UNIVERSALIDADE ESTÉTICA E UNIVERSALIDADE LÓGICA: NOTAS SOBRE O §8 DA CRÍTICA DO JUÍZO DE KANT[1]
Pedro Costa Rego[2]
RESUMO: A tese fundamental da Estética kantiana contida na Crítica do Juízo é a de que os juízos de gosto, eminentemente subjetivos, proferidos com base num sentimento de prazer desinteressado da existência do objeto julgado e não fundados em conceitos do entendimento ou ideias da razão prática, apresentam validade universal. “Universalidade estética” é o conceito-chave com base no qual a terceira Crítica, que já havia afrontado as estéticas racionalistas com a tese da não-conceptualidade do juízo de gosto, rechaça, no outro fl anco, o ceticismo estético dos defensores de um gosto privado e incomunicável. Em sua versão expositiva e analítica, o tema da universalidade do gosto é discutido no segundo momento da Analítica do Belo, que se conclui com a tese de que “belo é o que apraz universalmente sem conceito”. A essa conclusão Kant chega, tendo estabelecido no §8, entre outras coisas, a distinção entre a universalidade própria dos juízos refl exionantes estéticos e uma certa universalidade que se deve reconhecer em juízos determinantes de conhecimento teórico ou prático. À primeira, Kant atribui três títulos: o acima referido de “universalidade estética” (ästhetische Allgemeinheit), o de “validade comum” (Gemingültigkeit) e o de “validade universal subjetiva” (subjektive Allgemeingültigkeit). Quanto à segunda, a Analítica parece pretender batizar com os nomes supostamente equivalentes de “universalidade lógica” (logische Allgemeinheit) e “validade universal objetiva” (objektive Allgemeingültigkeit). O que defendo, no presente trabalho, é que a inteligência da noção de universalidade estética fi ca comprometida por três níveis de ambiguidade presentes no estabelecimento desses conceitos. Primeiramente, discutirei as difi culdades concernentes à apresentação kantiana dos conceitos de “universalidade” (Allgemeinheit) e de “validade universal” (Allgemeingültigkeit). Em seguida, buscarei mostrar o prejuízo da confusão presente no tratamento que o §8 confere às noções de “universalidade estética” e “validade universal subjetiva”. Finalmente, vou sugerir que se deva reconhecer a distinção entre universalidade objetiva e universalidade lógica, com o fi m de encaminhar a seguinte questão: a universalidade dos juízos de gosto se defi ne prioritariamente no confronto com juízos que são universalmente válidos porque determinantes, dada a presença de conceitos do entendimento ou da razão no seu fundamento de determinação? Ou no confronto com juízos que são universais na medida em que não perdem a determinabilidade de seu valor de verdade quando seu conceito-sujeito vem a ser quantifi cado universalmente? Em poucas palavras, a universalidade do belo é anticonceptual ou apenas antilógica?
PALAVRAS-CHAVE: Juízo de gosto. Universalidade estética. Universalidade lógica. Validade universal.
A tese fundamental da Estética kantiana contida na Crítica do Juízo (CJ)[3] é a de que os juízos de gosto, eminentemente subjetivos, proferidos com base num sentimento de prazer desinteressado da existência do objeto julgado e não fundados em conceitos do entendimento ou ideias da razão prática, apresentam validade universal. “Universalidade estética” é o conceitochave com base no qual a terceira Crítica, que já havia afrontado as estéticas racionalistas com a tese da não-conceptualidade do juízo de gosto, rechaça, no outro fl anco, o ceticismo estético dos defensores de um gosto privado e incomunicável.
Em sua versão expositiva e analítica, o tema da universalidade do gosto é discutido no segundo momento da Analítica do Belo, que se conclui com a tese de que “belo é o que apraz universalmente sem conceito”. A essa conclusão Kant chega, tendo estabelecido no §8, entre outras coisas, a distinção entre a universalidade própria dos juízos refl exionantes estéticos e uma certa universalidade que se deve reconhecer em juízos determinantes de conhecimento teórico ou prático. À primeira, Kant atribui três títulos: o acima referido de “universalidade estética” (ästhetische Allgemeinheit), o de “validade comum” (Gemingültigkeit) e o de “validade universal subjetiva” (subjektive Allgemeingültigkeit). Quanto à segunda, a Analítica parece pretender batizar com os nomes supostamente equivalentes de “universalidade lógica” (logische Allgemeinheit) e “validade universal objetiva” (objektive Allgemeingültigkeit). O que defendo, no presente trabalho, é que a inteligência da noção de universalidade estética fi ca comprometida por três níveis de ambiguidade presentes no estabelecimento desses conceitos.
Primeiramente, discutirei as difi culdades concernentes à apresentação kantiana dos conceitos de “universalidade” (Allgemeinheit) e de “validade universal” (Allgemeingültigkeit). Em seguida, buscarei mostrar o prejuízo da confusão presente no tratamento que o §8 confere às noções de “universalidade estética” e “validade universal subjetiva”. Finalmente, vou sugerir que se deva reconhecer a distinção entre universalidade objetiva e universalidade lógica, com o fi m de encaminhar a seguinte questão: a universalidade dos juízos de gosto se defi ne prioritariamente no confronto com juízos que são universalmente válidos porque determinantes, dada a presença de conceitos do entendimento ou da razão no seu fundamento de determinação? Ou no confronto com juízos que são universais na medida em que não perdem a determinabilidade de seu valor de verdade quando seu conceito-sujeito vem a ser quantifi cado universalmente? Em poucas palavras, a universalidade do belo é anticonceptual ou apenas antilógica?
Há bons motivos para crer que a origem da primeira difi culdade acima indicada remete a uma certa parcimônia explicativa de Kant quando do estabelecimento do ponto de vista segundo o qual são analisados os juízos na Analítica do Belo. À primeira vista, ele seria o mesmo que o da análise das formas lógicas do julgar, na Dedução Metafísica da CRP, bem como na Lógica. Aqui como lá, os juízos são divididos em quatro grupos, cada um apresentando três formas. Nas três obras, os grupos recebem os mesmos títulos de quantidade, qualidade, relação e modalidade. A inversão da ordem de análise dos dois primeiros, quando da passagem para a obra de 1790, não é em si sufi ciente para caracterizar alguma mudança essencial na perspectiva expositiva.
Deve-se, no entanto, observar que o objetivo de Kant com a análise dos juízos na terceira Crítica é inverso ao da Dedução e da Lógica. Nestas, trata-se de apresentar o conjunto completo das formas que devem adotar indiscriminadamente todos os juízos – admitida como padrão a forma categórica do grupo da relação. Do ponto de vista da qualidade, qualquer juízo é afi rmativo, ou negativo, ou infi nito; do ponto de vista da quantidade, é singular, particular ou universal etc. Na Analítica do Belo, contrariamente, aqueles quatro títulos são empregados numa análise que visa a destacar um tipo de juízo de todos os demais. Para a terceira Crítica, pouco importa que todos os juízos em que ocorre o predicado da beleza se inscrevam na norma geral da Dedução Metafísica e da Lógica e devam ser, do ponto de vista da qualidade, do tipo “X é belo”, “X não é belo” ou “X é não-belo”; da quantidade, do tipo “este X é belo”, “alguns X são belos” ou “todos o X são belos”. O que importa é identifi car o que distingue, do ponto de vista de qualidade, quantidade, relação e modalidade, juízos em que ocorre o predicado “belo” daqueles em que esse predicado não ocorre. O ponto de vista inclusivo da Dedução e da Lógica é o ponto de vista da forma lógica. O ponto de vista distintivo segundo o qual procede a CJ, nos quatro momentos da Analítica do Belo, é o da operação do ânimo (Gemüt) que precede o enunciado, que também podemos chamar de ponto de vista do ajuizamento (Beurteilung). Kant fornece os elementos para essa conclusão no §9 da Analítica, sobre o qual convém uma breve incursão prévia à tematização da universalidade estética.
Ao distinguir em seu primeiro parágrafo, e antes mesmo de lançar mão do critério do desinteresse, os juízos de gosto dos teórico-cognitivos, a Analítica do Belo deixa claro que aqueles são proferidos com base numa “[...] referência ao sentimento de prazer e desprazer [...] no qual o sujeito sente-se a si próprio do modo com ele é afetado pela representação” (§1, 279, BA4). Isso signifi ca que só nos autorizamos a conectar o predicado da beleza ao conceito pelo qual identifi camos um objeto que afeta (portanto, a produzir o juízo “X é belo”) se, antes, tivermos sentido um prazer por ocasião dessa afecção. Se o critério de discriminação de objetos como belos é o sentimento (desinteressado) do nosso estado de ânimo, este sentimento precede a aplicação judicativa do predicado da beleza.
Mas, se isso é correto, como interpretar a tese principal do §9 (“a chave da crítica do gosto e por isso digna de toda a atenção”), segundo a qual no juízo de gosto o ajuizamento do objeto precede o sentimento de prazer? Cito o título do §, mesmo já tendo anunciado a solução de Kant: “Investigação da questão sobre se no juízo de gosto (Geschmacksurteil) o sentimento de prazer precede (vorhergeht) o ajuizamento do objeto (Beurteilung des Gegenstandes) ou se este precede aquele” (§9, 295, BA27). Tudo indica que a distinção entre juízo e ajuizamento visa a tornar consistentes as teses dos §s 1 e 9.
A expressão “juízo de gosto” aparece na Analítica do Belo de modo sufi cientemente polissêmico para abrigar três acepções: em primeiro lugar, “juízo de gosto” signifi ca, aí, a mera atribuição predicativa “X é belo”. Em segundo lugar, a expressão designa a operação mental que consiste na comparação entre uma representação dada e o princípio da refl exão estética, a saber, o princípio subjetivo da Stimmung entre entendimento e imaginação. O termo “Beurteilung” parece ser empregado por Kant para dar conta especifi camente dessa acepção de “juízo de gosto”. Finalmente, encontramos a expressão “juízo de gosto” designando a unidade desses dois atos, intermediada pelo prazer estético; isto é, a operação mental em conjunto com a atribuição predicativa. É essa última acepção que tem a expressão “juízo de gosto” no título citado do §9.
Somente essas distinções permitem a Kant defender sem contradição, no §1, que o sentimento de prazer precede o juízo de gosto, e no §9, que o juízo de gosto precede o sentimento de prazer. Ora, o sentimento de prazer precede o juízo de gosto na acepção (i), de mera atribuição predicativa, na medida em que preciso antes provar sensivelmente a beleza para indicar, na predicação, o objeto que a desencadeia. Mas o juízo de gosto na acepção (ii), isto é, na acepção de operação mental de referência ao princípio da refl exão, precede o sentimento de prazer, na medida em que - e esta é a tese do §9 - o prazer desinteressado só pode consistir na consciência sensível que o sujeito tem de um estado subjetivo no qual ele é lançado quando uma representação é referida ao princípio subjetivo da refl exão estética. Essa operação de referência é a Beurteilung.
Essa conquista conceitual com base no §9 traz uma luz sobre o ponto de vista distintivo segundo o qual o juízo de gosto é comparativamente analisado na terceira Crítica. Segundo o critério lógico-formal da Dedução Metafísica e da Lógica, não é possível distinguir juízos refl exionantes de juízos determinantes, e tampouco tomar ciência da diferença entre juízos teóricos estritos, juízos práticos sobre a perfeição interna de objetos, juízos práticos utilitários, juízos estéticos empíricos, juízos de beleza aderente e juízos estéticos puros. Se a Analítica do Belo chega a realizar todas essas tarefas, é porque ela se debruça prioritariamente sobre a operação de referência de representações a princípios pertencentes ao sujeito e sobre a natureza desses princípios operativos, chamados de fundamentos de determinação (Bestimmungsgrund) do ajuizamento. Isto é, a Analítica do Belo volta-se prioritariamente sobre o juízo como Beurteilung, e não sobre a forma lógica da ligação de representações conceituais.
O primeiro momento da Analítica confi rma essa tese, ao constatar que o juízo de gosto se distingue dos demais, negativamente, uma vez que consiste na operação de referência de representações dadas a um fundamento de determinação subjetivo que não é uma determinação de nossa faculdade de apetição – nem uma inclinação, nem um fi m. Positivamente, na medida em que refere representações dadas a uma certa afi nação subjetiva de faculdades, da qual só podemos nos tornar conscientes no modo do sentimento desinteressado da existência de objetos.
Ora, se aqui pouco interessa que o juízo de gosto tenha que ser afi rmativo, negativo ou infi nito, é de se esperar que interesse pouco ao segundo momento que seu conceito-sujeito tenha ou não que poder ser quantifi cado universalmente, tenha ou não que permanecer singular ou particular, do ponto de vista da forma lógica. Do ponto de vista da Beurteilung, ser universal (allgemein) para o juízo de gosto não é poder ou não poder aplicar o quantifi cador “todos” ao conceito-sujeito. Ser universal, espera-se, é operar a referência de representações a um fundamento de determinação intersubjetivo, presente em todos os sujeitos que julgam. Um juízo de gosto é universal (allgemein) na medida em que ele é uma operação do ânimo, isto é, um ajuizamento universalmente válido (allgemeingültig). Eis então o que eu gostaria de concluir acerca desse primeiro ponto: espera-se de uma exposição analítica de juízos que adota o ponto de vista da Beurteilung, e não o ponto de vista da forma lógica, que, ao enfrentar a tarefa de determinar a quantidade dos juízos de gosto, conclua que essa quantidade se determina com intersubjetividade, isto é, validade universal, e pouco se preocupe com o tema da quantifi cação do conceito-sujeito.
O que vemos, entretanto, no segundo momento da Analítica, é que Kant não se contenta em analisar a quantidade do juízo de gosto do ponto de vista da Beurteilung, e concluir que a universalidade que a caracteriza, qualifi cada como “estética”, se distingue daquela que marca os juízos determinantes por repousar sobre um princípio intersubjetivo não-conceitual. Em vez disso, o fi lósofo parece suplementarmente lançar mão do ponto de vista da forma lógica em suas análises. Ao fazê-lo, infelizmente não concentra seus esforços em descrever as implicações que uma intersubjetividade não-conceitual traz para o problema da quantifi cação do sujeito nas proposições estéticas. Kant opta, antes, por mesclar problematicamente a noção de universalidade como intersubjetividade de base conceitual, própria dos juízos determinantes, com a de universalidade como forma lógica da quantifi cação do conceito-sujeito – que não cabe a todos os tipos de juízo determinante – ao apresentar duas noções indiscriminadamente como o contraponto da universalidade estética.
Cito o trecho do §8 da CJ que servirá de base para minhas análises e passo imediatamente em seguida a elas:
(alínea 1) Ora, aqui cabe observar antes de mais nada que uma universalidade (Allgemeinheit) que não repousa sobre conceitos de objetos (ainda que somente empíricos) não é absolutamente lógica, mas estética, isto é, não contém nenhuma quantidade objetiva do juízo, mas somente uma subjetiva, para a qual também utilizo a expressão validade comum (Gemeingültigkeit), a qual designa a validade não da referência de uma representação à faculdade de conhecimento, mas ao sentimento de prazer e desprazer para cada sujeito (a gente pode porém se servir também da mesma expressão para a quantidade lógica do juízo, desde que se acrescente: validade universal (Allgemeingültigkeit) objetiva, à diferença da simplesmente subjetiva, que é sempre estética).
(alínea 2) Ora, um juízo objetiva e universalmente válido é também subjetiva e universalmente válido, isto é, se o juízo vale para tudo o que está contido sob um conceito dado, então ele vale também para qualquer um que represente um objeto através deste conceito. Mas de uma validade universal subjetiva, isto é, estética, que não repousa sobre qualquer conceito, não se pode deduzir a validade universal lógica, porque aquela espécie de juízo não remete absolutamente ao objeto. Justamente por isso, todavia, a universalidade estética que é conferida a um juízo também tem que ser de uma espécie peculiar, porque nela o predicado da beleza não se conecta ao conceito do objeto considerado em sua inteira esfera lógica, e no entanto se estende sobre a esfera inteira dos que julgam.(alínea 3) No que concerne à quantidade lógica, todos os juízos de gosto são singulares. Pois, porque tenho que ater o objeto de modo imediato ao meu sentimento de prazer e desprazer, e contudo não através de conceitos, assim aqueles não podem ter a quantidade de um juízo objetiva e comumente válido... (§8, 292-3, BA23-4).
A primeira alínea é eminentemente defi nitória e razoavelmente clara. Tese de Kant: deve-se distinguir entre uma intersubjetividade que repousa na referência de uma representação a conceitos de objetos e uma outra que não repousa sobre conceitos, mas sim sobre a referência de uma representação ao sentimento de prazer. À última, Kant dá o nome de “validade universal estética”. À primeira, chama de “validade universal lógica” ou “objetiva”, indiferentemente.
Não obstante a clareza da mensagem essencial, o intérprete não deixa de fi car intrigado com três pontos. Primeiro: por que Kant inicia o trecho usando a expressão “universalidade”, para depois substituí-la por “validade universal”? Afi nal, o texto deixa claro que não se trata de distinguir entre a universalidade dos juízos determinantes e a validade universal dos estéticos: a passagem se conclui justamente com a tese de que tanto uns quanto outros (e não apenas os estéticos) possuem validade universal: uns, validade universal objetiva, outros, validade universal estética.
Segundo: por que exatamente Kant decide assimilar aqui universalidade lógica e universalidade objetiva? Ambas designam, de modo claro, nesta alínea, indiscriminadamente, uma validade universal fundada em conceitos de objetos. E no entanto o qualifi cativo “lógica”, diferentemente do adjetivo “objetiva”, tende a sugerir justamente uma dispensa da referência a objetos, pelo menos em sentido epistêmico. Bem sabemos que, para Kant, a Lógica em geral, destituída da qualifi cação de “transcendental”, trata da forma dos juízos e abstrai de sua referência objetiva.
Finalmente, terceiro: por que Kant se dá o direito de afi rmar categoricamente, no fi nal do trecho citado, que toda validade universal subjetiva é sempre estética, se linhas adiante o mesmo Kant afi rma que “um juízo objetiva e universalmente válido é também subjetiva e universalmente válido [...]”? A conclusão absurda do encontro entre essas duas afi rmações é a tese de que juízos de validade universal objetiva, a saber, os determinantes, possuem a mesma validade universal estética dos refl exionantes, visto que, afi nal, são subjetivamente universais.
Estou convencido de que esta última difi culdade é simplesmente um erro de Kant, constatado por diversos comentadores, entre os quais Guyer e Allison, e reparável sem maiores conseqüências. Mas as duas primeiras não me parecem imprecisões anódinas. Confundir universalidade com validade universal e confundir universalidade lógica com universalidade objetiva são manifestações periféricas de uma mistura maior que compromete a exposição kantiana do conceito-chave do §8 da CJ. Trata-se da mistura entre dois pontos de vista que deveriam permanecer claramente separados na análise dos juízos: o ponto de vista da forma lógica, sede dos conceitos de universalidade e universalidade lógica, e o ponto de vista da operação do ânimo, sede dos conceitos de validade universal e validade universal objetiva.
Examinarei brevemente essas difi culdades por ordem de importância. Em primeiro lugar, portanto, algumas palavras sobre assimilação entre a natureza estética e a natureza subjetiva da validade universal dos juízos.
Kant parece utilizar ao longo do §8 a expressão “validade universal subjetiva” em dois sentidos: ora como validade para a totalidade dos sujeitos que julgam em geral, ora como a validade para a totalidade dos sujeitos que julgam com base no princípio geral dos juízos refl exionantes estéticos. Mas a primeira frase da segunda alínea acima transcrita parece deixar clara a preferência pela primeira acepção:“Ora, escreve Kant, um juízo objetiva e universalmente válido é também subjetiva e universalmente válido [...]”. Levar a frase a sério implica concluir que tanto os juízos determinantes, quanto os refl exionantes estéticos possuem validade universal subjetiva, visto que, abstração feita da natureza da validade universal de seu fundamento de determinação (se conceitual ou refl exionante), são realizáveis por todos os sujeitos dotados de capacidade cognitiva discursiva e das faculdades de entendimento e imaginação. Mas considerada essa acepção de “validade universal subjetiva”, convém registrar que não é verdadeira a afi rmação de Kant, imediatamente acima, de que toda “validade universal subjetiva é sempre estética”. Antes, dever-se-ia dizer que toda validade universal estética (bem como a lógica/ objetiva) é sempre subjetiva. Assim, Kant deveria ter deixado claro na primeira alínea que os conceitos de validade universal estética e de validade universal objetiva estão subordinados à esfera do conceito de validade universal subjetiva, entendida como uma determinação da quantidade dos sujeitos que julgam[4]. Essa difi culdade é, entretanto, visivelmente menos relevante do que a confusão entre os pontos de vista judicativos aplicados na análise do gosto. Seja então esse ponto central.
Seria razoável esperar que Kant sugerisse a distinção entre universalidade e validade universal com o fi m de marcar a diferença entre uma análise de juízos do ponto de vista da forma lógica e uma outra, do ponto de vista da legitimidade na reivindicação de assentimento dos outros sujeitos que julgam sobre o mesmo objeto. Diríamos, assim, de alguns juízos, que eles são universais na medida em que seu conceito-sujeito pode ser quantifi cado universalmente (sem prejuízo da determinabilidade de seu valor de verdade). E diríamos de outros que, apesar de seu conceito-sujeito não poder ser quantifi cado de modo universal, mas somente de modo particular ou singular, são ainda assim de algum modo universais, a saber, na medida em que são universalmente válidos, isto é, visto que valem para todos os sujeitos que julgam o mesmo objeto. Concluiríamos, pois, que (i) todos os juízos universais seriam universalmente válidos, porque aquilo que torna legítima a quantifi cação universal do ponto de vista da forma lógica necessariamente garante também a extensão da validade do juízo a todos os sujeitos; a saber, o conceito-sujeito e seu conteúdo[5]; e (ii) nem todos os juízos universalmente válidos são universais (ou universalizáveis), já que aquilo que garante a extensão do juízo ao conjunto dos julgantes não é sufi ciente para assegurar a legitimidade epistêmica da forma lógica da universalidade. Este último seria, entre outros, o caso dos juízos de gosto, cujo fundamento de determinação é universalmente acessível, mas cujo predicado não é aplicado à esfera lógica do conceito-sujeito.
Assim, o juízo “todas as rosas são fl ores” é universal, e por isso mesmo universalmente válido (o mesmo vale para juízos não-analíticos, mas sintéticos a priori, por outros motivos que não o que segue), visto que a inteligência do conceito “rosa” garante tanto o reconhecimento analítico da sua intensão (portanto, do conceito superior “fl or” como contido no conceito “rosa” e predicável a priori de todas as rosas), quanto a validade da atribuição analítica para todos os sujeitos que julgam. Por sua vez, a aplicação do predicado da beleza ao conceito “rosa” expressa uma operação judicativa que tem como fundamento de determinação um princípio pertencente ao sujeito como tal. Isso garante ao juízo validade universal, vale dizer, intersubjetividade, mas não universalidade, na medida em que a beleza jamais é afi rmada indiscriminadamente do conjunto de indivíduos que caem sob um conceito, mas sempre de um indivíduo, cujo conceito serve apenas para localizar aquilo que desencadeia a refl exão estética.
Infelizmente, entretanto, Kant não propõe ao longo de todo o §8 nenhuma distinção clara entre as noções de universalidade e validade universal, e, no entanto, parece supor alguma na defesa da singularidade do juízo de gosto. O que encontramos na primeira alínea acima transcrita é uma assimilação entre elas, na forma das seguintes teses:
• (i) uma Allgemeiheit estética é sempre uma Gemeingültigkeit ou
Allgemeingültigkeit, chamada de subjetiva;
• (ii) Allgemeiheit lógica é sinônimo de Allgemeingültigkeit objetiva.
Note-se que Kant não afi rma que juízos que apresentam universalidade lógica apresentam também validade universal objetiva. Em vez disso, afi rma que podemos nos servir da expressão “validade universal objetiva” para designar a universalidade lógica. Ora, se a universalidade lógica é dita uma intersubjetividade fundada em conceitos, segue naturalmente que o qualifi cativo “lógico” está sendo usado aqui para designar simplesmente a conceptualidade dos juízos determinantes, e não a quantifi cabilidade universal do seu conceito-sujeito.
A coisa, entretanto, muda de fi gura algumas linhas abaixo, no que podemos chamar de uma primeira inusitada intervenção do ponto de vista da forma lógica no §8. Seja novamente o início da segunda alínea:
Ora, um juízo objetiva e universalmente válido é também subjetiva e universalmente válido, isto é, se o juízo vale para tudo o que está contido sob um conceito dado, então ele vale também para qualquer um que represente um objeto através deste conceito (negrito meu).
Trata-se aqui, de início, da subordinação do conceito de universalidade lógica, leia-se, objetiva, ao de universalidade subjetiva. Que signifi ca isso exatamente? Ora, como na primeira alínea a “universalidade objetiva”, que é sinônimo de “universalidade lógica”, repousa simplesmente sobre o caráter conceitual do fundamento de determinação do juízo, o que Kant está agora afi rmando é que um juízo determinante é válido para todos os sujeitos porque seu Bestimmungsgrund é um conceito do entendimento ou uma idéia da razão prática, representações originárias de faculdades presentes em todos os sujeitos racionais fi nitos.
Mas se observarmos bem, no segundo enunciado, a expressão “validade universal objetiva” deixa de signifi car uma validade intersubjetiva fundada em conceitos. A expressão de equivalência “isto é”, não deixa nenhuma dúvida. Ela expressa duas novas e inusitadas convicções de Kant. Primeiro, que “validade universal objetiva” passa a signifi car a “validade de um juízo para tudo o que está contido sob um conceito”. Ou seja, passa a ser o mesmo que a quantifi cabilidade universal do conceito-sujeito de um juízo, identifi cável a partir de uma análise da forma lógica do juízo. Segundo, que haveria uma perfeita equivalência em inferir a validade de um juízo para qualquer a partir da conceptualidade do juízo e inferir essa validade para qualquer um a partir da quantifi cabilidade universal do conceito-sujeito de um juízo.
Quanto a esse segundo ponto, observa-se que o raciocínio não está propriamente equivocado. Apenas, ele contém uma ambigüidade suspeita. Ora, é correto dizer de juízos que apresentam a forma lógica da universalidade, juízos do tipo “todos os S são P”, (se são epistemicamente consistentes) também apresentam validade intersubjetiva, nos termos de Kant, “validade para qualquer um”. Mas eles não apresentam esta última validade pelo fato de que são universalmente quantifi cáveis (são do tipo “todos os S são P”), mas sim porque são conceitualmente fundados. Essa fundação conceitual é uma condição sufi ciente, mas não necessária, para a validade intersubjetiva de um juízo, e uma condição necessária, mas não sufi ciente, para a quantifi cabilidade universal de um juízo.
Para tornar isso mais claro: todos os juízos determinantes, por serem fundados em conceitos do entendimento ou da razão, são intersubjetivamente válidos. No caso desses juízo, é a presença de conceitos no seu fundamento de determinação que os torna “válidos para qualquer um”. Ora, essa mesma conceptualidade é uma condição necessária, embora insufi ciente, para a construção de juízos do tipo “todos os S são P”. A condição adicional é que P ou bem seja uma nota do conceito S, ou bem esteja sinteticamente a priori conectado ao conceito S. Mas não é absolutamente necessário que um juízo determinante seja ou bem analítico, ou bem sintético a priori, para que ele apresente validade para qualquer um. A prova disso é que juízos de conhecimento empírico contingente podem perfeitamente ser válidos para qualquer um sem admitir a quantifi cação universal do seu conceito-sujeito[6]. Assim, por exemplo, o juízo “alguns cisnes são brancos” não pode ser dito privadamente válido, mas tampouco pode assumir a forma lógica da universalidade sem que seu valor de verdade se torne indeterminável.
O que quero dizer com a expressão “ambigüidade suspeita” é que o argumento contido nessa passagem parece pretender justifi car uma confusão de pontos de vista análise - o ponto de vista de forma lógica e o da operação do ânimo - que Kant insiste em não reconhecer como perniciosa. Ao sugerir que deduzir a validade intersubjetiva a partir da conceptualidade do juízo é equivalente a deduzi-la a partir da quantifi cabilidade universal de seu conceito sujeito, Kant parece ignorar que nem todo juízo capaz de validade universal objetiva é capaz de universalidade lógica[7].
A alínea 2 prossegue com a afi rmação inquestionável de que não se pode deduzir a validade universal lógica da validade universal subjetiva. Abstração feita do renovado equívoco de assimilar validade universal subjetiva e validade universal estética, o raciocínio é válido qualquer que seja, das duas candidatas, a acepção de “universalidade lógica”. Como parece mais razoável aqui a acepção de validade intersubjetiva em função de conceitos, a explicação é que do fato de um juízo valer para todos os sujeitos, não segue que ele possua um conceito do entendimento ou da razão prática como fundamento de determinação. Mais uma vez, a exceção que legitima o raciocínio é o juízo refl exionante estético, universalmente válido em virtude de um fundamento não-conceitual. Nos termos de Kant, um juízo que, apesar de universal, “não remete absolutamente ao objeto”.
Mas a conclusão da alínea pode ser vista como o coroamento da equivocidade que paira sobre as noções aparentemente sinônimas de universalidade lógica e validade universal objetiva, apresentadas como o contraponto da universalidade do juízo de gosto. A decisão fi nal do texto kantiano, contrariando a primeira alínea, parece ser pela defi nição da universalidade estética num juízo infi nito em que a negação predicativa exclui os juízos de gosto apenas da esfera dos juízos analíticos e sintéticos a priori. Tese conclusiva da alínea: o que distingue a universalidade estética, própria do juízo de gosto, é que “[...] nela o predicado da beleza não se conecta ao conceito do objeto considerado em sua inteira esfera lógica, e, no entanto, se estende sobre a esfera inteira dos que julgam”.
Considerem-se os três tipos fundamentais de juízo da gnosiologia kantiana: os analíticos, os sintéticos a priori e os sintéticos a posteriori. Segundo a acepção que a primeira alínea confere a essa noção, os três apresentam “universalidade lógica”, assumam ou não a forma lógico-quantitativa da universalidade. O motivo é que os três são juízos determinantes, têm um conceito como fundamento de determinação, e a primeira alínea começa defi nindo a universalidade lógica como aquela validade universal (para todos os sujeitos) “[...] que repousa sobre conceitos (ainda que somente empíricos)”. A guiarmo-nos pela Introdução da CJ, bem como pela primeira alínea acima analisada, era de se esperar que o §8, ao apresentar a universalidade estética da refl exão como contraposta à universalidade lógica da determinação, confi rmasse a peculiaridade dos juízos de gosto relativamente aos três tipos acima mencionados de juízos com valor cognitivo.
Todavia, o que vemos é a conclusão da segunda alínea acima transcrita contrapondo a universalidade estética à universalidade da quantifi cação lógica. E com isso, juízos de gosto não se distinguem mais de juízos determinantes ou conceitualmente determinados em geral, porque há pelo menos um tipo de juízo cognitivo e conceitualmente determinado cuja universalidade, exatamente como a do juízo de gosto, “[...] não conecta o predicado [...] ao conceito do objeto considerado em sua inteira esfera lógica, e, no entanto, o estende sobre a esfera inteira dos que julgam”.
Do ponto de vista estrito da forma lógica, juízos analíticos, sintéticos a priori, sintéticos a posteriori e refl exionantes estéticos podem assumir a quantidade da universalidade. Porém, do ponto de vista lógico-transcendental, apenas os dois primeiros podem permanecer determináveis em seu valor de verdade quando quantifi cados universalmente. Em juízos sintéticos a posteriori, dependentes de dados contingentes da experiência, sujeitos racionais fi nitos não podem determinar se o predicado vale para toda a esfera do conceitosujeito. Para isso, precisariam estar em condições de verifi car empiricamente a totalidade das representações recognoscíveis pelo conceito-sujeito, o que é notadamente impossível em relação a dados contingentes.
Ora, quando Kant emprega o critério da quantifi cação lógica para distinguir a universalidade do gosto, deixa passar pelo crivo, junto com os estéticos puros, os cognitivos empíricos, o que joga por terra meticulosa sistemática de eliminação que caracteriza a estratégia da Analítica do Belo. A mesma confusão entre validade universal (intersubjetividade) com base em conceitos e universalidade como quantifi cação lógica, que Kant já pretendera legitimar, sob os nomes equívocos de “universalidade lógica” e “universalidade objetiva”, inferindo de ambas a validade universal subjetiva, volta à cena como o obscuro contraponto do decisivo conceito de universalidade estética.
O trecho acima citado da terceira alínea começa confi rmando a migração semântica que torna a universalidade lógica uma determinação da forma lógica do juízo. Só isso permite afi rmar que os juízos de gosto são “[...] singulares no que concerne à quantidade lógica”. Ora, se Kant se mantivesse fi el à acepção de universalidade lógica da primeira alínea, contrapor a quantidade dos juízos de gosto à dos juízos “objetiva e comumente válidos” implicaria afi rmar que eles não possuem nenhuma quantidade “lógica” (na medida em que a validade que lhes cabe não se funda em conceitos), e não que eles são singulares.
Mas a conclusão da alínea parece justamente recusar a migração semântica que a inaugura. Observe-se que ela pretende ser uma explicação da singularidade do juízo de gosto. “No que concerne à quantidade lógica, todos os juízos de gosto são singulares. Pois [...]”. Ora, para tanto, ela deveria afi rmar que, do fato de que o juízo de gosto é estético e não fundado em conceitos, segue que ele não é universalmente quantifi cável. Mas o que Kant de fato afi rma é que “[...] Pois, porque tenho que ater o objeto de modo imediato ao meu sentimento de prazer e desprazer, e contudo não através de conceitos, assim aqueles não podem ter a quantidade de um juízo objetiva e comumente válido[...]”. Isso é o mesmo que dizer que do fato de que o juízo de gosto é estético e nãoconceitual, ele não possui uma validade universal fundada em conceitos (nos termos de Kant, “não é um juízo objetiva e comumente válido”).
Convém notar que as duas afi rmações são verdadeiras. Todavia, elas não dizem a mesma coisa, e a segunda (de fato afi rmada) é uma suspeita explicação (“pois”) da singularidade lógica do gosto. Ora, validade universal sem conceitos não é sinônimo de impossibilidade de quantifi cação universal, e, a rigor, não explica adequadamente a singularidade de um juízo. De um lado, como vimos, ainda que todos os juízos estéticos e não-conceituais devam ser singulares (ou particulares), natureza estética e não-conceptualidade, sendo sufi cientes, não são condições necessárias para que um juízo tenha de ser singular. Confi rma-o o exemplo dos juízos de conhecimento empírico e contingente da natureza. E ainda mais evidente, de outro lado, é o fato de que não é absolutamente necessário que um juízo possua validade universal nãoconceitual para ter que ser singular do ponto de vista lógico. Juízos estéticos empíricos são tão pouco universalmente quantifi cáveis quanto os puros, e no entanto não valem para todos os sujeitos que julgam.
Para concluir. O equívoco fundamental que identifi co no §8 da Analítica do Belo não é o de tomar a decisão de abordar comparativamente a quantidade do juízo de gosto também do ponto de vista da forma lógica, e não apenas do ponto de vista da operação do ânimo (isto é, o ponto de vista da Beurteilung). Que não haja esse tipo de acréscimo em nenhum dos outros três momentos da seção, não é um motivo razoável para diagnosticar incoerência ou condenar assimetria na parte expositiva da obra. O equívoco está antes em falhar no empreendimento crítico por excelência de desenhar com clareza os limites de cada perspectiva, livrando assim de ambiguidades e polissemias sua aplicação, bem como a defi nição do conceito-chave de universalidade estética.
Ao assimilar no princípio a noção de universalidade à de validade universal, Kant perde a oportunidade de distinguir a quantidade como forma lógica do juízo da quantidade como validade para sujeitos que julgam, e passa a contrabandear a primeira no território da segunda. Uma equivocidade tributável ao uso linguístico explica em parte. Juízos válidos para todos os sujeitos e válidos para toda e esfera do conceito-sujeito são ditos “universais” (allgemeine), ao passo que de juízos válidos para um sujeito e válidos para uma representação identifi cada pelo conceito-sujeito são ditos respectivamente privadamente válidos (privatgültige) e singulares (einzelne). Mas dissolver homonímias é historicamente parte decisiva do métier do fi lósofo, e Kant parece mesmo querer mesclar as duas acepções de universalidade lógico-objetiva – validade intersubjetiva com base em conceitos e quantifi cabilidade universal – situando ambas indiscriminadamente como o contraponto da universalidade estética. É verdade que todos os juízos universalmente quantifi cáveis são conceitualmente intersubjetivos; que o juízo de gosto não é conceitualmente intersubjetivo; logo, que o juízo de gosto não é universalmente quantifi cável. Porém, a universalidade do juízo de gosto não se defi ne propriamente como antilógica, vale dizer, como contraposta à de juízos do tipo “todos os S são P”, porque assim não se cumpre, no nível de uma análise da quantidade, o objetivo da Analítica, que é isolar o juízo de gosto. De um lado, juízos teóricos de conhecimento empírico são tão universais quanto juízos de gosto, e igualmente refratários à quantifi cação universal; de outro, apenas os juízos de gosto possuem uma universalidade não fundada em conceitos de objetos. A segunda contraposição isola o juízo de gosto, enquanto a primeira o aloja ao lado do conhecimento contingente da natureza.
Procurei mostrar que Kant dá sinais de que a defi nição precisa da refl exão estética, do ponto de vista da quantidade, se faz na contraposição de sua universalidade em relação à dos juízos que são conceitualmente intersubjetivos, e não à dos que são conceitualmente intersubjetivos e suplementarmente universalmente quantifi cáveis. Parece-me que isso seria precisa e economicamente traduzido na tese de que a universalidade estética se defi ne numa oposição à universalidade objetiva, e não à universalidade lógica. Mas Kant sucumbe à curiosa e desnecessária tentação de identifi car as duas últimas, quando da defesa de que todo juízo de gosto deve ser do tipo “este X é belo”. Que o juízo de gosto não possa apresentar universalidade lógica (apenas singularidade e particularidade) é uma consequência de sua validade universal não ser objetiva, e sim estética, mas
• (i) não implica a identifi cação de universalidade objetiva e universalidade lógica, o conjunto dos juízos universalmente válidos de base conceitual sendo claramente maior do que o dos universalmente quantifi cáveis naquele integralmente contido;
• (ii) não é o que distingue o juízo de gosto no conjunto dos juízos universalmente válidos; e
• (iii) se mostra numa análise do juízo de gosto de um ponto de vista que não é privilegiado na Analítica do Belo, justamente porque é inclusivo e insufi cientemente distintivo, não sendo os juízos refl exionantes estéticos os únicos dotados de universalidade não-lógica. A contraposição da singularidade lógica do juízo de gosto em relação à universalidade lógica de alguns juízos cognitivos pode e deve ser assinalada na Analítica, mas não deve ser mesclada à contraposição da validade universal do gosto à validade universal objetiva dos juízos conceitualmente determinados.
ABSTRACT: The main thesis of kantian Critique of Judgment’s Aesthetics sustains that judgments of taste, which are subjective, based on a disinterested pleasure and not grounded on concepts of understanding or ideas of reason, are universally valid. “Aesthetic universality” is the key-concept by means of which the third Critique, having already disenfranchised aesthetic rationalism with the theory of the non-conceptuality of taste, disparage at the other front the aesthetic skepticism from defenders of the incommunicability of the beautiful. The universality-issue is discussed in the second “moment” of the Analytic of the Beautiful, leading to the conclusion that “the beautiful is that which, apart from a concept, pleases universally”. Kant draws this conclusion after having established in chapter 8 the distinction between the universality of the aesthetic response and that of determinant judgments of theoretical and practical knowledge. The former is termed “aesthetic universality” (ästhetische Allgemeinheit), “general validity” (Gemingültigkeit), and “subjective universal validity” (subjektive Allgemeingültigkeit), whereas the latter is designated by the presumably equivalent titles of “logical universality” (logische Allgemeinheit) and “objective universal validity” (objektive Allgemeingültigkeit). In this paper, I shall argue that three levels of ambiguity concerning the use of these concepts compromise the distinctness of the notion of aesthetic universality. Firstly, I shall analyze a set of diffi culties in Kant’s presentation of the concepts of “universality” (Allgemeinheit) and “universal validity” (Allgemeingültigkeit). Secondly, I shall discuss the damages brought about by the confl ation in Kant’s treatment of the notions of “aesthetic universality” and “subjective universal validity”. Finally, I shall propose the distinction between objective and logical universality in order to respond to the question: regarding their quantity, judgments of taste are more properly defi ned in contrast to judgments which are universally valid because they are determinant - given the role of the concept or idea in their determining ground? Or against judgments which are universal insofar their truth-value remain determinable when their subject-concept is universally quantifi ed? More succinctly: the universality of the beautiful is anti-conceptual or only anti-logical?
KEYWORDS: Judgment of taste. Aesthetic universality. Logical universality. Universal validity.
[1] Este artigo foi produzido com o apoio do CNPq, através de bolsa de produtividade em pesquisa.
[2] Após haver ocupado posições no Departamento de Filosofi a da Universidade Federal do Paraná (UFPR), desde 1995, Pedro Costa Rego é atualmente Professor Associado do Departamento de Filosofi a e do Programa de Pós-Graduação Lógica e Metafísica (PPGLM) da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Doutor em Filosofi a pela UFRJ em 2000, com a tese intitulada “A Improvável Unanimidade do Belo: a fundação estética do conhecimento na Crítica da Faculdade do Juízo de Immanuel Kant”, publicada parcialmente em 2002 (Editora 7Letras), é autor de diversos artigos sobre Kant, Heidegger e estética. É membro do Seminário Filosofi a da Linguagem da UFRJ e da Sociedade Kant Brasileira. Coordena, desde 2010, o Programa de Pós-Graduação Lógica e Metafísica (PPGLM) da UFRJ, e seu trabalho acadêmico sobre Kant se acha atualmente focado nos temas da dedução transcendental e da refutação do idealismo.
[3] Como referência para as citações da Crítica do Juízo, privilegio a versão de 1793 (B) na edição da WBD: KANT, I. Werke in zehn Bänden. Hrsg. Wilhelm Weischedel. Darmstadt, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1983, Band 8, Kritik der Urteilskraft, e indico, no corpo do texto, o § e as numerações de 1983 e 1790/93 (original). Ademais, assumo a responsabilidade pela tradução, tanto do texto kantiano, quanto das passagens citadas dos comentadores.
[4] Essa imprecisão do texto kantiano não passou despercebida pela maioria dos comentadores que se dedicaram ao tema. Mencione-se o comentário de Paul Guyer: “[...] se a validade universal subjetiva é simplesmente o status de aceptabilidade universal, ou de imputabilidade, ela não deveria ser chamada de ‘universalidade estética’; evidentemente, qualquer tipo de juízo pode desfrutar desse status, seja ele logicamente singular ou universal, cognitivo ou estético. Universalidade estética é apenas um caso especial de validade universal subjetiva, a saber, quando não ocasionada pela subsunção de um objeto sob algum conceito”. Cf. GUYER, Paul. Kant and the Claims of Taste. Cambridge: Cambridge University Press, 1997, p.132. Observe-se apenas que nem todo tipo de juízo pode desfrutar do status de intersubjetivamente válido: apenas aqueles cujo fundamento de determinação, conceitualmente determinado ou não, não é um motivo privado da faculdade de apetição do sujeito.
[5] Em relação ao ponto, Paul Guyer defende, corretamente, ao que me parece, que “[...] nenhum juízo é válido para todos os sujeitos em virtude de ser universal do ponto de vista lógico”. Mas quero crer que erra ao usar esse argumento para sustentar que “[...] a tese de Kant de que um juízo “que tem validade universal objetiva, tem também validade universal subjetiva [leia-se: validade intersubjetiva]” não é exatamente correta...”. A tese de Kant é correta, para o que não é preciso que a forma lógica (quantifi cabilidade universal) seja o motivo imediato ou uma condição necessária da validade intersubjetiva do juízo. Basta que ela seja, como de fato o é, uma condição sufi ciente: todos os juízos universalmente quantifi cáveis do ponto de vista lógico (a saber, os analíticos e os sintéticos a priori) são intersubjetivamente válidos, na medida em que necessariamente cumprem uma condição que é ao mesmo tempo sufi ciente, embora não necessária, para validade intersubjetiva do juízo, e necessária, embora insufi ciente, para universalização lógica. Essa condição é a presença do conceito no fundamento de determinação do juízo. Ademais, tampouco me parece acertada a posição do comentador segundo a qual “[...] o que se pode dizer é que qualquer asserção objetivamente universal que é verdadeira é também subjetivamente válida de modo universal” (loc.cit.). Não há motivo para recusar a intersubjetividade do valor de verdade = falso em juízos teórico-cognitivos ou práticos que assumem a forma lógica da quantifi cação universal.
[6] Cf. ALLISON, H.: “Juízos cognitivos singulares e particulares, que relacionam um predicado a apenas um ou alguns dos objetos que caem sob o conceito-sujeito, presumem-se do mesmo modo válidos para qualquer um que aplica o predicado à esfera apropriada de objetos que caem sob aquele conceito” (Kant`s Theory of Taste. Cambridge, Cambridge University Press, 2001, p.106).
[7] Allison parece concluir na mesma direção: tratar-se-ia “[...] presumivelmente de uma tentativa de reunir as duas noções claramente distintas de universalidade lógica e validade universal [completamos: ...objetiva]. Mas se é isso, a tentativa é claramente mal-sucedida [...] Contra a sugestão aparente de Kant, não há correlação direta entre os dois tipos de universalidade”. Não obstante, o comentador minimiza o alcance dos prejuízos ao segundo momento ocasionados pela referida indistinção: “[...] permanece intacto o ponto central de Kant de que juízos sobre a beleza envolvem inerentemente uma reivindicação de universalidade, ainda que essa espécie de universalidade se ache mais distante de sua variante lógica do que possam sugerir algumas das observações de Kant, bem como o projetado paralelismo entre momentos dos juízos lógicos e os dos estéticos” (loc.cit.).