LINGUAGEM E DENÚNCIA DA INTERIORIDADE EM NIETZSCHE E NAS INVESTIGAÇÕES FILOSÓFICAS DE WITTGENSTEIN

 

Saulo Krieger[1]

 

Resumo: O presente artigo pretende trazer à luz a convergência entre dois modos divergentes de superação do paradigma por excelência da filosofia moderna, qual seja, o da interioridade do sujeito, como pedra de toque epistemológica. Mais precisamente, pretende-se evidenciar o rito de passagem de um filosofar moderno para o contemporâneo, segundo a vertente que se convencionou chamar de “filosofia continental”, a aqui ser visitada com Nietzsche – equacionada a uma hermenêutica –, e a “filosofia analítica” ou “anglo-saxônica”, a aqui ser visitada com o Wittgenstein dos §§ 143-178 das Investigações filosóficas –, equacionada a uma filosofia da linguagem. Em um e outro caso, cada qual à sua maneira, vai se pôr em questão o que até então se tinha como consciência pensante, transparente a si mesma e com acesso a seus próprios fundamentos e conteúdos (Nietzsche), ou, então, uma interioridade, a qual, por um viés o mais das vezes mentalista, associa significado a entidades ou processos mentais (Wittgenstein). Desse modo, sujeito e pensamento, em vez de tomados por núcleos duros, passam a ser desvelados como funções das condições que os suscitam – de sobrevivência, no caso de Nietzsche, de condições práticas, ou seja, do uso, no caso de Wittgenstein.

 

Palavras-chave: Signos. Vontade de potência. Interpretação. Uso. Regras.

 

Introdução

O abismo a apartar filosofia continental e analítica já não é um fosso proibitivo e intransponível como foi um dia. Para ficar em dois exemplos, caros à abordagem que aqui se seguirá, adeptos da filosofia analítica debatem em profundidade questões nietzschianas – como também já há um tempo leem Hegel, aliás –, e outros estudiosos, da filosofia continental, debruçam-se sobre possíveis contribuições de Wittgenstein para seus próprios caminhos. E há aqueles que decidem abordar um e outro, em suas coincidências, colidências e desvios, nas luzes que cada um pode lançar ao outro. Nas peculiaridades de cada qual, há ressonâncias de uma época, do tempo filosófico que se está a abandonar, daquele em que se está a ingressar. Nesse sentido, contamos com contribuições importantes a relacionar ambos, para se pensar a questão da fé, em Martin Heidegger (CIMINO; HEIDEN, 2016), para se pensar a questão do suicídio (STELLINO, 2020).

Já se partiu da ideia de que ambos intentaram transformar nossa visão da filosofia, compartilhando da ideia de que uma representação perspícua só se faz possível se nos libertarmos de um anseio por generalidade, que tanto caracterizou a filosofia até eles (TURANLI, 2003). Nietzsche, assim, na Genealogia da moral, teria mostrado como os conceitos morais não podem ser analisados num vácuo. Wittgenstein ampliou essa concepção, a ponto de abranger todos os conceitos. No sentido dessa transformação, investigou-se a filosofia como atividade não doutrinal, em um e outro filósofo, já que as reflexões de ambos são responsáveis pelo solapar das últimas pretensões metafísicas, e por ambos fazerem atentar a outras possibilidades de pensamento (BARROS, 2016). Nesse diapasão, em sentido inverso, propositivo, mas com ambos os pensadores a se desviar entre si, em outra oportunidade se fez atentar para como Nietzsche e Wittgenstein, tendo cada qual deparado com uma cultura decadente, em declínio, propuseram diagnósticos pouco similares, respostas ou tratamentos diferentes, num paralelo com desdobramentos no mínimo interessantes (MILLS, 2021). E já se fez ver como eles se aproximam na identificação de um “disto” que se opõe à verdade, e que não é “[...] nem o não-ser, nem a falsidade, nem o erro, nem a ilusão, mas a mentira em um sentido extramoral.” (CARVALHO, 2013). Mais explicitamente, Nietzsche promoveria um deslocamento do debate sobre verdade e significação, o qual se reencontrará na base das Investigações filosóficas de Wittgenstein (CARVALHO, 2013, p. 201).

Assim, em suma, vemos que Nietzsche e Wittgenstein assinalaram uma transformação da ideia de filosofia; personificaram a filosofia como atividade não doutrinal; empreenderam um deslocamento do debate sobre verdade e significação. Mas ora, cremos que esses tratamentos podem ser projetados em traços mais amplos, como vai se propor aqui, dado que todos se sobrepõem em um ponto: para além das diferenças todas, do referido “ex-”abismo entre filosofia continental e analítica, tem - se Nietzsche e Wittgenstein a fazer colapsar noções-mestras as quais fizeram a filosofia que se convencionou caracterizar como moderna: além de sujeito, mens, também pensamento, intelecto, espírito, razão, eu; o lastro da moderna concepção de ideia como “imagem na mente” (mentalismo); os intermediários que interpolam sempre a pontuar sua compreensão equivocada, inflacionada, das operações mentais.

Todos esses procedimentos, na filosofia moderna, do cogito de Descartes ao espírito absoluto de Hegel, se equacionavam a uma interioridade à qual se teria acesso, entre direto, com o cogito cartesiano, observado passivamente ou, já por uma via formal e ativa, com o sujeito transcendental kantiano, pela via de um longo, não raro dramático percurso de apropriação, como no idealismo alemão. Em comum a todas essas versões sucessivas, porém, o pressuposto de um acesso, de um encontro transparente com sua própria interioridade – as ideias e o entendimento tendo um lastro mental – que lhe franquearia o conhecimento do mundo. De fato, algo bem diferente começa a se ter na filosofia contemporânea, fazendo-se-lhe marca registrada já desde a sua aurora, com a filosofia de Nietzsche, quanto ao tal sujeito, à tal interioridade, a que imaginava ter acesso direto, a qual passa a ser substituída pelas condições e determinantes do que um dia se mostrara à filosofia como sujeito claro e transparente, como entendimento claro e transparente. Do conhecimento dessas condições e desses determinantes advirá a derrocada da metafísica da modernidade, e os diferentes acenos, tanto em Nietzsche como em Wittgenstein, à filosofia como reflexão crítica aos aspectos e condições tidos como dados e não problematizados na filosofia moderna.

Quanto à tal “interioridade-pedra de toque”, marca registrada do que se convencionou tomar por filosofia moderna, no que concerne à “cauda mental” por ela imputada às operações do entendimento, estamos a propor que vertentes bastante díspares do que se convencionou chamar de filosofia contemporânea encontram um talvez inesperado traço em comum numa contraposição à tal relação com a pretensa interioridade – ao “mito” da interioridade, entendendo-se por mito uma interpretação ingênua e simplificada. É isso que pode aproximar, por exemplo – o nosso exemplo –, Nietzsche e Wittgenstein, ambos em momentos específicos de seus escritos da maturidade. Em dado instante, eles se aproximariam precisamente no modo como, a partir de suas concepções de atribuição de significado, um e outro põem em xeque as ideias de uma transparência do mental, de um lastro mental e do acesso imediato a uma experiência interior. Em outras palavras, entendemos haver uma consonância na maneira como um e outro questionam a ideia de o sujeito ser dono e observador privilegiado de sua própria introspecção. Tem-se assim a filosofia contemporânea, em duas de suas vertentes, como contraposição à filosofia moderna e à sua ideia de acesso ao entendimento.

Para o caso de Nietzsche, num primeiro momento, e Wittgenstein, na sequência, pretende-se aqui chegar a desdobramentos semelhantes: fazer ver que a forma como cada um concebe o acontecer de um signo (Nietzsche) ou a atribuição de significado (Wittgenstein) redundará na concepção de uma “interioridade” que, de modo diferente do que rezava a imagem vigente na modernidade clássica, (1) não está oculta por trás de uma “exterioridade”, (2) não é autônoma nem independente dessa exterioridade, (3) não se oferece de maneira transparente e acessível.

Assim, no caso de Nietzsche, tem-se uma consciência que não está imune a um “fenomenalismo do ‘mundo interior’” (XIV 15 [90]),[2] isto é, de um processo continuamente equívoco e ilusório: encontram-se fenômenos ilusórios no interior, como se também se dá, no exterior. Já Wittgenstein apresenta, de modo crítico, uma vida mental, sobretudo no caso da filosofia, que se mistifica ao transpor para si estruturas gramaticais hauridas da interação com o mundo exterior, sem atentar para as suas sutilezas e diferenças categoriais. No limite, poderíamos dizer que já não se trata de propor que nossa experiência interior esteja oculta atrás da exterioridade e, transposta essa dimensão, tenha a si um acesso privilegiado; em vez disso, o quadro que se apresenta é o de uma interioridade, a qual, se se esconde, fá-lo por trás da própria concepção que se habituou a fazer de si, no marco do cogito cartesiano. Para Nietzsche e também para Wittgenstein, essa concepção, na verdade, desvirtuará o acesso da consciência a si própria, ao imaginá-lo mentalisticamente direto e inalienável.

 

1 Signos e volatilidade em Nietzsche

A primeira referência de Nietzsche à atribuição de significado – no caso em questão, a reflexão a respeito vale-se do termo Zeichnen, isto é, signos – parece providencial para nossa finalidade aqui: em fragmento póstumo do outono de 1880, ele afirma que “[...] o pensamento é tal qual a palavra, apenas um signo.” E, em seguida, na mesma passagem, revela que não seria bem o caso de esse signo – seja pensamento, seja palavra, seja signo em quaisquer de suas formas – representar uma realidade: “[...] não se pode falar numa congruência entre o pensamento e a realidade” – aliás, ao menos desde Kant – até porque “[...] o real é algo como um movimento pulsional” (KSA IX 6 [253]) – ora, o pulsional,[3] em outros contextos, será referido pelo filósofo como “o acontecer”: o pulsional é uma abstração, e o que já é abstrato não pode ser representado enquanto tal; o acontecer é devir e movimento, e nessa condição não pode ser representado por signos, que são estáticos e o tornam estático.

Assim, em Nietzsche, como tampouco será o caso em Wittgenstein, não se trata de buscar uma imagem mental por trás de um signo, visto ser o próprio pensamento signo de alguma outra coisa, o qual, em última instância − embora não haja “última instância”, em Nietzsche − seria inapreensível,[4] não no sentido da coisa-em-si kantiana, mas no de algo que se constitui na medida mesma em que se o busca. Depreende-se já daí que o uso dos signos reveste-se a um só tempo de inédita leveza, despojado que é de objetos previamente dados a representar, e mobilidade, chegando mesmo à volatilidade. Assim, em Nietzsche, pode-se sustentar, de maneira expressa: volatilidade semiológica, sim, congruência nome-objeto, não.

No entanto, há de se convir que deve haver pelo menos um, como dizer, “sucedâneo de congruência”, entre signo e objeto, o qual, seja como for, tem garantido a sobrevivência da espécie humana, à medida mesma que esta faz uso de um pensamento racional. Na segunda dissertação de Para a genealogia da moral, Nietzsche relaciona signos e volatilidade, de um lado, e o que seria o sucedâneo da congruência, de outro, ao tematizar um importante aspecto da vida humana em sociedade: a origem e a finalidade do castigo. Em vez de congruência, haveria “interpretações e ajustes” (GM/GM II § 12) que, jamais estáticos, sempre novos (GM/GM II § 12) e sempre “a se fazer”, configurariam “[...] uma ininterrupta cadeia de signos” (GM/GM II § 12); o “acontecer” de um signo se daria tal como “todo acontecimento do mundo orgânico” e, entenda-se: sob a forma de “[...] um subjugar e assenhorear-se, e todo subjugar e assenhorear-se é uma nova interpretação.” (GM/GM II § 12). Assim, chegamos à ideia de “interpretação” – um processo ininterrupto de interpretação, que desconhece “bom termo” ou anteparos dados de antemão, sendo propriamente o sucedâneo da congruência entre signo e objeto, pela qual perguntáramos.

A interpretação é a noção que se mostra afinada à revisão radical dos questionamentos ontológico e epistemológico, por Nietzsche: no plano ontológico, ela é determinada não por objetos, mas “[...] pelo que somos e por nossas necessidades” (KSA XI 39 [14]); no plano epistemológico, em vez de representar ou congruir, ela tiranicamente impõe as formas que estão à sua disposição, das quais se vale segundo suas necessidades: “[...] a interpretação é um meio de tornar-se mestre de alguma coisa.” E como sucedâneo da referida congruência, a interpretação aproxima elementos que tinham sido apartados de modo arbitrário e artificial: com isso se quer dizer que, com a interpretação, aquilo que separa perceber e percebido, signo e objeto, é algo tão aderente quanto a satisfação mais imediata daquele que percebe: ele percebe o que o satisfaz ou o ameaça. De uma outra maneira, que também se mostrará aqui relevante, a interpretação aproxima o processo de atribuição de sentido dos processos orgânicos: já “[...] o processo orgânico pressupõe um perpétuo interpretar.” (KSA XII 2 [148]).

Os dois termos a que aqui chegamos, isto é, a interpretação como movimento perpétuo e a volatilidade dos signos, são relacionados na referida seção da Genealogia da moral: no ato de interpretar, tem-se “[...] um ajuste, no qual o ‘sentido’ e a ‘finalidade’ anteriores são necessariamente obscurecidos ou obliterados.” (GM/GM II § 12). Da “finalidade” viria o “sentido” – e o uso das aspas denota que Nietzsche não crê nesses termos, ou ao menos no uso como deles até então se fez −, assim como, em civilizações antigas ou na Idade Média, um castigo só tinha sentido em vista da finalidade pela qual era aplicado; ocorre que os usos mudam e, com eles, também a finalidade: “[...] algo existente, que de algum modo chegou a se realizar, é sempre reinterpretado para novos fins, requisitado de maneira nova”, assim como um sentido de uma palavra “migra”, passa de um âmbito para o outro, perde denotações, ganha conotações, pois afinal é “[...] requisitado de maneira nova, transformado e redirecionado para uma nova utilidade, por um poder que lhe é superior.” (GM/GM II § 12).

 

2 Vontade de potência e a comunicação como artimanha

Se o que regeria essas migrações de sentido seria um “poder superior”, dessa superioridade não se deve depreender um poder hierarquicamente superior e apartado de sua esfera de ação. Esse poder remete a uma noção intimamente relacionada à interpretação, que é vontade de potência:[5] “todos os fins, todas as utilidades” – no mundo orgânico, no direito e no sistema penal, no modo como se usam as palavras – “[...] são apenas indícios de que uma vontade de potência se assenhoreou de algo menos poderoso e lhe imprimiu o sentido de uma função.” Também o sentido das palavras então seria função de seu uso, o qual é eminentemente mutável, dando-se ao sabor de, em última análise, subjugações: “[...] a sucessão de processos de subjugamento que nela [numa coisa, num uso, no sentido de um termo] ocorrem, mais ou menos profundos, mais ou menos interdependentes, juntamente com as resistências que a cada vez encontram.” (GM/GM II § 12). E o que vale para o os processos no interior dos organismos vale para o significado dos termos na linguagem: “[...] se a forma é fluida, o ‘sentido’ é mais ainda...” (GM/GM II § 12).

Sendo fluido o sentido, se ele não acontece propriamente para representar, como já vimos, ele é, isto sim, comunicar. Não se refere a algo que está “atrás dele”, mas a algo que ele pretende “logo à frente” e, como veremos, ao modo como pretende se assenhorear do acontecer. Para isso, ele lança mão de um signo, o qual intrinsicamente torna estático o que é vir-a-ser e abrevia o que é de complexidade inabarcável. À parte o fragmento póstumo com que iniciamos esta seção, Nietzsche mais se dedicará à questão dos signos anos depois, no período 1883-1885, e é quando salta aos olhos a frequência das referências à sua qualidade de abreviação ou simplificação do acontecer ou da experiência (sobretudo KSA XI 26 [92], 26 [114], 26 [227], 26 [407], 34 [131], 34 [249], 36 [27], 38 [13] e 1 [28]). Também relevante é a forma como refere o intelecto ou “aparato de conhecimento” que se vale de sinais, como meio de simplificação (KSA XII 26 [61], 34 [46]). Uma terceira classe de ocorrências associa os signos a um “apoderar-se” ou a um “apoderamento” (bemächtigen/Bemächtigung) das coisas, do mundo ou “[...] de uma enorme quantidade de fatos” (KSA XII 26 [407], 34 [131], 38 [13], 26 [61]).

Tudo isso, ou seja, a infindável assunção de signos pelos sentidos, não é por acaso: a vontade de potência − e o “acontecer interno” do qual os signos são indícios, é um modo de se referir a vontade de potência ou a seus efeitos – pode ser inexorável e incontornável, mas está longe de ser uma força bruta: com os sinais, o que se tem é um distanciamento dos fatos ou circunstâncias do mundo em sua singularidade, para, com isso, se apoderar “[...] de uma enorme quantidade de fatos” (KSA 34 [131]) –, e, dessa forma, a hipótese da vontade de potência justifica plenamente a redução da experiência a signos.

Certamente, a vontade de potência justifica, porém, não explica a relação entre o uso de signos, com o consequente distanciamento de um sentido originalmente buscado, e a sua incidência muito particular – a simplificação e a abreviação muito particulares, as quais só vieram a se dar com a espécie humana. E nesse ponto, precisamente, entramos na questão sobre a proveniência da consciência (Bewußtsein); aqui logo vamos deparar com mais duas noções que, não por acaso, são recorrentes: a necessidade (Not), que dá a tônica do aforismo 354 de Gaia ciência (pois a necessidade esteve na base do engendramento da consciência entre os homens), e o comunicar, que relaciona o uso dos signos (linguagem) à consciência. Assim, se a vontade de potência pode, como aqui já mencionamos, “[...] assenhorear-se de algo menos poderoso e lhe imprimir o sentido de uma função” (GM/GM II § 12, tradução ligeiramente modificada), aconteceu de, no caso dos homens, instados por uma renitente necessidade, terem-se valido de uma artimanha [List] para assenhorear-se não apenas de algo menos poderoso, mas mesmo de algo que lhes era muito mais poderoso – uma ameaça à vida de todo um agrupamento humano.

No aforismo 354, Nietzsche propõe uma hipótese para o que teria sido esse momento: “[...] o tomar-consciência das impressões de nossos sentidos em nós, a capacidade de fixá-las e como que situá-las fora de nós, cresceu na medida em que aumentou a necessidade de transmiti-las a outros por meio de signos.” (FW/GC § 354). A consciência surgiu no homem não por um movimento de introspecção, mas por um expressar coletivamente compreensível de suas próprias necessidades (FW/GC § 354) – por um movimento de exteriorização de um pathos interno, por um experimento de compartilhamento. Dali para adiante, “a sutileza e força da consciência” só fizeram crescer, à medida que, premida por uma necessidade, aumentava a capacidade de comunicação. A consciência era mais acionada, aperfeiçoava-se à medida que se intensificava o movimento para fora, o tal experimentado de compartilhamento, de sorte que interior e exterior não seriam apartados, mas mutuamente dependentes, interligados pela interface da consciência, com seu movimento que é, a bem dizer, centrífugo.

 

3 A linguagem cobra seu preço

Sem dúvida, houve ganhos com a referida artimanha que se fez linguagem verbal articulada: além da própria sobrevivência da espécie, que era o objetivo inicial, Nietzsche associa a constituição do aparato intelectual, da ciência, da lógica e a própria espiritualidade com o dominar do maior número de fatos por signos (KSA XI 34 [131]). Porém, todos esses ganhos cobraram seu preço à espécie humana: uma vez que o movimento da consciência é “para fora”, nada menos do que a perda da singularidade, já que o acesso ao geral, e não mais “apenas” ao particular, se fez filtro de percepção do mundo e vedou o acesso ao individual. Em seu afã de abreviar, de querer rapidamente dar conta do maior número de fatos com o traço menor que fosse, e de rapidamente o querer comunicar, o acontecer do qual um interpretar a todo tempo produz signos é sempre mais abrangente, mais rico, mais nuançado, comportando uma particularidade e uma complexidade que o signo não transmite.

A partir daí, o homem social, que, com os signos, aprendeu a tomar consciência de si, ao querer perscrutar a si mesmo, perceber-se no que inferiu ser sua interioridade em oposição a uma exterioridade, passou a se munir dos mesmos signos linguísticos que usava para manipular, assenhorear-se do meio externo. Estes se interpunham de pronto e de modo alheio à sua vontade. Ora, se tais signos já eram sumamente parciais em suas referências ao meio externo – expressando apenas o que delas pode ser compartilhável −, ao voltá-los para o que passa a reconhecer como sua interioridade, o homem social tem à mão tão-somente o que nela pode haver de mais gregário: a mesma linguagem para dar conta do corte mais longitudinal, ou seja, menos profundo das coisas. Para Wittgenstein, haveria – como haverá, e ele o analisará em seu respectivo contexto – uma transposição categorial que, por ser uma transposição, faz com que se perca o seu sentido – se se analisar rigorosamente – condicionado à particularidade gramatical que o originou.

Já Nietzsche vê esse problema de outra forma: os signos não apenas abreviam, mas com isso também generalizam, superficializam, corrompem, falseiam, de maneira radical. Se, para a sua noção de interpretar, não há verdades em contraposição à falsidade, o problema não está no “falsear” em si, por parte de uma suposta interioridade forjada a golpes de irrefletida linguagem – e lembremos que Nietzsche desvela a verdade como “vontade de verdade”, não a prefere ao erro e é crítico virulento de quem o faz (FW/GC § 344). O problema está no esquecimento de que dessa teia gramatical e linguística o próprio homem não está apartado a observá-la, todavia, é-lhe imanente e tecelão. Com esse esquecimento, o homem acaba por sublimar o que é mera utilidade (FW/GC § 354), como se ela não fosse fluida, como são fluidas a forma e o sentido (GM/GM II § 12), e assim cegamente se relaciona apenas com o corte longitudinal das coisas e de si mesmo, tomando-o pelo acontecer que o suscita.

 

4 Miragens, mitos[6] linguísticos e a boa filologia

            Mais do que ser tributário direto da crença nesses contornos condicionados por uma linguagem, o que Nietzsche chama de “fenomenalismo do ‘mundo interior’” é estrutural à consciência. Na própria percepção do mundo exterior, há uma inversão: a parte dele da qual nos tornamos conscientes, percebêmo-la como causa, quando, na verdade, é um efeito projetado posteriormente (KSA XIV 15 [90]); no caso paradigmático da dor, ela é projetada numa parte do corpo sem ter ali a sua sede, de maneira que vemos numa picada a causa de uma dor transmitida ao cérebro, que, na verdade, é ali produzida, e não no local da picada. De modo semelhante, buscamos a causa de um pensamento antes de ele nos entrar na consciência (XIV 15 [90]) ou, mais ainda, somente por isso, por ele ter entrado numa cadeia causal, ganha “visto de entrada” e, de impulso infraconsciente que era, ele se torna consciente.

Assim, toda nossa “experiência interior” seria dependente da busca de causas para estímulos nervosos, não percebidos pela consciência: se algum deles se impor, a ponto de fazer com que se procure sua causa, só assim ele terá sua representação consciente. Ora, para que causas sejam buscadas, é preciso que tal estímulo seja traduzível numa linguagem já conhecida pelo indivíduo, ou seja, a mesma linguagem usada para estados que anteriormente se deram; estes nunca são idênticos ao estado a se produzir, contudo, pela linguagem, fazem-no “assemelhado” – caso contrário, ele não entraria no registro consciente. E além do mais, eles são exteriores e, como tais, irrefletidamente se tornarão modelos para se pensar estados interiores e, com uma linguagem afeita ao seccional, à superficialidade, equivocadamente se intentará interpretar o profundo e insondável das interações pulsionais.

Se, para Wittgenstein, tudo é uma questão da linguagem e de bem compreender a sutil diferença das categorias gramaticais, para Nietzsche, tudo, mesmo nossa percepção, mundo externo e “mundo interno”, nada mais é do que um texto (KSA XIV 15 [90]). Intentar ler esse texto tomando grandezas como se fossem dele apartadas – a exemplo de itens caros à modernidade, como “sujeito”, “ideia”, “interioridade” –, ou sem se dar conta de que se está a interpretar, é “falta de filologia” (KSA XIV 15 [90]). Contudo, o filósofo alemão não descarta a “boa filologia” – tanto que ele próprio a exerce −, como não se limita a ver cegueira num homem que, animal linguístico, de fato se encontra fadado a lidar com abreviações e secções do processo mesmo – ou seja, do texto – no qual se insere: no aforismo 21 de Para além de bem e mal, Nietzsche afirma que, de todo esse texto, a envolver “[...] causas, a sucessão, a reciprocidade, a relatividade, a condição, o número, a lei, a liberdade, o motivo, a finalidade” (JGB/BM § 21), somos tão-somente nós os criadores, “[...] e ao introduzir e entremesclar nas coisas esse mundo de signos, como algo ‘em si’, agimos como sempre fizemos, ou seja, mitologicamente.” (JGB/BM § 21). O homem, que, ao pretender dominar o mundo externo ou ao introspectivamente perceber seu “mundo interior”, ampliasse um pouco mais a consciência que engendrou, a ponto de se perceber a todo tempo criador de mitos linguísticos, não chegaria a propriamente se libertar da trama linguística em que se encontra – e dela se libertar não está em questão, ao menos enquanto ele se pretender consciente.

Contudo, um tanto teria mais domínio sobre ela, ao deixar de apenas repeti-la, reproduzi-la às cegas, trazendo perversamente a inconsciência a um âmbito que se pretende consciente, e de pleno e direto acesso a si mesmo; trazendo para um domínio insondável e singular o seccional e gregário da linguagem corrente. Para isso, ou se saberia criador da linguagem, dos anteparos, provisórios, do pensamento, e assim filósofo-poeta, ou bom intérprete do texto em que se insere, como bom filólogo. Como sabemos, Nietzsche, protagonizando o seu filosofar, foi ambas as coisas, num movimento que não é o das denunciadas interioridade e introspecção, nem traz consigo o peso das imagens mentais que nestas são projetadas. Leve, descarnado, isto é, solto de anteparos, dá-se a golpes de expressividade, e tanto pode olhar criticamente para os lastros da filosofia moderna quanto, positivamente, ser moto interpretante, ao filosofar.

 

5 Do Tauma à questão do significado: Wittgenstein

Se a filosofia nasce mesmo do tauma, como proferem Platão[7] e Aristóteles,[8] esse maravilhamento sabidamente era uma reação desconcertada – e podemos dizer “protossapiente” – ao estado de eterno vir-a-ser das coisas, mas revela a tendência do que se reconhecerá ser nosso entendimento, a querer estancar o vir-a-ser, aprisioná-lo em fotogramas, a querer buscar ali o que, afinal, subsiste, e subsiste por si próprio, sem a concorrência de fatores outros, externos, algo que se faça, assim, substância. Entre variadas feições e configurações, a filosofia assim procedeu por cerca de mil anos, e eis que conheceu a modernidade – ou a modernidade à filosofia. Na passagem para a filosofia moderna, vislumbrou-se que haveria um movimento que precede a busca por essências, qual seja, trata-se da pergunta pelo que posso conhecer. E subjazendo a esse “o que posso conhecer” estava o sujeito, observador, no caso de Descartes, já ativo, como no caso do sujeito transcendental kantiano.

Na filosofia moderna, de nomes como Descartes, Locke e Kant, o ato de conhecer passou a assumir uma primazia e magnitude que até então não possuía, pois, desde o início da filosofia, era suplantado pela questão do que existe. Tudo se passa como se a questão de “o que existe”, premente quando, na filosofia, a ontologia era primeira e cimeira, se fizesse substituir pela questão “o que se entende”, agora que a epistemologia assumia maior magnitude. E em mais uma grande viragem, passados mais de dois séculos, da filosofia moderna para a contemporânea, a tal questão da primazia conhecerá ainda outro um deslocamento, para uma célula ainda mais ínfima e mais próxima de nós, para uma dimensão que mais nos atribui atividade, a saber, a questão da atribuição de sentido e valor, para Nietzsche – como representante da corrente continental da filosofia contemporânea –, e a questão do significado, para Wittgenstein – enquanto representante, que aqui elegemos, da filosofia analítica.

Em ação nem sincronizada nem concertada, da parte de Nietzsche e Wittgenstein, cumpria esvaziar sentido e valor, por um lado, significado, por outro, dos traços e laços que o mantinham dependente do sujeito, essa pedra fundamental da filosofia moderna, e no lugar do sujeito adviria um conjunto de forças, ou impulsos valorativos em inter-relação, em Nietzsche, como adiviriam conceitos em inter-relação no próprio Wittgenstein. Com efeito, libertar o conceito de significado de aspectos que o mantinham atrelado ao conceito de sujeito, de uma consciência centralizadora, implicava libertar a questão do significado de um lastro mental, dos problemas provocados por uma concepção mentalista segundo a qual, para a compreensão de uma palavra, se fazia necessária a imagem mental que estaria a representá-la.

Por esse paradigma da filosofia moderna, seria bem dessa imagem, desse lastro mental e subjetivo, que a palavra receberia a sua significação. E, se nos referimos a “subjetivo”, de fato, sob a égide de tal filosofia tomada em sentido amplo, o significado seria restrito ao sujeito, no sentido de que só mesmo ele seria o portador de tal significado, o qual estaria situado em sua interioridade, em seu espírito. As palavras seriam os correspondentes de ideias, que – ressalte-se-lhe ainda uma vez –, nada mais seriam do que imagens na mente de um indivíduo e, então, uma mente individual e indevassada seria a responsável pelo significado das palavras. Sim, e como o significado das palavras remetia a processos mentais, a compreensão necessariamente obedeceria a critérios internos, privados, o seu acesso sendo franqueado unicamente ao sujeito.

Ora, com isso, o fenômeno da compreensão, o qual só pode ser aferido mediante balizas externas, na verdade teria seu cerne, seu caráter, seu jaez e, paradoxalmente, seu critério de aplicação, num processo mental de caráter subjetivo, insondável, imperscrutável. Se a filosofia avança por esforços de coerentização, conforme assim se deu na passagem da filosofia antiga para a moderna, o esforço de coerentização a franquear o limite da filosofia moderna para a contemporânea passaria, pela via de Wittgenstein, pela resolução desse paradoxo.

 

6 Tornando leve o significado

Em suas Investigações filosóficas, o projeto de Wittgenstein gira em torno do desnudamento de problemas filosóficos e metafísicos (por ele considerados pseudoproblemas) que se conflagravam tão-só pelo fato de alguns filósofos não respeitarem as regras gramaticais de um determinado jogo de linguagem (IF § 93). Essa desatenção às regras, às categorias gramaticais estaria bem na raiz das confusões filosóficas. Se as categorias aristotélicas diziam respeito ao modo como as coisas funcionam, se as kantianas, ao modo como a nossa mente funciona, em Wittgenstein teremos de novo, de certa maneira, categorias, mas sob outro estatuto, sob outro modo de uso, e isso significa que a questão das categorias na verdade remete a uma série de diferenças categoriais entre regra e aplicação, habilidade e exercício, estados ou experiências psicológicas e suas manifestações. E acerca do afloramento da questão do significado precisamente na filosofia contemporânea, para a filosofia antiga, o significado jazia dado no mundo, tributário de um cosmo finito, perfeito e cerrado em si mesmo; na filosofia moderna, por exemplo, em Kant, significado e regras linguísticas jazem dados na mente do sujeito; já em Wittgenstein, com a linguagem concebida como uso, como instituição, como prática (IF §§ 143 - 147), o significado das palavras estará correlacionado com o uso que delas se faz, e não com uma imagem mental, a qual solipsisticamente lhe subjazeria como peso e como cauda.

A cauda mental que se quis fazer pesar sob o significado, trazendo à filosofia a ameaça de um disseminado psicologismo, foi evento que se deu uma vez que persistente no filosofar é a busca por essências – mesmo quando passada a vigência do paradigma ontológico das filosofias antiga e medieval. Persistiu, na filosofia moderna, da ideia cartesiana e lockeana como um conteúdo da mente e do pensamento humano, a impressão de que o entendimento se dava ao sabor de uma célula sob a qual haveria um interior escondido de todos, só não de seu detentor: um estado mental. O entender seria um estado ou processo interior, passível de ser reconhecido introspectivamente. Em contraposição a isso, Wittgenstein proporá, no conceito de entendimento – âmago do conhecer, que aqui realçamos como paradigma da filosofia moderna – uma proximidade com o conceito de habilidade (IF §§ 143 - 148). Para o filósofo austríaco, o ato de compreender remeteria não à descrição de um estado anímico, mas a uma ação compromissada com operações futuras: trata-se o entendimento de agir de acordo com uma regra (IF §§ 143 - 155). Por exemplo, ao aprendizado de uma série matemática não se tem, a lhe corresponder, uma imagem mental, mas uma regra de aplicação – se se sabe a regra de uma série, pode-se continuá-la ao infinito (IF §§ 148 - 150).

Entretanto, como se aprende uma regra? Ela está ancorada em habilidades pré-conceituais, em habilidades pré-conceituais brutas (IF §§ 143 - 47) e por uma prática continuada – treinos, possibilitados pela existência de reações-padrão, reconhecimentos gerados por inclinação (“[...] e seu reconhecimento dessa imagem consiste no fato de que está inclinado a considerar um caso dado de uma maneira diferente”, IF § 144) –, e, por tal prática continuada, geram-se habilidades conceituais. Mais precisamente, ter-se-iam reações a habilidades normais de um tipo padrão, o reconhecimento de padrões recorrentes, daí se seguindo habilidades discriminatórias, chegando-se, assim, sempre por uma questão de graus, à maestria de uma técnica (IF §§ 145-148). Com isso se evita ou se corrige o caso de “[...] uma pessoa que, por natureza, reagisse a um gesto de apontar com a mão, olhando na direção que vai da ponta do dedo para o pulso em vez de olhar na direção da ponta do dedo para fora.” (IF § 185).

 

7 Um problema de diferenciação categorial

A filosofia, preocupada em supor a palavra como item a correlacionar, sempre da mesma forma, objeto e imagem mental, até Wittgenstein parece não ter entendido que conhecer, entender, “ser capaz de fazer” são atos categorialmente diferentes dos estados mentais: não são experiências que se passam com o indivíduo por sob uma duração determinada, e sim são ações pautadas por usos, as quais, por sua vez, se assentam por meio de hábito, incrustado, por seu turno, como estávamos a dizer, em experiências brutas. Sim, Wittgenstein não é behaviourista, porém, nega que o entendimento seja um estado mental ao modo de um estado de alegria, de excitação intensa ou de sentir-se deprimido. Esses últimos são, justamente, estados que se prolongam no tempo, que podem ser interrompidos e continuados depois, terminados pela perda de consciência ou interrompidos pelo sono.

No entanto, pode um interlocutor acrescentar que um ato de entendimento, como o de conhecer o ABC, como se tem na seção 149 das Investigações filosóficas, é um estado do aparelho psíquico, um estado disposicional do cérebro. Sim, mas ocorre que o critério para o conhecer e se saber se se conhece o ABC é o desempenho, não o aparelho psíquico (IF § 149). O entendimento, se não é um estado interior ou um processo observado em foro íntimo, tampouco será um dos processos que o acompanham, como o de um mecanismo subjacente à mente (BAKER; HACKER, 2005, p. 323).

Pela natureza do filosofar, antigo ou moderno, de irrefletidamente buscar essências, pressupor um interior escondido e elos intermediários a mascarar sua incompreensão, mesmo ao se propor que o entendimento se dá à medida que o pensamento é guiado por regras – como faz Wittgenstein, em muitas seções das Investigações filosóficas –, o “pensamento guiado por regras” tenderia a ser assolado por equívocos. É por isso quem nas seções §§ 156 - 78 da obra, Wittgenstein apresenta a experiência da leitura – o exame da leitura concebido como maestria – enquanto experiência prototípica do entendimento (BAKER; HACKER, 2005, p. 333). Desde a regra do alfabeto e da formação das palavras, passando pela comparação de letras com rabiscos, pelo caso de nossa sensibilidade à grafia alterada e, mais, pela familiaridade tanto com a imagem visual quanto com o som de uma palavra, e ainda pela comparação do ato de ler com o de fingir ler, ao assim proceder ao exame da leitura o filósofo austríaco elucida a natureza do entendimento como habilidade, ao tempo mesmo que busca destruir equívocos, entre mentalistas e material-mecanicistas, os quais se imiscuem na concepção do pensamento guiado por signos.

A seção 156 desnuda a tentação de se pensar o ato de ler como uma atividade consciente especial da mente: “Ora, o que ocorre quando ele, por exemplo, lê um jornal? – Seus olhos deslizam – diríamos – ao longo das palavras impressas; ele as pronuncia – ou as diz apenas para si próprio.” (IF § 156). Imagens alternativas para a experiência da habilidade são a partir daí arroladas, por exemplo, a de se ler com o sentimento do “agora eu leio” (IF § 157) pela via mecanicista – de um mecanismo interno ou neural – ou como atividade do cérebro ou do sistema nervoso, casos estes em que se confundem questões filosóficas com científicas (BAKER; HACKER, 2005, p. 335) – “[...] mas isto não se deve ao nosso conhecimento demasiado escasso dos processos que se dão no cérebro e no sistema nervoso? Se os conhecêssemos mais exatamente, veríamos quais ligações foram produzidas pelo treinamento.” (IF § 158). São tentativas, dispositivos que Wittgenstein apresenta e rechaça, como rechaça, de modo geral, a tentativa de uma imagem mecânica neural da habilidade para a leitura – o caso da “máquina viva de leitura” (IF § 157), supervisionada por um treinador: “[...] agora ele leu essa palavra, agora a ligação de leitura foi produzida.” (IF § 158).

De §§ 159 a 161, tem-se um retorno do modelo mecanicista para o mentalista, (BAKER; HACKER, 2005, p. 336), com o foco se direcionando a experiências que acompanham a leitura, desveladas, porém, como não sendo suas condições necessárias nem suficientes, como não sendo critérios para a leitura – “[...] mas se refletirmos sobre isso, estamos tentados a dizer: o único critério efetivo de que uma pessoa lê é o ato consciente do ler.” (IF § 159). Ora, em que pese o mentalista dizer que o real critério de leitura é privado e mental, tal critério deve ser diferente das experiências de leitura, tem de ser público. Há ainda a tendência em se arrolar experiências acompanhantes, as quais não são necessárias nem suficientes: o que acompanha a leitura não é por ela responsável como em “[...] se apresentarmos uma série de signos escritos [...] a uma pessoa que se encontre sob a influência de uma certa droga [...]” (IF § 160).

O problema ganha dimensão adicional, ao se evidenciar a inexistência de um critério nítido para se distinguir “[...] o recitar de cor o que se deve ler” e “[...] o caso de se ler cada palavra letra por letra.” (IF § 161 – tradução ligeiramente modificada). No § 162, já se trata do problema de como a regra entra na atividade da leitura, subvertido no problema da busca de conexões para mediar a atividade: entre fatos operativos (letras) e a ação guiada por regras – como as regras entram na atividade de leitura e a influenciam? – tende-se a querer ver uma conexão associacionista, mentalista e, ao mesmo tempo, mecânica: “Alguém lê quando deduz a reprodução do modelo” (IF § 162, grifo nosso). Intenta-se aí introduzir um componente normativo: “[...] lê-se quando se deduz uma cópia de um original.” (IF § 162, grifo nosso). Ocorre que, como o filósofo logo dirá, deduzir e ler são conceitos com semelhança de família entre si, de modo que esse recurso não revela a essência de nenhuma atividade mental – “[...] o essencial da dedução não estava oculto sob a aparência desse caso, mas essa ‘aparência’ era um caso da família dos casos de dedução. E do mesmo modo, empregamos também a palavra ‘ler’ para uma família de casos.” (IF § 164).

Com a mesma intenção de desfolhar a alcachofra para encontrá-la, a verdadeira (IF § 164), na seção 163, observa-se a regra como um intermediário, este que não se sustenta para dar sentido ao funcionamento daquela. Tem-se uma “dedução conforme a tabela” na qual a palavra “deduzir”, sem ter significação, parece se dissolver no nada (IF § 163). Em § 165, em mais uma tentativa de caráter mentalista da parte de seu interlocutor, a leitura é pensada como um processo particular, uma atitude consciente especial da mente: “Mas ler – diríamos – é de fato um processo inteiramente determinado!” (IF § 165), como se a palavra escrita nos fizesse lembrar do som que a ela corresponde (BAKER; HACKER, 2005, p. 339).

E seguem-se daí, até o § 178, experiências como palavras vindas de um modo especial, como houvesse ali experiência acompanhante – “Disse que, quando se lê, as palavras faladas vêm de um ‘modo especial’; mas de que modo?” (IF § 166) –; dando-se por um processo determinado, como se a compreensão fosse de natureza mental – “[...] ao ler, dá-se sempre um processo determinado que reconhecemos” (IF § 167, grifo nosso); (BAKER; HACKER, 2005, p. 341) têm-se incursões sobre o modo como a leitura é guiada – “[...] o olhar desliza, [...] e no entanto não escorrega” (IF § 168, grifo nosso) ou, como é vivenciada – “[...] consideremos a vivência do fato de ser guiado” (IF § 172; grifo nosso); aventa-se uma experiência de causação, inspirada na teoria causal do significado (BAKER; HACKER, 2005, p. 342) – “Mas quando lemos, não sentimos uma espécie de causação do nosso falar pelas imagens nas palavras?” (IF § 169, grifo nosso); ou uma influência: uma influência das letras ao ler, com o modelo mecanicista já se imiscuindo no modelo mentalista (BAKER; HACKER, 2005, p. 343) – “[...] jamais chegaríamos a pensar que sentimos a influência das letras ao ler, se não tivéssemos comparado o caso das letras com o dos traços arbitrários” (IF § 170, grifo nosso); propõe-se também uma sugestão, como se as palavras escritas intimassem o som (BAKER; HACKER, 2005, p. 344) – “[...] poderia dizer que a palavra escrita me sugere o som.” (IF § 171, grifo nosso).

Já o ato de traçar seria uma vivência com cautela, deliberada – “O que é a vivência da cautela? [...] É justamente uma vivência interior determinada” (IF § 174, grifo nosso), e ocorre que também o deliberadamente se dá sem a tão buscada experiência interna (BAKER; HACKER, 2005, p. 347) e, ao se fazer uma cópia de um traçado sobre a folha de papel, invoca-se a experiência de ser guiado, influenciado por algo – “‘Pois, sem dúvida’, digo-me, ‘fui guiado’. É só agora que a ideia dessa influência etérea, intangível, se apresenta” (IF § 175, grifo nosso), e qualquer que seja o nome dado a essa experiência, está-se a interpor uma entidade; vivem-se influências (IF § 176); experimentam-se motivos – “[...] diria: ‘eu vivencio o porquê’” (IF § 177), como se houvesse um fenômeno vivido e como se o entender fosse provocado pela intermediação de uma imagem mental.

No § 178, Wittgenstein conclui que o movimento e a sensação em questão – ao ler, imitar um rabisco e, por extensão, compreender ou conhecer – não contêm em si “a essência do conduzir” e, no entanto, a designação de conduzir –, de se postular uma influência, uma deliberação, um “movimento-‘guia’” – vêm impor o seu uso (IF § 178). Trata-se, enfim, com Wittgenstein, de fazer o movimento oposto ao de Sócrates e Platão, trazendo o significado dos termos de supostas Ideias, convertidas em essências, ocultas, para que venham coincidir com o que é menos oculto que um exemplo, com o não oculto e também isento do lastro mental tão caro à filosofia moderna. Trata-se enfim, de dissolver as miragens linguisticamente criadas e fazer o significado coincidir com o seu uso.

 

Considerações finais

Esse “momento Wittgenstein” que assim procuramos evidenciar, como autenticação de uma migração de paradigmas, como uma “consciência da passagem” da filosofia moderna para a contemporânea, revela que a filosofia – filosofias antiga e moderna, em traços muito amplos – tendeu sempre a buscar essências, a pautar-se pela impressão de que há um interior escondido de todos, a buscar ou postular itens intermediários, explicatórios. Se a filosofia moderna coerentizara a antiga com sua mudança de matriz ontológica para epistemológica, da antiga trouxera a busca de se ancorar em essências, a tendência a procurar ou postular os tais itens intermediários e explicatórios.

Tudo se passa como se o intelecto, então, em vez de desvelar, acrescentasse entidades, para com elas fazer frente à sua própria ignorância. Ora, se ler não é meramente pronunciar os fonemas que se sucedem, ao se ver as palavras apropriadas, o “não é meramente” converte-se num incômodo não saber e numa busca por uma experiência conectora especial ou que distinguiria, por exemplo, a leitura do fingir ler. Daí a própria noção da normatividade, proposta por Wittgenstein, para dar conta da questão do significado, ter sua compreensão ameaçada por uma irrefletida interposição de entidades: pelo viés mentalista, mecanicista ou por um entremeio de ambos, como se viu, para essa visão seguir uma regra tenderá a ser, equivocadamente, interpor entre ela e quem a segue a experiência do ser por ela guiado, um ato de “deduzir”, como se este não fosse quase ler, um ser influenciado, um motivo para fazê-lo, um porquê.

Como intentamos fazer ver, o que entendemos ser chancelas, ritos de passagem da filosofia moderna à contemporânea, tanto em sua feição continental quanto analítica – um certo Nietzsche, um certo Wittgenstein –, teria algo de revelador acerca do movimento próprio da filosofia e do próprio entendimento humano. Ante o que é processo, ante o que é simplesmente um fazer-se, um dar-se, um seguir uma regra pela lembrança de um evento passado, com vistas ao domínio de um evento futuro, converte-se na busca por um cerne oculto, por uma razão oculta, contanto que fixa, contanto que provida de significado – significado esse dado pelo ser humano que ali pretendeu ocultá-lo e encontrá-lo como sentido. A cada incompreensão, um elo intermediário, a cada não saber, uma invenção, ou um irrefletido imiscuir de algo, a cada imediaticidade, a mediação do mediato, a cada processo, a fixidez que explica o processo, a cada ausência de sentido, a postulação do oculto – ou a cada fazer-se, um ente que faz. Não por acaso, a filosofia buscou a arché, o reino das ideias platônicas, as formas aristotélicas. Não por acaso, a partir de Porfírio, se travou a querela dos universais. E não por acaso, a pretensa emancipação da filosofia moderna se deu à custa da ideia, que, para Descartes ou Locke, traz consigo um lastro mental no qual essa mesma filosofia se embrenhou, crendo-se de posse de uma interioridade redentora.

Desse modo, o mito, a fabulação da interioridade moderna seria a face epistemológica do essencialismo antigo e medieval. Por certo que Nietzsche e Wittgenstein trilham caminhos bastante divergentes, diante do que, afinal de contas, podemos interpretar como o quadro acima. Da parte de Nietzsche, o fôlego, abrangência de visão, o tecer relações e correlações. Da parte de Wittgenstein, a precisão e a clareza da proposição, o abster-se. Num caso se tem a linguagem a voltar-se sobre si mesma em busca do estilo pelo qual o indivíduo singular expressará suas tensões e intenções, que outrora o fizeram postular o céu, o etéreo, o transcendente. No outro caso, a linguagem a vergar sobre si em busca de a si mesma ver com clareza, de distinguir gramaticalmente suas categorias, desfazer falsas construções e falsos problemas, e, no mais, silenciar.

Mas num caso como no outro, têm-se as proverbiais filosofias antiga/medieval, moderna, contemporânea, a passar das coisas do mundo ao sujeito e deste para os modos de expressar-se, ou então das essências para a interioridade moderna e desta para o ato de expressar – ou de simplesmente designar. Pela via do expressar ou do revelar, pelo gesto expressivo como pelo uso, à linguagem, em filosofia, tem mesmo cabido a última palavra.

 

LANGUAGE AND DENOUNCEMENT OF INTERIORITY IN NIETZSCHE AND IN THE PHILOSOPHICAL INVESTIGATIONS OF WITTGENSTEIN

 

Abstract: The purpose of this article is bringing to light the convergence between two diverging modes of overcoming the very paradigm of modern philosophy, namely, the interiority of the subject as an epistemological milestone, and thus emphasizing the rite of passage from a modern philosophizing to a contemporary one. This process will be addressed according to the strand known as “continental philosophy”, with Nietzsche, equated with a hermeneutics, and to the “analytical philosophy” or anglo-saxon philosophy, with Wittgenstein (here the Wittgenstein of §§ 143 - 78 of Philosophical Investigations), equated with a philosophy of language. In both cases we will put into question the conditions underlying the thinking consciousness, transparent to himself and with access to his own grounds and contents (Nietzsche), and an interiority approached most of times by a mentalistic bias, that relates meaning to entities or mental processes (Wittgenstein). In this way, subject and act of thinking, instead of being taken as a core, are unveiled as functions of their very conditions – condition of survey, for Nietzsche, conditions of practical experience, for Wittgenstein.

 

Keywords: Sign. Will to power. Interpretation. Use. Rules.

 

Referências

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Recebido: 07/01/2021

Aceito: 03/3/2021

 


 

 


 

 



[1] Professor do Departamento de Filosofia da Universidade Estadual do Centro-Oeste (unicentro), Guarapuava, PR – Brasil. Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e membro do Grupo de Estudos Nietzsche (GEN). ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0251-645X. E-mail: saulokrieger@hotmail.com.

[2] As citações das obras e fragmentos póstumos de Nietzsche virão no corpo do texto e passarão a ser grafadas da seguinte forma (inserindo-se a abreviação do original alemão e do português): “JGB/BM” para Além de bem e mal; “FW/GC” para A gaia ciência, acrescendo-se o número do aforismo (daí se ter, p.e., “FW/GC § 354”); “GM/GM” para Genealogia da moral, e neste caso acresce-se também o número da dissertação (p. e., “GM/GM II 12”). No caso dos fragmentos póstumos, são identificados mediante o número do volume da KSA (Kritische Studienausgabe) mais a numeração padrão codificada por Colli e Montinari (p. e., “KSA XII 2 [148]”).

[3] Os impulsos devem ser compreendidos como (1) processos e em sua dimensão intrinsicamente relacional – eles não existem isoladamente; (2) sempre instáveis, provisórios e decomponíveis, opondo-se a todas as formas de fixidez; (3) se são tirânicos e querem tão-só a sua própria satisfação, no caso dos organismos animais e humanos, é a interação entre eles que se faz condição de existência; (4) seu estatuto é infraconsciente e, longe de ter um caráter cego em sua interação, esta é regida pela dimensão intrinsicamente interpretativa de todo e qualquer impulso − e a interpretação, como veremos, será uma noção importante em sua relação com a concepção de signos, segundo Nietzsche. Embora presente na passagem que inaugura as referências do filósofo aos signos, a noção de impulsos não tornará a aparecer em nosso percurso aqui, já que a ideia de volatilidade dos signos é apresentada na Genealogia da moral II § 12, onde Nietzsche não os conjuga à ação dos impulsos, mas à do acontecer e à de vontade de potência, à qual, aliás, os impulsos são redutíveis (XII 40 [61]). Para dar conta da relação dos signos com a linguagem para comunicação, a qual acaba por engendrar a consciência (Bewußtsein), somos remetidos à Gaia ciência § 354, onde a ação dos impulsos é apenas pressuposta.

[4] A referência de fundo aqui é à hipótese de vontade de potência, que aparecerá a seguir.

[5] A vontade de potência, ao contrário do que pode parecer à primeira vista, não deve ser entendida como desejo de mando ou dominação, aspiração ao poder, pois tal conotação revelaria, antes de mais e de maneira flagrante, não potência e sim fraqueza, falta, uma vez que remeteria à ânsia por algo que não se tem ou não se tem de maneira suficiente; em segundo lugar, incidiria numa dualidade, isto é, de um lado, se teria vontade, desejo, aspiração, e, de outro lado, o objeto ao qual se visa − e dualismos como esses e muitos outros, até por reconhecer seu subsolo comum, Nietzsche terminantemente recusa. Portanto, com essa vontade, não se aspira a algo – atributo, estado... – exterior ou separado de si, mas ela se identifica a um irresistível movimento de crescimento (KSA XIII 11 [55]), um “sentir-se mais” (JGB/BM § 220), um processo de expansão (FW/GC § 349): se há ultrapassamento, e o há, este não se dá para algo outro, sendo um ultrapassamento de si. Trata-se de uma hipótese que almeja dar conta da dinâmica de todo acontecer, seja ele orgânico, seja inorgânico.

[6] Mantém-se aqui a ideia de mito como interpretação ingênua e simplificada de algo e também o equívoco engendrado por tal interpretação.

[7] “Pois o que estás a passar, o maravilhares-te, é mais de um filósofo. De facto, não há outro princípio da filosofia que não este, e parece que aquele que disse que íris é filha de Taumanto não fez mal a genealogia. Mas compreendes já que estas coisas são assim, de acordo com o que afirmamos que Protágoras dizia, ou não?” (PLATÃO. Teeteto. Trad. Adriana Manuela Nogueira e Marcelo Boeri. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, p. 212).

[8] “De fato, os homens começaram a filosofar, agora como na origem, por causa da admiração, na medida em que, inicialmente, ficam perplexos diante das dificuldades mais simples; em seguida, progredindo pouco a pouco, chegaram a enfrentar problemas sempre maiores, por exemplo, os problemas relativos aos fenômenos da lua e aos do sol e dos astros, ou os problemas relativos à geração de todo o universo. Ora, quem experimenta uma sensação de dúvida e admiração reconhece que não sabe.” (ARISTÓTELES. Metafísica. Trad. Marcelo Perine, 2. ed. São Paulo: Loyola, 2002, p. 11).