Comentário: Islãs, Ocidentes e obsessões

 

Diego dos Santos Reis[1]

 

Referência do texto comentado: Costa, Daniel Padilha Pacheco da. Houellebecq contra Michel Foucault: representações contemporâneas do Islã político na França. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, vol. 43, n. 4, p. 134 –156, 2020.

 

À ocasião de um encontro em Paris, em 2003, que reuniu o filósofo Jacques Derrida e o professor argelino Mustapha Chérif, para um diálogo em torno do Islã e do Ocidente, Chérif destacaria um ponto importante, no que diz respeito à perspectiva ocidental do islamismo. Constata o intelectual muçulmano que, “[...] do lado europeu, os estudos sobre o islã são vistos sob o ângulo da segurança: esse olhar redutor favorece o amálgama e o descrédito, e reduz o terceiro ramo do monoteísmo a uma miríade de ínfimos grupos” (CHÉRIF, 2013, p. 11). Diante da assertiva, interroga Derrida (apud CHÉRIF, 2013, p. 43-44):

Por que alguns no ocidente fecham-se ainda na construção de uma figura redutora do islã e de sua cultura do oriente, que consideram “subdesenvolvida”, à do ocidente, dita “desenvolvida”, segundo seus critérios arbitrários, procurando sempre impor pela força os seus valores?

 

“Há islãs, há ocidentes”, ressaltaria, por fim, o filósofo franco-argelino, para quem seria preciso questionar a que interesses servem as cristalizações unívocas dessas figuras, na medida em que essas construções têm evidentes reverberações na política internacional, utilizadas com frequência para o reforço da lógica interventiva, cujo fim, como sabemos, é legitimar os processos da dominação colonial e intensificar as malhas transnacionais de zoneamento e de repressão.

A multipolarização do mundo pós-Guerra Fria deslocou interesses geopolíticos e resultou em novas alianças e divergências. A perspectiva ocidental da teologia política do Islã, aproximada ao jihadismo e ao fundamentalismo religioso, transmutou a imagem do árabe-muçulmano em radical-religioso, apologeta de um niilismo apocalítico que assume os traços arcaicos do terror. Em consequência, os muçulmanos estariam fadados ao fatalismo irracional. Isso que Max Weber, ainda no início do século XX, anotaria em suas considerações sociológicas eurocentradas como um desvio “por completo de qualquer conduta de vida racional” (WEBER, 1981).

Talvez esse estranhamento tenha lugar porque o islã traz consigo concepções político-teológicas que desafiam o repertório político secularizado do ocidente e seus imaginários culturais. Há, ainda, a inconciliável aliança traçada pelo ocidente entre a democracia política e o islã. Evidentemente, essa incompatibilidade tem como pedra angular o descrédito conferido a qualquer prática de governo que não seja pautada pela suposta primazia do regime democrático liberal.

O artigo de Daniel Padilha Pacheco da Costa traz apontamentos importantes para esse debate, ao cotejar as representações do islã político no romance Submissão, de Michel Houellebecq (2015), e nos escritos sobre a Revolução Iraniana, de Michel Foucault. Ao articular suas “respectivas críticas às representações do establishment intelectual francês sobre o Islã político”, Costa expõe as incongruências entre as representações do islã no imaginário ocidental, tal como tematizadas por Houellebecq e Foucault, e o modelo supostamente indefectível de representação nas democracias ocidentais, em crise acentuada.

Escritos entre setembro de 1978 e abril de 1979, os nove artigos de Foucault sobre a revolução iraniana para o Corriere della Sera não deixam de denunciar, como salienta Costa, “a arrogância orientalista de todos aqueles que julgavam conhecer perfeitamente a religião e as sociedades islâmicas”. Se, de um lado, o entusiasmo do autor de Vigiar e Punir apontava para possibilidade de “transformação radical da nossa experiência”, via insurreição (FOUCAULT, 1994, p. 749), de outro, a proclamação da República Teocrática do Irã e a instauração do governo autoritário liderado pelo aiatolá Khomeini, que permaneceu no governo do país até a sua morte, em 1989, revelariam os limites do “sonho iraniano”. Todavia, é importante destacar, isso não invalida a potência ética e política da experiência insurrecional, tal como remarcada por Foucault, enquanto resistência às ações governamentais intoleráveis e irredutível à compreensão das lutas nos parâmetros da derrota ou do sucesso, sequer nos termos clássicos das revoluções.

A atitude crítica foucaultiana e o interesse pelo “enigma da revolta” iraniana evidenciam a tentativa de pensar a política por meio de outra chave, para além dos marxismos e dos liberalismos, a partir das contracondutas. A insurgência “de mãos nuas” emerge como acontecimento capaz de tensionar tanto as promessas dos modelos socialista e capitalista quanto as visões parciais dos orientalistas europeus e de suas representações canônicas do islã, cabendo ao intelectual, justamente, o papel daquele que realiza um diagnóstico do tempo presente pela estratégia da atitude crítica.

No que concerne às imagens e às ideias do oriente criadas pelo ocidente, Said (1998, p. xi, tradução nossa) já denunciava que “[...] as generalizações maliciosas sobre o islã se converteram na última forma aceitável de difamação da cultura estrangeira no Ocidente”, que, ao aliar os significantes do mal e do terror à cultura islâmica, forjaria uma autoimagem estratégica: a do ocidente heroico, que elege o mundo desencantado da razão, da tecnociência e da democracia liberal como o único modo de vida legítimo a ser difundido planetariamente.

Essa tática, aliás, não é nova, se considerarmos a crítica à visão onírica, islamofóbica e exótica do “orientalismo”, apresentada pelo próprio Said. A concepção do “choque de civilizações”, adensada na década de 1990 pelo livro do cientista político Samuel P. Huntington (1997), O Choque de Civilizações e a Recomposição da Nova Ordem Mundial, é paradigmática nesse sentido. Ao voltar-se para o debate acerca das identidades e diferenças culturais dos povos como fonte principal dos conflitos pós-Guerra Fria, Huntington enfatiza a esfera cultural como âmbito por excelência dos conflitos mundiais, em detrimento do campo ideológico ou econômico.

Houellebecq, em sua polêmica fábula política, nas trilhas de Huntington, parece prefigurar via literatura não só o declínio da civilização ocidental, mas dos valores hegemônicos que pautam o sistema político moderno. Ironicamente, a “espiritualidade política” tematizada no romance não repousa na experiência do sagrado, mas, na suposta salvação oferecida pelo islã para as inúmeras crises vividas pelas sociedades contemporâneas ocidentais, resgatando o sentido transcendente da dimensão espiritual, pela via da submissão absoluta a uma nova forma de vida, como já insinuado no título. E que é reiterado na própria epígrafe do livro de Houellebecq, em referência a Khomeini: “Se o Islã não é político, não é nada”.

A chave de compreensão dos conflitos intercivilizacionais não parece dar conta, entretanto, das especificidades das tensões geopolíticas que envolvem os povos orientais e ocidentais, além de homogeneizar as diferenças intraculturais. Sob a ótica do binarismo irreconciliável, a consequência imediata é a instituição de uma polarização redutora, incapaz de lançar um olhar crítico mais denso tanto para os fenômenos culturais quanto para os fenômenos políticos de modo integrado. E, ainda de forma mais restritiva, essa perspectiva fomenta a percepção homogeneizante segundo a qual a política extraocidental seria intrínseca ao sectarismo, por oposição à prática política livre e democrática do ocidente, amparada pelo sufrágio universal.

É preciso problematizar a abordagem redutora que pretende ler no islã político uma conexão necessária entre o fanatismo irracional e o dogmatismo cego ligados a valores intrínsecos da religião muçulmana exportados para a ordem política. A ironia do romance de Houellebecq, nesse sentido, reside justamente no fato de que a conversão final do protagonista ao islamismo significa, como frisa Costa, uma “renúncia à experiência religiosa enquanto tal”. É a impossibilidade de uma experiência religiosa efetiva que consolida, porém, o pragmatismo de quem reafirma os interesses mais mundanos na opção pelo islamismo: dinheiro e sexo.

Trata-se, na instigante leitura proposta por Costa, que contrapõe Houellebecq a Foucault, de tecer uma crítica ao universalismo e ao orientalismo europeus, por diferentes vias. Enquanto Foucault aponta para as novas possibilidades ensejadas pela subjetivação política da experiência insurrecional, Houellebecq desmonta a narrativa triunfante do ocidente através de uma fábula que questiona as instituições francesas e aponta a decadência dos valores das sociedades ocidentais. Evidentemente, os escritos de Foucault e de Houellebecq apresentam o islã politico de maneiras distintas, cujas perspectivas são tensionadas no artigo de Costa. Distopia teológica ou heterotopia política, cabe ao leitor, finalmente, avaliar o diagnóstico mais condizente à hora histórica.

 

REFERÊNCIAS

CHÉRIF, M. O Islã e o Ocidente: encontros com Jacques Derrida. Trad. Cleonice P.B. Mourão. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013.

FOUCAULT, M. Dits et écrits (1976-1981). Paris: Gallimard, 1994. v. 4.

HOUELLEBECQ, M. Submissão. Trad. Rosa Freire d’Aguiar. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015.

SAID, E. Covering islam: how the media and the experts determine how we see the rest of the world. Nova Iorque: Vintage Books, 1998.

SUKIDI, M. Max Weber’s remarks on islam: the protestant ethic among muslim puritans. Islam and Christian-Muslim Relations, Birmingham, vol. 17, n. 2, p. 195–205, 2006. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/09596410600604484 Acesso em: 14 abr. 2020.

WEBER, M. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira; Brasília: UNB, 1981.

 



[1] Pós-Doutorando na Universidade de São Paulo. Doutor em Filosofia pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Professor Adjunto da Universidade Federal da Paraíba. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6977-7166. E-mail: diegoreis.br@gmail.com.