O CONCEITO DE “DISPOSITIVO UNIVERSAL” (UNIVERSALAPPARAT) EM GÜNTHER ANDERS

 

João Ribeiro Mendes[1]

 

RESUMO: Encontra-se em curso sensivelmente, no último meio século, a finalização de um processo de planetarização da Tecnologia, que, na ordem das causas, terá sido mais proximamente determinado pela Globalização político-económica urdida e imposta pelo Neoliberalismo e mais remotamente influenciado por sucessivas revoluções industriais, desde o século XVIII. Ele implicou uma transformação na própria natureza da Tecnologia, fazendo com que deixasse de ser mero meio (utensílio, ferramenta, instrumento) para determinados fins e se tivesse tornado num ambiente vital e existencial. Günther Anders foi um atento e perspicaz observador e crítico desse fenómeno, que, no seu jargão, concebeu como o do advento de um “Dispositivo universal” (Universalapparat). Dedica-se a primeira parte deste artigo à releitura da interpretação que esse filósofo alemão fez da sua suposta génese e evolução. Na segunda parte, analisa-se esse conceito. Explora-se, na terceira parte, duas consequências filosóficas maiores desse fenómeno.

 

Palavras-chave: Dispositivo Universal. Günther Anders. Tecnologia. Condição Humana. História.

 

INTRODUÇÃO

Günther Anders[2] publicou, em 1956, Die Antiquiertheit des Menschen. Über die Seele im Zeitalter der zweiten industriellen Revolution (A obsolescência do homem. Sobre a alma na era da Segunda Revolução Industrial; AdM-I). Considerou-a um exercício de “filosofia de ocasião” (Gelegenheitphilosophie)[3], um repensar do sentido da existência humana provocado pelo advento da era atómica. Estando convicto de que uma tal prática apenas se justifica em situações tão desafiantes como essa – e, portanto, cético em relação a toda a filosofia académica e sistemática – julgou, na altura, que não voltaria a ela e tornou-se num ativista político antiatómico. Todavia, quase um quarto de século depois, em 1980, mudou de posição e publicou uma sequela dessa obra: Die Antiquiertheit des Menschen. Über die Zerstörung des Lebens im Zeitalter der dritten industriellen Revolution (A obsolescência do homem. Sobre a destruição da vida na era da Terceira Revolução Industrial; AdM-II).

            Do primeiro para o segundo volume, o título manteve-se inalterado, supostamente porque o problema abordado persiste. Com efeito, ainda que os dois conjuntos de ensaios se apresentem organizados de modos bem diferentes[4], parecem ambos centrados no mesmo tema: a discrepância crescente entre a extensão do domínio tecnológico e a capacidade dos seres humanos, enquanto seres espirituais (isto é, dotados de sentimentos e de imaginação), para nele se encaixarem e a ele se ajustarem. Os subtítulos, em contrapartida, mudam. Fazem-nos saber, desde logo, que as circunstâncias são outras e que Anders estendeu o seu olhar crítico da 2ª Revolução Industrial, iniciada sensivelmente por volta de 1850, com a automatização de vários setores de produção, à 3ª Revolução Industrial, principiada em meados do século XX, com a planetarização da Tecnologia. Fazem-nos saber, também, que o cerne da sua preocupação já não é tanto o estiolar da alma, da experiência estética e da criatividade, num mundo progressivamente automatizado, mas mais a tecnologização ou artificialização de um número crescente de esferas da vida.

            Neste artigo, pretendo examinar essa novidade introduzida no escrito de 1980: a aquisição de uma dimensão planetária pela Tecnologia. Esse processo acarretou uma transformação na sua própria natureza, fazendo com que, mais do que meio (utensílio, ferramenta, instrumento) para determinados fins, se tornasse um ambiente vital e existencial, ou, mais abstratamente, que o seu caráter substantivo suplantasse o instrumental.

            Anders introduziu essa ideia do seguinte modo:

Zwar ist das heute noch nicht der Fall, heute sind die Apparate erst auf dem Wege zu dieser Gleichung, aber obwohl noch unterwegs, betrachten sie sich doch auch heute schon als “Kandidaten”, als Teile des im Werden befindlichen “Universalapparates”. (AdM-II, p. 111).[5]

 

Retêm-se do trecho três coisas. Desde logo, que a planetarização da Tecnologia é um processo em curso ou, pelo menos, era-o nas décadas de 1960 e 1970. Importará descortinar a sua génese e duração e se, entretanto, ficou concluído. Depois, que a Tecnologia planetarizada apresentará a forma de um “Dispositivo universal” (Universalapparat). Anders designa-a, noutros lugares de AdM-II, “Máquina universal” (Universalmaschine; p. 114) e “Máquina total” (Totalmaschine; totalen Maschine; p. 114, 119, 121, 123, 124), parecendo assim usar indistintamente os termos Apparat e Maschine. Veremos infra que há razões para preferir o primeiro ao último.[6] Por fim, que a noção de “Dispositivo universal” possui um caráter teleológico.

            Em seguida, examino, na primeira parte, a suposta génese e evolução desse processo de planetarização da Tecnologia; na segunda parte, em que consiste esse Dispositivo universal e, por fim, na terceira parte, algumas consequências desse fenómeno.

 

1 COMO A TECNOLOGIA SE FOI APROPRIANDO DO MUNDO

As duas partes iniciais desta exposição complementam-se, no sentido em que versam, uma sobre o processo que conduziu à emergência do “Dispositivo universal” e outra sobre a finalização do mesmo. Baseei-me, para a primeira, no capítulo oitavo de AdM-II, “Die Antiquitiertheit der Maschinen II”, uma peça originalmente escrita em 1969, e, para a segunda, no sétimo capítulo de AdM-II, “Die Antiquitiertheit der Maschinen II”, um texto escrito nove anos antes, em 1960.

O que está aqui em jogo, importa começar por assinalar, não é o fenómeno da planetarização da Técnica, mas da Tecnologia. Isso, claro, implica uma diferença entre as duas noções. Seguindo Agazzi (1998), entendo que a Técnica é essencialmente uma modalidade de conhecimento prático ou aplicado, um saber-fazer (τέχνη, tékhnē) alicerçado na experiência e no método de tentativa-erro-correção, ao passo que a Tecnologia é igualmente um saber-fazer, mas fundamentado – é o seu “logos” (λόγος), por assim dizer – em conhecimento científico e no método experimental. Infere-se a esse respeito que o aparecimento da Tecnologia se dá depois do da Ciência moderna, portanto, posteriormente ao século XVII.

A primeira Revolução Industrial, a qual teve o seu início na Europa em meados do século XVIII, foi, por conseguinte, mais uma revolução tecnológica que técnica. Para Anders, no entanto, o que ela trouxe de verdadeiramente revolucionário não foi a ideia de máquina, que é mais antiga[7], mas sim a visão de que o mundo podia ser completamente mecanizado. Ela colocará em marcha, pois, um processo que evoluirá por dois séculos e meio, até ao advento da chamada era contemporânea, aquela correspondente aproximadamente aos últimos três quartos de século, altura em que sofrerá um aprofundamento e uma aceleração provocados por uma segunda Revolução Industrial, iniciada com a Guerra Fria, e uma intensificação e globalização, nos últimos 30 anos, com uma terceira Revolução Industrial.

Refletir sobre esse processo teleológico, entende Anders, é pensar a essência da Tecnologia ou, o que significa o mesmo, a dinâmica de expansão planetária de artefactos tecnológicos, nomeadamente máquinas. Resumiu a sua conceção sobre o assunto em 10 teses: as primeiras cinco sobre os aspetos fundamentais do processo que evoluiu de máquinas isoladas em direção a uma Máquina total (ou Dispositivo universal) (v. § 1 de “Die Antiquitiertheit der Maschinen II”); as seguintes quatro relativas ao aumento da vulnerabilidade ou suscetibilidade a falhas e acidentes nas máquinas de maior dimensão (v. §§ 2-3 de “Die Antiquitiertheit der Maschinen II”); a última sobre a aparente irreversibilidade da situação, isto é, da Tecnologia se ter tornado mundo (v. § 4 de “Die Antiquitiertheit der Maschinen II”). Façamos a sua breve análise.

A primeira e segunda teses apresentam-se claramente interligadas. Com efeito, desde os alvores da primeira Revolução Industrial que se assiste a uma expansão das máquinas pelo mundo, ocupando-o, absorvendo-o, fundindo-se com ele, como se cada máquina bem-sucedida gerasse o aparecimento de outras idênticas, numa espécie de crescimento típico de uma multiplicação celular. Foi o que aconteceu, por exemplo, com a emblemática máquina a vapor projetada como “miner’s friend” por Thomas Savery, em 1698, desenvolvida por Thomas Newcomen, em 1712, mas apenas tornada em engenho eficaz (numa altura em que ainda não se dispunha de uma teoria termodinâmica) por James Watt, em 1784. Nem a restritiva “lei dos monopólios” (ou patentes) da época conseguiu impedir que apenas década e meia depois existissem, só na Grã-Bretanha, perto de duas mil máquinas desse tipo. Outro exemplo foi o do igualmente emblemático tear mecânico, o qual desempenhou um papel crucial na industrialização da tecelagem. Edmund Cartwright concebeu o primeiro, em 1787, James Bullough e William Kenworthy aperfeiçoaram-no a ponto de, em 1842, o terem tornado quase automático e, em 1850, cerca de 260.000 máquinas dessa categoria estavam em operação, uma vez mais, só na Grã-Bretanha (BRONOWSKI; MAZLISH, 1960, cap. 17).[8]

De acordo com Anders, por conseguinte, pelo menos desde há dois séculos e meio, “Maschinen expandieren” (AdM-II, p. 117) e “Der Expansionsdrang der Maschinen ist unersättlich” (AdM-II, p. 118)[9]. No entanto, também segundo ele, “Die Zahl der existierenden Maschinen nimmt ab” (AdM-II, p. 118), “Maschinen “kommen herunter” (em termos ontológicos)” (AdM-II, p. 119) e “Die Maschinen werden zu einer einzigen Maschine” (AdM-II, p. 120).[10] Estas três últimas teses, ainda que pareçam contradizer as duas primeiras, são consequências delas. Com efeito, a afirmação de que há uma diminuição do número de máquinas não deve ser tomada literalmente, mas antes no sentido de que cada vez mais máquinas discretas e independentes se vêm transformando em meras peças de máquinas maiores. Esse rebaixamento (ontológico) a que se submetem, perdendo autonomia, é o preço que têm de pagar para cumprir esse fim a que parecem destinadas de ajustamento gradual umas às outras, para formarem uma Máquina total, ao mesmo tempo englobante de todas e transcendente de todas. “Was wir für übermorgen zu erwarten haben”, vaticina Anders, “ist also nicht nur […] eine Verminderung der Zahl der Maschinen, sondern geradezu die Abschaffung des Plurals ‘Maschinen’.” (AdM-II, p. 121).[11]

O quarteto de teses seguintes, à primeira vista contraintuitivo ou mesmo inconsistente, revela aspetos importantes da “lógica interna” da evolução da Tecnologia ou, sob outro ângulo, parece ter o intuito não claramente explicitado de desimplicar dela necessariamente o progresso. Permite-nos perceber, em particular, uma verdade escondida a esse respeito: essa evolução, tanto em dimensão como em sofisticação, fá-la incorrer em riscos crescentes e torna-a, algo paradoxalmente, mais vulnerável, porque mais exposta a falhas e acidentes.

A sexta tese enuncia precisamente a correlação acabada de assinalar: “Je größer [no sentido de mais complexa] die Großmaschine, um so ernster sind ihre Teile gefährdet, die, ehe sie zusammengeschlossen wurden, als Einzelstücke funktioniert hatten (AdM-II, p. 122).[12] Por outra via: quanto maior for a rede de máquinas interdependentes, maior o risco de um acidente com ou em um deles afetar o funcionamento do conjunto.

Em face dessa ameaça permanente, será necessária uma estratégia mereológica precaucional que possibilite, como afirma a sétima tese, “Trotz der Integration der Teile zum Ganzen muß sich sowohl der Teil vor dem Ganzen wie das Ganze vor den Teilen schützen - der Teil vor dem Versagen des Ganzen, das Ganze vor dem Versagen der Teile.”, ou seja, que a incorporação das peças (partes, que podem ser máquinas menores) na máquina maior (todo) não comprometa a segurança daquelas quando este falhe e vice-versa (AdM-II, p. 124).[13]

Complementarmente, a máquina maior que agrega as máquinas menores deve ser projetada para permitir, assevera a oitava tese, que as últimas conservem alguma capacidade de subsistência autónoma, quando a primeira avarie, e, para ter uma magnitude, proclama a nona tese, que a torne suficientemente versátil a ajustes no controlo das partes subordinadas.[14]

Um exemplo fornecido por Anders ilustra bem essa vulnerabilidade: a falha de energia na rede elétrica da América do Norte (Nordeste dos Estados Unidos e Sudeste do Canadá), em 1965, que fez com que milhões de pessoas ficassem subitamente desorientadas, paralisadas e até com medo de que o fim do mundo tivesse chegado (AdM-II, p. 117). Ele torna manifesto como é que uma estrutura tecnológica como essa incorre em maiores riscos, por causa da sua dimensão, complexidade e sofisticação (tese 6), sobretudo se não tiver embutidos mecanismos de segurança (tese 7), de descentralização de funções (tese 8) e de constante automonitorização e reajuste (tese 9).

Mais recentemente, em 2010, tivemos o que ficou conhecido como “Flash Crash”: colapso súbito dos índices de cotação financeira (S&P 500, Dow Jones Industrial Average e Nasdaq Composite), na bolsa de valores estadunidenses. Foram 36 minutos de pânico nas principais praças do mercado bolsista global, que se encontram interligadas e interdependentes, quando a de Nova Iorque atingiu perdas equivalentes a vários triliões de dólares. O acidente foi supostamente provocado por uma guerra entre robôs (máquinas de software) de investimento de alta frequência, os quais colocaram a nu, como no exemplo anterior, como uma estrutura tecnológica de grande dimensão, complexidade e sofisticação (tese 6) se torna imensamente frágil, se não tiver incorporados mecanismos de estabilização interna (tese 7), de redistribuição flexível de funções (tese 8) e de readaptação (ultra-)rápida à novidade (tese 9) (v. LEWIS, 2014).

Esses exemplos, entre muitos outros, mostram também que Anders parece ter antecipado dois conceitos desenvolvidos por Paul Virilio: o de “Acidente original”, isto é, de que “cada tecnologia transporta a sua própria negatividade” ou, se se preferir, que fabrica os seus próprios acidentes, porquanto, como afirma esse teórico da cultura francês, “[…] le naufrage est bien l'invention “futuriste” du navire et le crash, celle de l' appareil supersonique, tout comme Tchernobyl l'est de la centrale nucléaire” (VIRILIO, 2005, p. 18); e o de “Acidente integral”, de que “[…] le XXe siècle a été le précurseur […] (2005, p. 50), aquele que afetará a Tecnologia no seu todo e, eo ipso, a vida de todos nós ou, como assevera Virilio, “[…] celui qui nous intègre globalement et, parfois même, nous désintègre physiquement.” (2005, p. 83).

A décima e última tese trata dos limites da Tecnologia, embora talvez fosse mais correto dizer da condição tecnológica.[15] Anders coloca o assunto do seguinte modo: “Was heute gefragt werden muß, ist, ob wir so frei über Technik [entenda-se da Tecnologia] verfügen [como aconteceu no passado]. Diese Verfügungsgewalt darf man nicht einfach unterstellen.” (AdM-II, p. 127)[16]. Segundo ele, essa é mesmo uma das principais tarefas da Filosofia da Tecnologia: determinar se ainda nos podemos relacionar livremente com a Tecnologia, escolhendo usá-la ou não, ou se, pelo contrário, ela se tornou global, imperativa e totalitária (AdM-II, p. 127). É, pois, isso que hoje mais faz pensar: essa tendência das máquinas para se expandirem constitui um eufemismo para dizer que a Tecnologia tem tendência para o totalitarismo, o que significa, noutros termos, que tal expansionismo transcende os limites do tecnológico, para tornar seus reféns o mundo natural e social, na sua íntegra.

Relembro, a terminar esta primeira parte, que, na nota 2 de AdM-II, Anders defende que, apesar do termo “totalitarismo” ser empregue quase sempre como conotativo de uma tendência política ou de um sistema político, tal constitui um equívoco. Em seu entender, o totalitarismo político é uma variante do totalitarismo tecnológico. Essa reivindicação implica, por um lado, que radica na essência da Tecnologia uma tendência para o totalitarismo – “[…] daß die jeder Maschine als solcher innewohnende Tendenz, die Welt zu überwältigen […] mit anderen Maschinen zusammenzuwachsen und mit diesen zusammen als Teile innerhalb einer einzigen Totalmaschine zu funktionieren – daß diese Tendenz die Grundtatsache darstelle […]” (AdM-II, p. 439)[17] – e, por outro lado, em última instância, a subordinação do político ao tecnológico.

 

2 COMO A TECNOLOGIA SE TORNOU MUNDO: O DISPOSITIVO UNIVERSAL

O primeiro parágrafo da peça redigida nove anos antes, em 1960, “Die Antiquitiertheit der Maschinen I”, tem o título “O sonho das máquinas” (Der Traum der Maschinen). Todavia, podem as máquinas sonhar? Ou, como no romance de ficção científica de Philip K. Dick, “será que os androides sonham com ovelhas elétricas?”[18]. Tudo indica que não. Trata-se de uma metáfora empregue para referir algo inerente às mesmas, que as pré-determina, que faz parte do seu significado essencial. E com que “sonham” as máquinas? Em expandir-se, como foi dito supra.

Bastará pensar numa máquina como a que estou a usar para escrever este artigo, para nos darmos conta do que é que isso quer dizer. À primeira vista, trata-se de um aparelho isolado e até lhe chamamos computador pessoal. Porém, logo nos damos conta de que tem associada uma peça, composta por um transformador e um cabo, que permite a sua ligação à rede elétrica, da qual depende para se reabastecer energeticamente, de modo regular. Dispõe também de um carregador adicional (powerbank) portátil, com uma bateria interna que armazena energia elétrica para abastecê-lo em situações nas quais se encontra temporariamente sem acesso a uma rede elétrica, como numa viagem de avião de longo curso. Encontra-se igualmente equipado com portas de ligação que permitem a sua conexão, com fios ou sem fios (wireless), a uma parafernália de aparelhos que entram na sua órbita, como impressoras, mesas de digitalização (scanners), ratos, memórias externas, projetores de vídeo, televisões etc. Usa protocolos de ligação informática, para se emparelhar eletronicamente com aparelhos afins, como tabletes e telefones móveis (smartphones) e se conectar a redes de computadores com os quais troca dados e, à distância, controla sistemas domóticos (iluminação, eletrodomésticos, videovigilância etc.). E assim por diante.

Enfim, um vulgar computador pessoal, é o que este exemplo mostra, propende a expandir o seu domínio, coligando-se a outros artefactos tecnológicos, frequentemente chamados periféricos e de acesso remoto. Para Anders, todavia, isso não parece ser característico apenas desse tipo de máquina, mas de todo o tipo de máquina ou, se se preferir, faz parte da essência da Tecnologia.[19]

O corolário lógico dessa tendência é, como afirma, “[…] einen ‘Idealzustand’ lossteuern, auf einen Zustand, in dem nur noch ein einziger und lückenloser, also der Apparat existiert: derjenige Apparat, der alle Apparate in sich ‘aufhebt’, derjenige Apparat, in dem ‘alles klappt’.” (AdM-II, p. 111).[20] E a sua realização conduzirá ao “triunfo no mundo dos aparelhos” (Der Triumph der Apparatewelt), ou seja, a “[…] den Unterschied zwischen technischen und gesellschaftlichen Gebilden hinfällig und die Unterscheidung zwischen den beiden gegenstandslos gemacht hat.” (p. 110).[21]

O acabado de dizer suscita, desde logo, três considerações. A primeira é de caráter histórico. Se, em 1960, como no começo deste artigo foi assinalado, esse Aparelho – coloco uma maiúscula inicial para realçar a sua singularidade – ainda se encontrava em devir ou construção, sessenta anos depois podemos razoavelmente afirmar que, a não estar ainda finalizado, estará pelo menos próximo disso, porquanto a Tecnologia apresenta cada vez mais uma feição planetária. Se aceitarmos, como propõe Haff (2013, p. 302-303), que o Estado moderno representa uma tecnologia de organização política, então, dada a sua omnipresença geográfica e a impossibilidade prática de quem quer que seja e o que quer que seja permanecer hoje fora do seu âmbito, reconheceremos que se trata de evidência dessa planetarização da Tecnologia.[22]

A segunda é de natureza linguística. Disse igualmente, na parte introdutória deste artigo, que Anders parece usar indistintamente “Apparat” e “Maschine”, o que cria a possibilidade de traduzirmos ambos os termos por “aparelho”. Essa opção, todavia, confere ênfase a uma conotação mecânica e aproxima semanticamente os dois vocábulos de “Gerät”, engenho (tecnológico). Ora, esse Aparelho de dimensão planetária (Universalapparat ou Universalmaschine) em que, segundo Anders, a Tecnologia se tornou conota algo de distinto: uma força que dispõe, arranja, ordena e que, por conseguinte, é estruturante, configuradora, compositiva de elementos em larga medida heterogéneos. Assim, parece-me mais adequado empregar antes a palavra “Dispositivo” para referi-lo. Falar-se-á, por consequência, da Tecnologia contemporânea no seu todo como um Dispositivo e das tecnologias, instâncias particulares desse todo, como aparelhos, máquinas, engenhos. Nesse sentido, pode aduzir-se, o qualificativo “universal” afigura-se supérfluo ou redundante.

Essa escolha da palavra “Dispositivo”, obviamente, convoca referências a pelo menos três pensadores que antes a usaram. Martin Heidegger, desde logo, por via da noção de “Gestell”, por vezes assim traduzida, destacando tratar-se de uma espécie de força anónima que impõe, mais do que um certo arranjo (ou cálculo) de elementos (e.g., peças de máquinas, máquinas), um modo de revelá-los (ou de concebê-los) como disponíveis (ou em reserva) para ser assim compostos. O filósofo alemão descreve-a numa passagem canónica do muito comentado ensaio “Die Frage nach der Technik”:

Ge-stell heißt die Weise des Entbergens, die im Wesen der modernen Technik waltet und selber nichts Technisches ist. Zum Technischen gehört dagegen alles, was wir als Gestänge und Geschiebe kennen und was Bestandstück dessen ist, was man Montage nennt. Diese fällt jedoch samt den genannten Bestandstücken in den Bezirk der technischen Arbeit, die stets nur der Herausforderung des Ge-stells entspricht, aber niemals dieses selbst ausmacht oder gar bewirkt. (HEIDEGGER, [1953] 2000, p. 24).[23]

 

Michel Foucault, por seu turno, através do conceito de “Dispositif”, sublinhando a dimensão regulatória dessa força e o seu efeito totalizador, numa determinada constelação (formação) histórica. Numa entrevista que remonta a 1977, o seu interlocutor, Alain Grosrichard, inquiriu-o sobre o significado do mesmo e obteve esta resposta do pensador francês:

Ce que j'essaie de repérer sous ce nom, c'est, premièrement, un ensemble résolument hétérogène, comportant des discours, des institutions, des aménagements architecturaux, des décisions réglementaires, des lois, des mesures administratives, des énoncés scientifiques, des propositions philosophiques, morales, philanthropiques, bref: du dit, aussi bien que du non-dit, voilà les éléments du dispositif. Le dispositif lui-même, c'est le réseau qu'on peut établir entre ces éléments. (FOUCAULT, 1977, p. 62).[24]

 

Por fim, Giorgio Agamben, que, fazendo uso do termo parónimo “Dispositor” – importado da astrologia, onde é empregue para referir o planeta que governa o signo zodiacal no qual outro planeta está localizado (e.g., sendo Mercúrio o planeta que governa o signo zodiacal de Gémeos, se Vénus estiver localizado neste, então Mercúrio é o seu dispositor) – que o próprio autor considera uma monstruosidade lexical, muito embora útil para o dissociar do anterior, porquanto lhe realça uma “linhagem teológica” ou, mais especificamente, uma dimensão trans-histórica (ou arqui-histórica) e transcendente. Nas suas palavras:

In this perspective I will generalize the already huge category of dispositif, and continuing his gesture, I will call dispositor or dispositif, literally everything that has in some way, the capacity of capturing, determining, orienting, intercepting, shaping, guiding, securing or controlling, the behaviors, the gestures, the opinions, the discourses of living beings or substances. (AGAMBEN, 2005).[25]

 

Em resumo, sustentar que a Tecnologia planetarizada é um Dispositivo universal equivale a dizer que se tornou numa força anónima, regulatória, com um efeito totalizador, trans-histórica e transcendente.

A terceira consideração é de tipo ontológico e, por isso, também a de maior alcance. A concretização desse Dispositivo provoca uma metamorfose do próprio mundo, no sentido em que se tornam indiscerníveis. Segundo Anders, ao dar-se a sua realização, nada mais lhe pode permanecer exterior ou transcendente, tudo se lhe torna imanente. Isso significa que terá

[…] sich nun alles einzuverleiben, alle nur denkbaren Funktionen in sich zusammenzuschließen, allen existierenden Dingen ihre Funktion zuzuerteilen, alle in ihn hineingeborenen Menschen als seine Funktionäre in sich zu integrieren - kurz: der Satz “alles klappt” würde dann auf die Gleichung “Apparate = Welt” hinauslaufen. (AdM-II, p. 111).[26]

 

O Dispositivo universal, por conseguinte, apropria-se do mundo inteiro e torna-se ele mesmo não num mundo alternativo, possível, mas em mundo, o único que há. O título do segundo parágrafo do capítulo sétimo de AdM-II dá conta dessa identidade ontológica, na forma da equação “aparelho=mundo” (Die Gleichung “Apparat = Welt”).

            O Dispositivo instaura, por assim dizer, uma “ontologia de pilhagem” (Ontologie des Raubes; v. §3 do capítulo sétimo de AdM-II), que apenas deixa subsistir, como ente, o que for passível de se tornar sua presa (ou peça) e tornar-se funcionalizável. Por conseguinte, “esse est capi”, ser é poder ser aprisionado pelo/no Dispositivo universal, como sintetiza Anders, numa fórmula com ressonâncias tanto heideggerianas como berkeleyanas.

Em resultado, o “Mundo” transforma-se “[…] ein virtuelles Besatzungsgebiet; Energien, Dinge, Menschen sind ausschließlich mögliche Requisitionsmaterialien” (AdM-II, p. 112)[27], significando isso que, com a planetarização da Tecnologia qua Dispositivo, nada nem ninguém (coisas, seres humanos) pode escapar a ser ontologicamente despromovido, a tornar-se mera matéria-prima em permanente reserva ou disponibilidade para ser mobilizável, o que equivale, noutros termos, a que tudo e todos permaneçam condenados a, cedo ou tarde, tornar-se parte do processo de mecanização do mundo e ficar reduzido a meio ou componente no/do mesmo.

Este parece, pois, como referido supra, o culminar de um processo em desenvolvimento há cerca de duzentos e cinquenta anos e o consumar da visão civilizacional, imperante e norteadora desde a primeira Revolução Industrial, de mecanização completa do mundo.

Tratando-se de uma situação sem precedentes, ela também nos faz correr perigos inéditos. A chamada Escola (da Université de Technologie) de Compiègne vem demonstrando persuasivamente que a Técnica é Antropologicamente Constitutiva e Constituinte, ou seja, que, de certo modo, a nossa espécie é, por assim dizer, “naturalmente” técnica. Nessa ótica, não faz sentido problematizar a nossa maior ou menor dependência da mesma. Diferente será fazê-lo em relação à Tecnologia. E a esse respeito parecemos encontrar-nos excessivamente dependentes dela, em especial desde o momento em que adquiriu uma extensão planetária, em que se tornou num Dispositivo universal.

Para Anders, estar mais à mercê da Tecnologia, nessa forma que atualmente adquiriu, significa estar mais exposto às suas falhas. “Die katastrophische Gefährlichkeit einer solchen Universalmaschine”, diz, “liegt auf der Hand. Würde nämlich […] die totale Interdependenz zwischen allen ihren Teilen Wirklichkeit werden, dann würde jedes Versagen eines Teiles automatisch den ganzen Apparat in Mitleidenschaft ziehen, also still legen.” (AdM-II, p. 114).[28]

Desse perigo latente, aliás, nós nos vamos apercebendo de tempos a tempos. Por exemplo, quando há uma quebra no abastecimento de energia elétrica e, ao fim de umas horas, descobrimos que já não podemos operar com o computador, ligar-nos à Internet, ver televisão, conservar os alimentos no frigorífico etc.; ou quando é forçada uma atualização de software proprietário no nosso computador e não podemos usá-lo, às vezes, por um período de dias, para escrever, dar uma aula, fazer uma encomenda em linha etc.; ou quando um vírus informático malicioso ameaça o funcionamento de setores críticos da organização de uma sociedade, como infraestruturas básicas, hospitais, sistemas de segurança e de defesa. “Offenbar”, afirma ainda Anders, “liegt es also im Interesse der “totalen Maschine” selbst, nicht “total total” zu werden, sondern eine dosierende Unabhängigkeit ihrer Teile aufrechtzuerhalten […]” (AdM-II, p. 114).[29]

Enfim, para que o Dispositivo subsista, é preciso que as máquinas que trabalham como peças suas se deem “bem” umas com as outras, mantenham uma coexistência equilibrada. Essa “sociologia das coisas” (Soziologie der Dinge), como Anders lhe chama, a qual se encontra por fazer, deverá ter em consideração que um dos maiores desafios que o Dispositivo universal enfrenta, uma vez constituído, é o de funcionar de modo que cada um dos seus componentes, não humanos e humanos, opere sem falhas, para não prejudicar os demais e a sua permanência como totalidade. Ora, é nesse ponto que o seu futuro – o futuro da Tecnologia – se afigura sombrio, seja porque os componentes humanos, enquanto tais, não conseguirão acompanhar os componentes não humanos – provocando o que Anders apelidou de “prometheichen Scham” (vergonha prometeica) (v. AdM-I, cap. 1) –, tornando-se obsoletos ou cedendo o lugar a ciborgues ou transumanos, seja porque cada tecnologia particular propende ao aperfeiçoamento – espécie de maldição que carrega – e, dessa forma, instabiliza as outras tecnologias particulares com as quais interopera e, em última instância, o Dispositivo universal. E, se o futuro da Tecnologia parece ameaçado, não menos lúgubre parece o do Humano, pela sua união num mesmo destino.

 

3 CONSEQUÊNCIAS FILOSÓFICAS DA METAMORFOSE DO MUNDO

Nesta última parte, identifico, de maneira muito breve, duas consequências filosóficas maiores do fenómeno da planetarização da Tecnologia.

            A primeira é a da premência de um repensar da condição humana, ou seja, das circunstâncias materiais e espirituais históricas em que desenrolamos a nossa existência como seres mortais, produtivos e intersubjetivos.

No seu ensaio The Human Condition, Hannah Arendt escreveu, há mais de seis décadas:

The most radical change in the human condition we can imagine would be an emigration of men from the earth to some other planet. Such an event, no longer totally impossible, would imply that man would have to live under man-made conditions, radically different from those the earth offers him. (ARENDT, [1958] 1998, p.10).

 

Aparentemente, a filósofa alemã previu a possibilidade da Terraformação – moldar as condições ambientais da Terra noutro planeta, para torná-la habitável por humanos – mas não a da artificialização completa do nosso próprio planeta. Todavia, desde meados do século XVIII, várias gerações construíram uma malha tecnológica que atingiu uma escala global, por volta do derradeiro quartel do século XX, aquilo que Anders designou como Dispositivo universal.

Este último instaurou, por um lado, um “Tecnoceno”, como assinalam, por exemplo, Hornborg (2015) e Cera (2017), uma era em que a Tecnologia se tornou dominante e subjugadora – o sufixo temporal, de origem grega, “-kainos”, particularmente usado na geocronologia científica, combinado com o substantivo, igualmente de origem grega, “technê”, denota esse novo contexto geocivilizacional em que vivemos – e, por outro lado, um “Tecnotopo”, como argumentaram, por exemplo, Erlach (2000) e Kockelkoren (2007), um lugar, um “topos”. Jacques Ellul preferiu chamar-lhe “[…] le nouveau milieu dans lequel l'homme doit vivre” (ELLUL, 1954, p. 391) e Jan van Boeckel, num comentário à sua obra, acrescentou:

[…] technology has become an environment: the technological milieu – our technotope – is not only the place where we live, but it also makes living possible and forces change; it obliges us to transform who we are because of the problems arising from the milieu itself. (VAN BOECKEL, 2015, p. 215).

 

Estas parecem ser as novas coordenadas espácio-temporais inevitáveis para nossa coexistência global. Cada vez mais gerações estão a nascer e a levar as suas vidas inteiras, no interior do mundo artificial[30] criado pelo Dispositivo universal. É no seu âmbito que interagem com outros, que constroem histórias afetivas, que amam. É dentro dele também que laboram, trabalham e criam.

Todavia, como Anders assinala, no § 4 de “Die Antiquitiertheit der Maschinen I”, estamos a fazer agora tudo isso, afastando-nos sempre mais da nossa essência, alienando-nos, num esforço que promete ser vão de adaptação ao “reino das máquinas”. Começámos por dar-lhes serviço e uso, depois passámos a co-laborar, mais tarde entrámos ao seu serviço e agora competimos com elas. Isso insere-nos numa estranha escatologia em que “[…] daß wir Menschen uns maschinengleich zu machen, uns in Maschinen bzw. Maschinenteile größerer Maschinen, schließlich der Maschine, zu verwandeln haben” (1956, p. 113).[31] Estranheza redobrada, por termos consciência de termos sido os autores dessa situação. É ela, pois, que urge ser pensada a fundo.

A segunda é a da necessidade de uma nova Filosofia da História, ou seja, do sentido que os nossos comportamentos individuais e coletivos, institucionais e civilizacionais podem/devem ter.[32]

Segundo Anders, uma das principais consequências trazidas pela terceira Revolução Industrial foi o chamado “fim da história”, não na aceção hegeliana que inspirou Fukuyama (1992),[33] mas no sentido de aparecimento da Tecnocracia, a qual não tem que ver com “[…] die Herrschaft von Technokraten (so als wäre es eine Gruppe von Spezialisten, die heute die Politik dominierten) […]”, mas sim com

[…] die Tatsache, daß die Welt, in der wir heute leben und die über uns befindet, eine technische ist - was so weit geht, daß wir nicht mehr sagen dürfen, in unserer geschichtlichen Situation gebe es u. a. auch Technik, vielmehr sagen müssen: in dem “Technik” genannten Weltzustand spiele sich nun die Geschichte ab, bzw. Die Technik ist nun zum Subjekt der Geschichte geworden, mit der wir nur noch “mitgeschichtlich” sind. (AdM, p. 9).[34]

 

Como se entende, para Anders, a Tecnologia é a força que molda a nossa era, no sentido em que a criou, muito embora também possa provocar a sua destruição. Ele sugeriu – na epígrafe do capítulo 17 de AdM-II, intitulado “Die Antiquiertheit der Geschichte” (A obsolescência da História) – que a viragem para a Tecnocracia se inscreveu no processo histórico e, portanto, no nosso destino, de um modo semelhante ao que já antes ocorrera com a viragem para a política, por volta de 1815, com Napoleão, e a viragem para a economia, por volta de 1845, com Marx. E isso, como afirmou, constitui “[…] die entscheidende Neuigkeit des heutigen Zeitalters […]”, i.e., “[…] die Tatsache, daß heute die Technik das Subjekt der Geschichte geworden ist; daß wir mit dieser Geschichte nur noch “mit-geschichtlich” sind […]” (p. 286).[35]

E sermos co-históricos significa que não somos mais os protagonistas da História e também que “[…] gleich, welcher Klasse wir angehören ; und das sind wir nicht mehr mit der Geschichte einer anderen Klasse, sondern mit einer anderen Klasse von Geschichte: nämlich mit der Geschichte des heutigen Geschichts-Subjekts: mit der der Technik.[36]

A tendência totalitária da Tecnologia e o acabamento da História como um processo político e económico são dois acontecimentos que Anders observa como conjuntamente ocorrentes, no nosso tempo, todavia, interpreta nos termos de uma relação aparentemente causal do primeiro em relação ao segundo – v., por exemplo, o § 5 do capítulo 17, “Die Technik - das Subjekt der Geschichte” (A Tecnologia - o Sujeito da História). Forneceu a seguinte interpretação para isso, para a morte do proletariado e da sua utopia de emancipação por intermédio do progresso tecnológico e para a concomitante ascensão de uma poderosa elite super-rica que governa opressivamente o mundo tecnológico:

[…] wir […] daß wir darauf verzichtet haben (oder uns zu diesem Verzicht haben zwingen lassen) uns selbst (oder die Nationen oder die Klassen oder die Menschheit) als die Subjkte der Geschichte zu betrachten, daß wir uns entthront haben (oder haben entthronen lassen) und an unseren Platz andere Subjekte der Geschichte, nein: ein einziges anderes Subjekt gesetzt haben: die Technik, deren Geschichte nicht, wie die der Kunst oder der Musik, eine unter anderen “Geschichten”, sondern nun die Geschichte ist, mindestens die Geschichte im Laufe der jüngsten Geschichte geworden ist – was durch die Tatsache, daß von ihrer Entwicklung und Verwendung […] (AdM-II, p. 279).[37]

 

            E isso, claro, também urge ser refletido a fundo.

 

THE CONCEPT OF “UNIVERSAL APPARATUS” (UNIVERSALAPPARAT) IN GÜNTHER ANDERS

 

ABSTRACT: More or less in the last half century, a process of planetarization of Technology is underway, which in the order of causes will have been more directly determined by the political-economic Globalization woven and imposed by the so-called Neoliberalism and more remotely influenced by successive industrial revolutions since the 18th century. It implied a transformation in the nature of Technology, ceasing to be a mere means (utensil, tool, instrument) for certain purposes and becoming a vital and existential environment. Günther Anders was an attentive, perceptive and critical observer of this phenomenon that, in his jargon, he conceived as the advent of a “Universal apparatus” (Universalapparat). I dedicate the first part of this article to reread the German philosopher's interpretation of his supposed genesis and evolution. In the second part, I analyze this concept. In the third part, I explore two main philosophical consequences of this phenomenon.

 

Keywords: Universal Apparatus. Günther Anders. Technology. Human Condition. History.

 

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[1] Pesquisador no Institute for Anthropocene Studies – Docente no Departamento de Filosofia da Universidade do Minho, Braga – Portugal. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3731-2246. Email: jcrmendes@ilch.uminho.pt.

[2] Trata-se, como é sabido, de um nom de plume. O verdadeiro nome desse pensador alemão é Günther Siegmund Stern (Breslau, 1902-Viena, 1992).

[3] À semelhança da Gelegenheitsdichtung, poesia, de Goethe, composta para uma particular ocasião.

[4] O primeiro volume é composto por 4 ensaios: “Über prometheische Scham” (Acerca da vergonha prometeica); “Die Welt als Phantom und Matrize” (O mundo como fantasma e matriz); “Sein ohne Zeit” (Ser sem Tempo); “Über die Bombe und die Wurzeln unserer Apokalypse-Blindheit” (Acerca da bomba e da nossa cegueira do Apocalipse). O segundo volume contém 25 ensaios, assemelhando-se a um dicionário de outras tantas coisas que ficaram obsoletas.

[5] “Certamente, isso ainda não é hoje o caso; na atualidade, os aparelhos estão no caminho para essa equação, mas, mesmo que estejam no caminho, hoje já são considerados “candidatos”, peças do “aparelho universal” que está em devir. Opto aqui por colocar em notas de rodapé somente as traduções de citações feitas em língua alemã. A versão portuguesa de boa parte das mesmas encontra-se fixada na primeira parte de Mendes e Sylla (2019).

[6] Esse campo semântico abrange também a distinção “Makro-Apparate” vs. “Mikro-Apparate” (p. 110) e os termos afins “Großmaschine” (p. 114, 118, 119, 122, 123, 125) e “Großapparat” (p. 115, 125).

[7] Máquinas simples, isto é, meros artefactos mecânicos capazes de mudar a direção ou magnitude de uma força (e.g., uma alavanca ou um plano inclinado), remontam ao final do Paleolítico. Máquinas complexas, como sistemas compostos por partes, mecanismos de controlo e interfaces para manuseio (e.g., um automóvel ou um computador) possivelmente vão até ao início do primeiro milénio cristão, com Antiquitera.

[8] Mesmo antes da primeira Revolução Industrial se pode identificar esse padrão, por exemplo, na expansão dos moinhos (de água, de vento e impulsionados por animais), que, segundo o Domesday Book, resultante do grande censo mandado efetuar por Guilherme I, eram, em 1086, em número superior a 6000, em toda a Inglaterra (WOTTON, 2015, cap. 14).

[9]Primeira tese: As máquinas expandem-se”; “Segunda tese: o impulso expansionista das máquinas é insaciável”.

[10]Terceira tese: O número de máquinas existentes diminui”; “Quarta tese: As máquinas “decaem””; “Quinta tese: as máquinas convertem-se numa única máquina”.

[11] “O que nos cabe esperar depois de amanhã, não é, portanto, só […] uma diminuição no número de máquinas, mas diretamente a abolição do plural ‘máquinas’.”

[12]Sexta tese: Quanto maior é a grande máquina, mais seriamente se encontram ameaçadas as suas peças, que haviam funcionado individualmente antes de se unirem”.

[13][…] sétima tese: Apesar de integração das peças no todo, a peça tem de proteger-se do todo tanto quanto o todo das peças: a peça, da falha do todo; e o todo, da falha das peças.”.

[14]Achte These: Der Großapparat, an den die individuellen Apparate so angeschlossen sind, daß sie nur noch die Rolle von Geräteteilen spielen, hat, so lange er funktioniert, jedem dieser Apparatteile eine eiserne Ration mitzugeben, eine Uberbrückungsration, die so lange vorzuhalten hätte, als er, der Großapparat, ausfällt” (Oitava tese: O grande aparelho, ao qual estão agregados os aparelhos individuais, de maneira que só desempenham nele o papel de peças de aparelho, tem que conceder, durante todo o tempo do seu funcionamento, a cada uma dessas peças uma ração de reserva, uma ração-ponte, que teria de aguentar durante o tempo de avaria do grande aparelho) (AdM-II, p. 125); Neunte These: Eine der Hauptaufgaben aller Planungen (und das heißt ja: der Zentralisierung von tausend Aktivitäten und Apparaten, ihrer Ausrichtung auf ein einziges Ziel hin) wird k ünftig in der Dosierung der Größe von Großmaschinen bestehen” (Uma das tarefas principais de toda a planificação (e isto significa: da centralização de milhares de atividades e aparelhos, da sua orientação para uma meta única) consistirá no futuro num doseamento da magnitude das grandes máquinas) (AdM-II, p. 126).

[15]Zehnte These: Charakteristisch für den heutigen Zustand der Welt ist […] daß die Bewohner der verschieden stark begünstigten Regionen zu ganz verschiedener Einstellung gegenüber der Technik verpflichtet sind.” (Décima tese: Característica da situação atual do mundo é […] o facto de os habitantes das diversas regiões muito privilegiadas estarem obrigados a adotar uma posição inteiramente diferente a respeito da técnica) (AdM-II, p. 127).

[16]O que hoje importa perguntar é se dispomos tão livremente da técnica. Não se pode supor simplesmente essa capacidade de livre disposição”.

[17] “[…] que a tendência inerente a cada máquina de dominar o mundo […] de unir-se com outras máquinas e de funcionar, junto com estas, como partes de uma máquina única total […] constitui um facto básico fundamental […]”.

[18] Do Androids Dream of Electric Sheep? (New York: Doubleday & Company, 1968).

[19] E, pode acrescentar-se, possivelmente até de qualquer artefacto técnico (qua pré-tecnológico). Bastará para tal pensarmos numa simples pedra que pode ser tornada pisa-papéis ou arma de arremesso. No primeiro caso, é previsível que, como mínimo, se ligue a outros artefactos, como um pano para a sua limpeza ou um pincel e tintas para a sua decoração. No segundo caso, é quase certo que atraia água oxigenada, pomada para hematomas e pensos antisséticos autoadesivos.

[20] “[…] uma “situação ideal” em que só exista um único aparelho e ininterrompido, ou seja, o aparelho: esse aparelho que “incorpora e sintetiza” em si todos os aparelhos e no qual “tudo funciona”.

[21] “[…] ter eliminado a distinção entre estruturas técnicas e sociais e deixado sem objeto a distinção entre ambas”.

[22] Esse fenómeno também foi notado no final do século XX, quando a teoria social contemporânea incorporou no seu discurso o conceito de “Globalização” (introduzido por Theodore Levitt, professor da Harvard Business School, no artigo “The Globalization of Markets”, publicado em 1983, para expressar o que julgava ser uma modificação observável nos mercados com uma crescente subordinação das preferências nacionais ou regionais às globais), para referir alterações fundamentais na experiência humana social do espaço e do tempo, enormemente contraídos, em boa medida, pela mediação tecnológica.

[23] “Dis-positivo é o nome da forma de revelar que prevalece na essência da Tecnologia e não é ela própria nada de tecnológico. Por outro lado, o tecnológico inclui tudo o que conhecemos como hastes, pistões e chassis e que faz parte do que se chama montagem. Esta, porém, juntamente com os componentes mencionados, enquadra-se na área do trabalho tecnológico, que sempre corresponde apenas ao desafio do Dis-positivo, mas nunca o constitui nem o efetua”.

[24] “O que procuro identificar com este nome é, em primeiro lugar, um todo decididamente heterogéneo, compreendendo discursos, instituições, arranjos arquitetónicos, decisões regulatórias, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas, enfim: o dito, assim como o não dito, são os elementos do dispositivo. O próprio dispositivo é a rede que pode ser estabelecida entre esses elementos”.

[25] “Nessa perspetiva, expandindo ainda mais a já grande classe de aparelhos foucaultianos, chamarei dispositivo literalmente qualquer coisa que tenha de alguma forma a capacidade de capturar, orientar, determinar, intercetar, modelar, controlar ou assegurar os gestos, comportamentos, opiniões ou discursos de seres vivos”.

[26] “[…] conseguido incorporar tudo: incluir em si todas as funções imagináveis, adjudicar a todas as coisas existentes a sua função, integrar em si todos os homens nascidos no seu couto como funcionários seus; em suma: a frase “tudo funciona” desemboca na equação “aparelhos = mundo””.

[27] […] [n]uma zona de ocupação virtual; energias, coisas, homens são exclusivamente materiais requisitáveis”.

[28] “A catastrófica periculosidade de semelhante máquina universal é gritante. Na verdade, se se tornasse realidade a total interdependência de todas as suas peças […] qualquer avaria de uma peça afetaria automaticamente e, portanto, paralisaria todo o aparelho”.

[29] “Obviamente, à mesma “máquina total” interessa-lhe não se tornar “completamente total”, mas manter uma independência doseada das suas peças […]”.

[30] O uso do singular “mundo artificial” não significa que, de facto, seja homogéneo, mas podendo ser um conjunto de sistemas tecnológicos interdependentes.

[31] “[…] nós os homens temos que tornar-nos iguais às máquinas, convertermo-nos nelas, isto é, em peças de outras máquinas maiores, em última instância, da máquina”.

[32] Ver também, em relação a esse ponto, Mendes (2019).

[33] No ensaio que fez época, The End of History and the Last Man, o politólogo estadunidense Francis Fukuyama reivindicou que essa expressão teria como conteúdo “[…] “the end point of mankind`s ideological evolution” […]” (p. ix), por um lado, e a universalização da democracia liberal ocidental, após o início da Guerra Fria como, “[…] “the final form of human government” […]” (ibid.), por outro lado.

[34] “Por “tecnocracia” não me refiro à supremacia dos tecnocratas (como se fossem um grupo de especialistas que dominam a política contemporânea), mas ao fato de que o mundo em que vivemos e que nos rodeia é um mundo tecnológico, a tal ponto que não podemos mais dizer que, em nossa situação histórica, tecnologia é apenas uma coisa que existe entre nós como outras coisas, mas que, em vez disso, devemos dizer que agora a história se desenrola na situação do mundo conhecido como o mundo da ‘tecnologia’ e, portanto, a tecnologia tornou-se realmente o assunto da história, ao lado da qual somos apenas ‘co-históricos’.”.

[35] “[…] a novidade decisiva da era atual […]”; “[…] o facto de que, hoje, a técnica se converteu no sujeito da história; de que nós só somos “co-históricos” com esta história […]”.

[36] “[…] sem que importe a classe a que pertençamos; e já não o somos com a história de outra classe, mas com outra classe de história, a saber: com a história do atual sujeito da história, com a da técnica”.

[37] “[…] “nós” […] que havemos renunciado (ou nos deixámos levar a essa renúncia) a considerar-nos a nós mesmos (às nações, às classes ou à humanidade) como os sujeitos da história; que nos retirámos do trono (ou nos deixámos retirar) e em nosso lugar colocámos outros sujeitos da história ou, melhor, um único sujeito: a técnica, cuja história não é, como a da arte ou a da música, uma entre outras “histórias”, mas a história ou, pelo menos, converteu-se em a história no curso da história recente, coisa que se constata da maneira mais terrível pelo facto de o ser ou o não ser da humanidade depender do seu desenvolvimento e da sua aplicação […]”.