Apresentação

 

Marcos Antonio Alves[1]

 

O ano de 2020 foi difícil, mas de muito aprendizado, apesar dos obstáculos. Atravessamos tempos difíceis. A pandemia trouxe novos desafios sociais e pessoais. Situações como a do isolamento social exigem mudanças de hábito, fazem emergir emoções e (re)direcionam a ação. Passamos a nos comunicar, a trabalhar, a viver à distância. Aprendemos que presença online pode até capturar um olhar apaixonado e atento, mas não substitui o afeto presencial, não favorece a vida em sua plenitude. Ainda assim, há vezes em que se faz necessária uma adequação às situações impostas pelas circunstâncias e substituir, por curto período de tempo, a presencialidade pela distância.

O vírus que se expandiu e nos ameaçou, cumprindo seu curso de vida natural, também impôs desafios em nossas atividades na Revista. A despeito de todas as dificuldades, conseguimos terminar o ano com ótimos resultados. Com criatividade, apoio institucional e, principalmente, participação dos colaboradores da Revista, terminamos o ano com saldo positivo. Publicamos alguns números com antecedência, diminuímos enormemente o tempo de avaliação e publicação dos manuscritos submetidos, reformulamos a página na internet da Trans/Form/Ação, iniciamos uma nova modalidade de textos, os comentários. Recebemos apoio da FAPESP, PROPe/UNESP, Laboratório Editorial da FFC/UNESP, para a manutenção e bom andamento da Revista para o ano.

É com grande alegria que publicamos o último número do volume 43. Os autores estrangeiros, nesta edição, são de instituições da Argentina e do Chile. Já os autores brasileiros estão vinculados a instituições do Amapá, Bahia, Espírito Santo, Maranhão, Minas Gerais, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Tocantins. Do total de treze artigos deste fascículo, apresentados em ordem alfabética dos autores, quatro são escritos em espanhol, um em inglês e os outros oito na língua portuguesa.

Conforme descrito em sua página, a Trans/Form/Ação tem como objetivo a socialização do conhecimento, buscando promover o debate e a interlocução de ideias. Em vista disso, inauguramos, em 2020, uma nova modalidade de textos, a qual consiste de comentários de artigos aprovados, consentidos previamente pelos seus autores. Anexados ao artigo original, eles são produzidos pelos pareceristas do manuscrito submetido. Trata-se de uma crítica construtiva, não mais da qualidade do artigo, uma vez que o processo avaliativo já foi ultrapassado. O comentador pode expor possíveis discordâncias de ideias, comparação de conceitos entre autores, perspectivas ou sistemas filosóficos, diferenças hermenêuticas, metodológicas, epistemológicas. É possível também construir uma ampliação, explicitação ou mesmo a inserção de algum conceito importante para a compreensão da linha argumentativa do artigo comentado, notas explicativas relevantes ou a posição do comentador a respeito da tese exposta. Nesse sentido, procuramos promover um diálogo entre ambos os textos, almejando o aprofundamento e a ampliação do conhecimento.

Os comentários são ainda uma forma de valorizar formalmente o trabalho dos avaliadores do periódico, oferecendo-lhes oportunidade de publicação de suas ideias e reflexões, as quais podem, inclusive, ter tido origem a partir da análise do manuscrito avaliado. A política de avaliação da Revista, no entanto, continua sendo por pares duplo-cega. Apenas depois de o artigo ser aprovado para publicação, segundo as normas da revista, revisado e consentido pelos seus autores, solicitamos o comentário aos pareceristas, sendo-lhes facultativo o aceite da atividade. Neste fascículo, foram produzidos nove comentários, indicados nos textos, expostos abaixo.

O primeiro artigo, escrito em espanhol, é denominado “Narraciones identitarias, violencia, politica y civilidad: el psicoanalisis frente a los ensueños colectivos”, escrito em parceria por Alejandro Bilbao e Daniel Jofré. Os autores realizam uma análise relativa aos significados que organizam as narrativas da política de identidade, considerando seus vínculos históricos e sociais com a dimensão da violência extrema. Para isso, consideram certos escopos históricos da filosofia política, analisando suas relações com as propostas freudianas associadas à dimensão cultural da política. Um número igualmente importante de enunciados é elaborado com respeito às possíveis ações políticas resultantes nesse cenário.

O segundo artigo é intitulado “Sujeito e resistência na filosofia do conceito de Jean Cavaillès, escrito por Caio Souto. Conforme o autor, a “filosofia do conceito” de Jean Cavaillès, erigida sobre o domínio das matemáticas, costuma ser acusada de eliminar o papel do sujeito da construção do conhecimento científico. Em sua defesa, autores como Canguilhem e Badiou evocaram a ação de Cavaillès na Resistência Francesa, como argumento para a implicação coerente entre sujeito e conhecimento que essa filosofia suscita. Diante disso, Caio propõe que essa implicação entre sujeito, resistência e pensamento matemático não é arbitrária, mas é uma decorrência necessária da filosofia de Cavaillès.

Escrito em inglês, vem em seguida “Some morals from the physico-mathematical character of scientific laws”, de Cristian Soto, o qual é comentado por Fabio Caprio Leite de Castro. Esse artigo deriva alguns aspectos morais do exame da visão físico-matemática das leis científicas e de seu lugar, no atual debate filosófico sobre leis da natureza. Após revisitar a expressão lei científica, que aparece na prática científica sob vários nomes (como leis, princípios, equações, simetrias e postulados), o autor avalia brevemente duas posições extremas e opostas, na literatura sobre leis: metafísica completa das leis da natureza e eliminativismo nomológico. Enquanto a primeira distingue essas leis das leis mais mundanas que encontramos na ciência, a segunda afirma que devemos dispensar as leis da ciência por completo. Cristian argumenta que ambas as posições falham em entender as leis que encontramos, na prática científica. Para isso, ele descreve a seguinte afirmação dupla: primeiro, a maioria das leis da física são declarações matemáticas abstratas; e, segundo, elas expressam algumas das melhores generalizações físicas alcançadas nesse ramo da ciência. Assim entendida, finaliza o autor do artigo, uma interpretação mínima das leis sugere que elas, em princípio, pretendem se referir àquelas características dos fenômenos cuja relevância e estabilidade são relevantes para tarefas científicas específicas.

O quarto artigo é escrito em espanhol: “Lo común: reflexiones en torno a un concepto equívoco”, de Daniel Alvaro. O autor desenvolve uma reflexão sobre as definições e teorias do “comum” que alimentam os debates contemporâneos em torno desse conceito. Com esse objetivo, ele avalia os trabalhos de Christian Laval e Pierre Dardot, Michael Hardt e Antonio Negri, Jean-Luc Nancy e Roberto Esposito. Ao analisar esses discursos, evidencia que o que se entende atualmente por comum, tanto do ponto de vista filosófico quanto político-prático, assume significados diferentes e, muitas vezes, contrários. Daniel investiga os diferentes significados e usos do conceito, argumentando que essa ambivalência semântica é um fator decisivo na compreensão do escopo e das limitações do problema do que é comum, no mundo de hoje.

O quinto artigo, “A questão do fundamento em Heidegger e a importância para a teoria política pós-estruturalista”, é de autoria de Daniel de Mendonça. O objetivo do autor é discutir as implicações filosóficas e teóricas que a reflexão ontológica de Martin Heidegger exerceu sobre o pós-estruturalismo, principalmente aquele recepcionado pela teoria política. Para cumprir esse objetivo, primeiramente, ele aborda as noções de pós-estruturalismo e de pós-fundacionalismo. A seguir, realiza um exercício exegético da noção de fundamento de Heidegger, estabelecendo a distinção entre seus efeitos epistemológicos e ontológicos. Após, analisa criticamente a leitura fundacional heideggeriana de Oliver Marchart. Na última seção, a partir da radicalidade do fundamento heideggeriano, Daniel propõe a sua abordagem sobre a diferença política, tendo a diferença ontológica de Heidegger como base. Conforme o autor, essa leitura pode ser simplificada da seguinte forma: não há fundamento no ser, mas o ente se fundamenta desde si.

“Michel Houellebecq contra Michel Foucault: representações contemporâneas do Islã político na França”, de autoria de Daniel Padilha Pacheco da Costa, é comentado por Diego dos Santos Reis e por Sabrina Areco. Nas entrevistas e artigos jornalísticos de Michel Foucault sobre a Revolução Iraniana, escritos do final de 1978 até meados de 1979, e no romance de antecipação política Submissão (2015), de Michel Houellebecq, ambos os autores parecem oferecer representações positivas do Islã político, afirma Daniel. Ele argumenta que essa interpretação repousa sobre um duplo equívoco: embora Foucault não tenha cunhado a noção de espiritualidade política como alternativa para a crise dos sistemas políticos liberal e marxista, como seus críticos erroneamente o acusaram, todavia, como um conceito capaz de descrever as aspirações dos iranianos, testemunhadas em suas viagens ao país, Houellebecq retomou, em Submissão, essa suposta representação positiva do Islã político pelo principal teórico da French Theory, com vistas a apresentar, ironicamente, a islamização como a solução para a crise econômica e sexual enfrentada pela sociedade francesa contemporânea e, assim, denunciar os herdeiros dessa representação como colaboracionistas.

O texto de número sete, “Da sintomatologia de modelo junguiano à crítica portadora de coordenadas transcendentais: uma leitura a respeito do Sacher-Masoch de Deleuze”, é escrito em parceria por Flávio Luiz de Castro Freitas e Luciano da Silva Façanha. O objetivo geral dos autores, no presente trabalho, consiste em explicitar o percurso entre duas leituras que Gilles Deleuze realiza acerca da obra de Sacher-Masoch, na década de 1960. A primeira leitura concerne ao artigo de 1961, denominado “De Sacher-Masoch ao masoquismo”. A segunda leitura diz respeito ao livro de 1967, intitulado Sacher-Masoch – o frio e o cruel. Flávio e Lucino postulam que a relação entre esses dois momentos é constituída por um processo de radicalização transcendental da parte de Deleuze, o qual vai da sintomatologia de modelo junguiano até alcançar a crítica transcendental.

O oitavo texto é escrito por José Maurício de Carvalho e Mauro Sérgio de Carvalho Tomaz, “Martin Buber e a fenomenologia: o encontro no discurso filosófico e psicológico”, seguido de comentário de Ozanan Vicente Carrara. De acordo com os autores, o fundamental da contribuição de Buber à fenomenologia existencial é atribuir às palavras-princípio Eu-Tu e Eu-Isso, pela intencionalidade da consciência, papel decisivo no diálogo e no encontro. Isso ocorre pela presentificação e distanciamento dos debatedores. Essas palavras foram fundamentais para explicar as relações intersubjetivas e com o mundo, essenciais para esclarecer o discurso filosófico e científico. Em seu artigo, José e Mauro aprofundam a distinção contida nas palavras-princípio e sua repercussão na relação terapeuta – paciente/cliente, nas clínicas psicológica e médica. Adicionalmente, eles comentam o diálogo estabelecido por Buber com Freud e Jung: com o primeiro, inserindo o sentido da historicidade na construção da vida, para recusar a noção de cultura como projeção do Édipo e, com o segundo, recusando reduzir o diálogo com o sagrado à função psíquica.

O nono artigo é “A concepção neofregiana de proposição em Mente e Mundo, de J. McDowell”, de José Renato Salatiel. Na concepção de Salatiel, a epistemologia tradicional trata de questões, como a justificação de crenças empíricas, em um viés cartesiano representacionalista, o qual distingue conceitos e experiência em diferentes domínios metafísicos. Mas, desse modo, ressalva o autor, torna-se difícil explicar como a percepção pode ter um papel normativo no processo de justificação do nosso conhecimento sobre o mundo. A solução recomendada por McDowell, em Mente e Mundo, é considerar que a percepção envolve capacidades conceituais e que ela provê um acesso direto aos objetos da realidade externa. Além disso, continua José Renato, McDowell endossa a teoria proposicional neofregiana de Evans, que, em parte, explica como o conteúdo da experiência pode ser estruturado, de sorte a atender ao empirismo mínimo. No presente artigo, seu autor objetiva analisar as implicações da semântica neofregiana de McDowell para o projeto filosófico delineado em Mente e Mundo. Ele argumenta que essa conexão entre a teoria conceitualista da percepção e a teoria semântica dos sentidos de re suportam o disjuntivismo epistemológico, que visa a escapar ao problema cético.

Em seguida, podemos ler “A multiplicidade originária: uma leitura da filosofia de Franz Rosenzweig”, de Oneide Perius, também comentado por dois autores: Viviane Cristina Cândido e Maria Cristina Mariante Guarnieri. Oneide pretende explicitar, em função da filosofia de Franz Rosenzweig, como a tradição dominante da filosofia foi construída em torno da ideia de totalidade. Tal filósofo elenca uma série de consequências que se explicam a partir desse paradigma. Um novo pensamento precisa implodir essa totalidade, revelando uma multiplicidade originária que o pensamento nunca conseguiu neutralizar. O tempo, a experiência e o pensamento renovado são categorias centrais nessa revolução filosófica proposta pelo filósofo de Kassel, conforme trata o autor, nesse artigo.

O décimo primeiro artigo, outro escrito em espanhol, recebe o título, por Pablo Martínez Becerra, de “Nietzsche y el devenir vital: de lo inorgánico a lo orgánico”, e é comentado por Márcio José Silveira Lima. Conforme o autor, Nietzsche entende que o mundo se desdobra como uma vontade de poder. Se queremos entender adequadamente essa perspectiva cosmológica, devemos começar atribuindo atividades imanentes, não apenas aos organismos, mas também a seres chamados "inorgânicos". Assim, Pablo examina, de maneira “ascendente”, as características da vida que se transformam em ambos os estratos, ou seja, de minerais com suas atrações e repulsões até atingir o próprio ser humano e suas operações conscientes. Todos os problemas envolvidos nessa perspectiva monista são abordados por argumentos que têm como referência as leituras de Nietzsche. Strauss, Dubois Reymond, Herzen, Spencer, Lange, Delfœuf são algumas das fontes citadas que permitem ao autor desse artigo explicar como Nietzsche faz com que a vida impere, para além do ser, como o principal fenômeno em todas as ordens.

O penúltimo artigo é “A carnalidade de outrem e o logos do mundo estético em Merleau-Ponty”, escrito por Rodrigo Alvarenga e comentado por Osvaldo Fontes Filho. A questão da intersubjetividade está presente, ao longo de toda a obra de Merleau-Ponty, afirma Rodrigo, desde A estrutura do comportamento, com base no debate com a psicologia e a fisiologia clássicas, até a ontologia indireta desenvolvida em O visível e o invisível. Suas teses evidenciam um aprofundamento em direção à carnalidade de outrem enquanto experiência de um estranho/familiar, que é central para se compreender a possibilidade da intersubjetividade e da experiência estética do mundo. Desse modo, nesse artigo, o autor busca compreender a forma como Merleau-Ponty desenvolveu sua teoria da intersubjetividade, na última fase de seu pensamento, considerando a aproximação existente entre a experiência de outrem e a experiência artística, a partir do logos do mundo estético.

Fechando o rol de treze artigos deste fascículo e das publicações do ano de 2020, escrito em espanhol e produzido por Valeria Campos Salvaterra, publicamos “Comer al otro: retoricas de la alimentación: Una lectura del seminario inédito Manger l’autre, de Jacques Derrida (1989 – 1990)”, seguido do comentário feito por Cristóbal Durán Rojas. De acordo com a autora, nos seminários inéditos realizados nos Estados Unidos e na Françam entre 1989 e 1991, Manger l'autre: Politiques de l'amitié e Rhétoriques du canibalisme, J. Derrida analisa a função retórica dada pelos textos filosóficos da tradição ocidental à alimentação. Como ato de incorporação das fronteiras alienígenas e de cruzamento entre o exterior e o interior, o comer tem sido usado como uma metáfora por excelência para nomear os processos de entendimento e idealização, bem como a dinâmica geral da relação com o outro. No entanto, essa função trópica da alimentação atinge, sustenta Derrida, inclusive a própria lógica do discurso filosófico, inseparável de uma certa retórica constitutiva. Valéria analisa essas funções, mostrando que elas são transversais à filosofia, em temas gerais e especiais do trabalho de Derrida, em todas as suas épocas textuais.

Esperamos que este número também seja de grande proveito para os apreciadores da revista. Já estamos em fase de preparação dos novos números para 2021. Desejamos que o ano vindouro seja tão positivo quanto este, em termos de produção. Também esperamos que a humanidade consiga atingir seus objetivos de alcançar uma vida melhor para todo ser humano, em convivência pacífica com todas as formas de vida e com a natureza em geral.

 



[1] Editor responsável da Trans/Form/Ação: revista de Filosofia da Unesp. Docente no Departamento de Filosofia e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Estadual Paulista (Unesp) – Brasil. Pesquisador CNPq/Chamada Universal. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5704-5328. E-mail: marcos.a.alves@unesp.br.