NO HORIZONTE DO ESTRANHO MODO DE SER HUMANO – A ACTIVIDADE TÉCNICA SEGUNDO J. ORTEGA Y GASSET

 

Margarida I. Almeida Amoedo[1]

 

RESUMO: O texto procura evidenciar como, no âmbito da filosofia de José Ortega y Gasset, a reflexão sobre a actividade técnica é inseparável da peculiar maneira de o pensador espanhol recorrer ao método fenomenológico. Por isso, é forçoso começar por algumas referências ao significado do contacto precoce de Ortega com a Fenomenologia e à apropriação que fará do respectivo método enquanto caminho para aceder à realidade radical, ou seja, segundo o pensamento orteguiano, à Vida de cada ser humano, que, no seu encontro com o mundo, vivencia um drama ou uma aventura, devido ao seu constante risco de deixar de ser. Para que se compreenda a leitura do filósofo espanhol da dimensão técnica do viver, será necessário acompanhar, sobretudo, a análise que realizou na sua Meditación de la técnica, ainda que seja inevitável remeter para outros textos profundamente articulados com esse curso universitário apresentado em 1933.

 

Palavras-chave: Ortega y Gasset. Fenomenologia. Técnica. Vida humana. Meditación de la técnica.

 

1 ORTEGA E A FENOMENOLOGIA

Graças aos estudos que realizou na Alemanha, em dois períodos compreendidos entre 1905 e 1911 (nas Universidades de Leipzig, Berlin e Marburg), José Ortega y Gasset contactou muito cedo com a então emergente fenomenologia. Em “Prólogo para alemanes” (de 1934, mas de publicação póstuma), o próprio filósofo (2009a, p. 155) refere que o seu estudo a sério da fenomenologia começou em 1912[2] e, com efeito, logo no ano seguinte, ou seja, no próprio ano da publicação do primeiro dos doze vo­lumes do Jahrbuch für Philosophie und phänomenologische Forschung, Ortega dedica à feno­menologia o discurso intitulado “Sensación, construcción e intuición (2004a)[3] e os escritos (que a Revista de Libros publicou, entre Junho e Setem­bro) “So­bre el con­cepto de sensación (2004b).

Embora admitindo ainda não ver com toda a nitidez os limites e a constitui­ção da proposta de Husserl, em torno da qual havia, naquela altura, discussões muito variadas e profundas, o jovem pensador mostra-se esperançado com a nova corrente filosófica – “Tal vez se abre con el principio de la intuición una nueva época de la Filoso­fía” (2004a, p. 652) – e, com entusiasmo, apresenta aos seus compatriotas a explicação, pela fenomenologia, da possibilidade de nos darmos conta, através da intuição, de estados objectivos individuais e de, por abstracção dos elementos espácio-temporais, transformar o que inicialmente era intuição indi­vidual em intuição essencial.

Desse modo, a verdade das proposições não acarreta que se abdique dos objectos nelas referidos, porquanto é viável libertá-los das notas indi­vidualizadoras da experiência em que se nos dão e, ao mesmo tempo, descrever o que eles são (2004b, p. 628-631). Ortega não ignora que, já no idealismo clássico, os objectos eram, em primeira instância, presenças imediatas na cons­ciência; contudo, essa sua objectividade primária era depois circunscrita a uma determinada classe de objectos que acabava confundida com o todo da realidade, ao passo que a fenomenolo­gia procura manter-se no plano do vivido, no que ele tem de imediato e de patente, para aí descobrir descritivamente a realidade de que a consciência é consciência de.

            A referência, por Ortega, à consciência (intencional) e à importância do plano das vivências leva-o a introduzir uma longa nota muito importante, a qual levanta o problema da tradução, por ele feita, do termo alemão “Erlebnis” pelo espanhol “vivencia”. Para o justificar, sublinha que,

[…] en frases como “vivir la vida”, “vivir las cosas”, adquiere el verbo “vivir” un cu­rioso sentido. Sin dejar su valor de deponente toma una forma transitiva signi­ficando aquel género de relación inmediata en que entra o puede entrar el sujeto con ciertas objetividades. Pues bien, ¿cómo llamar a cada actualización de esta relación? Yo no en­cuentro otra palabra que “vivencia”. Todo aquello que llega con tal inmediatez a mi yo que entra a formar parte de él es una vivencia. Como el cuerpo físico es una unidad de átomos, así es el yo [...] una unidad de vivencias. (2004b, p. 634, n. 1).

 

Aqui, o recurso a cada actualização da relação entre um sujeito e certos objectos para definir uma vivência, bem como a ideia de que essa relação faz parte do meu eu podem ser interpretados como esboços das formula­ções especificamente orteguianas, primeiro da vida como o que cada ser humano concretiza numa dada circunstância e, mais tarde, dessa vida individual como a realidade radical.[4] É esta o que se lhe impõe sistematicamente à meditação e que constitui o fenómeno que considera valer a pena analisar, com todo o rigor (fenomenológico).[5]

            Por isso, as suas meditações foram, incessantemente, esforços de elucidação da vida humana na imensa pluralidade de formas que assume, articulando-se toda a obra de Ortega em torno do agir que permite identificar o viver humano como vida pessoal, inconfundível e, em grande medida, vida escolhida, vida criada por um ser que, à partida, é especialmente carente, porque não-determinado.

 

2 A ESPECIFICIDADE ONTOLÓGICA DO SER HUMANO

O ser humano é caracterizado por Ortega (e, não por acaso, na sua conhecida Meditación de la técnica) como uma espécie de centauro ontológico, na medida em que, em parte, é um ser natural, está imerso na natureza, e, em parte, transcende-a. O que tem de natural se realiza por si mesmo; então, o que sente como problemático e como seu distintivo ser é o extranatural, o qual, não sendo algo de realizado desde logo, é mera pretensão de ser (2006a, p. 570). Assim se compreende que o ser humano, segundo o nosso filósofo, seja a única entidade no Universo cuja condi­ção consiste em ser o que ainda não é, e a sua vida seja, numa outra tese orteguiana, futurição, uma activi­dade que executamos em função do futuro.

Por conseguinte, cada um de nós não pode estar certo em cada instante de que, no seguinte, vai continuar a ser. Numa comparação a que recorre em diversas ocasiões, Ortega (no texto que precede a Meditación de la técnica, na sua publicação em livro, em 1939) menciona como decisiva essa diferença entre o humano e os outros seres: enquanto o peixe pode estar seguro de ser peixe ou a pedra de ser pedra e o tigre não pode deixar de ser tigre, no sentido de que sê-lo é a sua qualidade constitutiva, nós vivemos cada momento da nossa vida como puro perigo, como risco constante de nos desumanizarmos, de deixarmos de ser (2006b, p. 539-541; 2009c, p. 537).

Ortega acaba por sustentar que tudo o que diz respeito ao ser humano, seja a sua personalidade individual, sejam as suas múltiplas criações, está sujeito a desvanecer-se, e conclui (2006b, p. 541) que faz parte da condição humana uma incerteza substancial (“incertidumbre substancial”). Articulando essa conclusão, publicamente expressa em 1939, com a de que o ser humano não tem natureza, mas tem… história, formulada em Historia como sistema (2006c, p. 73), verificamos que o autor invoca os conceitos de substância e substancial para acentuar a peculiaridade de um ser que, quando muito, tem de substancial a insegurança; que não é (no sentido tradicional de ser) e cuja consistência se reduz (paradoxalmente, para a tradição metafísica) à sua insubstancialidade, mutabilidade e histó­ria. Um pouco antes, na mesma lição em que formulou essa conclusão, Ortega (2006b, p. 537) afirma: “Nada que sea sustantivo ha sido regalado al hombre. Todo tiene que hacérselo él.”

Por isso, na concepção de Ortega, o ser humano é, essencialmente, uma aventura constante ou o equilíbrio sempre ins­tável entre ter de ser e poder não ser. Livre de uma forma pré-determinada de ser, depende da consciência dramática da sua constitutiva insubstancialidade, tem de criar permanentemente, para subsistir e compensar o facto de nada de substan­tivo lhe ter sido dado à partida, pelo que um ser assim não pode ser definido como res, nem sequer como res cogitans. Na sua busca de segurança, o ser humano sente necessidade de saber e vê-se obrigado a organizar as suas actividades psíquicas, sob a forma de pensamento, o que justifica, segundo Ortega, que se corrija a compreensão habitual do Cogito, ergo sum, de Descartes, e, em vez de se considerar como primeiro degrau da reflexão filosó­fica a ideia de que existo, porque penso, se considere a de que penso, porque existo (2009c, p. 519-520) ou, preferente­mente, penso, porque vivo (2005a, p. 285; 2006d, p. 743; 2009a, p. 159; 2006b, p. 540; 2009c, p. 520)[6].

 

3 MEDITACIÓN DE LA TÉCNICA

O que resumidamente apresentámos até aqui parece indispensável para que se possa perceber a concepção orteguiana da Técnica, amadurecida em diferentes etapas da sua obra e expressamente tratada em Meditación de la técnica. Esse texto, que, vale a pena repetir, foi publicado em 1939, corresponde a um curso de doze lições – originalmente intitulado “¿Qué es la técnica?” – dado pelo filósofo em 1933, na Universidad Internacional de Verano de Santander (no ano inaugural do seu funcionamento).

Nele, Ortega começa pelo esclarecimento do conceito de necessidade humana. Considera que comer, caminhar, aquecer-se são necessidades que o ser humano procura satisfazer, naturalmente; mas acrescenta que a necessidade das necessidades (2006a, p. 555) é o viver, necessidade que, apesar de ser apenas subjectiva e dependente da decisão de preservar a vida, dá sentido às outras.

            O filósofo espanhol também sublinha que o ser humano não se limita a satisfazer, de maneira natural, certas necessidades, uma vez que, quando não encontra no mundo circundante os recursos de que sente precisar para suprir as suas carências, ele substitui o repertório de actividades básicas com que lhes responderia por um novo tipo de fazer (2006a, p. 556), em que produz o que não estava ao seu alcance.

            A produção pelo ser humano do que, à partida, não estava ao seu alcance não seria possível, se, como os restantes seres, estivesse adaptado ao seu meio e não tivesse capacidade para, transitoriamente, se desprender das imposições da natureza e ficar livre para realizar uma actividade que, por si e ainda que os seus produtos venham a ter esse papel, não consiste em satisfazer qualquer necessidade.

Diz Ortega (2006a, p. 556): “Calefacción, agricultura y fabricación de carros o automóviles no son [...] actos en que satisfacemos nuestras necesidades, sino que, por el pronto, implican lo contrario: una suspensión de aquel repertorio pri­mitivo de haceres en que directamente procuramos satisfacerlas.” Com efeito, ao inventar procedimentos técnicos como, por exemplo, fazer fogo, construir uma casa, cultivar o campo ou montar o automóvel, o ser humano consegue modificar a circunstância e cria uma espécie de sobrenatureza (2006a, pp. 557-558), de modo a tentar anular o problema da satisfação das suas necessidades. É claro, para o nosso autor:

Si siempre que sentimos frío la naturaleza automáticamente pusiese a nuestra vera fuego, es evidente que no sentiríamos la necesidad de calentarnos, como normalmente no sentimos la necesidad de respirar, sino que simplemente respiramos sin sernos ello problema alguno. (2006a, p. 558)

 

Mas, se disséssemos que a técnica é o que o ser humano faz para as satisfazer, deveríamos reconhecer também como “técnico” o repertório dos nossos actos bio­lógicos e acabaríamos por abarcar os actos dos outros animais. No entanto, só o ser humano é capaz de projectar e executar um segundo repertório de actos que eliminam as dificulda­des colocadas pela natureza e sentidas como problema.

            Ortega acaba, dessa maneira, por admitir uma inversão de alguns aspectos essenciais do darwinismo, referindo-se à capacidade humana de desenvolver condições de inadaptação ao meio, capacidade que é inseparável do privilégio que os seres humanos têm de, apesar de submersos na sua circunstância, poderem, por momentos, retirar-se da natureza, de se virarem para dentro de si, de se recolherem ou de se ensimesmarem. A possibilidade de ensimesmamento é apanágio do ser humano: “El animal no puede retirarse de su repertorio de actos naturales, de la naturaleza, porque no es sino ella y no tendría al distanciarse de ella donde meterse” (2006a, p. 557). Por seu turno, o ser humano pode ensimesmar-se, e a filosofia orteguiana postula o ensimesmamento como condição do agir humano, graças à qual o ser humano, apetrechado com ideias sobre as coisas e situações, e sobre as hipóteses de delas se assenhorear, pode depois actuar. Essa perspectiva não incorre, porém, em activismo voluntarista, uma vez que concebe a acção humana regida pela capacidade revelada pelo seu sujeito de se concentrar, de se recolher no seu íntimo, onde pode ficar só com aquilo e com aqueles que constituem a sua circunstância.[7] Por isso, quando age, fá-lo como protagonista de uma vida singular genuinamente humana.

            Nessa qualidade de agente intencional, o ser humano não se contenta com o que é objectivamente necessário para existir. Se se contentasse, não precisaria da técnica. E não só não basta ao ser humano satisfazer necessidades básicas, como tende mesmo a ultrapassar o problema dessa satisfação, pois a reforma que impõe à natureza permite-lhe anular esse problema e assegurar-lhe bem-estar. Para ele, sustenta Ortega, viver não é simples estar, mas sim estar bem, e só sente como necessidades as condições objectivas do estar, porque este é pressuposto do bem-estar (2006a, p. 561).

            Assim, a actividade humana é inconfundível, tal como a necessidade humana o é, ligando-se à liberdade, quer dizer, ao carácter de ser livre que pode assumir a necessidade até do supérfluo (2006a, p. 560-561; 2006e, p. 95). Um primeiro requisito da compreensão da Técnica no discurso orteguiano é, por conseguinte, uma extensão do conceito de necessidade humana que reforça a concepção antropológica e metafísica do filósofo espanhol.

Por outro lado, a sua abordagem da Técnica passa pela atenção à variabilidade do que se entende por bem-estar ou estar bem, interrogando a Técnica com sensibilidade histórica, porquanto o sentido de viver bem depende das aspirações vitais dos indivíduos e dos povos, e não é, obviamente, uniforme em todas as épocas.

O filósofo ilustra, por exemplo, como ao modo de ser ideal de um bodhisattva, que aspira e tudo faz para se neutralizar como indivíduo material, não pode estar ligada uma técnica idêntica à criada por alguém que se propõe ser gentleman, isto é, que procura encarar todos os momentos da vida, até os mais penosos da subsistência e do trabalho, com a serenidade, a elasticidade e o fair play de um desportista (2006a, p. 578-584). As técnicas de concentração, insensibilidade física e êxtase que um desenvolve para se libertar das limitações da natu­reza material contrastam vivamente com a aceitação pelo outro do seu destino terreno, que visa a enriquecer, a partir de um projecto de existência em que esforço e tranquilidade se con­jugam. Em suma, para Ortega, interrogar a Técnica inclui interrogar a pluralidade dos modos de agir tecnicamente, atendendo a determinados propósitos de ser.

            O nosso filósofo (2006a, p. 590 e segs.) distinguiu ainda grandes estádios do desenvolvimento histórico integral da Técnica, usando como critério a própria concepção de técnica que o ser humano foi tendo. Como resultado da sua aplicação, descobre-se um caminho nítido: que 1) começa marcado pela incapacidade de diferenciar dos actos naturais os actos técnicos, cujos frutos parecem ter algo de mágicos, por se afigurarem casuais; 2) passa por uma fase em que é central a figura do artesão; 3) até chegar a uma etapa moderna, técnica por excelência. Sucedem-se, desse modo, o que Ortega designa por técnica do acaso, técnica do artesão e técnica do técnico. Nesta última, há já consciência de uma potencialidade tipicamente humana para realizar actos e produtos técnicos, que crescem em larga escala, ao mesmo tempo que os seus inventores se especializam e que a primazia das máquinas torna dispensáveis os artesãos.

            Tal como Heidegger faria, em “Die Frage nach der Technik” (in Vorträge und Aufsätze, 1954), o filósofo espanhol interroga o poderio da técnica hodierna e dos técnicos, atendendo às suas relações especiais com o método científico experimental. Na sua precoce meditação, salienta principalmente o domínio resultante de os procedimentos técnicos abandonarem o antigo princípio da similitude, em cujo quadro os meios de realização adequados são de um só tipo, determinado pela visão unitária do resultado a alcançar (2006a, p. 599-600), e adoptarem uma metodologia de análise e decomposição da realidade, a qual permite potenciar enormemente o conhecimento científico e, por arrastamento, os inventos que nele assentam.

Já anteriormente, em La rebelión de las masas, Ortega aludira a riscos, para o ser humano, dessa novidade do tecnicismo da técnica moderna, radicados na viabilidade de um progresso ilimitado da ciência, quando as capacidades humanas requeridas pela mecanização são limitadas (2005b, p. 441-444). Não encontramos, todavia, no discurso orteguiano, uma leitura pessimista da Técnica, acima de tudo, porque o Autor não a reduz toda ao estádio mais recente da sua história e compreende-a em ligação com a conquista, pelo ser humano, da sua possibilidade de se ensimesmar e, por essa via, libertar-se por alguns momentos do que lhe é exterior, para entrar em si e idear formas para vir a agir sobre esse exterior.

No curso de 1933, Ortega alicerça, afinal, na sua doutrina consolidada acerca das relações entre o ser humano – entendido como pretensão de ser ou programa – e o mundo – como conjunto das facilidades e dificuldades à sua realização –, a compreensão da própria vida humana como fabricação, descobrindo uma dimensão técnica no viver (2006a, p. 568-574).[8] Procurar ser o que ainda não é e fazer com que, para tal, haja o que ainda não há, equivalem, para o ser humano, a viver. Nos outros animais, também encontramos o recurso a instrumentos essenciais à sua vida e uma biologia hermenêutica permite-nos pensar a técnica na sua relação umbilical com a vida, em geral; porém, a técnica humana é desmesurada, tem carácter acumulativo.

Isso não implica, no entanto, concluir que é antivital. Aliás, sendo peculiar ao ser humano realizar com o seu viver o que, à partida, ainda não era, realizar uma espécie de tarefa extranatural (2006a, p. 574), isso mesmo confere uma dimensão técnica à sua vida, graças à qual não só apropria, como inventa circunstâncias. E a relevância do carácter criador da técnica é tão grande que, na Introdução ao curso de 1933 (inédita, até à nova edição de Obras completas), o nosso Autor começa por afirmar taxativamente (2009d, p. 27) que, sem a técnica, o ser humano não existiria, nem teria existido nunca, o que sugere até que pensemos, mais do que na técnica como uma criação humana, no ser humano como uma criação da técnica.

Contudo, o estranho modo de ser humano, que consiste em ir convertendo meras pretensões de ser em criações (técnicas, mas também artísticas – trata-se de duas faces do mundo inventado), não requer apenas a anormal combinação de memória com entendimento e fantasia – a que Ortega faria referência, na sua conferência “El mito del hombre allende la técnica” (2006f), proferida no Darmstädter Gespräch, em 1951; requer, antes de tudo o mais, um pro­grama ou projecto vital que é pré-técnico, o qual antecede e confere finalidade aos actos técnicos.

O filósofo, que, em La rebelión de las masas, já afirmara que a técnica não écausa sui’ (2005b, p. 24)[9], adscreverá ao técnico um papel irremediavelmente de segundo plano (2006a, p. 577) e defenderá, em Meditación de la técnica, que são os desejos humanos e, sobretudo, o de concretizar um determinado ideal de ser humano que cada um de nós, procurando ser autêntico, perseguirá como seu, o que é prioritário. Mas o mesmo Ortega (2006a, p. 576) impede que nos iludamos e deixa o alerta: “[…] cuando alguien es incapaz de desearse a sí mismo, porque no tiene claro un ser mismo que realizar, claro es que no tiene sino pseudo-deseos, espectros de apetitos sin sinceridad ni vigor.” Ou seja, desejar implica a orientação e a selecção pessoal dos apetites entre as múltiplas possibilidades que se nos oferecem, o que não é – como o essencial da vida – tarefa fácil.

 

ON THE HORIZON OF THE STRANGE WAY OF BEING HUMAN – TECHNICAL ACTIVITY ACCORDING TO J. ORTEGA Y GASSET

 

ABSTRACT: The text seeks to show how, within the scope of José Ortega y Gasset's philosophy, reflection on technical activity is inseparable from the peculiar way in which the Spanish thinker resorts to the phenomenological method. Therefore, it is necessary to start with some references to the meaning of Ortega's early contact with Phenomenology and the appropriation that he will make of the respective method as a way to access the radical reality, that is, according to the ortheguian thought, the Life of each human being, who, in his encounter with the world, experiences a drama or an adventure, due to his constant risk of ceasing to be. In order to understand the Spanish philosopher's reading of the technical dimension of living, it will be necessary to follow, above all, the analysis he carried out in his Meditación de la Técnica, even though it is inevitable to refer to other texts deeply articulated with this university course presented in 1933.

 

Keywords: Ortega y Gasset. Phenomenology. Technique. Human life. Meditación de la técnica.

 

REFERÊNCIAS

ORRINGER, N. R. Ortega y sus fuentes germánicas. Madrid: Gredos, 1979.

ORTEGA Y GASSET, J. Sensación, construcción e intuición. Obras completas. Tomo I. Madrid: Taurus/FJOG, 2004a. p. 642-652.

ORTEGA Y GASSET, J. Sobre el concepto de sensación. Obras completas. Tomo I. Madrid: Taurus/FJOG, 2004b. p. 624-638.

ORTEGA Y GASSET, J. Filosofía pura. Anejo a mi folleto Kant. Obras completas. Tomo IV. Madrid: Taurus/FJOG, 2005a. p. 276-286.

ORTEGA Y GASSET, J. La rebelión de las masas. Obras completas. Tomo IV. Madrid: Taurus/FJOG, 2005b. p. 347-528.

ORTEGA Y GASSET, J. Meditación de la técnica. Obras completas. Tomo V. Madrid: Taurus/FJOG, 2006a. p. 551-605.

ORTEGA Y GASSET, J. Ensimismamiento y alteración. Obras completas. Tomo V. Madrid: Taurus/FJOG, 2006b. p. 529-550.

ORTEGA Y GASSET, J. Historia como sistema. Obras completas. Tomo VI. Madrid: Taurus/FJOG, 2006c. p. 45-81.

ORTEGA Y GASSET, J. En el centenario de una Universidad. Obras completas. Tomo V. Madrid: Taurus/FJOG, 2006d. p. 733-745.

ORTEGA Y GASSET, J. Prólogo a una edición de sus obras. Obras completas. Tomo V. Madrid: Taurus/FJOG, 2006e. p. 88-99.

ORTEGA Y GASSET, J. El mito del hombre allende la técnica. Obras completas. Tomo VI. Madrid: Taurus/FJOG, 2006f. p. 811-817.

ORTEGA Y GASSET, J. Prólogo para alemanes. Obras completas. Tomo IX. Madrid: Taurus/FJOG, 2009a. p. 125-165.

ORTEGA Y GASSET, J. La idea de principio en Leibniz y la evolución de la teoría deductiva. Obras completas. Tomo IX. Madrid: Taurus/FJOG, 2009b. p. 929-1174.

ORTEGA Y GASSET, J. La razón histórica [Curso de 1940]. Obras completas. Tomo IX. Madrid: Taurus/FJOG, 2009c. p. 475-558.

ORTEGA Y GASSET, J. [Introducción al curso ¿Qué es la técnica?]. Obras completas. Tomo IX. Madrid: Taurus/FJOG, 2009d. p. 27-31.

SAN MARTÍN, J. La fenomenología de Ortega. In: AAVV. Ortega cien años después – Homenaje a José Ortega y Gasset en la ciudad en la que cursó su bachillerato. Málaga: U.N.E.D. – Centro Asociado de Málaga, 1987. p. 95-136. (Texto republicado pelo autor, sob o título “La filosofía de Ortega y Gasset como fenomenología”, in Ensayos sobre Ortega. Madrid: UNED, 1994, cap. II.)

 

Recebido: 08/01/2021

Aceito: 08/3/2021

 



[1] Investigadora do CHAM – Centro de Humanidades. Professora Associada do Departamento de Filosofia da Universidade de Évora, Évora – Portugal. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7145-4347. Email: miaa@gmail.com.

[2] Podemos até crer – apesar de não ser fácil documentar o que leu, em 1911 – que, durante a sua segunda estada em Marburg, Ortega se terá dedicado, como escreveu San Martín (1987, p. 105), “a saldar cuentas con el neokantismo y hacerse con la práctica del método fenomenológico.” Também não é de desatender o conhecimento e, a dada altura, até proximidade à fenomenologia por parte de Natorp, com quem Ortega estudou Pedagogia durante a sua primeira estada na Alemanha. “Sabido es [...] que pocos de los que profesaban en Marburg sabían más que Natorp sobre la fenomenolo­gía. Había mantenido correspondencia con Husserl por lo menos desde 1894, y a la lógica y a la psicología de Natorp debía Husserl no poco de su pensamiento maduro. Ambos filósofos se respetaban mutuamente, y se complacían en señalar, cuando era posible, las semejanzas de sus doctrinas.” (KERN apud ORRINGER, 1979, p. 76).

[3] Trata-se do discurso inaugural da Secção Filosófica da Asociación Española para el Progreso de las Ciencias, proferido no IV Congresso dessa associação e publicado, ainda em 1913, em Madrid.

[4] San Martín (1987, p. 107) corrobora essa leitura, reconhecendo na meditação da citada nota um significado genético em relação à filosofia orteguiana posterior: “No creo que se pueda desestimar la importancia que genética­mente pueda tener esa reflexión del Ortega de 1913 para comprender el sentido de la noción de realidad radi­cal así como la frase de Meditaciones del Quijote, recorda[d]a después en el “Prólogo para alemanes”: ‘Tanto la vida social como las demás formas de cultura se nos dan bajo la especie de vida individual’.”

[5] Ortega escreverá, na sua última grande obra (2009b, p. 1119), que, “para que sea posible un pensar fenomenológico sistemático hay que partir de un fenómeno que sea él por sí sistema.”

[6] Com idêntica justificação, Ortega propõe também uma nova leitura (nem fácil, nem exclusivamente cronológica, como é vulgar, mas reveladora de uma relação causal) da locução latina Primum est vivere, deinde philosophari. (2009c, p. 516-517; 2009b, p. 1115).

[7] Essa ideia é, por exemplo, sustentada por Ortega em “Ensimismamiento y alteración” (2006b, p. 536 e segs.), texto em que a Técnica é definida, de maneira expressa, como criação especificamente humana indissociável do privilégio de se ensimesmar que o ser humano vai conquistando, no seu viver individual e colectivo (2006b, p. 537).

[8] Sendo muito diversos os produtos criados pelo ser humano, como ilustra a distinção entre utensílios técnicos e bens artísticos, a que Ortega alude, em “El mito del hombre allende la técnica” (2006f, p. 812-813), a ideia de fabricação tem de ser tomada numa muito ampla e inusitada acepção.

[9] A frase em que usa essa expressão é a seguinte: “Se vive con la técnica, pero no de la técnica. Ésta no se nutre ni respira a sí misma, no es causa sui, sino precipitado útil, práctico, de preocupaciones superfluas, imprácticas.” (2005b, p. 424).