Emmanuel Levinas, leitor de Martin Buber.
Referência do texto comentado: Carvalho, José Maurício de; Tomaz, Mauro Sérgio de Carvalho. Martin Buber e a fenomenologia: o encontro no discurso filosófico e psicológico. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, vol. 43, n. 4, p. 183 –201, 2020.
Emmanuel Levinas se reconhece devedor de Martin Buber, como o confessa em Entre Nós, primeiro no que diz respeito à maneira como Buber pensa a alteridade, sob a categoria do Tu, mas também em suas intuições sobre o tipo de conhecimento que se deixa ver, no encontro Eu-Tu. Sua admiração por Buber, no entanto, não o impede de se distanciar dele, no que diz respeito à reciprocidade do Eu-Tu, ao formalismo e à compreensão buberiana de ética, propondo outra compreensão mais radical da alteridade, a partir da ideia do Infinito. A alteridade buberiana se manifesta a partir da relação Eu-Tu que - reconhece Levinas - Buber descreve com originalidade, em oposição à relação Eu-isso que caracteriza a relação sujeito-objeto.
É o Tu eterno que torna possível o encontro do tu humano, embora o humano também possa ser tratado como objeto. Levinas vê uma aberração nessa segunda possibilidade! Buber visualizou, com clareza, que o humano consiste em estar junto a outro homem, no entre dois da relação, não no homem perdido na massa, nem nele tomado em sua solidão (LEVINAS, 1987, p. 35). A divergência de Levinas está em que Buber caracteriza essa relação pela reciprocidade: “o eu diz tu a um tu enquanto que este tu é um eu podendo lhe responder tu”, o que implica numa igualdade inicial entre o interpelante e o interpelado, constata Levinas (LEVINAS, 1987, p. 35). A reciprocidade destrói a altura, pois, para Levinas, a relação ética é dual e assimétrica, isto é, o outro é mais frágil e mais vulnerável do que eu e, assim, ele está em condições de me desinstalar de minha autossuficiência e autonomia, exigindo que eu aja em socorro dele. Se o outro é igual a mim, ele não apela à minha responsabilidade por ele.
Buber admite que a relação entre tanto um termo como o outro (Eu e Tu) precede os próprios termos, ela se dá no “entre os dois”. Nesse ponto, Levinas reconhece o mérito de Buber , o qual se recusa a conceder ao ato intelectual do saber sua primazia, mostrando nisso sua sintonia com a filosofia existencialista. Buber evidenciou que a significação última da relação Eu-Tu não é a verdade, mas sim a “socialidade irredutível ao saber e à verdade” (LEVINAS, 1987, p. 36). Com isso, conclui Levinas leitor de Buber, toda relação com o ser é redutível a uma experiência e permanece modalidade desse ser, ao passo que a relação Eu-Tu deixa ver que a socialidade é irredutível à experiência da socialidade. Eu-Tu é retidão e não se dobra sobre ela mesma, como o esse do ser que sempre se dá, isto é, que está devotado à compreensão do ser (LEVINAS, 1987, p. 37). “No começo é a relação”, intuição central de Buber, e essa relação se realiza sob o modo concreto da linguagem. “A palavra é o entre dois por excelência” e “o diálogo funciona não como uma síntese da relação, mas como seu desdobramento mesmo” (LEVINAS, 1987, p. 38). Essa relação que se estabelece através da linguagem se revela como uma transcendência irredutível à imanência. Descoberta genial de Buber, da qual se serve Levinas!
No entanto, a questão de Levinas, apesar de reconhecer sua dívida para com Buber, é como essa transcendência pode se transpor ao plano da linguagem, sem aí se degenerar (LEVINAS, 1987, p. 39). De toda maneira, o que Levinas louva em Buber é o fato de ele ter colocado em questão a inteligibilidade do fundamento, assim como a exclusividade da objetivação e da tematização como as únicas fontes do sentido (LEVINAS, 1987, p. 44). Levinas questiona justamente essa correlação entre o ser e o conhecimento, pois “pensar o ser é pensar à sua medida e coincidir consigo mesmo” (LEVINAS, 1987, p. 45).
Aqui se situa toda a desconfiança de Levinas em relação à linguagem ontológica que ele acusa de destruir a transcendência do outro. Assim, Levinas questiona Buber, perguntando se a linguagem ontológica do dito respeita a imediaticidade da relação Eu-Tu. O dizer, em tensão com o dito, alude a uma dimensão da linguagem que não é absorvida pelo dito, mas que o excede. Isso fornece a Levinas a ocasião para ele se perguntar se a imediaticidade do Eu-Tu buberiano, além de escapar do recurso aos sistemas conceituais do mundo e da história, não está na urgência mesma de minha responsabilidade que precede todo saber (LEVINAS, 1987, p. 49). Para Levinas, a grande descoberta de Buber está justamente nessa irredutibilidade da associação com outrem a qualquer saber prévio que não é nem representação, nem saber, nem ontologia. Eis a dimensão que Levinas denomina dimensão ética, dimensão de sentido, onde o homem encontra outro homem, nível em que Levinas visualiza a responsabilidade de um pelo outro. A ética levinasiana começa justamente diante da exterioridade do outro, diante do outro, cujo Rosto me engaja na responsabilidade por ele da qual não tenho como escapar.
Por conseguinte, a ética é essa nova ordem de sentido que Buber teria intuído, o Rosto é a significação mesma, e Buber estaria ainda preso à ontologia e aos seus termos aos quais ele recorre para descrever a relação ao Tu, como se o ser fosse o alfa e o ômega do sentido (LEVINAS, 1987, p. 51). A partir da descrição buberiana da relação Eu-Tu é que Levinas encontra um ser primordial dotado de uma significação de socialidade que obscurece a clareza do dado e de seu ser, uma “relação que é dés-intér-essement, desenraizamento fora do ser, retidão do élan sem retorno sobre si” (LEVINAS, 1987, p. 52). A significação do Rosto humano não se dá a compreender em nenhum conceito. Entende-se então o caminho que toma Levinas, ao pensar separados o mundo e o outro, o saber e a socialidade, o ser e Deus (LEVINAS, 1987, p. 55).
O mundo não é uma forma de alteridade, pois o sujeito não se situa no mesmo mundo das coisas, dos objetos e dos seres. Não há aí relação como a relação com a ferramenta que eu utilizo para lidar com as coisas. É por isso que, para Buber, o mundo das coisas deixa de ser um Isso e pode se apresentar como um Tu para o eu que então assim o percebe. Essa posição buberiana é inaceitável para Levinas, que a vê como muito próxima do paganismo. Logo, Levinas propõe uma dessimetria entre os dois tipos de relação: a experiência (relação de conhecimento) e o encontro. Levinas recusa claramente essa correlação entre sujeito e objeto que dá ao sujeito cognoscente poder sobre o objeto conhecido.
Embora partilhe da crítica buberiana ao estatuto objetivo do conhecimento, vendo a experiência e o conhecimento que derivam dessa relação Eu-isso como objetivação, Levinas vai além de Buber, ao rejeitar caracterizar essa relação pela reciprocidade. De acordo com Buber, o Tu vem ao eu de fora do mundo das coisas, mas Levinas priorizará a altura do Outro sobre o sujeito intencional. A reciprocidade não permite, segundo a compreensão de Levinas, se perceber plenamente como sujeito, mas é necessário sair dessa relação objetivante, a fim de que se deixe ver uma transcendência não empírica. Ambos concordam que o sujeito só se perceba a partir da alteridade, ou seja, há uma relação que precede a percepção de si mesmo como sujeito, todavia, Levinas concede primazia ao dizer sobre o dito ou ao Outro sobre o Eu.
Para Levinas, foi Buber quem deu o primeiro passo em direção à saída de uma filosofia da consciência centrada no Eu, tradição predominante na filosofia ocidental que Levinas não se cansará de denominar “egologia”, incluindo nessa tradição seu mestre Husserl, para quem o eu é consciência representativa. Buber foi pioneiro, na fenomenologia, em pensar uma subjetividade como relação que lança o eu em direção ao outro, sem se fechar numa interioridade. O encontro, destarte, não pode ser apreendido ou compreendido como representação, visada intencional ou ainda como conhecimento. O Rosto não é fenômeno e escapa à representação. Partindo de Buber, Levinas o ultrapassa, ao propor uma separação radical entre o sujeito e o Outro como Infinito.
Sendo o encontro ético uma relação de único a único, entre um eu singular e um Outro inassimilável pelo eu, o diálogo deixa de ser uma coincidência entre as duas partes, ensejando que a responsabilidade nasça, a partir da interpelação do Outro ao eu. Ao estabelecer a reciprocidade como condição do diálogo, Buber perdeu a característica fundamental da relação ética. Na reciprocidade, Buber concebe o homem como tendo necessidade de Deus, mas Deus também como precisando do homem, para continuar sua obra de criação. Entretanto, essa necessidade humana faz o sujeito entrar em relação com uma transcendência, reduzindo-a a si. Ao contrário de Buber, Levinas descreve a subjetividade a partir de dois movimentos centrais: a necessidade que caracteriza o corpo, que, ao ser preenchida, desaparece, e o Desejo que, sendo de ordem metafísica, não pode jamais ser preenchido. É o Desejo que preserva e respeita a transcendência do Outro. O Infinito, para Levinas, vem de si mesmo e não tem necessidade de nada que não dele mesmo. O Outro pode exigir tudo de mim, mas eu não posso exigir nada dele. Como se diz frequentemente entre os intérpretes de Levinas: o que eu tenho a ver com o outro é meu problema, mas o que ele tem a ver comigo é problema dele.
A separação, termo levinasiano que se opõe à totalização, preserva tanto a transcendência do Outro como a singularidade do Eu. Levinas não admite nenhum movimento de retorno a si, como na identidade, conceito dominante na compreensão ocidental da subjetividade, contudo, ele prefere o termo substituição, em que o sujeito se coloca no lugar do outro, esquecendo de si. A reciprocidade é ainda retorno do sujeito sobre si mesmo, confundindo sujeito e objeto, apagando com isso a dimensão ética da relação com o Outro. É esse formalismo da relação Eu-Tu buberiana que impede a ética. Buber teria colocado o homem e as coisas no mesmo plano, apagando a transcendência. E isso se confunde com a Idolatria!
REFERÊNCIAS
LEVINAS, Emmanuel. Hors Sujet. Paris: Fata Morgana, 1987.
LEVINAS, Emmanuel. Entre Nous. Essais sur le penser-a-l’autre. Paris: Éditions Grasset & Fasquelle, 1991.
LEVINAS, Emmanuel. Noms propres. Paris: Fata Morgana, 1976.
ZIELINSKI, Agata. Levinas. La Responsabilité est sans pourquoi. Paris: PUF, 2004.
[1] Doutor em Filosofia Contemporânea pela UERJ, com estágio pós-doutoral na Universidade Paris X (Nanterre/La Défense) e pesquisa sobre ética ambiental a partir de Levinas e Jonas. Professor associado I da Universidade Federal Fluminense, campus de Volta Redonda. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-3505-2954. E-mail: ozanan.carrara@gmail.com.