O FASCISMO TRANSINDIVIDUAL

 

Ádamo B. E. da Veiga[1]

Resumo: O presente artigo versa sobre o problema político-filosófico do fascismo. O conceito tem mostrado crescente relevância no cenário público nacional e mundial, figurando cada vez mais no debate leigo e especializado. O termo fascismo, hoje, é amplamente empregado, tanto na qualificação de movimentos políticos de diversos espectros quanto na grande mídia e revistas científicas. O objetivo deste artigo é utilizar o conceito de transindividual na compreensão do fascismo, a partir da teorização, ela mesma transindividual, do fenômeno, realizada por Deleuze e Guattari, através da sua compreensão do desejo. O transindividual caracteriza um movimento filosófico de dupla rejeição em que se nega, simultaneamente, uma abordagem holista e individualista do campo social, procurando pensar o indivíduo e coletivo como coextensivos a um processo genético que produz a ambos, sem primado de um sobre o outro. Tal conceito vem se revelando uma ferramenta analítica de crescente uso e repercussão, no debate acadêmico contemporâneo. Nesse sentido, a utilização do transindividual, enquanto matriz teórica, na compreensão do fenômeno fascista ainda não foi realizada de forma esquemática e, desse modo, recorrendo à compreensão transindividual do fascismo de Deleuze e Guattari, pretende-se contribuir para o alargamento desse horizonte teórico.

 

Palavras-chave: Deleuze e Guattari. Desejo. Fascismo Transindividual. Filosofia Política Contemporânea.

 

INTRODUÇÃO

O presente artigo se debruça sobre o problema do fascismo. Pretendemos analisar esse fenômeno, com base no conceito de transindividualidade e das filosofias que se desenvolveram sob o prisma desse conceito. A principal hipótese a ser trabalhada é de que o fascismo pode ser compreendido como um fenômeno desejante, no nível transindividual. Na averiguação da pertinência de tal hipótese, almejamos examinar alguns autores que se debruçaram sobre as interpelações políticas do transindividual, como Simondon, Étienne Balibar, Jason Read, Vittorio Morfino e, sobretudo, a teorização acerca do fascismo de Deleuze e Guattari. Simondon cunhou o termo e sua formulação conceitual, e Balibar (1993, 2019), Read (2016) e Morfino (2007, 2014) dedicaram livros e artigos sobre o transindividual, desenvolvendo o tema, a partir de Simondon. Quanto a Deleuze e Guattari, objetiva-se demonstrar como se trata, efetivamente, de uma compreensão sociológica pautada no transindividual, capaz de oferecer uma compreensão adequada do fenômeno fascista.

O conceito de transindividual, usado pela primeira vez por Gilbert Simondon (2013), tem-se mostrado, de forma crescente, uma ferramenta analítica importante. Seu maior mérito é a dupla rejeição de uma abordagem do social pautada não apenas pelo primado do indivíduo sobre o coletivo, mas também do coletivo sobre o indivíduo e, por consequência, das dificuldades que essa dualidade enseja (BALIBAR, 1993; READ, 2016; MORFINO, 2014). O transindividual aporta um outro nível de análise, que não prima nem por um polo, nem por outro.

A pertinência do problema do fascismo, capaz de justificar a aplicação deste referencial teórico a esse tema complexo, é a sua crescente figuração no debate público. Fala-se, hoje, cada vez mais acerca do fascismo, tanto na grande mídia quanto em revistas especializadas. Nesse sentido, ambos os espectros políticos e ideológicos utilizam o termo fascista, a fim de desqualificar seus adversários. Mais ainda, o termo antifascista é amplamente empregado por diversos movimentos sociais, em sua oposição aberta à ascensão de políticas antidemocráticas.

Para além da dimensão acusatória, o problema da ascensão de movimentos antidemocráticos, movimentos fascistas dentre eles, no Ocidente, é real e tem sido objeto de diversas reflexões filósofico-políticas, de Wendy Brown (2019) a Maurizio Lazzarato (2019). Trata-se, então, de um fenômeno que requer uma análise técnica e uma elaboração filosófica rigorosa, a qual, dadas as dificuldades próprias desse fenômeno multifacetado, ainda não foram completamente realizadas, principalmente no que diz respeito às supostas manifestações contemporâneas do fascismo. A sua presença no debate público, junto do crescimento de movimentos antidemocráticos, desse modo, justifica a sua investigação conceitual e filosófica, visando a uma chave de inteligibilidade consistente e afinada com reflexões político-filosóficas contemporâneas, tais como as filosofias do transindividual.

O que pretendemos defender é o potencial de inteligibilidade trazido por um conceito transindividual de fascismo. Uma questão central, apta a uma análise transindividual, é a da entrega das massas a um projeto extremo que vai contra seus próprios interesses racionais. O irracionalismo do fascismo, o seu caráter primariamente afetivo e inconsciente. como já sublinhado por Adorno (2007, 2019), Umberto Eco (2018) e Hanna Arendt (1962), entre outros[2], consiste em um elemento passível de compreensão, em função do conceito de transindividual, uma vez que essa abordagem não se dá a partir do indivíduo constituído, com suas representações, interesses e identidades, mas em um nível ontologicamente anterior, identificado à afetividade (MASSUMI, 2002; LORDON, 2014; BALIBAR, 1993, 2018; READ, 2016) ou, mais propriamente, no nível do desejo (DELEUZE; GUATTARI, 2011).

Nesse ponto, o conceito de fascismo desenvolvido por Deleuze e Guattari mostra-se central. Apesar do amplo escopo da sua obra, a questão da servidão das massas é uma preocupação nuclear. Tanto no Anti-Édipo (2010) quanto em trabalhos posteriores, trata-se de explicar como as massas desejaram o fascismo, através de que mecanismos essa “perversão do desejo gregário” foi possível, como puderam os homens sacrificar suas próprias vidas em nome da servidão mais destrutiva (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 47). A partir da convergência de diversos referenciais conceituais e teóricos, os autores desenvolvem um conceito de fascismo plenamente transindividual, oferecendo, dessa forma, a conceptualização adequada para o desenvolvimento do nosso argumento.

A abordagem teórica tradicional acerca do fascismo padece de dificuldades explicativas decorrentes da cisão entre indivíduo e coletivo. Primeiramente, a abordagem liberal e neoliberal, com sua ontologia individualista, dificilmente consegue explicar como indivíduos constituídos, autônomos e racionais, puderam e poderão incorrer em tamanho desvio irracionalista. Por exemplo, Anthony Downs (1957) transpõe o homo economicus para a escolha política, concebendo o processo eleitoral em democracias liberais, amparado no princípio de maximização da utilidade; ao passo que John Rawls (2008), um dos maiores intelectuais liberais contemporâneos, estabelece sua teoria da justiça com base em sujeitos autônomos e racionais. Em ambos, temos a suposição da racionalidade e autonomia do indivíduo como base da reflexão teórica.

Nesse aspecto, como explicar a escolha pelo fascismo, a escolha pela simples destruição e pela própria anulação da capacidade de escolher? O problema da servidão dificilmente pode ser respondido por esse modelo de ininteligibilidade política. O neoliberalismo e o liberalismo clássico padecem do que Lordon (2014) denomina “metafísica subjetivista”. Trata-se precisamente do primado do indivíduo autônomo e racional como constitutivo do coletivo, o que torna o problema da servidão irrestrita, da entrega irracional das massas a um projeto de supressão das suas próprias liberdades, dificilmente explicável (LORDON, 2014, p. 15). Supondo-se o indivíduo imediatamente constituído, racional e livre por princípio, enquanto ente deliberativo autônomo, o irracionalismo característico do fascismo torna-se incompreensível.

No sentido oposto, temos a teorização marxista do fascismo. Como nota Griffin – que não se considera, de modo algum, um marxista – esta concepção, durante a maior parte do século XX, foi a mais consistente em termos teóricos (GRIFFIN, 2018). As diferentes posições e análises marxistas orbitaram ao redor do consenso estabelecido na Segunda Internacional, segundo o qual o fascismo seria um movimento de contrarrevolução burguesa resultante da iminência da revolução proletária. Tratar-se-ia de um momento determinado da luta de classes, no qual as contradições da sociedade capitalista levariam a burguesia a constituir e/ou apoiar um movimento de massas contrarrevolucionário, a fim de prevenir a sua queda iminente (GRIFFIN, 2008, p. 48; 2018, p. 12). Leon Trotsky (2019, p. 64), com efeito, mobiliza essa precisa tese em seus textos sobre o tema, já na década de 1930. Atualmente, essa concepção ainda se mostra muito relevante no imaginário político e os movimentos antifascistas ao redor do mundo, tal como parte da mídia de esquerda a reproduz (GRIFFIN, 2018).

Primeiramente, a concepção do fascismo como uma intentona contrarrevolucionária, hoje, na ausência de qualquer revolução proletária iminente, dificilmente permitiria explicar a ascensão de movimentos antidemocráticos de cunho fascista. Na atualidade, não temos propriamente nenhuma revolução iminente e a própria gramática da revolução proletária não ocupa mais, de forma significativa, o imaginário político de esquerda (LAZZARATO, 2019). Logo, a ascensão de políticas antidemocráticas analisadas por Brown (2019), e no seu seio, de movimentos fascistas, torna-se de difícil compreensão, a partir dessa concepção teórica. Não haveria, na atualidade, uma revolução proletária iminente, à qual caberia à burguesia se opor, através da produção e manipulação de um movimento fascista de massas.

Em segundo lugar – e de forma ainda mais relevante –, o problema dessa abordagem é o primado do coletivo sobre os indivíduos. Como assinala Lazzarato (2004, p. 26), “[...] nas teorias socialistas, o coletivo possui uma existência separada das singularidades que o produziram.” Nessa leitura, as relações de produção e a luta de classes, sempre coletivas, seriam as responsáveis pela individuação das subjetividades particulares, dos movimentos políticos e do regime jurídico. Apesar de Balibar (2019) e Read (2016) argumentarem, de maneira convincente, que podemos tomar Marx como um pensador do transindividual avant la lettre, a crítica de Lazzarato é válida conforme incide sobre determinada leitura específica do marxismo, como a que foi mobilizada tradicionalmente na explicação do fascismo. O fascismo, nessa leitura marxista específica, seria nada mais que um expediente da classe dominante, criado a fim de impedir que tensões pré-revolucionárias, prestes a explodir, por serem determinadas pela contradição do modo de produção capitalista, efetivamente explodam na forma de uma revolução proletária. O fascismo seria, assim, uma determinação unilateral de um movimento coletivo – a luta de classes – na constituição dos indivíduos singulares, em sua adesão ao fascismo.

A principal insuficiência desse modelo na compreensão do fascismo é sua dificuldade em explicar a adesão massiva da população a um projeto de poder que vai contra seus próprios interesses. De fato, a tese marxista da Segunda Internacional explica as razões pelas quais elementos da classe dominante se aliam e apoiam os movimentos fascistas, mas não explica adequadamente a sua gênese própria, enquanto movimento de massas. O conceito de “ideologia”, muitas vezes, é mobilizado como aquilo que explicaria essa adesão apoteótica. No entanto, diversos filósofos políticos contemporâneos, como Deleuze e Guattari (2011, p. 143 - 144) e Foucault (2011, p. 7 - 8), rejeitam o conceito de “ideologia” como sendo insuficiente. A crítica, grosso modo, incide sobre a concepção da ideologia como sendo um embuste ou engodo utilizado por uma classe para dominar outra. O problema não está, propriamente, na verdade ou falsidade dos discursos ditos ideológicos, contudo, no fato de que afirmar que determinado discurso é ideológico não explica nada. Antes do que a simples afirmação de que as massas toleram opressões variadas sob os efeitos inebriantes de determinada ideologia, trata-se de se perguntar como, efetivamente, sob que circunstâncias, tais discursos e representações obtêm sua eficácia nos processos de sujeição.

Nesse sentido, a abordagem transindividual tem precisamente a vantagem de explicar em que sentido essa adesão se dá para além da “ideologia” compreendida como simples engodo, mentira e manipulação de uma classe sobre a outra. Como veremos melhor, trata-se de um movimento constitutivo, um modo de subjetivação[3], e não apenas de um desvio imaginário dos sujeitos, os quais estabeleceriam uma relação falsa com a sua posição na luta de classes.

Uma abordagem transindividual, em oposição, tanto a essa leitura marxista quanto à leitura liberal, supõe o indivíduo e o coletivo como um efeito de um processo genético que situa lado a lado, de forma coextensiva, o coletivo, o social, o individual e o político. É a partir desse processo que, mediante determinadas circunstâncias, temos a emergência do fascismo, enquanto regime, quer de individuação pessoal, quer de individuação coletiva. O conceito de fascismo transindividual de Deleuze e Guattari – afinado, simultaneamente, com a crítica do holismo marxista, do individualismo neoliberal e do conceito de ideologia – desse modo, como pretendemos desenvolver mais à frente, oferece um referencial teórico muito mais adequado para a compreensão do fenômeno.

 

1 O conceito de transindividual

Jason Read (2019, p. 58) define o transindividual como “[...] um modo de se endereçar a mútua constituição do individual e do coletivo”, cuja vantagem é “[...] evitar, assim, conceber a individualidade e a coletividade como um jogo de soma zero no qual a individualidade é desenvolvida através da refutação da coletividade e a coletividade através da supressão da individualidade.” Vittorio Morfino (2007, p. 7), por sua vez, define o transindividual como a “[...] trama de relações que atravessa e constitui os indivíduos e a sociedade, interditando metodologicamente a substancialização daqueles ou desta.” Podemos ver, assim, como o conceito de transindividual procura pensar tanto o coletivo, quanto o indivíduo, a partir de um processo de gênese coextensiva. Todo indivíduo – e o coletivo sendo nada mais que um indivíduo de ordem mais vasta – é o resultado de um processo constitutivo de individuação. A oposição, dessa forma, entre um e outro, a substancialização de um ou outro, mascararia a real dinâmica de mútua gênese, sem precedência de nenhum dos dois polos.

A primeira formulação do transindividual, nesses termos, é a elaborada por Gilbert Simondon (2013). O filósofo concebe o transindividual com base em sua ontologia da relação. A ontologia da relação de Simondon é concebida a partir da sua crítica à concepção clássica da individuação. Simondon argumenta que a individuação sempre foi pensada em função do indivíduo já constituído: não se concebeu, tradicionalmente, a individuação em ato, em sua processualidade imanente, mas amparada em algum princípio abstraído dos indivíduos constituídos. Na tradição filosófica, teríamos sempre a compreensão da individuação a partir da eleição de determinado princípio tomado à imagem e semelhança do indivíduo, mascarando a gênese dinâmica da individualidade em prol de uma identidade estável como razão do processo. Teríamos, assim, um primado dos termos sobre as relações constitutivas desses próprios termos, uma vez que se abstrai do indivíduo (um termo constituído em uma relação qualquer) o princípio abstrato da individuação.[4]

Assim, Simondon (2013, p. 125) procura reverter o primado do indivíduo constituído e conclui que a relação tem estatuto de ser, o que significa que os termos postos em relação são produzidos a partir da relação ela mesma. A relação, para Simondon é, primariamente, pré-individual: antecede os indivíduos constituídos e suas identidades assinaláveis. Nesse sentido, reporta-se à diferença. Os indivíduos são identidades relativamente estáveis (metaestáveis), ao passo que o pré-individual se diz de uma diferença ontologicamente anterior às identidades variadas.

O exemplo paradigmático trazido por Simondon acerca do processo de individuação é o da formação cristalina. Em uma solução química sobressaturada, temos potenciais disponíveis, uma tensão expressa pela metaestabilidade do sistema fora do estado de equilíbrio. Simondon determina esse estado como “problemático” e o processo de individuação, enquanto a sua resolução.[5] O “problemático” se expressa por essa disponibilidade energética amorfa: a tensão aqui não se diz da oposição entre indivíduos, ao modo de uma tensão dinâmica entre dois veículos em choque, por exemplo, mas de uma variação energética. A partir de dado momento, no entanto, forma-se, na solução, um gérmen cristalino: a primeira molécula a se individuar sob a figura organizada e simétrica de um cristal. Tal movimento expressa a individuação como solução que pouco a pouco atualiza os potenciais disponíveis até a solução inteira assumir a sua forma. Tal operação de formação amplificante é o que Simondon chama de transdução: individuação em progresso com base em um gérmen, enquanto solução de um estado problemático.

O pré-individual, assim, figura como uma carga de indeterminação associada, um potencial não efetuado, a diferença que permanece coextensiva a toda identidade. O transindividual, por sua vez, é o processo de integração, em níveis variados, de indivíduos a partir dessa carga pré-individual que lhes permanece associada. Em função daquilo que difere dentro de cada indivíduo, daquilo que não se identifica a ele em sua identidade particular, temos uma nova gênese que instaura simultaneamente o coletivo, enquanto individuação de ordem mais vasta, e os próprios indivíduos, em sua singularidade pessoal (SIMONDON, 2013, p. 218). Trata-se, assim, no transindividual, de suplantar qualquer oposição de princípio entre sociedade e indivíduo: para além dessa dualidade, temos uma processualidade constitutiva tanto de um polo quanto de outro, sem que esse processo mesmo de constituição estabeleça qualquer forma de cisão ontológica radical entre os dois. O coletivo é produzido pela relação transindividual entre potenciais não efetuados nos indivíduos, ao mesmo tempo que esses mesmos indivíduos são individuados pela trama de relações pré-individuais em sua transdução transindividual.

 

2 O transindividual em Deleuze e Guatari

Encontramos, na obra de Deleuze e Guattari, uma concepção sociopolítica igualmente transindividual. Hélio Cardoso (2011, 2018) demonstra como, em Deleuze, temos uma ontologia da relação e podemos ver como na sua obra com Guattari tal dimensão se mantém. Nesse mesmo sentido, a influência de Simondon no pensamento de Deleuze é bastante nítida, como verificamos claramente em Diferença e Repetição (2000), assim como em artigo dedicado à filosofia do autor (2019). Em sua obra conjunta com Guattari, tendo em vista a filosofia de Spinoza, Nietzsche, Marx, Simondon e um engajamento crítico com a psicanálise – dentre outras influências –, os autores desenvolvem uma concepção do social que rejeita igualmente o individualismo e o holismo. A sua concepção do social é essencialmente transindividual, mostrando profunda convergência com a conceptualização de Simondon e com as apropriações teóricas recentes do seu pensamento.[6]

Para Deleuze e Guattari (2011, p. 132), o todo social é produzido ao lado das partes. Essa tese significa que a produção do todo é efeito de um processo genético que constitui, igualmente, as partes. O todo, enquanto configuração social específica, é coextensivo ao sujeito como unidade individualizada. A representação social dominante, assim como o conjunto de relações de produção e o regime político, são produtos do mesmo processo genético que individua os indivíduos singulares. O todo, se produzido ao lado das partes, não totaliza e não unifica (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 62). Essa formulação expressa a concepção de que o processo de individuação não se esgota na constituição de determinada totalidade, mas se mantém ativo, de modo a fazer com que qualquer todo retenha potenciais ainda não efetuados, capazes de fazê-lo mudar em sentidos diversos. O processo de individuação de uma totalidade social determinada não é, segundo Deleuze e Guattari, um processo acabado, dado de uma vez por todas: a formação coletiva, na individuação de um todo, é dinâmica e passível de transformações precisamente em razão da presença do pré-individual. Qualquer formação social é dada por um processo de individuação, a partir de uma dimensão desejante transindividual em direção à constituição sempre metaestável de indivíduos singulares e das estruturas coletivas.

Nessa perspectiva, Deleuze e Guattari propõem uma figura abstrata para a compreensão das formações sociais variadas. Essa figura comporta três elementos constituintes principais: o nível molecular da produção desejante, o nível molar das representações e indivíduos, e a linha de fuga, enquanto coeficiente de devir associado a qualquer formação individuada.

 

2.1 Produção desejante no nível molecular

Na concepção sociopolítica de Deleuze e Guattari, temos no conceito de produção desejante o principal elemento capaz de permitir uma interpretação da sua filosofia como transindividual. A produção desejante é um conceito elaborado com base na convergência de elementos da filosofia de Spinoza, Nietzsche, Simondon, Marx e Freud.[7] Em primeiro lugar, refere-se ao conatus spinozista enquanto potência de agir em suas variações intensivas. Para Spinoza (2009, p. 108), a essência do homem é o desejo, o que significa que há uma anterioridade lógica e ontológica do desejo em relação aos objetos do desejo (LORDON, 2014, p. 14 - 15). A essência humana é, assim, um esforço de perseveração no seu próprio ser, esforço este sujeito às variações de potência que se expressam nos afetos variados, sobretudo tristeza e alegria. A tese spinozista do primado do desejo é retrabalhada por Deleuze e Guattari sob esta ótica: o conatus torna-se a produção desejante no nível molecular e, dessa forma, independente dos seus objetos de desejo específicos e dos sujeitos que desejam. Ambos são efeitos desse processo desejante.

A contribuição da psicanálise é central, uma vez que, na obra de Freud, temos uma separação do desejo sexual da reprodução biológica. Esse elemento é relevante, pois acaba por libertar a concepção do desejo de uma subscrição à determinação objetal estrita. No entanto, para os autores, a psicanálise, após liberar o desejo da reprodução orgânica, o aprisiona novamente na triangulação edipiana, o que acaba por comprometer a compreensão acerca do social, na obra freudiana. De fato, na Psicologia de Massas e análise do Eu (1990), Freud subordina os investimentos de desejo na dimensão social à prévia mediação parental: o investimento libidinal em lideranças e instituições é derivado das figuras parentais, enquanto investimento primordial na infância. O desejo não seria, dessa maneira, capaz de investir diretamente no corpo social, mas precisaria passar antes pela sua triangulação edipiana. Nesse sentido, Deleuze e Guattari argumentam que a psicanálise não teria conseguido alcançar efetivamente a dimensão produtiva do desejo; através de Édipo, teria substituído a produção pela mera representação. Antes de ser produtivo, o inconsciente, na sua feição individual e social, seria pautado pela representação edipiana em diversos níveis: o patrão, o líder, como representantes do pai.

A contraposição a essa tese está no núcleo da crítica de Deleuze e Guattari à psicanálise. De acordo com os autores (2011, p. 46), o desejo investe imediatamente no campo social, sendo produtor das suas configurações variadas: “Dizemos que o campo social é imediatamente percorrido pelo desejo […] e que a libido não tem necessidade de mediação ou sublimação alguma, de operação psíquica alguma, e de transformação alguma, para investir as forças produtivas e as relações de produção.” Nesse ponto, há uma nítida influência de Reich, que procurou justamente compreender, em Psicologia das massas do fascismo (1988), o nível desejante por trás da produção social da sociedade, movimento e Estado fascistas – por mais que Deleuze e Guattari ressaltem que Reich não levou suficientemente longe a sua análise, em termos de desejo.

A partir dessa concepção do desejo, os autores radicalizam a tese althusseriana acerca do papel da superestrutura na reprodução social, como bem argumenta Sibertin-Blanc (2013). Por conseguinte, em termos da sua apropriação do marxismo, um dos pontos mais relevantes no que concerne à teorização política é a imanência entre superestrutura e infraestrutura. As relações sociais de produção, que, para o marxismo – como tradicionalmente foi lido – são a razão de toda formação social específica, sua base e fundamento, na abordagem deleuze-guattariana, se veem complementadas analiticamente por uma estrutura relacional do desejo que é coextensiva à configuração das relações sociais de produção: “[...] o desejo faz parte da infraestrutura.” (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 143). A justificativa proximal para esse movimento é a insuficiência da abordagem meramente econômica na explicação de determinados fenômenos, sobretudo o da servidão.

O problema, que se expressa bem pela indagação de Spinoza (2014, p. 46) – como podem os homens lutar pela sua escravidão, como se lutassem pela sua salvação? –, é retomado por Deleuze Guattari, nesse contexto, e aqui Reich também é uma influência importante. Trata-se de se indagar como os grupos e sujeitos vão contra seus próprios interesses, a respeito da razão efetiva pela qual “[...] os homens suportam a exploração há séculos, a humilhação, a escravidão, chegando ao ponto de querer isso não só para os outros, mas para si próprios.” (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 47).

A resposta dos autores é que isso acontece por conta dos investimentos sociais do desejo, no nível inconsciente. Para Deleuze e Guattari, é necessário, por exemplo, um alinhamento em termos de desejo entre o patrão e o operário, para que a obediência na relação trabalhista tenha lugar. Antes de um cálculo racional pautado pelos interesses – reportado ao pré-consciente –, temos uma dinâmica inconsciente (DELEUZE; GUATTARI, 2011, p. 143). Mesmo a coerção física ou econômica, como assinala Lordon (2014), passa pelo desejo: a ameaça produz, enquanto afecção, o desejo de servir, de obedecer, e, se não produzisse esse alinhamento do desejo, não teria eficácia. Se a ameaça de morte, em caso de desobediência, não me produz o desejo de obediência – sob a forma da vontade de não morrer – ela simplesmente não funciona.[8] É nesse sentido que Deleuze e Guattari afirmam que o desejo é parte da infraestrutura. Determinada configuração social é, assim, produção do desejo que a produz tanto no seu regime de produção material quanto no conjunto de representações sociais e simbólicas, sem primado de um polo sobre o outro.

O desejo, assim caracterizado, é reportado ao nível molecular. O conceito de molecular é introduzido por Deleuze e Guattari, a fim de expressar o caráter propriamente intensivo do desejo. Intensivo, nesse contexto, refere-se a uma variação relacional anterior aos termos individuados que são resultados dela.[9] Trata-se, no molecular, de um fluxo, de quanta, de potenciais (DELEUZE; GUATTARI, 2012a, p. 114). O desejo enquanto indeterminado é determinante – de forma imanente – em relação aos indivíduos e ao coletivo (como indivíduo de ordem mais vasta). A pura relacionalidade pré-individual, em termos desejantes, é coextensiva em relação às formações sociais variadas. O molecular, pois, é o nível em que o desejo opera. E, conforme pré-individual, é através dele que temos a individuação transindividual. É a partir da comunicação, contágio, transdução, integração e amplificação do desejo que a individuação social ocorre.

 

2.2. INDIVÍDUOS E REPRESENTAÇÕES NO NÍVEL MOLAR

O molar, por sua vez, é o regime da representação e das identidades assinaláveis, das integrações e ressonâncias. É campo dos indivíduos. Aqui, temos uma multiplicidade extensiva, na qual figuram indivíduos relativamente constituídos (relativamente conforme guardam ainda potenciais não efetuados). O extensivo aqui se contrapõe ao intensivo: o fluxo, a variação, dá lugar a unidades discretas. O molar se diz, desse modo, de objetos e sujeitos. Uma pessoa, em sua identidade biográfica, em seus gostos pessoais, é uma individuação molar. Da mesma maneira, os aparelhos burocráticos, as representações sociais coletivas, o próprio Estado, em sua configuração política, estão no nível molar. O nível molecular é o campo pré-individual, ao passo que o molar corresponde às individuações locais desse campo, em identidades e representações (DELEUZE; GUATTARI, 2012a, p. 113). As identidades constituídas no nível pessoal e biográfico, assim como as instituições, são produtos molares, em função da tecitura transindividual do desejo.

Um elemento importante do nível molar é a presença das operações ditas de sobrecodificação, as quais operam a distribuição de identidades, a partir de oposições binárias e/ou de um critério transcendente de comparação identitária. As distribuições binárias são os dualismos constitutivos das representações sociais e das identificações pessoais que orientam a posição do indivíduo em determinada formação social, bem como seu senso íntimo enquanto pessoa. Trata-se, por exemplo, da oposição homem e mulher, proprietário e não proprietário, homem branco e homem negro etc. (DELEUZE; GUATTARI, 2012a, p. 113).

Nesse sentido, temos a figura do majoritário enquanto critério molar de distribuição hierárquica. O majoritário reporta-se às representações a partir da qual todas as outras representações se veem distribuídas e comparadas. Como frisa Hélio Cardoso (2012, p. 162), “[...] antes de ser caracterizada por uma expressão numérica, uma maioria é um padrão, onde o senso comum aprisionou determinados caracteres e ao qual os indivíduos devem-se enquadrar através da exclusão ou submissão de outros caracteres.” A figura do “homem branco proprietário” é um exemplo emblemático. Na modernidade, essa figura se torna a representação pretensamente universal do ser do homem e, assim, temos a hipóstase de determinado elemento individuado como princípio de distribuição comparativa para outras identidades e, nesse mesmo sentido, como princípio de conjugação do desejo a partir do investimento libidinal nessas figuras mesmas (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 92). O desejo, no nível transindividual, cristaliza-se nessas figuras majoritárias, individuando-as enquanto majoritárias mesmas. Na medida em que a representação do “homem branco proprietário” é investida sob a forma do majoritário, enquanto enquadramento identitário, é que ela adquire sua eficácia como critério comparativo de distribuição geral na sociedade moderna.

O molar é produzido pelo agenciamento do desejo, ou seja, pela sua conjugação e ressonância. A conjugação do fluxo de desejo pode ser lido em função do processo de transdução que vimos com Simondon. Os potenciais moleculares pré-individuais são atualizados a partir da emergência de uma forma que se amplia até a constituição de um indivíduo em sua estrutura determinada. Todo agenciamento do desejo, no entanto, nunca esgota, na formulação de Deleuze e Guattari, o próprio desejo enquanto produção. A produção não se esgota no produto, de sorte que a individuação é sempre incompleta e, por conseguinte, passível de outras individuações. O desejo molecular, que permanece coextensivo às formações molares, é o potencial pré-individual pelo qual temos novas individuações e a constituição do transindividual, através da comunicação desse potencial mesmo. Assim, como argumenta Read (2016, p. 121), a produção desejante é um regime transindividual de comunicação inconsciente. O desejo é uma carga pré-individual conforme retém a sua indeterminação subjetiva e objetal. E os regimes variados de produção desejante são os agenciamentos do desejo.

É necessário frisar que molecular e molar não são radicalmente distintos, nem possuem uma hierarquia axiológica entre si (FERREIRA NETO, 2015). Sua distinção é formal, analítica ou heurística e, apesar de certa tensão de leitura, o molecular não configura um polo mais desejável ou superior em relação ao molar. Todo molar é molecular e vice-versa, do mesmo modo que, para Simondon, o pré-individual permanece coextensivo ao indivíduo, enquanto condição mesma do individual. A precedência genética do molecular não atesta uma hierarquia ontológica ou axiológica: a gênese é coextensiva, paralela ao que ela produz. Se o molecular é produção, é uma produção que não opera de modo transcendente, independente ou superior ao que ela produz. O desejo permanece em tudo aquilo que ele individua. A relação entre um polo e outro, o molar e o molecular, pode ser entendida a partir da noção de causalidade imanente, como presente e enfatizada na interpretação de Deleuze acerca de Spinoza (DELEUZE, 2014, p. 87 - 98). A causalidade imanente é aquela na qual a causa não sai de si para produzir determinado efeito. A causa permanece coextensiva ao efeito, contemporânea a ele. Nesse sentido, a produção desejante é causa imanente da produção social.

 

2.3 AS LINHAS DE FUGA

Por sua vez, as linhas de fuga são os operadores da desterritorialização. Esta pode ser compreendida, simplificadamente, como movimento de diferenciação (DELEUZE; GUATTARI, 2012c, p. 238). O conceito de linha de fuga expressa a inesgotabilidade do molecular em relação ao molar. A produção desejante, no nível molecular, não se esgota em nenhum produto: é um pré-individual irredutível a todas as suas soluções. Nesse aspecto, a linha de fuga é eminentemente criativa. Dado que se trata de uma instância de produção, ela é o coeficiente de novidade desenvolvido em grau maior ou menor, em determinada formação social. A formação de identidades molares, indivíduos assinaláveis, não esgota os potenciais disponíveis, o que ativa um processo da diferenciação que não pode ser completamente contido por mecanismos variados de re-identificação.

A inesgotabilidade do desejo em relação aos objetos de desejo e sujeitos desejantes leva à conclusão de que toda formação social, enquanto regime estrutural molar, varia, muda, se transforma. Há uma plasticidade transindividual necessária, a qual é descrita sob a rubrica da linha de fuga. O desejo não se cristaliza, não se esgota, não se resolve, de uma vez por todas, em nenhuma configuração social, por maiores que sejam os esforços políticos e sociais de sua preservação e conservação enquanto tal. Essa irredutibilidade dinâmica do desejo insere, no seio de toda formação social, um devir ou uma tendência de transformação, que, mesmo passível de compensação e reinscrição identitária (reterritorialização), por meio de mecanismos vários, não obstante, sempre se mantém coextensiva a toda formação social. A linha de fuga, portanto, está mais próxima do molecular: é por esse campo que o corpo social se transforma. É, nesse sentido, que a linha de fuga tem uma função revolucionária: ela cria o novo, traz o diferente, escapa às coordenadas identitárias estabelecidas.

O fascismo ocorre sobre a linha de fuga: é um desvio, uma reversão do seu movimento criativo (DELEUZE; GUATTARI, 2012c, p. 123). O fascismo é, assim, uma dinâmica própria do desejo e, dessa forma, um modo de produção de subjetivações e objetivações. É, nesse sentido, desejante antes do que cognitivo ou racional, reportando-se à trama molecular transindividual como um movimento específico na linha de fuga.

 

3 O FASCISMO TRANSINDIVIDUAL

No fascismo, o desejo de supressão do próprio desejo torna-se o vetor desejante por excelência, o regime próprio do desejo no nível molecular. A indeterminação objetal do próprio desejo pode, mediante determinadas circunstâncias, como enfatizam Deleuze e Guattari (2012a, p. 32), “[...] desejar o seu próprio aniquilamento, desejar aquilo que tem o poder de o aniquilar [...] desejo-fascista, inclusive o fascismo é desejo.” O fascismo é esse movimento desejante de aniquilamento do próprio desejo: desejo suicida. O oximoro “revolução conservadora”[10], se ausente da formulação deleuze-guattariana, não obstante, expressa muito bem esse movimento de reversão da potência criadora – e, assim, revolucionária, do desejo – em direção ao seu próprio aniquilamento. Trata-se, no fascismo, de seguir uma linha revolucionária do desejo que se desvia do seu potencial criativo, na produção de um ideal apoteótico de conservação identificada a determinado horizonte mítico de renascimento.

 

3.1 O DESEJO FASCISTA EM SUA REVERSÃO PALINGENÉTICA

Essa dinâmica de reversão do desejo pode ser adequadamente compreendida com a interpretação deleuziana do problema das forças, em Nietzsche e a filosofia (2018). Deleuze, de fato, interpreta o filósofo alemão com base em elementos da psicanálise, o que permite uma aproximação do conceito de “força”, na sua interpretação do filósofo, ao conceito de desejo, desenvolvido em obras posteriores com Guattari. Para Deleuze (2018, p. 56), encontramos na filosofia de Nietzsche, em termos qualitativos, dois tipos de forças: as ativas e as reativas. As forças ativas são criativas e produtivas, visando a sua expansão ilimitada. São, nesse aspecto, uma pura afirmação sem objeto ou sujeito, de maneira próxima ao caráter produtivo do desejo em sua anterioridade lógica em relação aos seus investimentos molares.

As forças reativas, por sua vez, são conservadoras (DELEUZE, 2018, p. 57). Sua função é a de retardar, de adequar e de promover a conservação daquilo que foi produzido pela força ativa, de forma a impedir a sua dissipação caótica. Assim, podemos ver como a função reativa é próxima dos agenciamentos molares do desejo: ela consolida e individua a indeterminação desejante em objetos e sujeitos determinados. Nessa perspectiva, as reativas ainda operam sob a direção das forças ativas; sua função conservadora está subordinada à conservação da força ativa, enquanto ativa, uma vez que tudo se passa como se as reativas obstruíssem a explosão desmedida e sem limite da força ativa, a fim de conservar o que é criado por elas. A criação não deixa de ser um valor, a afirmação não deixa de ser afirmada enquanto tal, mas antes é apenas conservada pela função subsidiária das forças reativas (DELEUZE, 2018, p. 145).

Por outro lado, a operação do ressentimento, na leitura deleuziana de Nietzsche, opera uma separação das forças ativas daquilo que elas podem, levando as forças reativas a dominarem as ativas. Isso se dá por uma reversão da potência ativa contra si mesma. A força ativa volta a sua atividade, o seu caráter produtivo, contra si, na produção da sua própria supressão enquanto primariamente produtiva e criativa. A criação deixa de se afirmar enquanto tal e a conservação deixa de ser um regime de conservação da criação, para se tornar apenas criação de algo que é posto como não criado, como eterno. A criação reverte-se na figura da eternidade, associada, por Deleuze, a partir de Nietzsche, à criação dos valores morais em sua transcendência e, consequentemente, da má consciência (DELEUZE, 2018, p. 159). São valores que, se criados, são criados como não criados. Não são criados como objetos de uma produção ou criação, no entanto, de um “resgate” ou de uma “ordem natural” concebida como eterna. A criação, a produção – que é a característica principal do desejo – deixa de ser um valor. A conservação toma o seu lugar, tornando-se o valor por excelência, conforme o conservadorismo das forças reativas domina a criatividade das forças ativas. Logo, podemos entender o sentido do “conservadora” no oximoro que trouxemos. O fascismo é conservador, no sentido de dar às forças reativas do ressentimento o seu primado. Nesse sentido, o ressentimento pode ser considerado o afeto central do fascismo.[11]

No entanto, o fascismo não é apenas um movimento conservador, mas também revolucionário. A força ativa criativa, dominada pela força reativa conservadora, passa por um segundo movimento: a própria força ativa é liberada para criar, de maneira radical, a própria conservação. A força ativa, separada do que pode, é reunida, novamente, à sua potência, de sorte que o caráter ativo leva a reatividade ao ilimitado. A “conservação” deve ser radicalmente criada ou re-criada, deve se expandir ao máximo, em uma revolução de horizonte global. No fascismo, trata-se da criação da reatividade, não como movimento conservador limitado, porém, enquanto horizonte revolucionário de produção incessante: o ressentimento hipostasiado. A reversão da força ativa é levada ao seu extremo, através da apropriação irrestrita do seu potencial criativo, em um movimento radicalizado da sua própria reversão reativa. Se o desejo é diferença e criação, no fascismo, a criação se volta contra si mesma, na criação de um mundo imaginado como radicalmente não criado, como eterno, e que precisa ser, urgentemente, resgatado.

Roger Griffin expressa essa característica do fascismo muito bem, por intermédio do termo palingenesia[12] – bastante adequado à análise do fascismo em Deleuze e Guattari, como demonstra Michelsen (2013, p. 159). Palingenesia é a revolução que procura não criar, mas restaurar, reerguer, um mundo perdido. Desse modo, temos a figura da reversão desejante molecular propriamente fascista.[13] Assim, no fascismo, temos paradoxalmente um esforço de re-criação de algo posto como eterno e natural. Trata-se da dinâmica desejante, produtora imanente das representações molares fascistas, na qual ela se constitui conforme investe.[14]

A conservação não se torna a manutenção de um estado de coisas dado, entretanto, consiste em um horizonte de expansão (ativo) de um estado de coisas a ser criado, enquanto renascimento, resgate. Nesse ponto, Deleuze e Guattari distinguem o totalitarismo do fascismo, mesmo considerando que o segundo cria um Estado totalitário para si. O totalitarismo é eminentemente conservador: trata-se da violenta reificação de um estado de coisas e da radical tentativa de barrar qualquer desvio revolucionário do desejo, interrompendo ou compensando o movimento da linha de fuga (DELEUZE; GUATTARI, 2012a, p. 123; 2012c, p. 176). Esse caráter de apropriação irrestrita faz com que, no fascismo, não se trate, assim, de interditar os movimentos da linha de fuga, de efetivamente conservar o status quo. Pelo contrário, o fascismo se dá na linha de fuga em um movimento revolucionário revertido (DE VRIES, 2013). O fascismo quer destruir o mundo vigente na criação de um novo mundo. Todavia, esse novo mundo não se diz da diferença ou da novidade, mas, antes, pelo resgate, recriação e reestabelecimento de um mundo perdido identificado a um passado imemorial ou uma identidade superior, racial ou nacional. A sua reversão da linha de fuga almeja a criação de um novo mundo como sendo o mesmo mundo. Nesse aspecto, temos o lado “revolucionário” do oximoro.

Em termos da dualidade molar-molecular, Deleuze e Guattari argumentam que o fascismo estabelece uma ampla ressonância entre esses dois níveis. A dimensão molecular refere-se ao movimento desejante que descrevemos acima, em termos de forças. Deleuze e Guattari destacam que o fascismo tem seu principal perigo, precisamente, no nível molecular, dado que ele é genético em relação ao nível molar. O fascismo começa nesse nível. Antes da sua tomada do poder estatal, temos uma verdadeira transdução, enquanto movimento desejante. A noção de crise, conforme trabalhada por Lordon (2013) amparada em um referencial próximo a Deleuze e Guattari, é interessante nesse ponto. A crise, quando manifesta em um movimento afetivo, produz um desinvestimento generalizado do desejo (conatus, na terminologia spinozista trazida por Lordon) nas instituições (nível molar). Potenciais pré-individuais, no nível desejante, são assim liberados em direção a um novo agenciamento potencialmente revolucionário. No caso do fascismo, a tendência criativa do desejo, conquanto se propague na constituição de um regime transindividual, caracteriza-se, precisamente, pela reversão do desejo em supressão do desejo, de vetor revolucionário em vetor conservador-revolucionário.

Dessa maneira, em consonância com esse ponto, o fascismo, para DELEUZE & Guattari (2012a, p. 100) começa, primeiramente, em pequenos focos dispersos, inassinaláveis: “[...] o fascismo é inseparável de focos moleculares, que pululam e saltam de um ponto a outro, antes de ressoarem todos juntos em um Estado nacional-socialista.” Tais focos de microfascismos são como os gérmens cristalinos de Simondon. Gradativamente, entram em um movimento de mútua ressonância, a qual vai, pouco a pouco, estruturando o campo molar das representações sociais e identidades pessoais. Dessa forma, temos o movimento de reversão do desejo, antes de termos a sua expressão molar estruturada na cooptação do Estado e suas instituições.

Essa característica permite explicar o seu caráter irracionalista: a verdade ou falsidade de uma teoria da conspiração, ao modo do “Protocolo dos Sábios de Sião”,[15] ou de uma guerra racial, por vir nos EUA, tem sua crença condicionada pelo investimento libidinal previamente orientado pela reversão desejante fascista. A enunciação da crença mais destemperada, a sua veiculação massiva, as ações políticas baseadas nela, têm seu poder persuasivo derivado não da sua verdade ou falsidade, mas do investimento desejante sob a forma fascista (MAY, 2013, p. 26). O desejo produz a crença na mais absurda teoria conspiratória, na mais grotesca imagem do outro. Esse conjunto de crenças e representações é apenas, dessa forma, produto molar de um movimento microfascista no nível desejante. Não é esse conjunto de crenças aquilo que produz o fascismo; pelo contrário, esse conjunto mesmo é um produto do fascismo no nível do desejo e, enquanto tal, a partir dele se sustenta e se prolifera. O irracionalismo aparente das crenças fascistas é, primariamente, um produto de um regime desejante específico.

Ainda em termos molares, a subjetivação fascista perpassa, utilizando-se de uma expressão de Lordon (2014), uma ampla colinearização, a qual explica a sua alta ressonância molar/molecular. O conatus individual é alinhado à potência de agir superior de um líder ou Estado. Como representação incarnada de uma comunidade imaginária nacional ou racial. O desejo é direcionado por um “desejo-mestre”, que visa ao máximo ao direcionamento de potências de agir singulares em seu favor (LORDON, 2014, p. 11). O fascismo requer um investimento sedimentado, unidirecional, nas representações molares e lideranças que enseja: paixão pelo majoritário.

O desejo fascista nega a plasticidade do desejo, demanda a sua sedimentação irrestrita, de sortea que, no fascismo, o desejo individual – sua carga pré-individual – deve alinhar-se em uma ressonância completa no coletivo ou no líder que o representa. Para isso, todos os mecanismos de propaganda tecnicamente disponíveis são mobilizados. Se o fascismo surge, primeiramente, de um movimento molecular, conforme este estabiliza formações molares, estas reincidem sobre o desejo procurando reforçar a sua ressonância e colinearização. Nesse ponto, o vetor de aniquilamento do desejo tem sua expressão no investimento radical do desejo individual em uma representação coletiva qualquer, de forma que o sujeito desinveste-se libidinalmente de si mesmo, em prol de uma imagem do todo.

O caráter suicida do fascismo deriva precisamente disso. Dado que a criação fascista se orienta pelo alinhamento irrestrito com a determinação molar do líder e que, no nível molecular, a dinâmica desejante se caracteriza pela sua própria reversão, o resultado é a pura e simples destruição. O desejo que deseja a sua própria anulação como desejo, seja no nível do ressentimento molecular, seja no nível da entrega irrestrita ao comando de um líder, tem como horizonte o suicídio. Esse ponto se torna amplamente visível, em vista do grau mais desenvolvido da ressonância molar/molecular, quando o Estado, efetivamente, é cooptado pelo fascismo. Os Estados fascistas, na sua expansão imperialista, nada mais fizeram do que destruir a si mesmos. E as massas, assim destruídas, entregaram-se em núpcias à própria destruição (DELEUZE; GUATTARI, 2012a, p. 125). O caráter suicida do desejo molecular ressoa no molar, na constituição de um Estado suicida. Como expressa muito bem Adorno (2007 p. 152), “[...] o desejo psicológico inconsciente de auto-aniquilação reproduz fielmente a estrutura de um movimento político que, em última instância, transforma seus seguidores em vítimas.”

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por fim, podemos ver como se trata de uma teoria transindividual do fascismo. O nível desejante molecular apresenta uma configuração transindividual própria, caracterizada pela reversão do desejo enquanto produção. O potencial pré-individual se agencia nesse regime desejante específico, produzindo representações sedimentadas molares, as quais demandam o investimento irrestrito do próprio desejo – na negação mesma da sua plasticidade e independência objetal. Esse movimento leva à dissolução e decomposição da formação transindividual, tanto no coletivo quanto nos indivíduos.[16] O fascismo é o desvio suicida do desejo, que, no seu movimento de autodestruição, destrói concomitantemente o seu produto individual e social. O transindividual é uma configuração relacional metaestável, a qual, no fascismo, é levada ao puro caos instável, através da reversão palingenética do próprio caráter criativo do desejo. A servidão radical da subjetivação fascista serve a nada mais do que à própria destruição do sujeito e do coletivo que ele crê servir.

 

THE TRANSINDIVIDUAL FASCISM

Abstract: This paper is directed towards the political and philosophical problem of fascism. This concept is manifesting increasingly relevance in the national and global public scenario, widely appearing in the specialized and lay debate. The term ‘’fascism”, today, is largely used in the qualification of movements from diverse shades of the political spectrum and in the mainstream media and scientific journals. The goal of this paper is the application of the concept of the transindividual to the fascist phenomena through Deleuze and Guattar theory of the fascist desire, in itself, a transindividual one. The transindividual marks a philosophical movement of a double rejection against an holistic approach to the social dimension as well as and individualist one, aiming to think both dimensions as coextensive to a genetic process that produces both of them, without any priority regarding any dimension in relation to the other. This concept has been revealing itself as an increasingly useful analytical tool in the contemporary academic debate. In this sense, the use of the concept of transindividuality as the theoretical framework in the philosophical understanding of the phenomenon of fascism has not been yet realized in a schematic way. Applying the concept of fascism of Deleuze and Guatttari in a transindividual framework, we intend to contribute to the development of this theoretical approach.

 

KeyWords: Deleuze and Guattari. Desire. Fascism. Transindividual. Contemporary political philosophy.

 

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Recebido: 21/01/2021

Aceito: 06/5/2021

 

 



[1] Pós-Doutorando pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Rio de Janeiro, RJ – Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-5485-0073. E-mail: adamo.veiga1@hotmail.com.

[2] Paxton (2004, p. 226) oferece uma bibliografia ampla sobre esse aspecto.

[3] Apesar de, no caso do fascismo, o processo de subjetivação ser essencialmente ligado à servidão, há outros modos de subjetivação que figuram como resistência política, a exemplo da amizade, conforme analisados por Rebello e Naldinho, a partir de Foucault e de Deleuze (CARDOSO; NALDINHO, 2009).

[4] A diferença entre o estudo clássico da individuação e o que nós apresentamos é essa: a individuação não será considerada unicamente sob a perspectiva do indivíduo individuado; será captada, ou pelo menos deverá ser captada, antes e durante a gênese do indivíduo separado; a individuação é um acontecimento e uma operação no centro de uma realidade mais rica que o indivíduo que resulta dela.” (SIMONDON, 2013, p. 543).

[5] A utilização do termo problemático, em Simondon, remete – ao que nos parece – ao seu estatuto na filosofia de Kant. Para Kant, o problemático é um juízo indeterminado (KANT, 1781/2001, p. 296 A255/B310) e Simondon emprega esse termo precisamente para frisar o caráter indeterminado – e, assim, pré-individual – do estado metaestável em uma solução sobressatura e alhures.

[6] Read (2016, p. 121), por exemplo, caracteriza o pensamento político dos autores enquanto essencialmente orientado ao problema do transindividual, ao passo que a filosofia transindividual de Massumi (2002) é claramente inspirada em Deleuze e Guattari.

[7] Neste ponto, vale notar como esses autores – à exceção de Nietzsche – são analisados como pensadores do transindividual avant la lettre , tanto por Balibar (1993, 2018) quanto por Read (2016).

[8] Nessa linha, Lazzarato (2019) critica a filosofia de Deleuze e Guattari, junto de outros pensadores contemporâneos da geração de “maio de 68”, por não observarem como os mecanismos sofisticados de dominação através da manipulação do desejo caminham lado a lado com a simples coerção física. De fato, o autor tem razão e, muitas vezes, na aplicação desse quadro teórico a países periféricos, como o Brasil, deixa-se de ver que, ao lado dos sofisticados mecanismos de coerção das “sociedades do controle”, temos mecanismos brutais de dominação simples e pura. No entanto, se tal ponto está correto, não nos parece anular a dimensão descritiva do desejo, em Deleuze e Guattari, por mais que os autores por si mesmos não a apliquem diretamente à reflexão acerca de mecanismos de violência bruta, na periferia do capitalismo. A razão para isso é que mesmo a ameaça do suplício como coerção arcaica também incide sobre o desejo, e os autores admitem a coextensividade de arcaísmos vários, ao lado da sofisticação técnica da dominação capitalista mais avançada (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 313).

[9] O uso do termo intensivo pode ser remetido aos dois tipos de Multiplicidade de Bergson, discutidos por Deleuze, em Bergsonismo (2012), e, igualmente, às Antecipações da Percepção, de Kant (1781/2001), onde o filósofo prussiano distingue entre quantidades passíveis de soma e acumulação (extensivas) e quantidades intensivas ou de grau. Assim, uma parede é uma multiplicidade extensiva de tijolos somados, ao passo que uma temperatura é uma quantidade intensiva que não se compõe da soma de elementos discretos, mas é antes um fluxo ou contínuo. Conforme o molecular é remetido ao intensivo, temos o seu caráter pré-individual e relacional manifesto de forma nítida: trata-se de uma relacionalidade anterior aos termos e independente das unidades individuadas.

[10] A expressão, amplamente utilizada por movimentos fascistas, no século XX e também XXI, é empregada por Griffin na caracterização geral do fascismo. Nesse sentido, o autor argumenta fortemente, contra certas leituras marxistas, que o fascismo tem um caráter revolucionário próprio (GRIFFIN, 2008, p. 50). Esse caráter revolucionário não é negado de forma alguma pela formulação de Deleuze e Guattari, mesmo que o marxismo, como vimos, seja uma influência central na sua conceitualização acerca do social.

[11] Neste ponto, vale trazer os estudos empíricos de Salmela e Scheve, os quais identificam o ressentimento como afeto central na ascensão de movimentos políticos antidemocráticos, nos Estados Unidos (SALMELA; SCHEVE, 2017).

[12] O termo palingenesia é cunhado por Griffin, a partir das palavras gregas palin (de novo) e genesis (nascimento). O autor, assim, define o fascismo como um “ultranacionalismo palingenético”. O seu objetivo é frisar o caráter revolucionário do fascismo, em sua indissociável articulação com o imaginário de um renascimento nacional ou racial (GRIFFIN, 2018, p. 25).

[13] Wendy Brown identifica esse mesmo imaginário em movimentos antidemocráticos contemporâneos, na Europa e nos Estados Unidos (BROWN, 2019, p. 5).

[14] O mesmo tipo de reversão pode ser encontrado na relação entre fascismo e máquina de guerra, na análise de Deleuze e Guattari. A máquina de guerra é a forma de exterioridade ao Estado e pode ser identificada ao caráter produtivo e criativo das forças ativas, ao passo que o Estado, às forças reativas de conservação. Ela não possui, de imediato, a guerra como objeto: antes, é associada aos mecanismos abortivos em relação à emergência da concentração de poder estatal, como analisados por Clastres (1978). Após a absorvição da máquina pelo Estado – na forma de um aparelho militar regular –, ela torna a guerra como objeto em operação semelhante ao que ocorre com as forças ativas, segundo dominadas pelas reativas. No fascismo, por sua vez, temos a máquina de guerra, já tendo a guerra como objeto, tomando o aparelho de Estado, sendo regurgitada por ele, de sorte a orientá-lo completamente à guerra absoluta (DELEUZE; GUATTARI, 2012c).

[15] O “Protocolo dos Sábios de Sião” foi um documento conspiracionista utilizado por movimento antissemitas, o nazismo entre eles. No documento, descreve-se uma suposta conspiração mundial de judeus e maçons, visando à conquista mundial, através da destruição do Ocidente e seus valores.

[16] Nesse sentido, a filosofia política de Spinoza já apontava para a instabilidade de regimes “autoritários” (SPINOZA, 2004), ponto sublinhado por Balibar (2003), na sua rica discussão da filosofia política do pensador moderno.