta saber, portanto, se do entrecruzamento do qual resultará uma fi losofi a da história, o presente será iluminado pelo ponto de vista do passado ou o passado pelo do presente, haja vista que, se a apreensão da poesia grega decorrer de uma inteligibilidade moderna, o que se encontrará, na verdade, é uma ideia atemporal de poesia e não a organização de um “conjunto de imagens e de erudição” em uma perspectiva histórica, como em Winckelmann. O presente estudo busca examinar como Schlegel enfrenta a questão crucial, surgida no século XVIII e ainda central, no início do século XIX, das relações de reciprocidade entre história da arte e fi losofi a da arte.

Comecemos pela história, a da poesia entremesclada com a da humanidade, um dos elos mais delicados do argumento. Como lamenta Schlegel, no Prefácio, a grande polêmica deveria ocorrer com Schiller, de Poesia ingênua e poesia sentimental, isto é, com o conjunto de três artigos publicados por Schiller, entre 1794-96[4], mas como o Studium-Aufsatz foi enviado aos editores antes da leitura do texto schilleriano, o embate conceitual trava-se especialmente com Herder e sua ideia do desenvolvimento orgânico dos povos e das culturas. Problematizando o conceito herderiano de affectio originalis, quer dizer, o campo das afi nidades entre épocas, Schlegel quer pensar a especifi cidade da poesia moderna, com base nas relações entre culturas e épocas, com a fi nalidade de explicar, assim, os renascimentos e declínios, sempre entendidos como realização e morte de um ideal comum em solos diferentes.

Com base em Herder, Schlegel, contudo, opera com um método híbrido, nomeado ora de “novo ponto de vista” sobre a poesia grega, ora de “poética aplicada”, obtido pela ação recíproca entre intuição intelectual, ao modo transcendental, e a descrição da experiência, ao modo histórico, por meio do qual expõe a tese de que, para escrever a história da arte grega, cabe à fi losofi a deduzir primeiro o movimento interno das artes; para tal, deve-se partir do moderno, da formação da arte moderna como via de acesso às leis da arte em geral. Um método original, porém já alicerçado em pressupostos críticos, presentes de modo geral em todo o primeiro romantismo. Em primeiro lugar, encontramos em Schlegel o mesmo procedimento antitético, como em Fichte e também em Schiller, de iniciar a exposição pela contraposição entre real e ideal. Diante da crise da época – entendida como “época química”, voltada para separações, sobretudo, a cisão entre o eu e o mundo –, postulase seu contraponto, isto é, o desejo de plenitude, caracterizado como aspiração e disposição lógica para a unifi cação; dito de outro modo, diante de uma poesia moderna sem unidade, nem meta fi xa, cabe à refl exão estética estabelecer semelhanças e diferenças, de modo a encontrar um fundamento comum para a poesia, que permita a reunifi cação entre o antigo e o moderno, a cultura natural e a cultura artifi cial, superando, defi nitivamente, a disputa entre antigos e modernos. Para Schlegel, todavia, o ideal não é apenas aquilo que por contraste faltaria ao real, mas o princípio do movimento que tende para a unidade. [5] Em segundo lugar, portanto, o procedimento deve ser ao mesmo tempo comparativo e relacional, como em Fichte, na medida em que se trata de equacionar os polos do problema ao assinalar, em uma delimitação clara, os limites entre o moderno e o antigo, sem esquecer, entretanto, que os extremos são dados de um para o outro, uma vez que aparecem sempre como são, ou seja, como relações recíprocas que se estabelecem entre poesia antiga e poesia moderna. Em outras palavras, procura-se rastrear uma trajetória de mão dupla, da antiga para a moderna e da moderna para a antiga, em busca da lógica interna da cultura estética em sua totalidade. 

Em terceiro lugar, trata-se de perceber no interior de cada formação particular o todo e não as partes, visto que, para realizar a história da poesia grega, é preciso, nas palavras do autor, “[...] ordenar os fragmentos dispersos e esclarecer os aparentes enigmas, pois a arte, os costumes e a política estão tão entrelaçados, e nem um estudo os pode separar [...]. Em geral, a cultura grega é um todo no qual é impossível reconhecer de forma correta uma parte isolada” (SCHLEGEL, 1996, p.51, 139). Um todo “[...] original e nacional,” móvel e cíclico, que ao desenvolver-se internamente, organicamente como em Herder e Goethe, atinge o ápice, para depois desintegrar-se, voltando ao ponto de partida, completando o ciclo (idem, p.115).

Estamos diante de uma temporalidade cíclica ou progressiva? Para Peter Szondi, no Studium-Aufsatz predomina uma temporalidade em linhas gerais progressiva, mas com retornos cíclicos; sobretudo, no conjunto da obra de Schlegel, pode-se constatar sempre a sobreposição dessas duas temporalidades, porque ele postula para a Antiguidade um modelo cíclico, no entanto, para a época moderna e para a poesia romântica do futuro, o modelo de progressão infi nita.[6] Do entrelaçamento de tempos sobressai, contudo, o tempo intermediário do agora, do “não mais e do ainda não”: um tempo que oscila, no qual “o todo não tem unidade” e a “aspiração não tem uma meta fi xa”; portanto, um tempo não preenchido por uma determinação.7 Posicionando-se nesse tempo intermediário, Schlegel sustenta a impossibilidade da imitação dos antigos, uma vez que não é mais possível reproduzir no presente o passado; talvez o passado possa reviver no futuro, mas fundado em outros termos, “nos princípios da poesia objetiva”, o que não é exatamente o mesmo. “O poeta moderno deve aspirar uma arte autêntica e não imitar este ou aquele poeta” (SCHLEGEL, 1996, p.139). Ou seja, o moderno é o tempo intermediário entre aquilo que se perdeu e aquilo que se busca, o que signifi ca que nostalgia e esperança são as duas fi guras da modernidade. Todavia, o que foi perdido e agora se busca reencontrar?

Aquilo de que se ressentia o presente, mas que só agora, a partir de uma crítica com inserção no tempo, pode começar a emergir: o Ideal da poesia. Explica-se, assim, por que o método de Schlegel não é genético, já que a investigação começa pelo meio e não pela origem.  Começar pelo meio signifi ca, sobretudo, defender o ponto de vista do presente, isto é, o da indeterminidade como relevante para lançar luz sobre o passado e propor um programa para o futuro da poesia. O ponto de partida é o do “agora da cognoscibilidade”, para usar um conceito benjaminiano, quer dizer, a situação da cultura estética e da arte no fi nal do século XVIII, na qual, do ponto de vista fi losófi co, se esboça uma dialética: o ponto de vista do meio não é a mediação hegeliana, mas surge na relação recíproca entre os termos, como bem mostrara Fichte, quando os extremos são aproximados, como podemos ler na Ideias, n. 74, de Schlegel, publicada na Athenäum: “[...] vinculem os extremos, e terão o verdadeiro meio” (SCHLEGEL, 1997, p.153).

Assim, deduzindo e descrevendo, o moderno é de início caracterizado por Schlegel como falta e negação, já que corresponde à arte que se efetua sem um princípio orientador, contradizendo as “leis puras da beleza e da arte”, hipoteticamente existentes entre os antigos; começando pelo meio, pelo presente, Schlegel caracteriza a poesia moderna como aquela na qual se dá a superação do conceito de belo pelo conceito de interessante. Enquanto ao primeiro é atribuído um valor estético absoluto, o segundo é caracterizado por um conceito provisório.  Essa contraposição é afi rmada como ponto de partida e, com base nela, Schlegel pode então traçar as linhas fundamentais da poesia moderna, em conceitos próprios.

O que seria o interessante como critério artístico? Um conceito equivalente ao “sentimental” schilleriano?  No Prefácio, Schlegel elogia e opera com os termos ingênuo e sentimental, cunhados por Schiller, entendendo-os, todavia, como tendências da criação poética que não poderiam ser aplicadas para caracterizar a diferença entre antigos e modernos, nem para delimitar a especifi cidade histórica do interessante. Qual seria, por conseguinte, a origem do interessante? No argumento trans-histórico utilizado por Schlegel, a passagem de um conceito a outro não é nitidamente demarcada: as culturas se entrecruzam e os momentos tardios da cultura antiga são ao mesmo tempo os precursores da moderna; algumas odes e epodos de Horácio são sentimentais; os eróticos gregos já eram modernos. No Studium, ora a desintegração da cultura natural teria sido motivada por violências externas, ora por esgotamento orgânico, decorrente do próprio movimento interno de nascimento, desenvolvimento e morte. Do ponto de vista formal, sobressai o fato de que, quando o épico se transforma em idílio e nele despontam as fi guras do ingênuo e da inocência, já é hora do moderno, pois o moderno “[...] é a representação de uma Idade de Ouro da inocência”; e o ingênuo é o contraste do natural com o artifi cial, que só o moderno pode enunciar. Em todo caso, trata-se de um momento de crise, de uma situação de desequilíbrio:

[...] depois de realizar-se plenamente e degenerar-se sem salvação, a perfeita cultura natural dos antigos, devido à perda da realidade fi nita e à decomposição da forma perfeita, produziu-se um afã de realidade infi nita, que logo se converteu no tom geral da época. (SCHLEGEL, 1996, p.56).

interessante é, assim, o elemento necessário de transição entre a poesia do passado e a do futuro, que pode agora ser apreendido em uma dialética pendular bem marcada. De um lado, ele é defi nido negativamente como a cultura natural malograda, isto é, como forma vazia, anárquica, assinalando barbárie, gosto deturpado, desarmonia e dissonância. Do ponto de vista das obras, no período da poesia interessante, temos uma produção abundante, mas sem coesão interna; casos isolados, pontos de vista parciais, individuais e cambiantes. O cenário cultural do interessante é, assim, o da alternância entre barbárie e afetação; pobreza e extravagância.

Filosofi camente, aponta Schlegel, no interessante não temos plenitude e harmonia das faculdades, mas o predomínio do entendimento sobre as outras faculdades. Sob a poderosa ação do entendimento, todas as relações são decompostas ou colocadas sob suspensão e suspeição, em uma operação química que primeiro separa, para juntar novamente. Dito de outro modo, na poesia moderna o vigor da natureza não morre totalmente, porém, é transposto para o entendimento, na refl exão, permitindo ao moderno efetuarse não como o tempo da criação, mas dos estudos.

Portanto, positivamente, do ponto de vista dos princípios fi losófi cos, só ao moderno coube perceber em que a poesia grega se contrapõe à poesia interessante ou moderna. A poesia grega foi a efetivação do ideal de beleza, pois nela a arte esteve livre da força da necessidade e do domínio do intelecto. Na Grécia, a beleza cresceu selvagem e sem cuidados artifi ciais, simples e sem ornatos, de modo que nela vigorava uma vocação para representar não o casual, mas o essencial e necessário; não o individual, mas o universal. Os gregos louvaram em encantadoras imagens a plenitude livre e ética e a força autônoma; daí o “estilo perfeito”, composto de harmonia regular, bela simetria, delicado equilíbrio e decoro correto. Na arte grega, salienta Schlegel, a liberdade predominou sobre a natureza, de sorte que o homem grego guiava e ordenava livremente suas forças e seu talento segundo as leis internas de seu ânimo, produzindo, assim, o belo de forma orgânica. Contudo, a beleza grega era simultaneamente livre e ética, uma vez que as ações e paixões se referiam aos costumes, de maneira que os confl itos entre o destino e os homens eram resolvidos de modo harmonioso pelo ânimo independente do herói na ação, dignifi cando a humanidade pura. As partes compunham um todo perfeito e autônomo, as obras constituíam um conjunto homogêneo, cujo ápice foi atingido na tragédia ática, especialmente com Sófocles, ao “[...] purifi car, elevar e unir as formas perfeitas isoladas de épocas e escolas anteriores em um novo todo” (SCHLEGEL, 1996, p.111).

Vale ressaltar que a perfeição da arte grega decorria, sobretudo, da correspondência entre a capacidade inventiva do artista e o desenvolvimento do gosto, que entre os gregos era mais uma feliz coincidência do que uma determinação teórica e cultural; o gosto não fora formado pela teoria, mas pelas “leis do gosto público”, que, por sua vez, decorreram espontaneamente de uma confl uência de circunstâncias que produziram, ao acaso, o “[...] republicanismo nas instituições gregas, entusiasmo e sabedoria nos costumes, coesão lógica e sistemática nas ciências e não mais ordenação mítica da fantasia e o ideal de belo nas artes” (SCHLEGEL, 1996, p.104). Sófocles, para Schlegel, “[...] consumou a arte trágica, alcançando a mais alta meta da poesia grega”, coincidindo com o momento favorável “mais alto do gosto público ático”; ou seja, estilo perfeito com gosto perfeito.

Nessa perspectiva, para Schlegel, a arte grega forma uma espécie de “sistema”, seguindo o modelo de Plínio, o Velho, no historia naturalis, “[...] uma história natural do gosto e da arte”, na qual “[...] a poesia grega contém uma coleção de exemplos para todos os conceitos de gosto e arte, surpreendentemente adequados para o sistema teórico [...]; nela está contido e consumado todo o ciclo orgânico da arte e a época suprema da arte na qual o belo pode expressar-se do modo mais livre e completo, contém toda a gradação total do gosto” (SCHLEGEL, 1996, p.118).[7] Mas, para além da compilação ou classifi cação, em Schlegel, o sistema perfeito dos gregos, de duração limitada, possibilita, como exempla, ao mesmo tempo, o julgamento sobre as obras e a exigência de uma meditação contemporânea sobre a poesia, quer dizer, a continuação da “história natural geral da arte”, pois o “imperativo estético” que toma por base os exemplos da poesia grega não se satisfaz jamais e prossegue na sua tarefa interminável de apreender o absoluto e realizar a liberdade, isto é, na “[...] perfectibilidade infi nita do talento estético” (idem, p.57). O que signifi ca, historicamente, que a cada mudança na relação entre o subjetivo e o objetivo corresponde uma nova formação da poesia, que cabe ao fi lósofo apreender e descrever.   

É possível explicar, assim, por que em Schlegel o predomínio do intelecto na poesia moderna não signifi ca nada parecido com pessimismo, declínio, nostalgia do passado ou, em seus termos, “apologia da debilidade”, mas, inversamente, uma fase qualitativa na formação do homem na efetuação da perfectibilidade, isto é, na evolução em direção à liberdade. Para sustentar tal argumento, Schlegel fundamenta a relação recíproca entre poesia antiga e poesia moderna na correspondência mútua entre liberdade e natureza. Para ele, liberdade e natureza são dois impulsos ou forças[8] que explicam tanto o desenvolvimento da humanidade como o da arte; em função deles, o conceito de homem, em Schlegel, é caracterizado como uma natureza mista, unidade “ambígua” de ser, mas, diferentemente de Schiller, indivisível, na qual as forças ou ânimos, que determinam tanto a ação como a formação, jamais atuam isoladamente, haja vista que “ambas só podem existir no mundo”; nem permanecem íntegras, uma vez que resultam de um processo de formação que decorre tanto do impulso da natureza, com os instintos, inclinações e modifi cações que advêm do exterior, como da autodeterminação, isto é, da liberdade. Assim, é na relação recíproca, na interpenetração de uma força pela outra que se estabelecem as diferenças e, consequentemente, o próprio movimento de formação do homem: quando uma é força de ação, a outra é força de reação; se uma é força motriz de uma ação, a outra é força legisladora que desenvolve e dá continuidade a essa força, orientando seu percurso em direção à fi nalidade determinada. A primeira dá o impulso inicial, que é um impulso determinante, na medida em que ele defi ne a lei da progressão e a trajetória; a segunda reage diante desse primeiro impulso, por meio de uma resposta interna, direcionando seu desenvolvimento. Para Schlegel, ou a natureza dá o primeiro impulso, ou a liberdade. Na formação natural, é a natureza que dá o primeiro impulso; na formação artifi cial, é a liberdade. Quando a natureza é a força motriz, decorre que o que move a formação artística é um desejo indeterminado, que obtém satisfação não no individual, mas no geral, naquilo que é constante, necessário, portanto, no objetivo. Na formação artifi cial ou moderna, é a liberdade que dá o primeiro impulso, mas é o entendimento que legisla e dirige o movimento, de sorte que, ao contrário da formação natural, predomina o desejo de um objetivo determinado, e o desejo de satisfação que está fundado naquilo que é subjetivo, cambiante e individual.

A cultura grega é cânone para a arte em geral, na medida em que, para Schlegel, espontaneamente e sob a tutela da natureza, abarcou o “todo da natureza humana com harmonia perfeita”, fazendo confl uir natureza e liberdade na autodeterminação da arte e da beleza; ou seja, os gregos formaram uma cultura que afastava os extremos, tanto a força da necessidade, quanto o domínio do intelecto. Já na cultura moderna, forma-se, enfatiza ele, um grande gênero no qual predomina o individual, o característico, isto é, o fi losófi co. Quando as obras de arte são contaminadas pelo interesse fi losófi co, signifi ca que o livre jogo sem um fi m determinado da arte antiga é substituído pela representação de um objeto, quer dizer, pela idealidade da descrição em geral. “Porém ideal, adverte Schlegel, é uma representação na qual a matéria é eleita, ordenada e formada segundo as leis do espírito representativo” (SCHLEGEL, 1996, p.76).

A poesia moderna denominada, como vimos, interessante e artifi cial, não bela ou natural, é também nomeada de fi losófi ca, porque nela se interpõe uma diferença que se percebe no campo da representação. Nela, como faltam leis objetivas válidas universalmente, afi rma Schlegel, “[...] seu ideal é o interessante, isto é, a força estética subjetiva”. Na poesia interessante, não há uma aspiração indeterminada pela vida, mas um “[...] interesse subjetivo por uma forma especial de vida, por um assunto individual” (idem, p.55). O ideal do interessante é, portanto, interessado e, de acordo com o que postulara Kant para o juízo estético, também para Schlegel tal poesia não deve ser chamada de estética, mas de “poesia didática”. Interessante, por conseguinte, não é o curioso, nem o agradável, mas o que diz respeito ao interesse particular ditado pelo conhecimento.

O exemplo mais signifi cativo de arte moderna para Schlegel é o de Shakespeare, haja vista que nele a beleza não determina o todo – “[...] nenhum de seus dramas é belo” –, avalia Schlegel, pois servem ao interesse característico ou fi losófi co; nem sequer se pode falar que ele nos leve à verdade mais pura, pois sua obra só propicia uma visão parcial da mesma. Essa representação nunca é objetiva, mas maneirista do princípio ao fi m, pois somente tem um estilo aquele que produz formalmente segundo relações e leis estáveis de beleza e de gosto, e “[...] por maneira entendo”, destaca Schlegel, “uma orientação individual do espírito e uma atmosfera individual de sensualidade expressas em representações ideais” (idem, p.80).[9] Por essa razão, as tragédias de Shakespeare são fi losófi cas, nelas jamais se conquista harmonia e equilíbrio; ao contrário, predomina a representação de uma desarmonia insolúvel entre a força pensante e a ativa, ou seja, “[...] a eterna e colossal dissonância que separa a humanidade e o destino” (idem, p.78).

Se o interessante aproxima-se do sentimental, de Schiller, resta perceber, sublinha Schlegel, que o sentimental não é o lírico: o interessante não é apenas o desejo de infi nitude, mas essa aspiração transformada em refl exão racional sobre a relação entre o ideal e o real:

[...] os traços característicos da poesia interessante são o interesse pela realidade do ideal, a refl exão sobre a relação entre o ideal e o real e a referência a um objeto individual da imaginação idealizado pelo sujeito poético. Só por meio do característico, isto é, da representação do individual, que se transforma a tendência sentimental em poesia. (SCHLEGEL, p.56).

O lírico, ao contrário, consiste no puro e indeterminado desejo de infi nitude, desligado de qualquer objeto individual.  Ou seja, o interessante não se ajusta exatamente às três classes do sentimental schilleriano, visto que não corresponde a uma essência constituída, mas a uma fase de transição na qual se abre um campo determinado que possibilite a refl exão, quer dizer, a posição de um contraste entre a realidade e o ideal. [10]

Nesse sentido, diferentemente de Schiller, o desequilíbrio provocado pelo domínio do entendimento não signifi ca em Schlegel a morte do sensível, nem qualquer variante “do fi m da arte”, pois, quanto mais sua força individual ativa é potencializada, mais a excessiva fragmentação do interessante se transmuta, de quantidade em qualidade, no seu oposto, a busca do todo; o que predispõe o movimento que era de dispersão e multiplicação para a unifi cação. Schlegel efetua aqui um procedimento dialético no qual o individual, variável, inconstante ou subjetivo exacerbados conduzem ao seu contrário, o universal, ao invariável, ao constante, isto é, ao objetivo, de maneira que a necessidade do interessante, isto é, sua verdade, incubada, desponta agora com clareza, revelando sua orientação e meta: a preparação para o retorno do belo. “O intelecto dissociador começa separando e individualizando o todo da natureza [...]. Entretanto, também a literatura característica pode e deve representar o geral no individual; só que este geral não é estético, mas sim didático.[...] pois o instinto de uma razão ambiciona sempre uma totalidade acabada em si mesma e progride incessantemente do condicionado ao absoluto”.                                   

Assim, a história da cultura, guiada pela exigência da perfectibilidade, permite ao fi lósofo detectar mudanças e novas relações entre natureza e liberdade. A formação artifi cial, analisada em chave histórica, demonstra que a liberdade conquistou e está em vias de consolidar a supremacia sobre a natureza, ao engendrar em seu interior, organicamente, e, como reação, outro impulso determinado pelo intelecto. Ressalte-se, sobretudo, que consolidar a supremacia não signifi ca aniquilar a natureza, mas atualizar a relação recíproca entre natureza e liberdade, como bem destaca Schlegel, em Vom Wert des Studiums der Griechen und Römer, de 1795. 

a ideia de humanidade ideal. Para Schiller, só se pode rigorosamente falar do ingênuo num estado em que a harmonia está perdida; o ingênuo só se manifesta após o início da corrupção moral e estética. Ele está ligado ao confl ito entre imaginação e entendimento; e desperta o sentimento de respeito que é dado pela razão. Tal como o sublime, o ingênuo apela para a razão, para o reconhecimento da bondade natural. O ingênuo não pertence a uma idade de ouro, nem é o próprio homem natural; não está no passado, mas no futuro. Não se trata de voltar à natureza, pois o sentimento já faz parte da maturidade dos homens: “O sentimento de que se fala aqui não é, portanto, aquele que os gregos tinham; é, antes, igual ao que temos pelos antigos. Eles sabiam naturalmente; nós outros sentimos o natural” (SCHILLER, 1991, p.43-45).

Esclarecidos os termos, cabe ressaltar que o movimento ternário no qual se dá a passagem da poesia antiga para a moderna e desta para a poesia futura, pressupõe, especialmente, o movimento dialético de transição da natureza para a liberdade, no qual o interessante no caminho em direção à liberdade debruça-se sobre si mesmo; ou seja, a um só tempo ultrapassa a fragmentação e destrói a si mesmo, caminhando para a reunifi cação. Diferentemente da hegeliana, a dialética em Schlegel[11] é, principalmente, refl exiva, isto é, o autodesenvolvimento da consciência na obra como resultado de seu próprio movimento interno, orgânico; nas palavras de Schlegel, “[...] as leis de atração e repulsão das forças afi rmam que os elementos homogêneos formamse organicamente, isto é, à medida que se desenvolvem acolhem o que é semelhante, despojando-se de tudo que é estranho”. Quer dizer, é a força centrípeta que impulsiona e não a força externa; ela, “[...] depois de esgotar-se na produção de uma excessiva plenitude do interessante”, subverte-se e passa a visar ao objetivo. Dito de outro modo, como o começo da poesia moderna foi artifi cial e incompleto, ela necessitava do pensamento para desenvolver-se e chegar à totalidade; isto é, do intelecto que ordenasse o conjunto, esclarecendo e apresentando a tarefa da poesia moderna, de realizar-se no objetivo, e assim, efetivar a liberdade. A reconciliação schlegeliana não é unidade de opostos, mas, como afi rma Szondi, a inversão dialética que, deixando afl orar e exacerbar o negativo, desvela o que está oculto no interessante e que é o seu contrário –  o desejo de efetuar a beleza em um princípio de objetividade. De acordo com Schlegel, “[...] o excesso do individual conduz, pois, por si mesmo ao objetivo; o interessante é a preparação do belo, e o fi m último da literatura moderna não é outra coisa senão o supremo belo, um máximo de perfeição estética objetiva” (idem, p.81).

Para Schlegel, não se trata apenas de um prognóstico otimista e utópico para o futuro da arte, mas de uma transição já consumada na poesia de Goethe, vista como a aurora da arte autêntica e da beleza pura. As obras de Goethe são a confi rmação irrefutável da superação do interessante, demonstrando que o critério objetivo para a arte foi novamente reconhecido e que a esperança no belo não é nenhuma vã ilusão da razão. “É verdadeiramente maravilhoso como nossa época faz sentir por toda parte a necessidade do objetivo, como há o despertar da fé no belo e sintomas inequívocos anunciam o melhor gosto” (idem, p.87). Conforme Schlegel, trata-se de uma etapa totalmente nova da cultura estética que agora conquista a total autonomia, seguindo as leis racionais da perfectibilidade da humanidade e da autodeterminação do homem: a “grande revolução moral” na qual a liberdade conquistará um predomínio sobre a natureza, e sancionada pela opinião pública, pois, afi rma Schlegel, “[...] as leis da teoria estética só tem verdadeira autoridade quando são reconhecidas e sancionadas pela opinião pública” (idem, p.95). Goethe é o futuro realizado e antecipado no presente, uma vez que nele a poesia moderna é objetividade, isto é, universalidade.

Com Goethe, muda também o estatuto do artista, determinado pela moralidade, assumidamente ético, ao orientar as forças de seu ânimo para a liberdade. O instinto de representação, dominante na poesia moderna, e que aponta agora para a exigência do belo revelou, portanto, não ser movido por um poder cego ou irracional, mas pela vontade consciente de perfectibilidade. Essa consciência da perfectibilidade foi nomeada por Schlegel, em seus fragmentos críticos, de “imperativo categórico da genialidade”. Desse modo, o poeta moderno não desaparece por detrás de sua obra, como o antigo; ao contrário, afi rma-se nela com toda a sua singularidade pessoal e força ética.

O tom geral pessimista adotado em boa parte do Studium-Aufsatz transforma-se, ao fi nal, em otimista, culminando na certeza de que o ideal da arte do futuro está delineado pelo conceito de objetividade; não obstante sabermos que Schlegel substituirá, futuramente, em outras obras, o conceito de poesia romântica do futuro pelo de romance e a certeza da objetividade pela ideia do aperfeiçoamento infi nito. A correção não é desprezível, pois sustenta que a arte é infi nitamente perfectível e está em constante evolução, porque as exigências do belo são insaciáveis e indeterminadas, como confi rma o famoso fragmento nº 116 do Athenäum:

[...] o gênero poético romântico ainda está em devir; sua verdadeira essência é mesmo a de que só pode vir a ser, jamais ser de maneira perfeita e acabada. Não pode ser esgotada por nenhuma teoria, e apenas uma crítica divinatória poderia ousar pretender caracterizar-lhe o ideal. Só ele é infi nito, assim como só ele é livre, e reconhece, como sua primeira lei, que o arbítrio do poeta não suporta nenhuma lei sobre si. (SCHLEGEL, 1997, p.65).

Caberia ainda assinalar que, lido hoje, o conceito de interessante pode alimentar duas imprecisões recorrentes nas refl exões estéticas contemporâneas: de um lado, fundamentar em Friedrich Schlegel e no primeiro romantismo, de um modo geral, uma estética da subjetividade, positivada como estética da liberdade; de outro lado, ver aí in nuce uma estética do informe, antecipando uma entre as fortes tendências da arte do século XX. Em ambos os casos, a arte acaba por se defi nir como a linguagem que, desafi ando e explorando os limites formais dados, libera a imaginação para impulsionar a forma tão longe quanto pode, fazendo, portanto, confl uir gesto de desregramento com a afi rmação da liberdade.

Ora, de fato, no Studium-Aufsatz, não encontramos nem uma estética puramente subjetiva, nem uma estética do informe, mas, sobretudo, a estética refl exiva singular e original do fi nal do século XVIII. Se do interessante afl ora um tempo maduro para a refl exão é porque, com ele, a teoria é reabilitada por meio das obras, no continuum das formas, possibilitando à estética articular as condições propícias para uma crítica do juízo estético[12]. Diferentemente dos antigos, que não puderam deduzir uma ciência do gosto e da arte, os modernos, afi rma Schlegel, pelo acesso aberto ao todo pela teoria, desvelaram o segredo do objetivo, fundamentando uma fi losofi a objetiva da história e uma fi losofi a objetiva da arte (SCHLEGEL, 1996, p.139). Em Schlegel, é o moderno e não o antigo que permite vislumbrar uma nova ordem estética; o moderno, concebido como cisão e insufi ciência, exige a refl exão que rememora enquanto aguarda com esperança que a força perdida retorne, e, sob a direção da fi losofi a, pronuncie-se sobre o objetivo, ou seja, ordene o conjunto segundo princípios objetivos; o moderno que, fi nalmente, volta a efetuar a beleza, com Goethe, propiciando à fi losofi a a oportunidade de deduzir quais são as condições a priori da possibilidade de um julgamento com validade universal no campo da estética.[13]

No sistema de correspondências que Schlegel efetuara para a apreensão do presente, determinação teórica e realização prática entram em ação recíproca, no julgamento das obras modernas. A dissolução da antiguidade representa, negativamente, vazio e anarquia e, positivamente, a emergência de elementos que não podiam ser antes observados, abrindo campo para um processo de explicitação.

Desde que Fichte descobriu o fundamento da fi losofi a crítica, anuncia Schlegel, há um princípio seguro para corrigir, completar e desenvolver o compêndio kantiano de uma fi losofi a prática, e hoje já não há nenhuma dúvida de que seja possível um sistema objetivo das ciências estéticas, práticas e teóricas. (SCHLEGEL, 1996, p.146). 

Segundo Schlegel, com base em Fichte, a fi losofi a agora tem acesso ao todo, que é a verdade da arte; agora, ela tem acesso a uma consciência de si, que é uma autoconsciência, histórico-fi losófi ca. O entrelaçamento na arte entre a facticidade e o pensamento – vida e fi losofi a – é o procedimento schlegeliano que garante que a fi losofi a não separe mais subjetividade de um lado e representação e objeto do outro. Ora, isso é possível, pois a partir do conceito de Eu e Não-Eu de Fichte, isto é, do eu como aquele que se põe a si mesmo e ao mundo, na refl exão, é possível a unifi cação do ponto de vista natural e do artifi cial no estético; ou seja, no ponto de vista estético, é possível o confronto entre ideal e real, haja vista que, nele, o mundo aparece como dado interno e externo.

Entretanto, essa exigência de totalidade pré-romântica não satisfaria apenas os postulados da razão teórica? A refl exividade não continuaria refém dos princípios prévios e do sobrevoo metafísico e, no limite, incapaz de incorporar a história? Em Schlegel, não temos o todo hegeliano, nem tampouco pura totalidade transcendental, mas, sobretudo, interpenetração de força estética e de moralidade. Em outras palavras, o reconhecimento de que a plenitude ética, livre regularidade da humanidade liberal, bela simetria e equilíbrio delicado da obra decorrem de reconciliação entre força e ânimo na ação; ou, ainda, de reciprocidade entre animalidade e espiritualidade, natureza e liberdade. Uma resolução que não postula jamais o domínio da animalidade próprio belo tem de estar em harmonia, de um lado com a natureza e, de outro, com o ideal, torna-se possível estabelecer o terceiro conceito sintético que surge da ligação dos opostos, o de “humanidade ideal”. Enfi m, nem o ingênuo se subordina ao sentimental, nem este àquele, mas entram em uma relação de subordinação coordenada (SCHILLER, 1991, p. 98-101).sobre a espiritualidade, nem vice-versa, uma vez que não elimina o confl ito, a tensão entre a intenção e o instinto, buscando um acabamento em um equilíbrio no qual nenhuma força perde sua intensidade e autenticidade ao atingir a harmonia. Daí o caráter exemplar de Goethe, pois nele não haveria renúncia, nem resignação, mas equilíbrio de forças.

A originalidade do estudo sobre os antigos, realizado pelo jovem Schlegel, e sua diferença em relação a Winckelmann residem na concessão feita pelo primeiro à fi losofi a prática e na compreensão de que o conhecimento da poesia grega decorre da dialética, mesmo que parcial, que apreende o momento histórico-fi losófi co de possibilidade de apropriação do todo, eliminando qualquer possibilidade de imitação da poesia antiga, tornada preceptiva ou lei formal fi xa. Nesse contexto dialético, é preciso reconhecer, contudo, a força da “via transcendental”, porque o “objetivo” não subsume o singular, mas se refere ao “[...] vínculo ou à separação do ideal e do real” (SCHLEGEL, 1997, p.50) do qual advém o princípio prático que postula uma validade universal. Eis o segredo da poesia grega, sua “verdade técnica”, seu poder de cativar e entusiasmar imediatamente. “Pois a poesia objetiva não tem nenhum interesse, nem pretensões de realidade. Só aspira a um jogo que seja tão digno como a severidade mais sagrada; a uma aparência que tenha validade universal e normatividade como a verdade mais absoluta” (SCHLEGEL, 1996, p.55).

 Nos escritos posteriores, Schlegel, reconhecerá os limites do Studium, ressaltando que a refl exão estética que nele aparecia como fi m, é, na verdade, infi nita atualização e, portanto, contínua crítica da cultura contemporânea. Ao nomear a poesia do futuro de “poesia romântica” ou “poesia universal progressiva” adverte, sobretudo, que “romantizar” pressupõe uma refl exão inerente ao romance que não é contemplação, devaneio ou passividade. O romance é uma narrativa autobiográfi ca do processo de formação de um homem – e da humanidade – em direção à liberdade; nesse percurso, “livre de todo o interesse real e ideal”, o pensamento poético aponta sempre para o seu recomeço e não para sínteses abstratas; ou, ainda, o romance é o próprio recomeçar do jogo, pois o pensamento tem a particularidade de poder converter-se em seu próprio objeto e, desse modo, pensar sem fi m. De fato, recomeçar o jogo signifi ca permitir a eterna confl uência entre fi losofi a e poesia, na qual todo pensar é um “ato divinatório”, pois é uma visão ideal das coisas, embora consciente do caráter inacessível deste ideal, já que ele só é acessível indiretamente por meio da fantasia que luta por exteriorizar-se. É por meio do poético que o pensamento pode tender para a exteriorização e, assim, tornar-se espiritualidade e não sentimentalismo.

Com isso, talvez se explicite por que a Teoria do romance de Lukács, de 1916, é uma resposta indireta ao Studium e o diálogo decisivo do jovem fi lósofo húngaro com a fi losofi a de Schlegel. Radicalizando a crítica à cultura contemporânea, no contexto da I Guerra Mundial, Lukács exacerba a dialética histórico-fi losófi ca iniciada por Schlegel, fazendo descer ainda mais à terra o que restava ainda enigmático na compreensão do princípio objetivo em Schlegel.  Para Lukács, o romance consolidou-se como a forma representativa de nossa época, a única e mais perfeita forma de acesso à unidade, especialmente em Goethe, realizando de certo modo o prognóstico de Schlegel. A forma romance, contudo, contrariamente ao que prometia o jovem e vislumbraria, depois, o maduro Schlegel, não reconciliou termos opostos, já que, ao contrário, exacerbou a tensão entre eles. Isso evidencia que, um século depois, a cisão e a fragmentação internas ao conceito de interessante converteram-se de momento passageiro em estrutura dominante; em especial, como corolário, a “atividade refl exionante”, inerente ao interessante, afastouse defi nitivamente da substancialidade, desde que “a beleza não põe mais em evidência o sentido do mundo”, pois perdura o hiato irredutível entre interioridade e aventura. Contra o “sonho juvenil” de Schlegel de harmonizar força ativa e força pensante, Lukács vislumbra a melancolia da “virilidade madura” que, “demoníaca”, prossegue buscando o princípio unifi cador que se sabe, agora, tragicamente parcial, pois apenas “ética da subjetividade”; contra a aproximação entre o moderno e o antigo, Lukács vê na modernidade tão somente a marca da fratura, signo de uma diferença irredutível em relação aos gregos, tornada cada vez mais incontornável, à medida que a perfectibilidade do espírito – que distinguiria os modernos dos antigos, mas que, segundo Schlegel, também poderia aproximá-los – converte-se na tarefa infi nita da refl exão sobre a refl exão, que, para Lukács, é “expressão do desabrigo transcendental” que não redime a impotência de agir.

É porque não há mais totalidade espontânea do ser que o romance torna-se autônomo, afi rma Lukács, reduzido fatalmente a ser uma unidade formal abstrata; diferentemente dos gregos, a totalidade moderna só pode ser uma aproximação, porque a forma não reconcilia jamais, é apenas intenção, aspiração ou desejo, já que a vida tornou-se alheia aos ideais. O gênero romance é moderno porque problemático, ou seja, a instabilidade e descontinuidade de suas formas reenviam à fratura entre eu e mundo e sua verdade reside no fato de que lhe resta apenas a lucidez da distância que se abriu em relação à realidade vivida.

Em relação ao Studium-Aufsatz, o jovem Lukács talvez tenha produzido a refl exão mais radical no espaço aberto pelo paradoxo do conceito de interessante, potencializando a ousadia de Schlegel de constituí-lo como categoria do presente que, extraída da história, permite como medium-derefl exão pôr o contraste entre o real e o ideal. Entre o que não é mais e o que ainda não é, sobrevive insidiosamente na forma romance o que é: o presente como indeterminidade abstrata infi nita, que é para Lukács o ambíguo regozijo pela liberdade conquistada imbricado ao reconhecimento da cisão e impossibilidade de unifi cação. Como herdeiro do interessante, restava ao romance moderno ser, sobretudo, nostalgia e imanência vazia, já que ancorado na experiência do escritor, em sua subjetividade. Desse modo, para Lukács, inversamente, é a objetividade do romance que o impede de alçar a uma forma perfeita, uma vez que a ironia, a liberdade formal do romancista, tornou-se a objetividade do romance. A ironia, para Lukács, chamada corretamente pelos primeiros românticos de “auto-superação da subjetividade”, não é apenas jogo linguístico, ou interrogação sobre a relação entre discurso e sujeito do discurso, que opera com a duplicidade da linguagem, mas confi guração formal e ontológica da solidão moderna, que é pressentimento balbuciante de quem tem que “[...]  buscar o mundo que lhe seja adequado no calvário da interioridade, sem poder encontrá-lo” (LUKÁCS, 2000,p.95). Um diagnóstico que certamente escandalizaria o jovem Schlegel, porque acreditara “[...] ter encontrado uma grande perspectiva para a arte futura” e nela vislumbrado a possibilidade de unifi cação real do homem e do fi lósofo no artista; embora Novalis, mais visionário, talvez acolhesse esse diagnóstico, já que para ele a “[...] fi losofi a é na verdade nostalgia, o impulso de sentir-se em casa em toda parte” (LUKÁCS, 2000, p.25).

ABSTRACT:  This paper aims at, fi rstly, examining the originality of the concept of “interesting” in the young Friedrich Schlegel’s “On the study of ancient poetry”, in view of the uniqueness of the analysis and the method employed by the author to substantiate art critique. Secondly, highlighting how, when differentiating the Modern Greek poetry, Schlegel establishes a singular interpretation of poetry in general, in an open dialogue with Winckelmann and Schiller. And fi nally, evaluating whether Schlegel succeeds to defi nitely overcome the “quarrel between ancient and modern” when he articulates a speech that brings together art history and philosophy of art.

KEYWORDS: Friedrich Schlegel. Interesting. Ancient poetry. Philosophy of art. Art history.

REFERÊNCIAS

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GOETHE, J. W. Escritos sobre arte. São Paulo: Humanitas/Imprensa Ofi cial, 2005.

KESTLER, I. M. F. História e fi losofi a da história na obra do jovem F. Schlegel. Kriterion, v.49, n.117, Belo Horizonte, 2008.

LUKÁCS, G. Teoria do Romance. São Paulo: Editora 34, 2000.

MÜNSTER, R. El derecho a la libertad. Historia, revolución y estética objectiva en La obra temprana de Friedrich Schlegel. In: SCHLEGEL, F. Sobre el estúdio de la poesia griega. Madrid: Akal, 1995.

SCHILLER, F. Poesia Ingênua e Sentimental. São Paulo: Iluminuras, 1991.

SCHLEGEL, F. Sobre el estúdio de la poesia griega. Trad. Berta Raposo. Madrid: Akal, 1995.

______. Athenäus- Fragmente und andere Schriften. Stuttgart: Reclam, 2005.

______. O dialeto dos fragmentos. Trad. Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 1997.

SZONDI, P. Poésie et poétique de l’idéalisme allemand. Paris: Gallimard, 1974.



[1] É doutora em fi losofi a pela Universidade de São Paulo, com Pós-doutorado pela mesma universidade. Foi professora de Estética e História da Arte no Departamento de Filosofi a da UNESP, entre os anos 2005-2009, e editora da revista Trans/Form/Ação, no biênio 2008-2009. Atualmente é professora de Estética do Departamento de Filosofi a da EFLCH, na UNIFESP. É autora de vários artigos sobre a estética do jovem György Lukács, pesquisando atualmente as relações entre fi losofi a e literatura no século XVIII.”

[2] WINCKELMANN, J. J. Gedanken über die Nachahmung der griechischen Werke in der Malerei und Bildhauerkunst. 1755. Conferir em SCHLEGEL, F. Fragmente zur Poesie und Literatur, V, 236.  No fragmento n.149 da Athenäum, Schlegel corrigirá o argumento do Studium, enaltecendo Winckelmann, já que estava insatisfeito com seus próprios resultados: “O sistemático Winckelmann, que, por assim dizer, lia todos os antigos como um único autor, via tudo no todo e concentrava toda a sua força nos gregos, estabeleceu, pela percepção da diferença absoluta entre antigo e moderno, o primeiro fundamento de uma doutrina material da antiguidade. Somente quando forem encontrados o ponto de vista e as condições da identidade absoluta que existiu, existe ou existirá entre antigo e moderno, se poderá dizer que ao menos o contorno da ciência está pronto, e agora se poderá pensar na execução metódica” (SCHLEGEL, 1997, p. 71).

[3] Cf. o fragmento n.123 do Lyceum: “É uma presunção irrefl etida e imodesta querer aprender algo sobre a arte a partir da fi losofi a [...] a fi losofi a, contudo, não pode nem deve poder fazer nada mais que tornar ciência as experiências artística dadas e os conceitos artísticos existentes, elevar e ampliar a visão artística com ajuda de uma história da arte erudita e profunda, e produzir, também em relação a esses objetos, aquela disposição lógica que unifi ca liberalidade e rigorismo absoluto” (SCHLEGEL, 1997, p.40).

[4] De fato, no prefácio, Schlegel refere-se apenas ao “[...] tratado de Schiller sobre os poetas sentimentais”, mas, em nota de rodapé, o leitor é informado de que o autor também conhecia o artigo anterior “Do Ingênuo”. Cf. nota 1, p.163.

[5] Peter Szondi observa que é preciso entender melhor o primeiro romantismo na obra de Schlegel: “[...] a vontade de superar as contradições e unifi car o separado motiva as principais declarações de Schlegel”, [...] “o movimento principal do pensamento schlegeliano é em direção à unidade, comunicação, universalidade e infi nitude” (SZONDI, 1975, p.99-100).

[6] Cf. SZONDI, 1975, p.50-51. Em Vom Wert des Studiuns der Griechen und Römer, de 1795, Schlegel esclarece a relação entre as duas temporalidades: “Se supusermos como fato da experiência ou pelo menos como possibilidade, que a liberdade no homem singular ou mesmo na massa de povos singulares, tenha tido ou poderia ter tido um peso preponderante, que tenha havido homens e povos, educados, então o único sistema que poderia satisfazer plenamente a razão teórica, sem insultar os direitos do entendimento e da experiência é o sistema cíclico. Se ponderarmos que a natureza em tempo algum é aniquilada pela liberdade, que o infi nito em tempo algum poderia se tornar real, então o único sistema da história, o qual satisfaria a razão prática, sem ofender o entendimento, é o sistema da progressividade infi nita. Não poderia talvez estes dois sistemas em linha reta e opostos ser unifi cados e desta forma não poderiam ser satisfeitas a razão prática e a teórica ao mesmo tempo?” (in: KOESTLER, Izabela. História e Filosofi a da história na obra do jovem Friedrich Schlegel. Kriterion, v.49, n.117, Belo Horizonte, 2008). 7 SZONDI, 1975, p.96.

[7] Cf. o comentário de Szondi, 1974, p.52.

[8]  Os termos “força” e “impulso” utilizados por Schlegel remetem diretamente à teoria dos impulsos de Fichte. Todavia, diferentemente de Schiller, em Fichte e Schlegel o impulso é uma força indivisível e sempre prática, isto é, não há uma divisão ou fragmentação do impulso direcionando-os ora à multiplicidade, ora à unidade, como em Schiller. Ademais, o impulso é prático, uma vontade de limitação e de autolimitação.

[9] Certamente, o conceito de maneira remete a Goethe e à sua diferenciação entre imitação simples, maneira e estilo. Para Goethe, a maneira é uma forma de apreensão fenomênica que não constitui uma linguagem universal, mas uma linguagem própria: o artista “[...] cria para si mesmo uma linguagem, a fi m de expressar novamente a seu modo o que a alma apreendeu, a fi m de dar uma forma própria, designadora, a um objeto que ele retomou várias vezes, sem com isso, quando o retoma, ter a natureza mesma diante de si e sem também lembrar dela inteira e intensamente” Cf. GOETHE, J. W. Imitação simples, maneira e estilo. In: Escritos sobre arte. São Paulo: Humanitas/Imprensa Ofi cial, 2005, p.64-5.

[10] Deixando de lado a polêmica entre Schlegel e Schiller e a incompreensão mútua que parece ter dominado, na relação entre ambos, em Poesia Ingênua e Sentimental, de Schiller, há fortes analogias entre a apreensão do todo que parte do interessante e

[11]  Para Szondi, a concepção da história de Schlegel já é um processo dialético, anunciando, portanto, a dialética hegeliana (Cf. SZONDI, p.95-106).

[12] Conferir a diferença apontada por Walter Benjamin entre o conceito de “medium-de-refl exão” dos românticos e o juízo estético de Kant. “Neste contexto pode-se identifi car sem difi culdade uma diferença entre o conceito kantiano de juízo e o romântico de refl exão: a refl exão não é, como o juízo, um procedimento subjetivo refl exivo, mas, antes, ela está compreendida na forma-de-exposição da obra, desdobra-se na crítica, para fi nalmente realizar-se no regular continuum das formas” (BENJAMIN, 1993, p. 94).  

[13] Igualmente em Schiller o moderno tem algo que o helênico não possuía, isto é, o ideal. Apenas ao poeta sentimental é dado conciliar arte e natureza. O Ideal é de certa forma superior à natureza, pois “[...] se se comparam uma com a outra, fi ca patente que a meta pela qual o homem se empenha mediante a cultura é infi nitamente preferível àquela que ele alcança mediante a natureza”. Contudo, a resolução se dá sob um conceito genérico superior, isto é, na ideia de natureza humana. Visto que o