RESUMO: Durante a Primeira República Portuguesa, António Sérgio escreveu ensaios nos quais propôs um racionalismo aberto, uma pedagogia trabalhista e uma interpretação da história de Portugal, onde as circunstâncias materiais, as práticas, os interesses económicos condicionavam as atitudes mentais dos agentes históricos. Sérgio inspirou-se na filosofia do trabalho de Proudhon, interessando-se pelas discussões francesas sobre a origem prática/técnica da inteligência humana e do papel da técnica no desenvolvimento científico, discussões que envolveram Bergson, Durkheim e Louis Weber. Foi a partir dessa perspectiva pragmatista que realçou o papel das navegações portuguesas e da atitude de experimentalismo, de humanismo científico, que atribuía a algumas figuras da elite portuguesa do século XVI, bem como o interesse de Galileu pelas técnicas, que favoreceu o seu desenvolvimento da nova física, conduzindo à Revolução Científica.
Palavras-chave: Trabalho. Homo faber. Experimentalismo. Navegações. Galileu. Revolução científica.
INTRODUÇÃO
António Sérgio (1883-1969) foi um dos mais destacados intelectuais portugueses do século XX. Afirmando-se como clerc (Benda), nos seus Ensaios, abordou tópicos de filosofia, de pedagogia, de história, numa perspectiva holística, afirmando sempre o primado da “razão pura prática” kantiana. Na sua constante reflexão filosófica, Sérgio opôs-se sucessivamente ao positivismo cientista, ao bergsonismo e ao chamado materialismo dialéctico, propondo um racionalismo aberto, valorizador da prática, do trabalho humano e do papel da técnica. O seu idealismo afirma o activismo da ideia e a clara distinção entre meios e fins, que se manifesta na acção concreta teleológica e livre em que consiste o trabalho humano, o qual é elemento central da nossa dignidade e da capacidade real de interacção objectiva e de transformação; é sua uma concepção experimentalista que não humilha a razão, na sua dimensão mais especulativa ou teórica.
Ao tratar do tópico da técnica, convém não esquecer que os seus produtos resultam da actividade humana, e que importa inquirir das origens; para aqueles que, como Sérgio, recusam o determinismo ou o fatalismo histórico e que sustentam o voluntarismo e a liberdade humana como esforço reflexivo de actualização inteligente da categoria do possível, é fundamental inquirir da natureza do trabalho humano, distinguindo a variedade alienada (denunciada por um Karl Marx) da que corresponde à intelectualização da prática, a qual permite o desenvolvimento harmonioso do indivíduo e da sociedade.[2]
Começaremos, pois, por tratar da tematização da noção de trabalho, partindo da filiação proudhoniana comum a Sérgio e a Antero de Quental (o grande poeta-filósofo que inspirou o ideário cívico-político de Sérgio). AS reconheceu também esse primado da prática (intelectualizada), num importante debate francês sobre as origens da inteligência humana, que ocorreu no princípio do século, envolvendo Durkheim, Bergson, Louis Weber e vários outros pensadores; e, por isso, são seminais, no contexto português, as considerações sergianas, dos anos de 1920, sobre o experimentalismo português do tempo das navegações e das descobertas e a sua breve análise dos factores que favoreceram a Revolução Científica.
1 PROUDHON: PRAGMATSMO E PEDAGOGIA TRABALHISTA
Os textos de Sérgio sobre educação, da década de 1910, onde propõe a escola-município, estão em harmonia com o ideal kantiano de autonomia da pessoa e com a ideia proudhoniana de “self-government”; é o caso da série de textos publicados em A Águia, durante 1914, sob o título “O self-government e a Escola”, que formarão o livro Educação cívica (1915). Aí se preconiza uma escola trabalhista que corrija os vícios da sociedade portuguesa, em particular, o parasitismo e o centralismo: “A nossa futura pedagogia deverá ser, essencialmente, uma pedagogia do trabalho e da organização social do trabalho.” (SÉRGIO, 1914, p. 96).
Uma das fontes desse ideal trabalhista é Proudhon, a quem nem sempre se reconhece o valor filosófico (contrariamente a Marx). No entanto, ao longo de toda a sua imensa obra, a qual se centra na questão social, encontra-se uma grande quantidade de teses filosóficas. Nesse mosaico, um dos elementos estruturantes é o conceito de trabalho. Para Proudhon, o progresso humano é possível e depende de nós, do nosso trabalho, isto é, da acção inteligente dirigida pela ideia de um objectivo que visa ao estabelecimento de um equilíbrio social, no qual cada indivíduo encontra também a sua satisfação pessoal. O trabalho é entendido como acção que é a fonte das ideias, existindo analogia entre o trabalhismo de Proudhon e o pragmatismo de Dewey (o filósofo da Escola Nova), que insistia no valor formativo do fazer, e também entre estes e Fichte, que colocava a tónica na noção de Actividade.[3]
Em 1916, ao argumentar em favor duma íntima associação entre a prática e a teoria, no crescimento da experiência humana e no ensino, Sérgio invoca a obra de Proudhon, De la justice dans la révolution et dans l'église (1858), em concreto, algumas passagens do “Sixième étude: Le Travail”. Aí se lê:
XXXI
L’origine de la philosophie et des sciences découverte dans la spontanéité travailleuse de l’homme. — Alphabet industriel.
Chose singulière, dont il était impossible de se douter avant que la pression révolutionnaire nous eût mis sur la trace, le problème de l’affranchissement du travail est lié à celui de l’origine des sciences, de telle manière que la solution de l’un est absolument nécessaire à celle de l’autre, et que toutes deux se résolvent en une même théorie, celle de la suprématie de l’ordre industriel sur tous les autres ordres de la connaissance et de l’art.
C’est ce qui résulte de la proposition ci-après, dont la démonstration fera l’objet de ce chapitre:
L’idée, avec ses catégories, surgit de l’action et doit revenir à l’action, à peine de déchéance pour l’agent.
Cela signifie que toute connaissance, dite à priori, y compris la métaphysique, est sortie du travail pour servir d’instrument au travail, contrairement à ce qu’enseignent l’orgueil philosophique et le spiritualisme religieux, accrédités par la politique de tous les siècles, (PROUDHON, 1858, 2, XXXI, p. 214-215).[4]
O sentido profundo da passagem “L'idée, avec ses catégories, naît de l'action et doit revenir à l'action, à peine de déchéance pour l'agent” é o de que a acção não admite nenhuma dicotomia entre matéria e inteligência, entre corpo e espírito, porque a nossa acção é feita com o propósito de criação, cujo processo por excelência é o trabalho, o qual funde ideia e matéria. A ideia e a acção não são isoláveis, a sua síntese formando a nossa experiência. A ideia não só emerge da acção, ou seja, se gera e se transmite por via da experiência, mas é a sua própria existência que depende da sua capacidade de voltar à acção, isto é, de reorientar e ser útil na reconstrução da experiência. O trabalho, portanto, produz, cria e educa; opor o trabalho intelectual ao trabalho manual é formular uma antinomia artificial, fundada sobre as forças engendradas pelo processo de exploração económico.
Assim, a pedagogia trabalhista que Proudhon preconiza consiste em “d'un côté, à faire parcourir l'élève la série entière des exercices industriels, en allant des plus simples aux plus difficiles [...] de l'autre, à dégager de ces exercices l'idée qui y est contenue, comme autrefois les éléments des sciences furent tirés des premiers engins de l'industrie, et à conduire l'homme, par la tête et par la main, à la philosophie du travail, qui est le triomphe de la liberté.” (PROUDHON, 1858, 2, XXXVIII, p. 232). A ideia, ao ser gerada pela acção, é educativa, e ao aí voltar, torna-se libertadora.
Proudhon recusa, tal como Dewey o virá a fazer, o dualismo teórico/prático e propõe para o operário uma aprendizagem que abrace a totalidade do sistema industrial, ou seja, um ensino integral. Ele vê nessa nova pedagogia uma significação revolucionária: “Les conséquences d'une semblable pédagogie seraient incalculables. Abstraction faite du résultat économique, elle modifierait profondément les âmes et changerait la face de l’humanité.” (PROUDHON 1858, 2, XL, p. 237).
Para Proudhon, é através do trabalho, no qual a acção e a ideia se complementam, que se constrói a experiência, experiência que é a de sujeitos-pessoas que vivem em relação que se quer de respeito e de reciprocidade, num processo no qual o pluralismo, que afirma a primazia do possível sobre o determinismo fatalista, e a experimentação, que afirma o carácter aberto e em construção do conhecimento e que favorece o concreto sobre o geral-abstracto, permitem a construção da razão pública, a qual é superadora dos absolutos individuais. Proudhon, Dewey e Sérgio coincidem nas consequências educativas da sua filosofia, favorecendo a interacção entre teoria e prática, exemplificada pela importância concedida ao trabalho manual (o atelier-oficina proudhoniano), desprezado pelo ensino tradicional. O interesse pela metafísica do trabalho vai fazer Sérgio, na década de 1910, se interessar por um dos mais interessantes debates sobre a significação da Técnica, ocorrido em França, no início do século XX.[5]
2 A ORIGEM DA INTELIGÊNCIA E A TÉCNICA
No opúsculo Educação geral e actividade particular, de 1916, no quadro de uma discussão sobre pedagogia em que defende a sua concepção trabalhista da educação, lê-se:
Os que se opõem energicamente à ideia de ensinar a ciência em ligação com uma actividade profissional deviam antes de tudo lembrar-se de uma coisa: é que tal é a única maneira de a ensinar verdadeiramente, porque foi assim que toda a ciência se criou e desenvolveu, {isto é a inteligência antes de ser uma função teórica começou por ser uma actividade prática}. Devemos a astronomia ao agrícola, ao viajante, ao navegador; a geometria e a matemática ao agrimensor e ao arquitecto; a física e a química às manipulações industriais. [...] o homem tornou-se sapiens porque foi faber, e a sua ciência só é pujante e progressiva quando surge das necessidades da fabricação. Os povos que não fabricam poderão julgar-se sábios – verdadeiras fontes de ciência, - mas são cisternas da ciência alheia ... […] todo o erro vem do mito, ou do preconceito da ciência pura puramente nascida [...] do preconceito da ciência como um fim em si […] Supomos a existência de um espírito aéreo, liberto das necessidades e trabalhos da vida humana, contemplando desinteressadamente, e por assim dizer de fora, um mundo de abstracções sobre que ele não age, e criando um simbolismo para entretenimento divino da sua divina natureza. (SÉRGIO, 1916, p. 3-4).
Tal remete para o mencionado debate sobre o papel da técnica na origem da inteligência humana, o qual exprime a sentida ameaça das teses pragmatistas valorizadoras da técnica sobre o tradicional intelectualismo dominante em França. Esse debate envolveu filósofos, sociólogos e antropólogos, num contexto onde essas disciplinas ainda não estavam claramente separadas, tendo a Revue de Métaphysique et de Morale dado eco do mesmo. Sérgio compreendeu bem os seus traços gerais, tendo citado uma das obras mais importantes que foi produzida no contexto desse debate, o livro de Louis Weber, O Ritmo do Progresso, publicado em 1913, o qual percorre as várias posições que se enfrentam, para tentar uma síntese harmónica. AS citou, do livro de Weber, alguns trechos dos capítulos V e VI, onde se cuida precisamente da distinção e relações entre “Técnica e reflexão” e entre “ciência teórica e ciência prática”.
Descrevamos os aspectos gerais do debate. Para o filósofo Henri Bergson, no seu L'évolution créatrice (1907), o uso de instrumentos é elemento definidor da essência da nossa espécie, invocando a ideia de Benjamin Franklin de que somos um “tool-making animal”:
A que data fazemos remontar o aparecimento do homem na terra? Ao momento em que foram fabricadas as primeiras armas, as primeiras ferramentas. [...] Abramos [...] uma colecção de anedotas sobre a inteligência dos animais. [...] ao lado de muitos actos explicáveis por imitação, ou pela associação automática de imagens, outros há que não hesitamos em declarar inteligentes; em primeiro lugar estão aqueles que testemunham uma ideia de fabricação, quer o animal seja capaz de moldar por si mesmo um instrumento grosseiro, quer ele use para seu benefício um objecto fabricado pelo homem. [...] No que diz respeito à inteligência humana, não percebemos ainda que a invenção mecânica foi ... o seu passo essencial, que até hoje nossa vida social gira em torno da fabricação e uso de instrumentos artificiais, que as invenções que marcam o caminho do progresso também traçaram a sua direcção. […] Daqui a milhares de anos, quando o recuo do passado já só revelar as linhas gerais, as nossas guerras e as nossas revoluções contarão pouco […].; mas da máquina a vapor, com o seu cortejo de invenções de todos os tipos, falar-se-á como se fala da época da pedra talhada ou da época do bronze; ela servirá para definir uma idade. Se pudéssemos nos despojar de todo o orgulho, se, para definir nossa espécie, nos restringirmos ao que a história e a pré-história nos apresentam como característica permanente do homem e da inteligência, talvez não disséssemos Homo sapiens, mas Homo faber. [...] a inteligência, vista no que parece ser a sua diligência original, é a faculdade de fazer objectos artificiais, especialmente ferramentas para fabricar ferramentas, podendo-se assim variar indefinidamente a fabricação.[6]
Bergson, que então era o mais discutido filósofo francês, assinalou com essa fórmula do Homo faber, não que havia boas razões para distinguir entre dois estádios sucessivos da evolução humana – um estádio faber primitivo, ao que se sucede um estádio sapiens, que é o dos homens actuais –, mas sim que o Homo faber é o homem actual. O poder sugestivo da fórmula Homo faber vem decerto da associação entre estes dois domínios de reflexão: a técnica e a pré-história, tópicos de estudo que tinham conhecido grande desenvolvimento, na segunda metade do século XIX. François Sigaut explica a significação pragmatista do trecho: “essa inteligência de que fazemos tanto caso não poderia existir sem as actividades materiais, de fabricação, que são o seu campo de exercício. A inteligência implica a ferramenta. Para além disso, há apenas fumo metafísico.”[7]
Ora, desde 1903, Émile Durkheim sustentava que estavam, na origem da inteligência humana, não as práticas materiais, porém, as práticas religiosas, as quais produziam a consciência colectiva, sendo, portanto, essa origem social e não biológica; tal surge no artigo “De quelques formes primitives de classification” (1903), em coautoria com Marcel Mauss, em L’Année sociologique e, depois, no livro Les formes élémentaires de la vie religieuse, de 1912. Estava, pois, aberto um debate para o qual contribuiriam Henri Berr, Célestin Bouglé, Lévy-Bruhl, Louis Weber e outros.[8] Sérgio, em 1916, citou primeiro o trecho acima de Bergson e, depois, trechos do livro de Louis Weber, Le rythme du progrès (1913a), de que apresentou em tradução sua, os quais favorecem a posição instrumentalista ou pragmatista e a sua pedagogia trabalhista.[9]
Louis Weber (1866-1949), que se formou na École Polytechnique de Paris e foi chefe de serviço no Ministério da Indústria, é hoje relativamente desconhecido; no entanto, ele se encontra entre os fundadores e colaboradores regulares da RMM, tendo o seu livro justificado uma discussão longa, que ocupou duas sessões da Société Française de Philosophie, na qual colaboraram vários dos nomes mais sonantes da filosofia francesa (Émile Meyerson, Édouard Le Roy, Dominique Parodi etc.).[10]
Em Le rythme du progrès, propõe-se haver, no movimento geral das civilizações, uma alternância entre duas grandes tendências, uma “lei dos dois estádios”, que se pretende como uma alternativa à lei dos três estados de Comte (teologia-metafísica-ciência positiva, as diferenças de estádio actual de progresso das várias áreas do saber humano derivando da sua diversa complexidade). Um estádio é dominado pela preocupação técnica e o outro, pela reflexão, de carácter especulativo e teórico e com preocupações totalizantes. A sua alternância elimina o carácter teleológico da lei comtiana; a tal não é alheio ser Weber um leitor de Nietszche, sensível à crise finissecular do pensamento humano, à eminência da Grande Guerra, onde a técnica teria papel decisivo, crise que é não um conflito entre ciência e fé, mas entre ciência/técnica e razão.[11]
Louis Weber identifica duas grandes ordens de preocupações da inteligência humana, as quais são motor de progresso: a ordem técnica, de acção sobre o mundo material, para a qual a autonomia do indivíduo em relação ao grupo social é relevante, uma vez que é o indivíduo que, com as suas próprias mãos, lida directamente com a matéria; e a ordem social, a qual se manifesta na religião e nas concepções especulativas sobre o universo, intimamente dependentes do uso da linguagem. Essas duas ordens se encontram hoje intimamente ligadas, mas devem-se separar de um ponto de vista analítico e genético. A distinção entre duas funções da inteligência, uma prática e outra teórica, justifica-se geneticamente, porque a acção intelectual presente na função prática, que precede a função teórica reflexiva, tem um carácter semiconsciente e espontâneo, função para a qual a percepção é fundamental.
O autor concebe, de modo funcionalista, a percepção nos animais superiores, rejeitando a distinção entre sensibilidade passiva e inteligência pura como faculdade activa: as impressões recebidas são transformadas em movimentos coordenados, visando a coordenação à equilibração entre o organismo do animal e as alterações do meio exterior. Na origem da inteligência, está “uma reacção mental provocada pela percepção e organizando-se por si própria num sistema de movimentos com um dado fim, em correspondência com as percepções que o despoletaram.” (WEBER, 1913a, p. 126). Essa coordenação motora que envolve as propriedades mecânicas do organismo animal e as propriedades mecânicas dos corpos brutos é comum a várias espécies; e, portanto, a especificidade da inteligência humana está naquele algo mais que Bergson apontou – na capacidade real de invenção de instrumentos e de uma constante renovação do exercício dessa capacidade.
A constante renovação ou aperfeiçoamento dos utensílios, a qual acompanha um permanente e sucessivo ajuste entre meios e fins, favoreceu, na espécie, uma maior independência em relação ao hábito e ao instinto. Essa incessante renovação ter-se-á devido à imperfeição dos instrumentos iniciais ou seja devido à insuficiente coordenação da técnica disponível para garantir a subsistência nas tarefas mais urgentes, como a preparação da comida, a fabricação de roupas, a protecção contra as ameaças naturais e os inimigos; essa renovação inclui, implicitamente, a necessidade de aprendizagem e aperfeiçoamento das técnicas corporais. Dessa maneira, a necessidade de sucessivas reequilibrações e o próprio acto de fabricar instrumentos terão despertado a curiosidade, o não repouso do espírito, quando o instrumento está terminado, ficando assim favorecidos, como que por selecção natural, a transformação, o melhoramento dos instrumentos e das suas técnicas de fabrico; por exemplo, as pedras de sílex foram sendo sucessivamente mais polidas e passou-se, depois, ao uso dos metais para produzir instrumentos de idêntica forma e função. Weber deixa em aberto a possibilidade dessa curiosidade se poder autonomizar.[12]
A sucessão de desenvolvimentos técnicos foi fornecendo uma provisão de receitas práticas, associadas a um saber tácito que se transmitia por via de uma aprendizagem entre mestre e aprendizes. Esse receituário, resultante do humilde trabalho manual sobre os materiais forneceu também “o conhecimento de propriedades constantes dos corpos, a ideia de relações causais constantes, o esboço de leis da mecânica e da física”, regularidades as quais não surgiam ainda formuladas numa linguagem de leis, não havendo uma “clara consciência dos princípios”; Weber julga que, sem esse substrato empírico, teria sido impossível a posterior reflexão dos primeiros físicos, propondo que esse substrato foi uma condição para a objectividade, isto é, que, através da técnica, “a noção geral de matéria foi, desde a sua origem, liberta de qualquer ficção animista.” (WEBER, 1913a, p. 130, 132).
Para além de essa fase técnica e pré-animista ter fornecido receitas e um substrato empírico para a futura reflexão científica, a anterioridade e primazia da função técnica manifestam-se também nos dias de hoje, dando, em favor disso, exemplos relevantes, os quais esquecem, no entanto, a dimensão da educação infantil, aspecto sobre o qual Sérgio, com os pedagogos da Escola Nova, insistirá. Para Louis Weber, a técnica é provavelmente a mais antiga das instituições e mantém as suas características originais, pois que as artes manuais permanecem e a sua aprendizagem não se faz por simples leitura de manuais, antes, implica transmissão directa e oral, em que as sucessivas gerações vão comunicando “segredos do ofício e jeitos de mão”: “é trabalhando na forja que um aprendiz se torna um ferreiro.” (WEBER, 1913a, p. 131-132). Weber está consciente do papel da introdução da máquina e da revolução industrial, todavia, insiste que hoje muitas actividades de ordem artesanal persistem, garantindo a manutenção da herança do passado e, por isso, afirma que as técnicas são um protótipo de todas as tradições.
Mas, se as técnicas ou artes manuais permanecem no trabalho dos artesãos, elas também são relevantes nas modernas ciências, muitas vezes ligadas às aplicações industriais, onde toda uma dimensão tácita associada a segredos de produção é relevante. Louis Weber dirá mesmo que, no laboratório científico moderno, é “onde melhor damos conta da enorme influência do lado técnico sobre a experimentação e mesmo sobre a observação”, sublinhando: “É pela prática quotidiana, por uma aprendizagem em tudo análoga à do canteiro, do carpinteiro, do ferreiro, que se adquire a habilidade indispensável para montar os aparelhos, preparar e interpretar as experiências, conduzir as observações, e até efectuar medidas simples.” Também na investigação científica o saber puramente livresco é só por si infecundo: também aí a transmissão oral entre mestre e discípulos, a constituição de círculos fechados análogos às antigas corporações de artesãos são características essenciais. Todas essas semelhanças resultam “da identidade fundamental do trabalho industrial e do trabalho científico, e das condições necessárias à conservação e consolidação dos métodos eficazes.”[13]
É certo que a inteligência técnica é uma, entre várias das dimensões da actividade humana, sendo as actividades estética, linguística, afectiva, religiosa, outras tantas dimensões. Contudo, só a inteligência técnica permitiu à espécie apropriar-se da utensilagem que assegura a satisfação das necessidades mais urgentes, para a qual são necessárias uma representação objectiva do mundo material e uma ajustada percepção da causalidade.[14]
Quanto à tendência para a reflexão, para o pensamento especulativo e teórico, Weber nota que, na sua base, está o desenvolvimento da linguagem, a qual é também do ponto de vista prático, um instrumento, um utensílio. A técnica verbal, na sua radical novidade, introduz uma noção de causalidade não-material que está para além da causalidade mecânica constatada na fabricação e uso dos instrumentos materiais: uma nova eficácia, do gesto e da palavra, surge, quando um homem chama outro que dele se encontra distante. O uso da linguagem também produz resultados, movimentos, mas segundo uma relação, que Weber designa por causalidade, à falta de melhor termo, de antecedente a consequente, a qual não obedece a um determinismo tão rigoroso quanto o mecânico. O realçar da causalidade entre as várias categorias do pensamento humano aparece na seguinte passagem:
A fonte de toda a inteligência, supostas dadas as categorias de semelhança, de diferença, de grandeza, de simplicidade e de multiplicidade, etc., é a ideia de causalidade, ou, para melhor o dizer, de sentimento vago do poder, da eficácia, da acção possível sob certas condições, passando da potência ao acto e se realizando, tanto do homem sobre as coisas, como de uma coisa sobre outra, como do homem sobre outros homens. Compreender, é discernir e escolher a acção eficaz possível em certas condições a qual responde a um objectivo determinado, e não creio que exista outro sentimento ou uma outra ideia na base primeira da inteligência. A inteligência é portanto pragmática na sua essência e no seu princípio. (WEBER, 1913b, p. 58).
Com a linguagem verbal, outras dimensões surgem – aí vê o autor a fonte mais fecunda da mentalidade animística dos primitivos; o poder mágico e invocativo da palavra, o seu poder de estabelecer analogias, é uma nova dimensão que surge com a linguagem, dimensão que afasta o homem da positividade da relação mecânica apropriada à fabricação e ao uso dos utensílios mecânicos. Por isso, Louis Weber crê que, se tivesse havido uma anterioridade da mentalidade animística, se “um sistema de ficções animistas” tivesse precedido a inteligência técnica, ele “teria entravado, inibido desde a origem o sistema de representações que envolve a fabricação e o uso técnico dos instrumentos.”[15] De facto, Louis Weber, em várias passagens, opõe a inteligência técnica, com carácter individual, ao pensamento colectivo dos primitivos, com as suas representações dominadas pelo fetichismo:
Quando ele se encontra sob a influência do pensamento colectivo, o indivíduo, possuído por um poder que o ultrapassa, já não dispõe livremente das suas percepções e das suas volições. A menor invenção mecânica requer, pelo contrário, um estado de espírito que permita à inteligência individual toda a sua subtileza. (WEBER, 1913a, p. 226).
Se é verdade que, nas sucessivas civilizações, a tendência técnica soube irromper por sobre as representações colectivas, o empirismo técnico não soube fazer o caminho até à ciência racional, de que a aritmética grega representa um primeiro grande exemplo. Para tanto, foi necessário um elemento original, pois o conhecimento racional é de origem lógica, ou “literalmente, metafísica”. O número e os átomos exemplificam espécies desse género novo. “Concebido pela reflexão, esse elemento é no fundo o sujeito lógico, a essência idêntica e necessária, que o pensamento descobre sob a multiplicidade dos acidentes e da diversidade das qualidades.” Uma teoria é tal que, na sua composição, se encontram elementos constitutivos e a fórmula de estrutura, a lei, que possibilita reproduzir idealmente a formação da realidade composta.
Além disso, o sentimento da necessidade lógica é acompanhado pela clareza das ideias, enquanto a actividade empírica é “uma aplicação semi-consciente do princípio da regularidade da natureza.” Com essa nova atitude, a função prática fica relegada para um segundo plano, deixando a inteligência aqui de ser serva da acção, e deixando também de estar escravizada à imaginação colectiva – “as suas aspirações vão no sentido oposto do fim utilitário que o positivismo atribui à ciência.”[16]
3 O VALOR DA CIÊNCIA FACE À SUA ORIGEM PRÁTICA
Há ainda um outro texto fundamental para perceber a posição de Sérgio, o longo artigo “A ciência como instrumento vital” (1914), de Désiré Roustan (1873-1941), um filósofo hoje relativamente esquecido, aluno de Bergson, formado na École Normale Supérieure.[17]
Uma das consequências filosóficas do transformismo biológico, a que se juntam os desenvolvimentos da sociologia, da psicologia e da pré-história, foi a de se cuidar das origens do conhecimento humano, vindo a colocar-se em causa a possibilidade de a Razão humana ser da mesma ordem que a ideal Razão divina, que acede a um conhecimento adequado e total do real. O darwinismo veio gerar a ideia de que “todo o aperfeiçoamento físico ou intelectual foi lentamente conquistado pelo ser vivo”, sendo o resultado de inúmeras adaptações, sugerindo-se também que o conhecimento humano é “um grupo especial dessas adaptações.” (ROUSTAN, 1914, p. 613).
Na noção de adaptação há que relevar a reacção do ser ao meio, a qual garante o seu triunfo. Há dois modos gerais de reagir: ou o ser vivo ganha a capacidade de se tornar independente do meio ambiente; ou então o ser vivo age sobre o meio ambiente, transformando-o. Esta segunda forma é típica da nossa espécie, e a fabricação de utensílios exemplifica paradigmaticamente esse tipo de reacção. O conhecimento humano é um factor novo na evolução das espécies e, com ele, a nossa espécie ultrapassou a necessidade da evolução orgânica, pois ela “passou da existência mais rudimentar às mais elevadas civilizações sem adquirir um único orgão, sem modificar sensivelmente o seu corpo.” Também, para ele, nas técnicas se encontram as origens verdadeiras das ciências, relação íntima que permanece até aos dias de hoje.[18]
No entanto, é parcial a explicação do conhecimento pelo papel da técnica e pela utilidade ligada às necessidades mais prementes impostas pela interacção com o ambiente – há que considerar também a curiosidade desinteressada:
O sábio nem sempre tem por preocupação dominante a ideia de prestar um serviço de ordem prática à humanidade. Muitas vezes ele obedece a uma curiosidade que tem o seu fim em si-própria, ele quer saber por saber. Que outra necessidade além do tenaz desejo de perseguir até às mais distantes ramificações as consequências de certos princípios abstractos conduziu os matemáticos do século XIX a construir as geometrias não euclidianas e a teoria dos conjuntos? (ROUSTAN, 1914, p. 620).
Há que harmonizar os pontos de vista evolucionista e intelectualista, reconhecendo-se por um lado a destinação prática do conhecimento, a capacidade de exploração metódica da natureza que ele permite, e a concomitante possibilidade concreta de uma acção mais adaptada, e, por outro, que o conhecimento não se restringe a coleccionar receitas ou expedientes, visando, sim, a um saber sistemático regido por um ideal de verdade, o qual não coincide com o daqueles “enfants terribles” da escola pragmatista, os quais restringem a noção de verdade àquilo que nos serve com sucesso – se é certo que a ciência nos ajuda a viver, uma noção tão restrita de verdade não é compatível com uma noção de ciência na qual as hipóteses explicativas (como os átomos) têm uma importância fundamental nas teorias.[19]
Roustan sintetiza o seu ponto de vista num trecho que Sérgio traduziu num apontamento manuscrito:
Desta curiosidade insaciável devemos concluir que a ciência não possui uma função essencialmente vital? Longe disso. Persistimos em crer que a inteligência é originariamente um instrumento ao serviço do instinto de conservação. Mas desde que o homem foi capaz de suprir as necessidades mais imediatas, ele foi capaz de se esquecer de si mesmo, de ser mais atento às coisas exteriores que às suas necessidades, de não ficar hipnotizado pelo seu desejo, de não se absorver nele, de simpatizar sem preconceito com essa natureza impenetrável ao animal demasiado egoísta. (ROUSTAN, 1914, p. 625).
Considerando o caso da ciência grega, sublinha que, na geometria grega, essa atitude prevaleceu, a qual “pode ter sido uma das causas profundas do progresso das ciências, e ao mesmo tempo, da sua fecundidade futura no respeitante à próprias aplicações.” (ROUSTAN, 1914, p. 626).
Para Roustan, as ideias pragmatistas vieram renovar a discussão epistemológica. Se o racionalismo mais tradicional se fixava na representação, isto é, na influência do real sobre o conhecimento, o pragmatismo lançava luz sobre a influência do conhecimento sobre o real. Mas a perspectiva exclusivista desta segunda postura resulta de que autores como William James queriam assegurar o estatuto de crenças não demonstradas (como as crenças religiosas), ou seja, partiam de uma posição fideísta que ficava favorecida, se a verdade se identificasse com a fecundidade, tornando-se verdadeira aquela crença que ajuda a viver, que nos torna optimistas.[20]
Em resumo, se Roustan reconhece o interesse das análises pragmatistas, o carácter prático da ideia, a sua capacidade de transformação do mundo, ele reafirma que a eficácia de uma ideia científica resulta do grau em que ela incorpora em si a realidade, “ela só é instrumento se primeiro for em algum grau cópia do real”, e, por isso, conclui: “A verdadeira contribuição da biologia para a teoria do conhecimento não é a doutrina de que toda a crença é verdadeira desde que nos preste serviço, mas é sim a doutrina dita dos ensaios e dos erros (trial and error method)”, trecho que AS traduziu numa nota manuscrita que guardou. Roustan observa que essa contribuição vem corrigir o (excessivo) apriorismo de um Kant, isto é, a convicção errada de que o acordo entre as coisas e o espírito se estabelece com uma facilidade superior à da do real processo de conhecimento.[21]
4 O FILÓSOFO-HISTORIADOR: O EXPERIMENTALISMO PORTUGUÊS DE QUINHENTOS E O CASO GALILEU
Sérgio iniciou em Portugal uma linhagem de “materialismo histórico”, na qual foi dado realce àquelas circunstâncias materiais que suscitam factores mentais resultantes da interação com o meio, onde ideias se desenvolvem a partir da prática. Para tal concorreu a sua concepção filosófica integral do trabalho humano, da intelectualização da prática que nele ocorre. Exemplo maior disso é o seu ensaio “O reino cadaveroso” (1926).
Sérgio propôs aí a noção ideal-típica de Humanismo científico, como uma nova atitude mental (na qual se funde o experimentalismo científico com o espírito crítico dos simpatizantes de Erasmo, caso de um D. João de Castro), a qual emerge com o Renascimento e com as Navegações, atitude que estará na origem da Revolução científica do século XVII, para a qual a elite científica portuguesa (Duarte Pacheco Pereira, Garcia da Orta, D. João de Castro, Pedro Nunes etc.) terá contribuído, numa fase inicial.[22] Para explicar a nova atitude, Sérgio propõe a tese pragmatista seguinte:
Dois povos (o italiano e o nosso) se viram à testa da revolução. A faina industrial e o comércio marítimo impeliram à revolução o Italiano; e foram as navegações e os descobrimentos (filhos de necessidades comerciais) que iniciaram na nova atitude a mentalidade do Português. A ciência mecânica da natureza, pois, saiu da indústria florescente das cidades italianas, que buscavam exceder-se umas às outras nas actividades da fabricação, no achado de processos e de máquinas novas. O uso das forças da natureza levou ao sistemático conhecimento das suas maneiras de actuar, obrigando os espíritos reflexivos à investigação das suas leis. Abra-se por exemplo, uma das obras de Galileu, o primeiro dos seus Discursos e Demonstrações matemáticas sobre as Duas Ciências Novas, e ver-se-á que na boca de Salviati põe o fundador da ciência moderna as seguintes palavras proemiais: “Largo campo de filosofar me parece que subministra aos intelectos especulativos a prática frequente do vosso arsenal, Senhores Venezianos, e em particular naquela parte que tem o nome de mecânica; pois numerosos artífices empregam aqui continuamente máquinas e instrumentos novos.” [...] este novo espírito foi teorizado por Bacon de Verulano mas foram Galileu e Leonardo da Vinci que concretamente o instituíram [...] O que nos manuscritos de Leonardo interessa sobretudo aos homens de hoje, - é por um lado, a ideia da importância essencial do novo método experimentalista, e do correlativo espírito crítico; e por outro lado, a de que sem a aplicação da Matemática à Física não há física que se tome a sério. A Física pois, ou é Física quantitativa (o contrário da de Aristóteles), ou não é nada. Galileu [...] formulou a marcha lógica da investigação experimental, muito melhor do que fez Bacon. Descobre-se (diz ele) imaginando certas hipóteses sugeridas pelas experiências, e mostrando depois, por dedução, que as hipóteses imaginadas concordam com outras experiências. [...] É a propósito da astronomia [...] que a luta de Galileu com os Peripatéticos atinge os domínios da musa trágica. Ainda aqui, foi a experiência que decidiu o sábio. Kepler [...] abordara o problema dedutivamente; foi indutivamente que Galileu o tratou. Depois, tão-só, de construído o seu telescópio, e de descobertos com ele os satélites de Júpiter, é que se decidiu às declaradas pelo sistema de Copérnico, - que punha o Sol e não a Terra, no centro do sistema a que pertencemos. (SÉRGIO, E. II, p. 30-32).
Sérgio tratou o caso de Galileu, dando prioridade a aspectos materiais e práticos em sintonia com Olschki, Bernal e Zilsel. Leonardo Olschki (1885-1962), no seu Galileo und seine Zeit (1927), crê que o que permitiu a Galileu transcender a erudição infértil dos seus antecessores científicos foi o contacto com a nova tradição de aplicação das matemáticas a questões tecnológicas, quais a perspectiva linear, mineração, fortificação, balística, tradição que é invocada na primeira jornada dos Discorsi, trecho citado por AS no seu ensaio. Essa tese é depois ampliada por Edgar Zilsel, sociólogo marxista (mas independente), filosoficamente partidário do empirismo lógico e, como membro do Mach Verein, um dos fundadores do Círculo de Viena, no artigo de 1942, “As raízes sociológicas da ciência”. O novo dinamismo do mundo europeu é um elemento central da tese de Olschki: se os gregos possuíram a filosofia (racionalista) e desenvolveram dedutivamente as matemáticas (no essencial, as mesmas disponíveis para Galileu), foi o séc. XVII europeu que realizou o que poderia parecer embrionário na Grécia antiga, supondo que Galileu, como pensou Koyré, foi um sucessor directo de Arquimedes.[23]
Muito naturalmente, AS, nesse mesmo ensaio, vai valorizar a mentalidade experimentalista de Quinhentos:
Se olharmos para o nosso passado, ver-se-á que até ao fim do Quinhentismo Portugal acompanha galhardamente o melhor espírito europeu, a mentalidade dos povos cultos; então pode dizer-se que ele está na Europa, e a muitos respeitos na vanguarda dela [...] O papel libertador que teve na Itália, a actividade mecânica industrial, teve-o entre nós a Navegação. Ela nos forçou ao exame directo dos fenómenos da natureza. As necessidades da pilotagem nos conduzem ao estudo das matemáticas, que aqui culminam com Pedro Nunes; e a visão assídua de espectáculos novos - de novas terras, de novos mares, de climas novos e de estrelas novas - mostrava aos Portugueses a cada passo os erros enormes das autoridades, a cujas afirmações se prestara fé como a revelação do próprio Deus. (SÉRGIO, E. II, p. 27, 33).[24]
No livro de 2010, H. Floris Cohen tenta responder à questão de por que a ciência moderna surge na Europa do século XVII e por que razão o seu desenvolvimento tem sido continuado; a sua resposta é a de que duas das três tradições necessárias à emergência da ciência moderna existiam na Grécia Antiga – a filosofia especulativa e as matemáticas puras e aplicadas (geometria euclideana, estática arquimediana, astronomia ptolomaica). A terceira tradição, que se funde com as anteriores, na Europa dos séculos XVI-XVII, é o experimentalismo que inquire dos factos da natureza; este tem origem nas navegações e na exploração dos novos territórios, na mineração, no desenvolvimento tecnológico que usa as matemáticas e no comércio, produzindo-se um “empirismo coercitivo”; essa síntese das três tradições produziu o tipo de conhecimento da natureza matemático-empírico que reconhecemos como ciência moderna. A terceira tradição a que se refere H. F. Cohen, posta em evidência por argumentações pragmático-materialistas, é aquela a que Sérgio se refere em “O reino cadaveroso”.
EPÍLOGO
Sérgio surpreende o leitor actual pela capacidade de entrever ou de estabelecer relações entre campos e problemas hoje habitualmente separados. A sua concepção unitária da razão, a qual pressupõe sempre a intelectualização da prática como arquétipo do trabalho do Espírito, e a sua perspectiva filosofante e instrumental da história (ao serviço de um ideal melhorista e democrático) iluminam o questionar da Técnica, sob vários ângulos. Ela, nos seus produtos e artefactos, deve ser usada como meio para os únicos verdadeiros fins, que são os da emancipação humana da construção de um Reino dos Fins, no sentido kantiano.
Sérgio esteve sempre muito preocupado com o modelo antropológico, com aquilo que as várias ciências e saberes tinham a dizer sobre nós, do ponto de vista mais essencial. Reconhecendo, com Pascal, a existência de várias ordens e afirmando a especificidade e a prioridade do moral, da harmonia interior ditada pela voz interior da consciência, distinguindo assim o espiritual do meramente psíquico, o nosso pensador valorizou sempre o carácter activo e teleológico da acção humana que mobiliza a inteligência consciente, que permite uma reflexão sobre si mesma e, por isso, atendeu às condições de possibilidade dessa acção, em particular às que derivam da sua génese e às que têm carácter funcional, assegurando a homeostase na interacção constante com o ambiente (social, natural e tecnológico); condições que se ligam à especificidade da nossa espécie, onde o sapiens e o faber se constituíram dialecticamente (sendo que a construção de instrumentos e seu aperfeiçoamento, tanto quanto o desenvolvimento da linguagem, foi decisiva para a espécie, tal como o é a motricidade no desenvolvimento infantil).
A interacção constante, nas sucessivas situações problemáticas, implicou sempre esforço resolutivo, no qual é central um poder, impulso ou instinto construtivo ou de fabricação (Veblen); portanto, a nossa dignidade enquanto pessoas, seres capazes de se elevar ao racional, envolve essencialmente essa nossa predisposição para uma criação/acção que respeita a objectividade das relações naturais, mobilizando-a para os fins humanos. Logo, ao trabalho humano, concebido de modo criativo e nos antípodas do trabalho alienado que abunda na época da máquina, é dado um papel fundamental na nossa existência enquanto seres vivos, expressivos, criativos e morais. A intelectualização da prática que se opera no crescimento da nossa experiência (Dewey) deve estar acessível e fazer parte da existência de todos nós, e se, na criança, ela se liga intimamente ao espírito de jogo, nos adultos, liga-se a propósitos mais concretos e consiste no exercício do trabalho. Esse trabalho não deve ser fundamentalmente rotineiro ou meramente gerador de hábitos, e tal é bem patente na atitude experimentalista.
Assim, as considerações de AS aqui estudadas formam um arco com a sua pedagogia afim da de um Dewey: a valorização do experimentalismo português e do de Galileu, que AS engloba numa corrente mais geral de Humanismo crítico, resulta directamente do interesse com que o pensador português leu a literatura francesa relativa ao interessante debate que analisámos (e, claro, da matriz pragmatista do seu ideário, inspirada de Proudhon e dos pedagogos-filósofos da Educação Nova), no qual se valorizam os aspectos mais práticos e concretos na compreensão da génese e significado da inteligência humana. Esse arco, que existe à luz de uma concepção unitária da Razão humana, prolonga-se até à ciência, forma superior de actividade humana pelo que enseja de construção da objectividade, na qual a curiosidade desinteressada se manifesta de modo mais acentuado.
ANTÓNIO SÉRGIO: TECHNIQUE, WORK AND THE ORIGINS OF HUMAN SCIENTIFIC KNOWLEDGE
ABSTRACT: During the First Portuguese Republic, António Sérgio wrote essays in which he proposed open rationalism, labor pedagogy and an interpretation of the history of Portugal where material circumstances, practices, economic interests conditioned the mental attitudes of historical agents. Sérgio was inspired by Proudhon's philosophy of 'travail', and also by French discussions about the practical / technical origin of human intelligence and the role of technique in scientific development, discussions that involved Bergson, Durkheim and Louis Weber. It was from this pragmatic perspective that he highlighted the role of Portuguese navigations and the attitude of experimentalism, scientific humanism that he attributed to some figures of the Portuguese elite of the 16th century, as well as Galileo's interest in the techniques that favored his development of the new physics, which led to the Scientific Revolution.
Keywords: Workmanship. Homo faber. Experimentalism. Navigations. Galileo. Scientific Revolution.
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Recebido: 08/01/2021
Aceito: 12/2/2021
[1] Pesquisador no IHC-CEHFCi da Universidade de Évora, Évora – Portugal. ORCID: http://orcid.org/0000-0003-0235-9079. Email: jpps@uevora.pt.
[2] Usaremos, como abreviaturas: AS (António Sérgio), E. (Ensaios de AS, citando a partir da edição moderna da Sá da Costa), RMM (Revue de Métaphysique et de Morale).
[3] Ver, p. ex.: BOUGLÉ, 1911, p. 111, 209; BANCAL, 1970; GURVITCH, 1965; SOLARI, 2010; MAROUPAS, 2015.
[4] Cf. SÉRGIO, 1916b, II, p. 10-11.
[5] Sobre a noção de razão pública, cf.: PROUDHON,1858/1988, Septième étude, XXIV e XL; MAROUPAS, 2015, p. 231-234.
[6] BERGSON, 1907, secção “Les grandes directions de l'évolution de la vie: torpeur, intelligence, instinct”, citado por AS, em: SÉRGIO, 1916, p. 4 (cf. p. 128-130 da tradução de Artur Morão, de 2001).
[7] Ver: SIGAUT, 201?, 15; SIGAUT, 2007, p. 10, 24, 28.
[8] Ver: SIGAUT, 201?, p. 8, 11, BERGSON, 1907, p. 44-45 et 140-159 ; DURKHEIM, 1912/1998, secção: “Genèse des notions fondamentales de la pensée ou catégories” (Homo religiosus), p. 12-28.
[9] Na recensão do livro de Weber, nas páginas da RMM, lê-se que aí se encontra “uma tentativa para qualificar, sob a influência de ideias pragmatistas, certos exageros do sociologismo durkheimiano”, RMM, v. 22, n. 1, p. 2; as recensões da RMM e da The philosophical review (v. 23, n. 4, p. 461-462) concordam ambas em que a precedência da acção sobre a ideação e a argumentação desenvolvidas fazem de Louis Weber um aliado dos instrumentalistas norte-americanos, entre os quais se inclui John Dewey.
[10] Cf. WEBER et al., 1914.
[11] Cf.: WEBER, 1913, p. XII-XIV, p. 290; RMM, v. 22, n. 1, p. 2.
[12] Cf. WEBER, 1913, p. 129.
[13] WEBER, 1913a, p. 133-134; cf. SÉRGIO, 1916, p. 13.
[14] Cf. WEBER, 1913a, p. 138.
[15] Cf. WEBER, 1913a, p. 140-143.
[16] WEBER, 1913a, p. 227, 228. Louis Weber inspira-se aqui directamente de Émile Meyerson, que, na sua obra Réalité et Identité, de 1908, afirma como princípios maiores do pensamento científico os da identidade e da legalidade.
[17] A importância desse texto para as meditações de AS é comprovada pelo facto de, no seu pequeno espólio de manuscritos filosóficos, se encontrarem duas transcrições de excertos desse texto (sem menção do autor, que nós identificámos).
[18] Cf. ROUSTAN, 1914, p. 616, 618 e 619. Roustan cita um texto do químico Henri Le Châtelier (1901) sobre a fecunda interacção entre ciência e indústria, que AS traduz e ao qual adiciona um preâmbulo (SÉRGIO, 1917).
[19] Cf. ROUSTAN, 1914, p. 624-625. Roustan, como AS, está atento ao convencionalismo geométrico e pluralismo teórico de Henri Poincaré, reconhecendo que o pragmatismo da escolha da geometria métrica mais adaptada à espécie humana não é extensível aos fundamentos da análise, dado o afirmado carácter a priori do princípio da indução matemática (e da noção de grupo). Cf. ROUSTAN, 1914, p. 628-631.
[20] Cf. ROUSTAN, 1914, p. 639-640. Roustan, depois de analisar a posição de Nietzsche (cf. ROUSTAN, 1914, p. 638), cita aqui, além de James e de Schiller, John Dewey, naquilo que deve ser uma das primeiras referências feitas a Dewey por filósofos franceses, excluindo Dewey da acusação de partir de uma posição fideísta.
[21] Cf. ROUSTAN, 1914, p. 641-642.
[22] Cf. SÉRGIO, E. II p. 27. “Nos séculos XVI e XVII, na Europa, dá-se uma revolução intelectual (a mais decisiva de todos os tempos) onde se criou a atitude científica e o espírito crítico da moderna Idade. Portugal, no século XVI, foi guarda avançada dessa aurora, e no livre espírito de investigação a sua obra se desenvolveu.” (SÉRGIO, 1925/1926, p. 26.
[23] Ver: KOYRÉ, 1943; ZILSEL, 1942. Sobre a relação entre a mecânica de Galileu e as máquinas dos engenheiros, um texto recente, favorável à interpretação pragmatista/empirista de Olschki, Sérgio e Zilzel, é: LEFÈVRE, 2001. Sobre Olshki, ver COHEN, 1994, § 5.2. Cohen esquece o debate francês, singularizando Olshki.
[24] Sérgio, para ilustrar esse primado da experiência, cita de Pacheco Pereira o Esmeraldo de situ orbis, cf. SÉRGIO, E. II, p. 34; e também Camões: Canto V, 22; soneto Amor, Arte, Razão, Merecimento; Canto VI, 99, cf. SÉRGIO, E. II, p. 38-39. Sobre o experimentalismo sergiano, ver tb. de SÉRGIO, E. II, p. 43; Breve interpretação da História de Portugal, p. 86; Democracia, p. 94-95, 98; e PRÍNCIPE; MARTINS, 2012, p. 114-115.