TRAÇOS FUNDAMENTAIS DO PENSAMENTO DE SLOTERDIJK SOBRE A TÉCNICA/TECNOLOGIA

 

Bernhard Sylla[1]

 

RESUMO: Apresentam-se, neste artigo, os traços fundamentais do posicionamento de Sloterdijk acerca do fenómeno e do papel da tecnologia. Nesse âmbito, distingue-se entre um primeiro e um segundo Sloterdijk, sendo que o primeiro sustentou uma posição ainda bastante tecnófoba, patente, por exemplo, na sua obra de 1989, Eurotaoismus: Zur Kritik der politischen Kinetik, enquanto o segundo desenvolve uma posição mais criteriosa e diversificada, a qual distingue entre duas formas de técnica ou tecnologia, a alotécnica e a homeotécnica, relacionando essas formas de técnica com aquilo a que podemos chamar a esferologia de Sloterdijk, desenvolvida a partir de 1998 e que fornece os fundamentos antropológicos e, assim afirma Sloterdijk, também metafísicos e fenomenológicos, do fenómeno da tecnologia. Termina-se com a discussão de duas problemáticas que constituem uma espécie de contraponto à noção “otimista” da homeotécnica, nomeadamente o aspeto traumatológico da procura tecnógena pela imunidade e o papel da linguagem na construção das esferas imunológicas.

 

Palavras-chave: Filosofia da Técnica/Tecnologia. Sloterdijk. Esferologia. Homeotécnica. Traumatologia.

 

INTRODUÇÃO

         Apresentarei, neste artigo, aqueles que julgo serem os traços fundamentais do posicionamento de Sloterdijk acerca do fenómeno e do papel da tecnologia.[2] Nesse âmbito, distingo entre um primeiro e um segundo Sloterdijk, sendo que o primeiro sustentou uma posição ainda bastante tecnófoba, patente, por exemplo, na sua obra de 1989, Eurotaoismus: Zur Kritik der politischen Kinetik, traduzida para o português em 2002, sob o título A Mobilização Infinita: Para uma Crítica da Cinética Política, enquanto o segundo desenvolve uma posição mais criteriosa e diversificada que distingue, já desde 2001, entre duas formas de técnica ou tecnologia, a alotécnica e a homeotécnica, relacionando essas formas com aquilo a que podemos chamar a esferologia de Sloterdijk, desenvolvida a partir de 1998.

Essa esferologia fornece os fundamentos antropológicos e, assim afirma Sloterdijk, também metafísicos e fenomenológicos do fenómeno da tecnologia. Considerarei, na minha apresentação, sobretudo esse “segundo” Sloterdijk, pois é essa sua posição teórica, desenvolvida ao longo das últimas décadas, que ocupa um lugar de destaque no âmbito dos mais recentes debates acerca da Filosofia da Técnica/Tecnologia. Terminarei com a discussão de duas problemáticas que constituem uma espécie de contraponto à noção “otimista” da homeotécnica, nomeadamente o aspeto traumatológico da procura tecnógena pela imunidade e o papel da linguagem na construção das esferas imunológicas.

 

1 O PANO DE FUNDO DA POSIÇÃO DE SLOTERDIJK

Para entender a posição de Sloterdijk referente ao fenómeno da tecnologia, é imprescindível tomar em conta o estatuto particular que a noção de espaço ocupa no seu pensamento. Julgo não ser exagerado afirmar que essa noção se afigura como uma espécie de centro de gravidade, em torno do qual se articulam as ideias e teses principais de Sloterdijk. Um segundo aspeto que é útil levar em consideração é o papel importante da leitura e receção de Heidegger que se faz notar, de forma explícita, em muitas, senão em todas as principais obras de Sloterdijk, ainda que Heidegger, obviamente, não seja o único filósofo cuja influência marcou as obras de Sloterdijk.

Para justificar a minha ênfase na noção de espaço e na receção de Heidegger, diria que se pode reconstruir o ímpeto teórico da obra de Sloterdijk em torno da técnica com base nos seguintes aspetos:

·         a técnica/tecnologia é um modo de habitar espaços – devendo conceber-se habitar de um modo muito semelhante ao de Heidegger;

·         espaço é entendido “existencialmente”, em detrimento do tempo, ou seja, contrariamente a Heidegger, o qual, na fase de Ser e Tempo, elevava o tempo ao estatuto de expoente máximo do ser;

·         mais uma vez pensando com Heidegger contra Heidegger, o entendimento existencial do espaço não deve, segundo Sloterdijk, excluir a antropologia, ou seja, dito a rigor, deve tornar-se antropologia. Contudo, essa antropologia é, no fundo, não pura antropologia, mas preserva e admite raízes e também consequências que ultrapassam o domínio restrito da antropologia;

·         apenas a perspetiva antropológica permite descobrir os traços “lógicos” que subjazem ao mundo da técnica e ao seu desenvolvimento. Um dos traços fundamentais é a imunologia, a qual também pode ser denominada traumatologia.

Nos capítulos que se seguirão, não separarei esses quatro aspetos rigorosamente, pois se verá que estão intimamente imbricados entre si. Começarei por resumir o teor geral da assim chamada “esferologia” de Sloterdijk, elaborada nos três volumes da sua obra Esferas (SLOTERDIJK 1998, 1999b, 2004).

 

2 A ESFEROLOGIA

É no primeiro volume dessa trilogia, intitulado Blasen (Bolhas), que Sloterdijk pretende mostrar que o fenómeno onto e antropológico mais essencial não é nem o tempo nem a relação entre sujeito e objeto, mas, antes, a experiência espacial do Ser-em (aludindo aqui explicitamente, embora com intenção crítica, ao termo heideggeriano In-Sein).[3] Essa afirmação, só por si, está carregada de pressupostos de vasta dimensão. Por um lado, como referido no capítulo anterior, exprime uma diferença fundamental para com Heidegger, ao inverter, na relação entre espaço e tempo, a proporção dos pesos conferidos ao espaço e tempo em Ser e Tempo. Por outro lado, Sloterdijk não rejeita que se possa ler a sua trilogia como tratado ontológico ou fenomenológico, no entanto, rejeitaria que tal fosse interpretado como implicando um retorno à metafísica. Todavia, vejamos primeiro os traços fundamentais do In-Sein, tal como Sloterdijk o entende.

O In-Sein tem, segundo Sloterdijk, uma origem antropológica, que é a experiência do feto no útero da mãe, a qual está marcada por um sentimento pré-consciente da vinculação intrínseca com um outro ser, dando Sloterdijk (1998, p. 381) uma especial atenção não apenas à figura da mãe, mas também ao órgão da placenta e à sua função de acompanhante originário (Urbegleiter), de um primeiro Ser-com (Mit-Sein), visto como uma espécie de sósia (Doppelgänger). Os três volumes de Esferas podem ser lidos como história desse In-Sein, que é ao mesmo tempo a história da criação e habitação de espaços – ou “esferas”, na terminologia de Sloterdijk – qualitativamente diferentes que, no entanto, têm a função comum de garantir intimidade e proteção ao ser humano. Daí que Sloterdijk (1999b, p. 209) também denomine a sua teoria fenomenologia da intimidade. Enquanto o primeiro volume de Esferas se dedica mais precisamente à abordagem das origens antropológicas da intimidade, em termos ontogenéticos, é no segundo volume, intitulado de Globos (Globen), que o autor nos apresenta a sua visão sobre a história da crescente globalização – também poderíamos dizer: idealização, concebida num sentido literal, i. e., da representação de um espaço protetor por meio de ideias e da sua projeção ao domínio das ideias – das esferas e sobre as correspondentes ideologias da intimidade, abordando as mais diversas teorias antigas, medievais e, por fim, modernas, quer de espécie filosófica, científica, literária ou psicanalítica, quer de espécie mágica, espiritual, eclesiástica ou esotérica.

Sloterdijk narra a história da crescente conquista do espaço exterior que conduz à emergência do modelo da esfera enquanto globo, demonstrando, nessa análise, a estreita ligação entre conceção material e construção imaginária e intelectual de espaços de proteção (e. g., modelos cosmológicos, modelos arquitetónicos, obras de arte), que, devido à sua função protetora, também são designados de espaços imunológicos, aspeto ao qual voltaremos mais adiante. O terceiro volume de Esferas dedica-se ao estádio atual dessa história, onde se verifica o fim das visões metafísicas totalizantes, a par de uma crescente fragmentação, multiplicação e diversificação de espaços íntimos.

Uma das metáforas que Sloterdijk usa, mais uma vez com alusões explícitas a Heidegger, para se referir às construções das esferas íntimas e imunológicas, é a da casa (Haus ou Gehäuse). A casa não é apenas um lugar que oferece proteção, porém, antes, também constitui uma esfera psíquica, espiritual e intelectual.

 

3 A CRIAÇÃO TECNÓGENA DAS “CASAS”

Excetuando o início biológico de cada ser humano, a casa é algo feito pelo homem, é uma construção imunológica humana. Bem à maneira de Heidegger, a casa não é só um mundo, i. e., o “produto” das interpretações do homem, mas, ao mesmo tempo, o morar/habitar neste mundo.[4] Por vezes, destacando a intimidade desse morar, Sloterdijk usa igualmente a palavra einwohnen, a qual se pode, tendo em conta a aceção da tradição mística, traduzir por in-abitar. Tal como em Heidegger, não existe, no fundo, nenhuma oposição entre natureza e sujeito, uma vez que a natureza ou a realidade é, desde que tenha significância, mundo. Dito de outra maneira, a natureza, desde que tenha significância para o homem, é sempre já natureza “marcada” pelas intervenções técnicas do ser humano, ou seja, é natureza moldada pela compreensão teórica e prática do ser humano.

É no âmbito da determinação mais específica dos conceitos de mundo e morar que surge, aparentemente, uma outra divergência entre Sloterdijk e Heidegger. Essa divergência prende-se com a interpretação sloterdijkiana do conceito heideggeriano de Gestell. Sloterdijk, em Nicht gerettet: Versuche nach Heidegger (SLOTERDIJK, 2001), assinala que Heidegger, ao desconsiderar a antropologia, não diferenciou suficientemente o conceito de Gestell, que traduzirei aqui por compostura. Segundo Sloterdijk, a compostura não é somente e exclusivamente má, mas pode, também, ser boa. Sloterdijk (2001, p. 197) fala explicitamente de um gutes Gestell. Ora, à primeira vista, parece que se introduz, assim, uma valorização no conceito de Gestell que Heidegger certamente rejeitaria. A compostura é, para Heidegger, um modo de desencobrir, uma instância ontológica, um modo cujo “essenciar” é constitutivo da técnica, ou seja, como diz Heidegger, é a essência da técnica.

Uma avaliação desta essência não deve ser feita imprudentemente na dimensão ôntica, nem tem a ver exclusivamente connosco, enquanto Dasein, mas essa essência deve, antes, ser compreendida como um destino, como algo sobre o qual o Dasein não tem um domínio suficiente para o manobrar conforme a sua vontade. Por outro lado, é óbvio que a compostura vigente tenha consequências para o “mundo ôntico”, pois se manifesta na instrumentalização e maquinação do mundo. A cegueira ubiquitária referente ao “essenciar” exclusivo desse modo de desencobrir é o chamado esquecimento do ser, portanto, um esquecimento ontológico. Daí que se possa, com alguma razão, titular a compostura, avaliada pelos seus efeitos no mundo ôntico e pelo vigorar da cegueira ontológica, como “compostura má”, ainda que Heidegger não o faria.

Este parêntesis foi necessário para explicitar que, para Sloterdijk, faz todo o sentido repensar ou rever o conceito heideggeriano de Gestell. Tal como vários outros filósofos, dentro e fora da tradição da filosofia fenomenológica – e penso aqui, por exemplo, em Don Ihde ou em Feenberg[5] –, também Sloterdijk insiste na necessidade dessa revisão. Nesse âmbito, julgo que não baste ter em conta apenas o que Sloterdijk aborda, no texto onde trata explicitamente do gutes Gestell. Nesse texto, Sloterdijk sustenta que o próprio Heidegger teria aberto a possibilidade de uma “compostura boa”, sobretudo nas suas obras sobre a arte. Apesar de se poder classificar essa interpretação como errada – já que o modo de desencobrir da “autêntica” ou apropriada obra de arte não se subordinaria ao modo desencobridor do Gestell e, por isso, não pode ser classificado como espécie do género Gestell –, julgo que essa referência a Heidegger só por si não é suficiente para esclarecer o ponto de vista de Sloterdijk. Não é apenas o facto de a construção das moradas humanas ter desde sempre passado pelo domínio da “técnica” que é relevante para Sloterdijk, contudo, antes e muito mais, o facto de esse processo revelar uma complexidade enorme – em termos da “ontologia” do espaço e da sua significância antropológica e, hoje em dia, planetária – que escaparia à análise de Heidegger, tanto àquela da fase de Ser e Tempo, como também à do Heidegger tardio.

As condições e as formas de criação de espaços ou esferas não são, na perspetiva de Sloterdijk, homogéneas ou únicas, porém, abrangem aspetos antagónicos e concorrentes entre si e possuem lógicas próprias de desenvolvimento que ainda não foram “desencobertas” adequadamente. Tomando a criação de esferas a partir de um único parâmetro, o da compostura, resulta na desconsideração dessa complexidade. Sloterdijk não ignora que Heidegger tenha elaborado, na sua obra mais tardia, uma filosofia da “criação” apropriada de espaços, uma filosofia caraterizada pela ênfase na Gelassenheit. Contudo, distancia-se de Heidegger, ao associar a Gelassenheit a um tipo de atitude que seria demasiadamente agarrado a um esperar devoto, um “Warten” que é ao mesmo tempo a submissão prudente e sábia à “lógica” inerente ao desenvolvimento natural dos seres vivos e das “coisas” em geral, e o cultivo conhecedor e respeitoso (expresso mais nitidamente pelo conceito de schonen) dos mesmos.

Opondo-se a essa atitude – designada de atitude do último homo metaphysicus (SLOTERDIJK, 2004, p. 515) –, Sloterdijk sustenta que somente a descoberta das tendências antagónicas inerentes à criação tecnógena de espaços nos coloca em posição de tomar decisões sobre como se pode e deve interferir no rumo do desenvolvimento tecnológico. Embora Sloterdijk, no fundo, não se afaste muito de Heidegger, pois irá introduzir, ainda que num nível diferente, a diferença entre uma tecnologia dominadora e uma tecnologia respeitosa e sábia das potencialidades ainda não reveladas e descobertas que a própria Terra guarda em si, é evidente que esse seu projeto tem contornos diferentes, os quais muito têm a ver com as já várias vezes mencionadas condições antropológicas que estão, segundo Sloterdijk, na base da criação de “casas”.

Nos próximos capítulos, debruçar-me-ei sobre os seguintes aspetos que formam, por assim dizer, a coluna vertebral tanto da esferologia sloterdijkiana como do seu pensamento sobre a técnica/tecnologia : (i) a ideia de que os espaços – ou esferas, ou casas – humanamente criados costumam, em muitas circunstâncias, servir o objetivo de proteção, aspeto que, segundo Sloterdijk, somente vem à luz por meio de análises antropológicas; (ii) se a procura da proteção for bem-sucedida, ela costuma ter o efeito benéfico de permitir ao ser protegido um desenvolvimento luxuriante; (iii) mesmo conseguindo garantir uma certa proteção por um determinado tempo, nunca se conseguirá garantir uma proteção total. Em termos onto, mas também filogenéticos, aquilo que está fora do espaço protegido terá sempre o caráter de uma potencial ameaça. Visto que os contornos dessa ameaça não são totalmente previsíveis e calculáveis, a ameaça tem sempre o potencial da ameaça máxima, ou seja, da morte; (iv) a atitude mais natural é aquela que tenta, a todo custo, controlar e dominar, para além do endoesférico, também e cada vez mais extensamente o exoesférico, todavia, essa atitude parece não poder cumprir o seu objetivo. Quase paradoxalmente, quanto maior o esforço de garantir a maior proteção através da dominação total do endo e exoesférico, mais se avança rumo à própria destruição da(s) esfera(s); (v) a solução para superar esses efeitos paradoxais reside numa viragem fundamental do caráter do nosso ser tecnógeno: ao invés da preocupação alotécnica de dominar ou domesticar tudo à nossa volta, seria necessária uma atitude homeotécnica que aposta na colaboração entre seres humanos, bem como entre seres humanos e “natureza” (cf. SLOTERDIJK, 2001, p. 212-234).

 

4 A CASA COMO “ESTUFA” DO SER LUXURIANTE

            Sloterdijk recorre frequentemente – não apenas na sua trilogia Esferas, mas também em outras obras – a trabalhos de biólogos e antropólogos, como Julius Kollmann ou Louis Bolk, acerca do fenómeno da “neotenia”,[6] o qual pode ser encontrado não só no ser humano, mas em várias (outras) espécies animais. O traço que interessa a Sloterdijk relaciona-se com um aspeto específico da neotenia, i. e., o atraso no desenvolvimento somático do organismo, não somente verificável no momento do seu nascimento, mas também durante uma prolongada fase do seu desenvolvimento extrauterino. Se, por um lado, esse atraso reduz a capacidade de reagir adequadamente, i. e., instintivamente, a potenciais ameaças, o menor grau de fixação de reações instintivas permite, por outro lado, um desenvolvimento maior de capacidades e também de órgãos não estritamente necessários para garantir a sobrevivência.

Adotando uma versão evolutiva das teses sobre o fenómeno da neotenia, Sloterdijk sustenta que a caraterística saliente e ao mesmo tempo condição da evolução da racionalidade do ser humano primitivo terá sido a criação de condições para o prolongamento da sua gestação, dividindo-se esta em gestação intrauterina e extrauterina. Conferir e garantir ao recém-nascido, durante um período que, ao longo da evolução, se veio a tornar cada vez mais extenso, um espaço de imunidade onde, sob proteção da mãe e de toda a tribo, pôde desenvolver-se sem a necessidade urgente de desenvolver instintos e estratégias de autoproteção e de autocuidado, criou as condições para a formação de um ser luxuriante, i. e., um ser que desfruta do privilégio de desenvolver outras capacidades para além daquelas que se vinculam estritamente à questão da sua sobrevivência.

Arte, artificialidade e técnica – e o seu progresso relativamente célere – são, assim, para Sloterdijk, efeitos diretos desse privilégio, repercutindo-se também e sobretudo no crescente poder de cuidar da própria casa (no sentido lato do termo), cada vez mais sofisticada e diversificadamente. O cuidado que cuida da própria casa é, desde cedo e essencialmente, um cuidado técnico, ou seja, técnica artificial. Daí que o termo que Sloterdijk usa frequentes vezes, a fim de especificar melhor a ligação entre casa, artificialidade e imunidade, seja o de estufa (Treibhaus), entendido como espaço artificial protetor que garante vida e crescimento sob condições específicas. Fazendo da sua maior carência (a falta de uma especialização instintiva) a sua maior vantagem, o ser humano, no fundo, não é um ser carente, como toda a antropologia de um Herder, Scheler e Gehlen afirmava, porém, antes, um ser luxuriante.

 

5 À PROCURA DA IMUNIDADE

            A recorrência ao fenómeno da neotenia para fundamentar a tese de que o ser humano, devido à criação e configuração de espaços de proteção, deve ser entendido como ser luxuriante, integra-se ainda numa conceção mais básica que Sloterdijk, por vezes (2001, p. 157), designa até como “metafísica”. Essa conceção sustenta que o homem é um ser que procura a sua imunidade, e a raiz dessa procura é, ao mesmo tempo, antropológica e metafísica. É antropológica, porque está vinculada ao nosso vir-ao-mundo ontogenético. Ao nascer, o recém-nascido de nove meses é expulso do estado não mediatizado, simplesmente dado e “total” de um ser-em que é um ser-com, dentro do ventre da mãe. O nascimento, que é essa expulsão, evoca irrecusavelmente a fragilidade do primordial ser-em e ser-com, constituindo uma rutura fundamental. O ser-com perde o caráter da imediatez e torna-se mediado, e o “em” do ser-em perde o caráter da familiaridade íntima primordial, e deixa surgir tudo aquilo que não é heimisch, i. e., o totalmente imprevisível, o potencialmente ameaçador, ou seja, o monstruoso, o inquietante, que Heidegger chama de Unheimliches e que, segundo a interpretação heideggeriana da Antígona de Sófocles, os gregos chamaram de δεινόν.

Viver, habitar e existir imerso no inquietante é, assim, conforme Sloterdijk, não somente um momento antropológico fundamental da nossa existência, mas pode ser entendido adequadamente também como “premissa metafísica” (SLOTERDIJK, 2001, p. 157) do nosso ser. O ser humano pós-natal é um ser que deve aprender – e que, ao mesmo tempo, é condenado a – habitar, construir uma casa, dentro da imensidão do inquietante. Essas casas são como que úteros externos, espaços de proteção, locais imunológicos. O exterior, por sua vez, corresponde ao hostil, completamente descontrolado, o que a fortiori pode pôr em risco a zona de proteção. Em geral, é altamente indefinido (é potencialmente tudo que está fora) e é exatamente por isso que é assustador.

            Em termos históricos, o desenvolvimento da espécie do ser humano deve ser reconstruído, segundo Sloterdijk, como história das sucessivas conquistas de espaços imunológicos, i. e., espaços cuja construção obedece à lógica da procura de imunidade. O segundo volume da obra Esferas, que analisa esse desenvolvimento sob o aspeto da sua evolução na história, coloca a ênfase na tendência crescente de construção de zonas de proteção intelectuais, ou seja, na preocupação teológica, filosófica, mística, científica, arquitetónica e artística com o conhecimento e a dominação do espaço terrestre – daí o título, Globos, desse segundo volume – e da condição humana da sua habitação. Na senda dessa evolução, assim sustenta Sloterdijk, atingiu-se, nos tempos recentes, um novo estádio de desenvolvimento, no qual os espaços criados mais se assemelhariam a “espumas” (sendo este o título do terceiro volume de Esferas). É a fase da deterioração dos espaços metafísicos, da sua homogeneidade e coerência, desembocando na fragmentação e no desmembramento de todos os projetos metafísicos da criação de espaços uniformes e, consequentemente, na criação de espaços imunológicos extremamente diversificados e heterogéneos. Apesar da sua diversificação, os espaços da fase de espumas têm em comum um conjunto de caraterísticas específicas, como a superação da vinculação à terra, a conquista do ar, a emergência da tecnologia informática que revolucionou a experiência dos fenómenos de espaço e tempo, com uma palavra, o emergir do crescente poder da técnica/tecnologia e da crescente reflexão sobre o seu potencial.

            Essa perspetiva histórico-evolutiva é complementada, sobretudo na obra mais tardia Tens de mudar a tua vida! Sobre Antropotécnicas (SLOTERDIJK, 2012), por uma perspetiva mais “sincrónica”, a qual considera os vários tipos de esferas, a sua copresença e, por vezes, sobreposição, e a sua concorrência. Também essa perspetiva é desenvolvida mais ensaisticamente, apresentando o autor, ao invés de uma teoria rigorosa, um conjunto de esboços e ideias. A título de exemplo, Sloterdijk distingue, no início da referida obra (2012, p. 9-33), entre três tipos fundamentais de esferas: esferas biológicas, sociopolíticas e simbólico-psicológicas. Por outro lado, desenvolve, na mesma obra (2012, p. 248ss.), outras classificações, uma das quais distingue entre treze áreas diferentes de constituição de esferas. No enfoque principal dessa obra estão, no entanto, muito mais do que a distinção entre esferas diferentes, as assim chamadas “antropotécnicas”, que podem ser interpretadas como programas de “treino” (físico, psíquico e social) para o aperfeiçoamento da nossa imunidade em determinadas esferas particulares.

Esses programas conduzem ao estabelecimento de normas que definem não apenas as condições para a pertença – que pode ser duradoura ou passageira, momentânea – a uma determinada esfera particular (e.g., religiões, seitas, associações, nações, partidos, clubes, convicções, bem como instituições, inclusive espaços associados a práticas, como estádios, bibliotecas, museus etc.), mas também regras e práticas de inclusão e exclusão, conduzindo assim a reflexões que se inserem mais propriamente no domínio do pensamento político e sociológico do que no da filosofia da tecnologia. Contudo, ainda que a separação de domínios diferentes de análise seja frutífera, do ponto de vista analítico, Sloterdijk mostrará, sobretudo através da sua distinção entre alotécnica e homeotécnica, que certos traços fundamentais da construção e manutenção de esferas, quer físicas, quer intelectuais, se verificam transversalmente em todos os domínios e estão vinculados aos modos como se procura a imunidade. Daí que a reflexão sobre a técnica/tecnologia seja fundamental para todo o nosso estar-no-mundo.

 

6 ALOTÉCNICA OU HOMEOTÉCNICA?

Em 2001, no seu livro Nicht gerettet – Versuche nach Heidegger, Sloterdijk apela à substituição da chamada alotécnica, i. e., uma técnica orientada obsessivamente na dominação, manipulação e controlo da natureza e do homem, pela homeotécnica. Esse apelo é uma constante nas obras de Sloterdijk dos últimos 20 anos. Bem na tradição da crítica filosófica ou, como diria Mitcham (1994), humanística da tecnologia que se tornou dominante na segunda metade do século XX, Sloterdijk pressupõe que o nosso modo de “ser técnico”, i. e., de usar e conceber tecnologias, está quase exclusivamente dominado pelos padrões da “alotécnica”, conceito que apresenta nítidas semelhanças com o conceito heideggeriano de Gestell. Conforme as nossas análises nos subcapítulos anteriores, a alotécnica manifesta-se tanto nas estratégias e técnicas de controlo dos respetivos estados intraesféricos, ou seja, nas técnicas de “climatização das esferas” (SLOTERDIJK, 2001, p. 197), quanto na preservação de compromissos metafísicos antiquados e obsoletos, ignorando que as metafísicas, durante séculos ou milénios, os garantes de construção de esferas, se encontram em forte declínio e que, segundo Sloterdijk, deveriam ser abandonadas deliberadamente.

Na obra supramencionada de 2001, essa associação entre alotécnica e metafísica tradicional é feita explicitamente – “a histeria anti-tecnológica, que domina grande parte do mundo ocidental, é o produto da decomposição da metafísica” (SLOTERDIJK, 2001, p. 223) – e serve, ao mesmo tempo, para introduzir o conceito de homeotécnica como alternativa à alotécnica. Em vez de temer a perda do antigo humanismo, o ser humano deveria aceitar o desafio de um novo casamento com a tecnologia, trocando a velha alotécnica pela jovem homeotécnica. O conceito de homeotécnica é, portanto, entendido como contraproposta construtiva sobre como se deve lidar com a tecnologia, nos tempos hodiernos.

Ainda assim, julgo que o uso do termo homeotécnica permanece algo vago, muito mais determinado pela oposição ao termo alotécnica do que por uma descrição definidora transparente. Em 2001, Sloterdijk associa a homeotécnica à interligação cada vez mais inteligente de informações e de meios técnicos em geral. Era à própria técnica a que ineriria a lógica da cooperação e não a da dominação. Da passagem onde Sloterdijk discorre sobre a homeotécnica, cito apenas este trecho (2001, p. 227ss.):

Por ter de lidar com a informação efetivamente existente, a homeotécnica apenas consegue avançar na via da não-violação daquilo que há; ela lida inteligentemente com a informação e cria novos estádios de informação. […] Ela tem de recorrer, mesmo quando, provisoriamente, é usada tão egoística e regionalmente como uma qualquer técnica convencional, a estratégias cointeligentes e coinformativas, tendo daí antes o caráter de cooperação do que de dominação, até mesmo em relações assimétricas.[7]

 

Num ensaio publicado em 2016 (SLOTERDIJK, 2016)[8], Sloterdijk sustenta que, face às ameaças ambientais na nova era do Antropoceno e à exploração frenética dos recursos naturais, um puritanismo ecológico seria não apenas condenado ao fracasso, mas poderia tornar-se facilmente num totalitarismo ecológico. A convicção de que não há alternativa para além da escolha entre “expressionismo cinético” e “puritanismo ecológico” se basearia na premissa falsa de que a Terra, enquanto corpo material, apresenta necessariamente limites naturais à sua exploração. Essa premissa se vale do dito espinosista de que há limites naturais relativamente àquilo que o corpo humano é capaz de fazer, e aplica-o ao corpo da Terra. Ora, segundo Sloterdijk (2019, p. 104), esse raciocínio é falso:

Ainda não sabemos quais os desenvolvimentos que se poderão efetuar se o desenvolvimento da geosfera e biosfera for impulsionado pela inteligência da tecno e da noosfera. Não se pode excluir de antemão a hipótese de que este impulso surta efeitos equivalentes a uma multiplicação da Terra. A tecnologia ainda não teve a sua derradeira palavra. Se perspetivamos a tecnologia, como tem sido hábito até hoje, apenas sob o aspeto da destruição do meio ambiente e da atividade biogénica, então isso mostra apenas que ela está ainda, sob vários aspetos, no seu início.

 

É no contexto dessa rejeição do argumento da escassez dos recursos naturais e da escolha exclusiva entre esgotamento total desses recursos e um puritanismo ecológico que Sloterdijk (2019, p. 104) associa o conceito de homeotécnica à biomimética, depositando a sua esperança na possibilidade de um uso diferente dos recursos naturais, com o duplo benefício de não explorar tais recursos cegamente e de aproveitar muito mais as suas potencialidades:

Com a modificação da tecnosfera segundo padrões homeotecnológicos e biomiméticos iria surgir, paulatinamente, uma imagem totalmente diferente da interação entre ambiente e tecnologia. Experienciaríamos o que o corpo da Terra é apto a fazer se mudássemos, no nosso lidar com este corpo, da exploração para a cooperação. No caminho da mera exploração, a Terra jamais abandonará o seu papel de mónada limitada. No caminho da coprodução que se dá entre Terra e tecnologia, a Terra poderá tornar-se num planeta híbrido onde se abrirão muito mais possibilidades do que geólogos conservadores estão dispostos a acreditar.

 

Esse novo modo de “ser técnico” teria ainda o potencial de fazer surgir uma ética de amizade e de superação da dominação, ideia que já surgira em 2001 (SLOTERDIJK, 2001, p. 231) e que é confirmada nesse texto de 2016, cujo desfecho vislumbra um novo estar-no-mundo, no qual o homem – aludindo a Hölderlin e Heidegger – “habita poeticamente a Terra”, e no qual os “agentes do mundo atual geram o seu existir no modo da co-imunidade.” (SLOTERDIJK, 2019, p. 107).

Mesmo que Sloterdijk não tenha elaborado uma teoria sólida e articulada da homeotécnica, é pela associação a pesquisas biomiméticas atuais que a conceção da homeotécnica ganha em concretude. Para além disso, constitui naturalmente uma resposta otimista e um contrapeso face aos discursos apocalípticos sobre a tecnologia. Entretanto, acho que há, nos escritos de Sloterdijk, um importante “contraponto”, uma espécie de caveat, que entra em forte concorrência com o conceito de homeotécnica. Esse contraponto tem a ver com reflexões que, na Filosofia da Tecnologia mais recente, se enquadram na rubrica “pós-humanismo”, ou seja, são considerações que colocam a questão da extinção e, ao mesmo tempo, superação da espécie humana assim como a conhecemos. Nos dois próximos subcapítulos, discutirei dois dos aspetos mais fundamentais desse contraponto, a traumaticidade da história do ser-em e o abandono da linguagem como meio principal da construção de esferas.

 

7 A TRAUMATICIDADE DA HISTÓRIA DO SER-EM

Como já mencionado, Sloterdijk dedica, nas obras referidas, grande parte da sua atenção aos conflitos “intermonádicos” ou intersistémicos entre as diversas estratégias concorrentes de procura de imunidade. Usando uma descrição diferente, julgo ser lícito afirmar que a história do desenvolvimento humano e das suas metafísicas é a história desses conflitos. E, como os mais fundamentais desses conflitos implicam, com boa regularidade, o fracasso total de certas estratégias imunitárias, essa história não só contém em si o momento da traumaticidade, porém, mais que isso, esse momento é constitutivo. Daí a legitimidade de falar da traumatologia dessa história.

No artigo intitulado “Humilhações por máquinas” (SLOTERDIJK, 2001, p. 338-366), Sloterdijk usa explicitamente o termo trauma. Humilhações, diz aí, são desafios para o sistema imunológico. A humilhação não precisa de ser traumática, mas pode sê-lo, se não for “trabalhada” ou se se aderir, apesar de bem o saber, a estratégias imunológicas desatualizadas. Em correspondência com a conceção da história da humanidade como história da criação de esferas imunológicas, essa mesma história também pode ser reconstruída como história traumatológica. Após as três humilhações narcísicas que as ciências, segundo Freud, infligiram ao ser humano – a humilhação do narcisismo cosmológico por Copérnico, a humilhação do narcisismo antropocêntrico por Darwin e a humilhação do narcisismo psicológico pelo próprio Freud – já se vislumbram, segundo Sloterdijk (2001, p. 345 ss.), novas humilhações em nível da humanidade, das quais menciono apenas três: a humilhação do homem pelo seu duplicado, o computador, a humilhação do homem pela natureza que mostrará ao homem a sua incapacidade de conviver com ela ecologicamente, e a humilhação do homem através dos avanços na robótica, genética e biónica, que serão capazes de simular, clonar e perverter as manifestações mais íntimas da condição humana.

Ora, passar pelas experiências da construção e do colapso das esferas imunológicas é algo a que o homem não pode fugir. É uma caraterística que pertence à nossa existência e que até nos a assegura. Daí que Sloterdijk (2001, p. 346) sugira substituir a frase cartesiana Penso, logo existo, pela frase traumatológica Sou humilhado, logo existo. A teoria do trauma, assim assevera Sloterdijk, é assunto e tarefa de todas as ciências, de toda a arte e de toda a filosofia. Fazê-la bem pressuporia, todavia, uma reforma profunda da própria divisão das ciências e das suas respetivas metodologias, reforma essa cujo esboço Sloterdijk (2012, p. 248 e passim) apresentou no livro mencionado sobre as antropotécnicas.

No que diz respeito a essa tarefa de lidar com as humilhações, creio que Sloterdijk desenvolve um discurso ambíguo. Por um lado, distancia-se explicitamente de Heidegger. Segundo Sloterdijk, é errado e, portanto, traumático aderir a estratégias antigas e desatualizadas para combater a humilhação traumática. Em vez de se apegar a formas infantis ou religiosas dos narcisismos primários, os seres humanos teriam que se elevar às formas desenvolvidas de um “narcisismo de habilidades” (SLOTERDIJK, 2001, p. 346). Este também é o ponto onde os termos “tecnologia” e “metafísica” entram em curto-circuito.

De acordo com Sloterdijk, um comportamento de defesa errado e retrógrado em relação às humilhações é “reacionário”, culmina na atitude tecnofóbica que demoniza a tecnologia e é como defesa contra uma “mudança metafísica já consumida”, um “produto de decomposição” do antiquado “comportamento de defesa metafísico.” (SLOTERDIJK, 2001, p. 223). Ao invés, seria desejável e até necessário desenvolver uma atitude de aceitação da tecnologia. Para além do facto de a tecnologia estar indissociavelmente vinculada à crescente globalização de espaços e formas de vida e à sua virtualização, mais crucial seria ainda que o sonho do controlo imunologicamente importante do interior e do exterior se tornasse tecnicamente viável, na atualidade. Contudo, essas mudanças não podem ser dissociadas do efeito problemático e mais radical de que a tecnologia intervirá cada vez mais no “campo metafísico” da própria constituição do ser humano enquanto tal (SLOTERDIJK, 2001, p. 220ss.).

Por outro lado, seria compreensível que o sujeito, preso aos velhos paradigmas metafísicos, compreendesse essa mudança metafísica como uma perda de si e do antigo humanismo, como coisificação do sujeito. A tese de que os humanos precisam de enfrentar esse novo desafio, porém, que esse enfrentar deve aliar-se com um entendimento alterado da tecnologia, é então, como vimos, associada à reivindicação da substituição da velha tecnologia de dominação pela homeotecnologia. No entanto, a ideia de que essa mudança para a homeotecnologia não exclui a possibilidade de que, à medida que o progresso tecnológico avança, os seres humanos, como tais, possam mudar – ou ser mudados – profundamente, deu origem, como é sabido, aos mais polémicos e violentos debates desde 1999, cujos protagonistas mais proeminentes eram Sloterdijk e Habermas.[9] Visto da perspetiva de Heidegger, esse debate poderia ser caracterizado de tal maneira que a perda da essência do homem fosse livremente aceite e o esquecimento do ser se tornasse total.

Do ponto de vista de Sloterdijk, a narrativa da “história do ser” teria de ser reescrita. Ainda em certa sintonia com Heidegger, Sloterdijk não negaria que se podem identificar certos modos “epocais” (p. ex. pré-metafísicos, metafísicos, pós-metafísicos) segundo os quais o Dasein configura as suas casas e o mundo. O desenvolvimento desses modos levaria, em certos momentos do decurso da história, a conceções imunológicas fundamentalmente diferentes (ou seja, a novos modos de ser). Entretanto, no que diz respeito ao papel da técnica nessa narrativa da história do ser, Sloterdijk afasta-se nitidamente de Heidegger. A era tecnológica no mundo hodierno das “espumas”, segundo Sloterdijk, distingue-se e desvincula-se da era metafísica pela caraterística de que projetos do ser-em se tornam cada vez mais dissociados e “desideologizados”, permitindo assim o vislumbre de um estado de cooperação entre todos os seres.

Contudo, Sloterdijk não consegue livrar-se do “fantasma” heideggeriano da morte do homem, uma vez que o derradeiro desafio que abre a possibilidade da extinção do Dasein enquanto Dasein, ou seja, a ameaça da “morte da mortalidade” do Dasein, não se deixa eliminar. Não se pode acusar Sloterdijk de ignorar o caráter profundo dessa ameaça, nem que ele não tivesse noção dos aspetos perversos e ao mesmo tempo dramáticos dessa ameaça. Todavia, parece prevalecer o seu otimismo que deposita a sua esperança nos prodígios da homeotecnologia e na sua capacidade de lidar também com esta problemática existencial.[10]

 

8 O PAPEL DA LINGUAGEM NA TECNOLOGIA DO FUTURO

Um outro aspeto que constitui um momento inquietante, ou seja, um “contraponto” no contexto do apelo à transformação homeotecnológica da sociedade, é a função da linguagem. Não há dúvida de que a linguagem desempenha, em boa parte das obras de Sloterdijk, a mesma função fundamental para a construção de “casas” existenciais que desempenha em Heidegger. Daí, seria de esperar que a linguagem esteja presente no desenvolvimento de projetos tecnológicos, quer estes sejam alotécnicos, quer homeotécnicos.

Em 2001, no entanto, Sloterdijk levanta, a meu ver pela primeira vez, dúvidas acerca desse papel da linguagem. No ensaio “A domesticação do ser” (SLOTERDIJK, 2001, p. 142-234), Sloterdijk reitera primeiro a função importante da construção de casas. Mas, já no início desse texto, se nota um afastamento de posições anteriormente sustentadas em obras como Zur Sprache kommen, zur Welt kommen (SLOTERDIJK, 1988), ou na parte central de Regras para o Parque Humano (SLOTERDIJK, 1999a, p. 32-49): a linguagem, que sempre foi o meio primordial da construção de casas, deixou de o ser, afirma Sloterdijk nesse seu ensaio. Restar-lhe-ia apenas uma função secundária, a da “climatização” de espaços interiores de casas já previamente construídas (SLOTERDIJK, 2001, p. 195).

A linguagem, diz Sloterdijk aí (2001, p. 195), é apenas uma “casa secundária” (“Zweithaus”), uma espécie de arquiteta de interiores. Que essa degradação é um fenómeno dos nossos tempos e que está em vias de se manifestar, torna-se evidente na seguinte passagem: “A linguagem é – ou era – o meio geral de tornar o mundo amigável, na medida em que é – ou era – o agens da projeção do familiar e caseiro [Häuslichem] para o não-caseiro [Nicht-Häusliches].” (SLOTERDIJK, 2001, p. 210). E o autor ainda se explica mais claramente (2001, p. 210):

Como Heidegger já reparou, o desempenho fundamental da linguagem consiste em tornar familiar e caseiro o ente na totalidade – ou, dever-se-ia dizer: consistiu? Pois não se pode ignorar que a linguagem se vê constantemente sobrecarregada e inapta no mundo técnico onde outros meios de proximização assumiram o comando. Fazer textos acontece agora por outras vias mais diretas, sem necessidade de recorrer a metáforas e traduções.[11]

 

Segundo Jongen, discípulo de Sloterdijk, os meios capazes de substituir a linguagem no seu papel da construção de casas tecnógenas seriam as imagens e a “pura técnica”, porque teriam o potencial de ir além da linguagem.[12] Esse uso diferente da linguagem levaria a um novo mundo “hyperimagético” que substituiria “as falsas imagens e “metáforas abstratas”, as quais tínhamos projetado para o mundo das espumas, pelas imagens e metáforas apropriadas.”[13] (JONGEN, 2011, p. 214). No entanto, Jongen não especifica claramente onde estaria a diferença entre imagens e metáforas apropriadas e inapropriadas. Mais prometedor parece-me, nesse âmbito, a associação do posicionamento sloterdijkiano a Flusser, associação aliás que o próprio Sloterdijk não rejeita.[14] A transformação da linguagem num código “unidimensional” que, simultaneamente, reduz a linguagem, ao privá-la da sua discursividade, e a enriquece, ao abrir novas potencialidades virtuais, esbatendo as fronteiras entre linguagem e imagem,[15] parece-me, sobretudo pela ambivalência desse processo e pela abstenção de uma valorização precipitada do mesmo, estar em boa sintonia com as ideias de Sloterdijk.

Por outro lado, há que insistir que a linguagem, assim como a conhecemos ainda, parece ser, por enquanto, imprescindível tanto para a construção como para a “climatização” das esferas. Mesmo na atual “era das espumas”, a linguagem mantém o papel importante de criar e manter em uso os “códigos de acesso” às respetivas esferas, bem como os códigos de conduta para os seus habitantes. Esse poder de regulamentação dos discursos decide tanto sobre a demarcação das fronteiras entre as diversas esferas quanto, e sobretudo, sobre o tipo de antropotécnica com cujo treino os habitantes das respetivas esferas se comprometem. Daí que a linguagem discursiva tenha, por enquanto, ainda uma função poderosa.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo propôs-se apresentar os traços fundamentais do pensamento de Sloterdijk sobre a técnica/tecnologia. Nesse âmbito, deu-se prevalência às obras em torno da trilogia Esferas, devido à importância da conceção e construção de esferas para o entendimento do ser técnico do homem. Afigurou-se essencial analisar Sloterdijk, a partir do fundo da filosofia heideggeriana, para entender, em função dessa perspetiva contrastiva, o caráter tecnógeno das esferas, tal como Sloterdijk o entende. Esse fundo contrastivo, ou seja, pensando com Heidegger contra Heidegger, é também a chave para entender a distinção entre alotécnica e homeotécnica, premissa fundamental do posicionamento sloterdijkiano sobre a técnica.

O presente estudo defende que o esclarecimento desses traços fundamentais abre o horizonte para estudos mais detalhados sobre algumas problemáticas interessantes e muito atuais, que constituem ao mesmo tempo desafios a futuras investigações: (i) parece-me que o conceito de homeotécnica é ainda subdeterminado, não obstante o seu potencial em servir como orientação para a reflexão sobre a mudança da nossa atitude para com a técnica e a tecnologia, perante o mundo que nos rodeia; (ii) de indiscutível valor é a premissa sloterdijkiana sobre o papel fundamental da lógica imunitária do nosso estar-no-mundo. Conceber essa lógica como traumatologia é uma descoberta que Sloterdijk partilha com outros filósofos, e que se afigura como desafio interessante, precisamente pelo facto de articular uma confrontação com a noção de homeotécnica; (iii) essa confrontação, que também poderíamos chamar ambivalência profunda, uma vez que está em jogo o bem-estar e a morte do homem, revela-se ainda em problemáticas particulares, como a do papel da linguagem no âmbito do nosso ser e estar “técnico”.

Abrir essas dimensões de reflexão é a proeza dos filósofos e poetas fortes, como dizia Rorty, e julgo que Sloterdijk, contrariamente ao que a filosofia académica alemã quer decretar, é um deles.

 

 

MAIN FEATURES OF SLOTERDIJK’S WORK ON TECHNOLOGY

 

ABSTRACT: In this article, I will focus on the main features of Sloterdijk’s work on the phenomenon and the role of technology. Regarding this context, I will distinguish between a first and a second Sloterdijk, the first sustaining a still quite technophobic position, evident, for instance, in his 1989 work, Eurotaoismus: Zur Kritik der politischen Kinetik, while the second develops a more careful and diversified theory that distinguishes between two forms of technology, allotechnology and homeotechnology. Further, I will relate these forms of technology to Sloterdijk’s spherology, developed since 1998, which provides the anthropological and, as Sloterdijk states, also metaphysical and phenomenological foundations of the phenomenon of technology. Finally, I will discuss two issues that build a kind of counterpoint to the “optimistic” notion of homeotechnology, namely (i) the traumatological aspect of the technological search for immunity and (ii) the role of language in the construction of the immune spheres.

 

Keywords: Philosophy of Technology. Sloterdijk. Spherology. Homeotechnology. Traumatology.

 

REFERÊNCIAS

BOLK, L. Das Problem der Menschwerdung. Jena: Gustav Fischer, 1926.

DUQUE, F. En torno al humanismo. Madrid: Tecnos, 2002.

FEENBERG, A. Heidegger and Marcuse: The Catastrophe and Redemption of History. London/NewYork: Routledge, 2005.

FLUSSER, V. Krise der Linearität. Bern: Benteli, 1992.

HEIDEGGER, M. Vorträge und Aufsätze. Hrsg. v. F.-W. von Herrmann. Frankfurt/M.: Klostermann, 2000 [= GA 7].

IHDE, D. Heidegger’s technologies: postphenomenological perspectives. New York: Fordham University Press, 2010.

JONGEN, M. On Anthropospheres and Aphrogrammes. Peter Sloterdijk’s Thought Images of the Monstrous. Humana Mente. Journal of Philosophical Studies, v. 18, p. 199-219, 2011.

KOLLMANN, J. Das Überwintern europäischer Frosch- und Tritonlarven und die Umwandlung der mexikanischen Axolotl. Verhandlungen der Naturforschenden Gesellschaft Basel, n. 7, 1885.

MITCHAM, C. Thinking Through Technology: The Path between Engineering and Philosophy. Chicago/London: The University of Chicago Press, 1994.

REGELN für den Menschenpark, 2019. Disponível em: https://de.wikipedia.org/wiki/Regeln_f%C3%BCr_den_Menschenpark#Literatur. Acesso em: 01 jun. 2020.

SLOTERDIJK, P. Zur Welt kommen – Zur Sprache kommen: Frankfurter Vorlesungen. Frankfurt/M.: Suhrkamp, 1988.

SLOTERDIJK, P. Eurotaoismus: Zur Kritik der politischen Kinetik. Frankfurt/M.: Suhrkamp, 1989.

SLOTERDIJK, P. Sphären I: Blasen. Frankfurt/M.: Suhrkamp, 1998.

SLOTERDIJK, P. Regeln für den Menschenpark: Ein Antwortschreiben zu Heideggers Brief über den Humanismus. Frankfurt/M.: Suhrkamp, 1999a.

SLOTERDIJK, P. Sphären II: Globen. Frankfurt/M.: Suhrkamp, 1999b.

SLOTERDIJK, P. Nicht gerettet: Versuche nach Heidegger. Frankfurt/M.: Suhrkamp, 2001.

SLOTERDIJK, P. A mobilização infinita: para uma crítica da cinética política. Trad. P. Osório de Castro. Lisboa: Relógio d’Água, 2002.

SLOTERDIJK, P. Sphären III: Schäume. Frankfurt/M.: Suhrkamp, 2004.

SLOTERDIJK, P. Du mußt dein Leben ändern: Über Anthropotechnik. Frankfurt/M.: Suhrkamp, 2012.

SLOTERDIJK, P. Der ästhetische Imperativ: Schriften zur Kunst. Hrsg. und mit einem Nachwort versehen v. P. Weibel. Berlin: Suhrkamp, 2014.

SLOTERDIJK, P. Das Anthropozän – Ein Prozeß-Zustand am Rande der Erd-Geschichte? In: SLOTERDIJK, P. Was geschah im 20. Jahrhundert? Frankfurt/M.: Suhrkamp, 2016. p. 7-43.

SLOTERDIJK, P. O Antropoceno – Estado de um processo à margem da história da Terra? In: RIBEIRO MENDES, J.; SYLLA, B. (orgs.). Tecnofilosofia líquida: Anders, Blumenberg e Sloterdijk. Braga: Centro de Ética, Política e Sociedade, 2019. p. 83-100.

SLOTERDIJK Debatte, 2010. Disponível em: http://web.archive.org/web/20100212115124/http:/www.univie.ac.at/ethik/online_texte/6.2.1.bioethik/sloterdijk_debatte.htm . Acesso em: 01 jun. 2020.

 

Recebido: 08/01/2021

Aceito: 14/3/2021


 



[1] Professor Auxiliar. CEPS – Centro de Ética, Política e Sociedade da Universidade do Minho, Braga – Portugal. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2212-5966. Email: bernhard@ilch.uminho.pt

[2] Desconsidero, neste artigo, o problema terminológico inerente à concorrência entre os termos técnica e tecnologia, o qual advém da diferença entre as tradições do uso dos respetivos termos, no pensamento alemão e francófono, por um lado, e hispânico e anglófono, por outro.

[3] Cf. Sloterdijk (1998); à discussão do In-Sein heideggeriano é dedicado o “Exkurs 4” (SLOTERDIJK, 1998, p. 336-346).

[4] Veja-se, a respeito do conceito de morar, em Heidegger, e a título de exemplo, as duas conferências de Heidegger intituladas “Bauen, Wohnen, Denken” e “...dichterisch wohnet der Mensch...”, que constam de Heidegger (2000, p. 145-164; p. 189-208).

[5] A título de exemplo, Ihde (2010) e Feenberg (2005).

[6] A título de exemplo, Sloterdijk (2001, p. 199, n. 49); cf. também Sloterdijk (2004, p. 368ss. e p. 756-760). A obra de Bolk (1926) é mencionada explicitamente por Sloterdijk, diferentemente da de Kollmann. Kollmann descreveu o fenómeno de neotenia primeiramente em Kollmann (1885).

[7] Trad. d. A. do seguinte trecho: “Die Homöotechnik hingegen kommt, weil sie es mit real existierender Information zu tun hat, nur noch auf dem Weg der Nicht-Vergewaltigung des Vorliegenden voran; sie greift Intelligenz intelligent auf und erzeugt neue Zustände von Intelligenz; [...] Sie muß, selbst wo sie zunächst so egoistisch und regional eingesetzt wird wie jede konventionelle Technik, auf ko-intelligente, ko-informative Strategien zurückgreifen. Eher hat sie den Charakter von Kooperation als den von Herrschaft, auch bei asymmetrischen Beziehungen.”

[8] Usarei a tradução desse artigo para o português, publicada em 2019 (SLOTERDIJK, 2019).

[9] Essa polémica despertou após a palestra sloterdijkiana proferida em Elmau e publicada sob o título Regras para o Parque Humano (SLOTERDIJK, 1999a) e reeditada em Sloterdijk (2001, p. 302-337). A respetiva controvérsia estendeu-se por um tempo consideravelmente longo e envolveu, entre filósofos renomados, como Habermas, Tugendhat e Frank, um número elevado de ensaístas e jornalistas alemães. Uma boa documentação da polémica encontra-se nestes dois sítios: http://web.archive.org/web/20100212115124/http://www.univie.ac.at/ethik/online_texte/6.2.1.bioethik/sloterdijk_debatte.htm e https://de.wikipedia.org/wiki/Regeln_f%C3%BCr_den_Menschenpark#Literatur. As passagens que deram origem ao debate estão nas páginas 61 a 68, em Sloterdijk (1999a).

[10] A lista de publicações sobre essa questão é muito longa e não precisa de ser mencionada aqui. Refiro apenas a contribuição de Félix Duque (2002) sobre esse tópico, porque apresenta uma intensa discussão onde contrasta Sloterdijk e Heidegger. Duque acredita que o entendimento de Sloterdijk sobre a tecnologia é perigoso.

[11] Trad. d. A. da seguinte passagem: „Ihre wesentliche Leistung besteht darin, wie Heidegger bemerkt, daß sie das Seiende im Ganzen verhäuslicht – oder sollte man sagen, sie bestand darin?, denn man kann nicht verkennen, daß die Sprache in der technischen Welt (wo andere Näherungstechniken in Führung gegangen sind) mit dieser Aufgabe zunehmend überfordert ist. Das Textemachen geht jetzt übertragungsfreie und metaphernlose Wege.“

[12] “[The] post-logocratic philosopher […] must find a way to use the means of language to go beyond it.” (JONGEN, 2011, p. 208).

[13] Trad. d. A. da seguinte passagem: “ […] the false pictures and “abstract metaphors” that we have projected onto it [the world of foam] with the appropriate images and metaphors.”

[14] Numa entrevista com Sloterdijk, publicada em Der ästhetische Imperativ (SLOTERDIJK, 2014, p. 230-284), os entrevistadores Sabine Kraft e Nikolaus Kuhnert sugerem essa associação (SLOTERDIJK, 2014, p. 247), a qual é prontamente aceite por Sloterdijk.

[15] Refiro, como representante de outras obras do autor sobre esse assunto, um livrinho de Flusser (1992), onde desenvolve as suas reflexões de uma forma muito concisa.