Resumo: Neste artigo, investiga-se como o estudo da opinião pública é influenciado pelas pesquisas de opinião pública, na medida em que estas funcionam como meios para inquirição da realidade. Com o crescente movimento de datificação do mundo, transformações científicas e tecnológicas emergem e impactam o campo de estudos da opinião pública. Têm-se hoje, de um lado, as pesquisas de opinião tradicionais e, do outro lado, as pesquisas possibilitadas pelo advento do Big Data. Para além de um apanhado de protocolos metodológicos, cada um dos modelos abarca em si um significado de “opinião pública'', remontando ao velho embate epistemológico entre teoria e metodologia presente nesse campo de estudo. Descrevem-se as principais diferenças entre esses dois modelos, para, em seguida, sob o olhar do pragmatismo de Peirce enquanto teoria de significação, analisar a transição pela qual se está passando, nos dias de hoje.
Palavras-chave: Pesquisa de opinião pública. Big Data. Significado. Pragmatismo.
INTRODUÇÃO
O objeto deste trabalho está circunscrito à problemática das pesquisas de opinião pública, no atual estágio da chamada “era do Big Data”, em que o modelo de pesquisa de opinião pública tradicional é confrontado com as metodologias emergentes de análise de dados coletados em mídias sociais. Há, atualmente, a convivência de dois principais modelos para a produção de pesquisas de opinião pública em larga escala, cada qual estruturado a partir de princípios epistemológicos distintos – e, até certo ponto, contrastantes: um modelo tradicional, baseado em amostras colhidas por meio de surveys; e um novo modelo de pesquisa, possibilitado pelas técnicas de coleta de dados dos usuários de mídias sociais on-line na Internet, tais como Facebook e Twitter. Na era do Big Data, bancos de dados e suas lógicas de processamento passam a ser a sintaxe básica da informação e da comunicação social, a ponto de se constituírem como um novo gênero cultural e de embasarem uma nova ideologia, chamada de dataísmo (VAN DIJCK, 2017, p. 41).
Em meio a tantas diferenças percebidas entre o modelo de pesquisa de opinião pública tradicional e o novo modelo, uma delas será privilegiada por nós, ao longo deste artigo. Trata-se de uma distinção no significado do conceito de opinião pública, ou seja, uma distinção no que se entende por opinião pública, segundo cada modelo. Como veremos, cada um dos modelos possui uma base epistemológica que determina não apenas as metodologias aplicadas, mas o próprio entendimento do objeto “opinião pública” que se procura estudar e que guia a produção das pesquisas. A escolha do nosso referencial teórico (o pragmatismo) – que servirá também como ferramenta para nossa análise – se deu justamente em vista disso.
Não existe uma definição convencionalizada para o termo “opinião pública”. Um empecilho recorrente na sua definição é a possibilidade multidisciplinar de abordagens entre as áreas e subáreas do conhecimento que estudam o objeto “opinião pública”. Dentre elas, poderíamos citar, ao menos, a filosofia, a história, a sociologia, a ciência política, a psicologia social, a comunicação social, a estatística etc., cada uma das quais se utilizando das suas lentes epistemológicas, teorias, hipóteses e metodologias próprias. A modernidade trouxe consigo diversos pensadores, os quais se debruçaram sobre o estudo da filosofia política e abordaram o estudo das opiniões e crenças da sociedade, enquanto temas de alta relevância. Alguns exemplos importantes são Maquiavel, Hobbes, Locke, Montaigne e Rousseau, sendo esse último o precursor do uso de “opinião pública” como conceito filosófico e político.
Algo comum visto entre essas abordagens modernas é o caráter teórico e complexo atribuído ao estudo e à tentativa de explicação do funcionamento da opinião pública. Isso mudou com a invenção das pesquisas de opinião pública e com o estabelecimento de um olhar estritamente empírico e quantificador do objeto em questão. O termo “opinião pública” passou a significar – ou ser entendido como – a agregação ou a soma de opiniões individuais e, sob os olhares do senso comum, a “opinião pública” torna-se sinônimo dos resultados das próprias pesquisas realizadas para estudá-la (GOIDEL, 2011, p. 11). Essa interpretação foi muito criticada, durante o século passado, acusada de simplificar a opinião pública, por meio de uma perspectiva quantitativa rasa. Com a chegada e a consolidação da Internet, do Big Data e, em especial, com a ascensão das mídias sociais ao posto de esfera pública digital, renova-se o debate sobre a opinião pública enquanto objeto teórico que nasce das relações sociais complexas e conversacionais. Ao mesmo tempo, também é reacendida a discussão sobre o que é a opinião pública.
Com o desenvolvimento deste trabalho, buscamos responder à seguinte questão: pensando a partir do pragmatismo de Peirce (enquanto uma teoria de significação), qual a diferença entre esses dois modelos de pesquisa de opinião pública, na medida em que eles funcionam como meios de inquirição da realidade? Para responder a essa pergunta, estabelecemos por objetivo apresentar as principais diferenças entre cada modelo, as quais, note-se, não são excludentes, mas complementares. Faremos isso, descrevendo o contexto em que surgem, o objetivo esperado com o emprego de um modelo ou outro, os principais protocolos metodológicos utilizados e, finalmente, o que se entende por opinião pública, em cada caso. Em seguida, abordaremos essas diferenças, a partir dos princípios do pragmatismo de Peirce, o qual terá sido discutido na primeira parte do trabalho.
O pragmatismo é uma doutrina que foi ampla e profundamente estudada no decorrer do século XX, e muito disso se deve a Peirce e seus escritos, publicados ainda no século XIX. As produções intelectuais que compuseram as discussões sobre o pragmatismo, na virada entre esses dois séculos, influenciaram de tal modo as filosofias seguintes que seria impossível a nós, no espaço que nos cabe, abordar tudo de maneira proveitosa.
Ao pensarmos o pragmatismo como uma teoria única, mas com múltiplos exponentes – a qual abarca inúmeros filósofos e pesquisadores –, deveríamos poder encontrar um ponto em comum que garantisse tal unidade e os colocasse todos sobre uma mesma base. Essa unidade, como o próprio nome pode nos sugerir, reside no fato de o pragmatismo carregar consigo uma íntima relação com a noção de prática, conectada à teoria, e de pensamento, associada à ação (DE WAAL, 2007, p. 18). De Waal nos explica, no entanto, que existem, para além da unidade trazida por essas noções, duas possíveis compreensões para o que seria de fato o pragmatismo, entre os próprios teóricos dessa corrente. Uma primeira compreensão se refere ao pragmatismo enquanto método para determinação do significado de palavras e conceitos, ou seja, um critério de significação. Ela está presente no texto de Peirce, intitulado Como tornar nossas ideias claras, publicado no ano de 1878, na primeira versão da máxima pragmática – que veremos em breve.
Uma segunda compreensão do pragmatismo faz com que alguns o considerem uma teoria sobre a verdade. Apesar dos adeptos dessa interpretação serem diversos, Peirce discordava dela:
Peirce sustentava que são duas questões completamente diferentes e que o pragmatismo, tal como expresso em seu princípio, é estritamente um critério de significação. Aquilo a que frequentemente se refere como a teoria pragmatista da verdade resulta, então, da aplicação do critério pragmático de significação ao conceito de verdade. Para Peirce, “verdade”, assim como “dureza”, “identidade”, “simultaneidade” etc., é somente um daqueles conceitos dos quais se deve ter uma concepção pragmatista. O que se chama de teoria pragmatista da verdade é, assim, um desenvolvimento do desejo de limpar o discurso filosófico. Por conseguinte, a teoria pragmatista da verdade é uma consequência do pragmatismo e, certamente, uma consequência importante, mas não uma característica definidora dele. (DE WAAL, 2007, p. 23).
Podemos notar que ambas as compreensões possuem raízes nas teorias de Peirce, mas só uma delas é, efetivamente, como Peirce a elaborara, sendo a outra, segundo o próprio autor, uma consequência da primeira. Para o nosso exercício que se segue, utilizaremos a elaboração original de Peirce, isto é, o pragmatismo enquanto critério de significação.
Peirce, seguindo o exemplo de filósofos anteriores, como Descartes, Locke e Kant, buscou nas regras de funcionamento do pensamento o ponto de partida para boa parte de suas reflexões. Uma das mais importantes entre essas reflexões é a discussão sobre as crenças e as dúvidas – inspirada por uma crítica direta ao cartesianismo. Aliseda (2016, p. 144) ressalta: “Na epistemologia de Peirce, o pensamento é um processo dinâmico, essencialmente uma interação entre dois estados da mente: dúvida e crença.” Ora, em 1877, entre uma série de artigos publicados, Peirce traz a público o famoso texto denominado A fixação da crença, no qual o autor destrincha essa relação permanente entre crenças e dúvidas, no pensamento, terminando a sua exposição com quatro métodos possíveis para se fixar uma crença e determinar, dessa forma, o fim da dúvida.
Ao dar início à caracterização das crenças e das dúvidas, Peirce começa pela seguinte frase: “Geralmente sabemos quando queremos fazer uma pergunta e quando queremos pronunciar um julgamento, pois há uma diferença entre a sensação de duvidar e a de crer” (PEIRCE, EP, 1:114)[3]; o que se segue é um detalhamento dessa frase. A começar pela crença, esta é o estado da mente que determinará, indiretamente, as nossas ações. O autor prossegue: “A essência da crença é o estabelecimento de um hábito” (PEIRCE, CP, 5.398, grifo nosso)[4], e o hábito, por sua vez, determina as nossas ações. A respeito de tais constatações sobre a crença, Peirce dirá que elas encerram três principais características: “Primeiro, [a crença] é algo do qual nós estamos cientes; segundo, ela apazigua a irritação da dúvida; e, terceiro, envolve o estabelecimento, em nossa natureza, de uma regra de ação ou, digamos, de um hábito.” (PEIRCE, CP, 5.397, grifo do autor). Por outro lado, a dúvida, como dissemos, é o estado mental contrário ao da crença e, por isso, na ausência de um, encontra-se o outro.
Nota-se, pois, que essa relação entre o crer e o agir leva em consideração não só a crença, mas também a dúvida, uma vez que, quando não há crença e, consequentemente, um hábito mental que determine a ação, então a dúvida se tornará um empecilho prático. No entanto, ao contrário do que poderia parecer, Peirce entende que a dúvida tem também uma importância fundamental. Enquanto a crença, determinadora de hábitos, é o que nos leva a agir de certa maneira, a dúvida é aquela que nos leva a investigar e questionar o mundo que nos envolve, pois nos irrita e, consequentemente, impele-nos a retornar ao estado de crença.
Peirce (EP, 1:114) dá a essa condição de insatisfação o nome de “irritação da dúvida”. Esse estado de irritação, de incerteza, faz com que busquemos nos ater a uma nova crença, o quanto antes, para dar fim à dúvida – quanto ao estado de crença, não desejamos evitá-lo e, muito menos, alterá-lo em direção a outra crença. Nesse sentido, a dúvida também nos leva à ação, mas de outra forma. Enquanto as crenças e os hábitos nos colocam sob uma disposição para agir de determinada maneira, quando a necessidade surgir, as dúvidas nos encaminham à ação, justamente para que possamos terminá-la. À busca incessante por um estado de crença Peirce dá o nome de inquirição, enquanto Rodrigues (2017, p. 17) complementa:
A irritação da dúvida nos impele a pesquisar, insatisfeitos que ficamos com nossas opiniões, num processo que só chega ao fim quando outra opinião capaz de sanar a dúvida é alcançada, seja ela verdadeira ou falsa. A verdade, por si só, não é capaz de nos impelir a investigar ou sanar nossas dúvidas, porque é independente de nós. Daí a importância do método: não basta fixar a crença, é preciso fixar crenças verdadeiras.
De acordo com as palavras de Rodrigues, vemos que, buscando escapar do estado de irritação da dúvida em direção ao estabelecimento de uma crença, podemos incorrer em erros consequentes de crenças que não sejam verdadeiras. Para que isso não aconteça, é necessário que fixemos uma crença adequadamente, a fim de que futuramente não caiamos novamente em um estado de dúvida. Buscando esclarecer essa tarefa, Peirce descreve quatro métodos de fixação da crença. Os três primeiros (tenacidade, autoridade e a priori), cada qual a seu modo, não são indicados pelo autor para a fixação duradoura de crenças.
O último e mais importante entre os quatro métodos de fixação da crença propostos por Peirce é o método científico. Iniciamos a explicação sobre esse método com uma frase do autor, a qual sintetiza bem a necessidade que temos dele: “Para satisfazer nossas dúvidas, portanto, é necessário que seja encontrado um método pelo qual nossas crenças possam ser determinadas por nada que seja humano, mas por alguma permanência externa – por algo sobre o qual nosso pensamento não tenha efeito.” (PEIRCE, CP, 5.384). Como podemos apreender, a partir das palavras de Peirce, o método científico – ou a própria ciência – supera os outros métodos, na medida em que independe do homem para que se decida sobre aquilo que deve ou não ser acreditado, mas se baseia tão somente na realidade. Essa realidade, por sua vez, é algo que afeta os nossos sentidos segundo regras e leis, que, por serem externas às nossas opiniões, não dependem delas. Somos nós, com as nossas próprias crenças, que devemos nos adequar à realidade, e não o contrário, como ocorre nos outros três métodos de fixação. Por mais que a busca pela compreensão de tal realidade possa não parecer algo facilmente alcançável, “[...] a ideia de que há uma realidade se torna um postulado prático da razão” (DE WAAL, 2007, p. 37), que deve assumi-la e tentar compreendê-la.
Ademais, as crenças a serem fixadas a partir do método científico necessitam de um consenso entre indivíduos, para que possam se estabelecer de forma duradoura. Uma comunidade de indivíduos – de cientistas, no caso das pesquisas de opinião pública, por exemplo – contribui para que, por meio do método científico, da inquirição, se chegue a um consenso que ateste a validade daquela opinião ou crença. No entanto, poder-se-ia questionar sobre as possibilidades concretas de se auferir a realidade e, consequentemente, uma validade duradoura sobre determinada crença – mesmo que por meio da inquirição e apoiada sobre um consenso. A fim de responder a esse questionamento, pensemos no seguinte:
Peirce não somente acreditava que a inquirição futuramente nos levaria às respostas certas, ele também assegurava que em muitos casos já encontramos a resposta correta, muito embora não sejamos capazes de dizer para uma questão particular qualquer que a encontramos. Dessa maneira, Peirce procurou cunhar uma terceira opinião entre o ceticismo e o dogmatismo, que ele denominou falibilismo. (DE WAAL, 2007, p. 37).
O falibilismo é o postulado segundo o qual a construção de um certo conhecimento pode se mostrar falsa e, por conseguinte, falhar. Sob ele, supõe-se que, no caso de algo como isso ocorrer, o conhecimento até então portado deva ser abandonado (PEIRCE, CP, 7.108-109). Igualmente, as crenças fixadas por meio do método científico carregam essa característica. Em métodos como o de tenacidade ou o a priori, a crença somente se torna dúvida quando confrontada com as opiniões de outros indivíduos, ao passo que, no caso do método científico, a crença se torna dúvida, ao ser confrontada pela própria realidade que a desmente.
Nesse sentido, o método de fixação científico se aproxima daquilo que traz unidade ao pragmatismo, independentemente de qual corrente do pragmatismo se adote, a saber, a soberania da prática sobre a intuição na busca pela compreensão da realidade. Depois de A fixação da crença, Peirce publicou, no ano de 1878, outro importante artigo denominado Como tornar nossas ideias claras, no qual viria a introduzir a conhecida máxima pragmática. A discussão central tem por objetivo – mais uma vez – desenvolver uma crítica à filosofia de Descartes e, principalmente, ao seu método para identificar as ideias claras e distintas. Como o próprio nome do artigo sugere, Peirce propõe meios para tornar claras as nossas ideias, resultando no que é descrito por De Waal (2007, p. 39) como “uma teoria da significação”.
De acordo com Peirce, ao tentarmos definir – dar significado – a um conceito, podemos atingir três níveis graduais de clareza sobre a ideia que esse conceito representa. O primeiro dos três níveis propostos é o seguinte: “Uma ideia clara é definida como uma ideia que é de tal forma apreendida que será reconhecida onde quer que seja encontrada e, portanto, nenhuma outra será confundida com ela.” (PEIRCE, EP, 1:124). Estão incluídas aqui ideias como a de “cadeira” ou a de “cachorro”. O segundo nível de clareza, aquele que mais se aproxima do que sustentava Descartes – e os lógicos adeptos de suas teorias – quanto às suas ideias claras e distintas, por sua vez, é o seguinte:
Uma ideia distinta é definida como aquela que não contém nada que não esteja claro. Isto é linguagem técnica; pelo conteúdo de uma ideia, os lógicos entendem o que está contido em sua definição. Então uma ideia é claramente apreendida, segundo eles, quando podemos dar uma definição precisa dela em termos abstratos. (PEIRCE, EP, 1:125, grifo do autor).
Nesse segundo nível, estão incluídas ideias mais abstratas que as do primeiro nível, como, por exemplo, a de “ouro”, que é definido como o elemento com o número atômico 79 – isso o distingue, na medida em que nenhum outro elemento possui esse mesmo número atômico, ou seja, nenhum outro elemento possui o mesmo número de prótons em seu núcleo (DE WAAL, 2007, p. 40). A depender do caso, no entanto, esses dois primeiros níveis de clareza podem nos fazer incorrer em enganos. Por esse motivo, Peirce desenvolve um terceiro nível, o qual, associado à sua “teoria da significação”, resulta na máxima pragmática, que funcionaria como uma regra para atingir o mais alto nível de clareza, no momento de definição de uma ideia ou conceito: “Considere quais efeitos, que poderiam concebivelmente ter consequências práticas, concebemos que tenha o objeto de nossa concepção. Então, nossa concepção desses efeitos é o todo de nossa concepção do objeto.” (PEIRCE, EP, 1:132).
A máxima pragmática, apesar de complexa à primeira vista, deixa-nos entrever em seu interior a importância da ação e, por consequência, das crenças e hábitos (como vimos anteriormente, os hábitos mentais estabelecidos por crenças são, justamente, disposições para a ação). Segundo Peirce, “[...] o que algo significa é simplesmente quais hábitos ele envolve.” (PEIRCE, EP, 1:131). Isto se dá dessa forma, pois, conforme a máxima, definimos um certo conceito de acordo com os efeitos práticos que concebemos a respeito dele, relacionando, dessa forma, o ato de definir um conceito ao ato de inquirir a realidade. Ademais, ao refletirmos sobre o pragmatismo peirciano, a partir de sua máxima original, constatamos que ele foi pensado como um meio para se clarificar ideias fundadas no compartilhamento de significados e experiências práticas, no interior de uma determinada comunidade. Determinadas ideias, como a de “fogo”, por exemplo, são expressas e entendidas, pois o significado atrelado a ela se baseia em experiências vividas e compartilhadas dentro de uma comunidade e que suscitam, em seus indivíduos, certas crenças, hábitos e emoções.
Alguns anos depois, já após a construção da sua teoria semiótica, Peirce revisaria alguns pontos do seu pragmatismo[5] e, junto com ele, a sua máxima pragmática. A principal mudança que o autor trouxe, naquele momento, se encontra no caráter psicológico da máxima original, que, àquela altura, era considerada por ele como algo negativo. Por esse motivo, tentou trazê-la à luz da semiótica, a fim de tornar lógico aquilo que era psicológico. Vejamos, pois, como ficou a reformulação da máxima feita nesse segundo momento: “O teor intelectual inteiro de qualquer símbolo consiste no total de todos os modos gerais de conduta racional que, condicionalmente sobre todas as possíveis e diferentes circunstâncias e desejos, decorreriam da aceitação do símbolo.” (PEIRCE, EP, 2:346). Nessa fase, a máxima passa a se referir aos efeitos práticos que seriam concebidos (note-se o futuro do pretérito) por uma comunidade de intérpretes, caso fossem esgotados todos os recursos possíveis.
2 O MODELO TRADICIONAL DE PESQUISAS DE OPINIÃO PÚBLICA
As pesquisas de opinião pública tradicionais, tais como as conhecemos até hoje, nasceram nos Estados Unidos dos anos 1930, ou seja, no seio do funcionalismo americano, o que influenciou as metodologias e teorias aplicadas ao estudo da opinião pública, nesse modelo. Até então, era comum que se pesquisasse ou mensurasse a opinião pública por meio das chamadas straw polls (GOIDEL, 2011, p. 11), enquetes sem valor científico – feitas sem fundamentações metodológicas estatísticas – realizadas sobretudo por veículos midiáticos. Nas eleições americanas presidenciais de 1936, entretanto, as pesquisas de George Gallup obtiveram um sucesso sem precedentes, na previsão dos resultados, e, com isso, teve-se início uma nova era nos estudos da opinião pública.
Em publicação do ano seguinte ao da eleição, Crossley (1937), um pesquisador da opinião pública, examinou os potenciais limites das novas opinion polls e os problemas com as enquetes utilizadas até então. Dentre os pontos discutidos por Crossley, em seu texto, está a diferença metodológica entre os dois modelos de pesquisa existentes na época: um deles, as opinion polls, criadas por Gallup, contava com amostras menores, mas um rigor estatístico que garantia a validade representativa das amostras a serem analisadas, ao passo que as straw polls eram abertas a todos os que quisessem respondê-las, mas não eram representativas. Crossley (1937, p. 25, tradução nossa, grifo nosso) escreveu sobre o que se pensava sobre isso, antes da eleição de 1936:
Outras duas grandes diferenças de opinião existiam. Um lado argumentou que o Literary Digest [veículo midiático que fazia as mais importantes previsões eleitorais da época] não poderia estar errado por causa de sua tremenda amostra, isto é, número de votos. O outro lado argumentou que uma amostra relativamente pequena poderia ser usada, se cientificamente distribuída.
Pelo relato de Crossley, podemos perceber que, à época, a utilização de fundamentações estatísticas em pesquisas de opinião pública não apenas era uma novidade, como também não havia um consenso sobre a sua necessidade. No entanto, depois do sucesso no contexto eleitoral de 1936 – e especialmente depois da Segunda Guerra Mundial – as metodologias utilizadas por Gallup foram elevadas a um nível de extrema relevância, nos estudos de opinião pública (SPLICHAL, 2012, p. 32).
Com o estabelecimento das pesquisas de opinião pública científicas (as opinion polls), enquanto ferramentas para mensuração e previsão da opinião pública, muitas perspectivas se alteraram nos estudos de opinião pública – em especial as epistemológicas. A conciliação entre teoria e metodologia tornou-se um problema central nos estudos de opinião pública, especialmente em trabalhos de natureza teórica. A colocação desse novo problema (como conciliar as teorias que procuram explicar a opinião pública com as metodologias aplicadas ao seu estudo empírico) promoveu debates epistemológicos entre diversas correntes, durante o século XX. Ainda nos anos 50, olhando para a primeira metade do século que se passara, alguns autores, como Hyman (1957, p. 55-57), apontaram para o embate epistemológico que se havia constituído – e que, factualmente, persiste até os dias de hoje.
Em Public Opinion, Glynn et al. (2016) nos apresentam uma categorização de definições possíveis para o conceito de opinião pública, de acordo com cinco principais correntes teóricas[6] que ganharam força desde o início do século passado. Apesar de serem diversas, os autores afirmam que a primeira das categorias, na qual “[a] opinião pública é uma agregação de opiniões individuais”, é indubitavelmente a mais difundida e adotada, seja por pesquisadores, seja pelo senso comum. Um fator determinante para a consolidação dessa visão de opinião pública e para propagação da metodologia aplicada no modelo tradicional é a sua base científica, possibilitada pelo rigor estatístico na coleta dos dados a serem analisados posteriormente. Segundo Goidel (2011, p. 18), foi somente a partir do momento em que se passou a estudar a opinião pública, por meio do modelo inaugurado pelas opinion polls de Gallup, que esse objeto adquiriu uma construção científica de fato. As bases metodológicas utilizadas inicialmente no modelo tradicional de pesquisas permaneceram inalteradas em sua essência até mesmo nas pesquisas realizadas em localidades fora dos Estados Unidos, como é o caso do Brasil. Muito disso se deve a certos institutos de pesquisa, como, por exemplo, o IBOPE, criado ainda na década de 40 (BIROLI; MIGUEL; MOTA, 2011, p. 68-69).
Nesse modelo tradicional de pesquisa, a representação da opinião pública de uma determinada população pode ser estatisticamente extrapolada em função das amostras que são colhidas por meio de surveys – isto se forem devidamente obedecidas as adequações demográficas da área em que se insere essa população. Assinala Macreadie (2011, p. 6):
Pesquisas de opinião quantitativa referem-se a surveys que medem a opinião de uma amostra de pessoas. Estas são particularmente úteis em cenários eleitorais, em que as respostas são relativamente diretas e são restritas a respostas de tipo "sim/não". Pesquisas de opinião quantitativas frequentemente envolvem questionários, entrevistas cara-a-cara, pesquisas por telefone e pesquisas online/por e-mail.
Dada a representatividade estatística propiciada pelas pesquisas de opinião pública tradicionais, estas têm como principal objetivo a previsão de cenários futuros, especialmente em contextos eleitorais.
Como foi frisado anteriormente, alguns autores destinaram críticas profundas a esse modelo de pesquisa, nas últimas décadas, especialmente no que diz respeito ao significado dado à opinião pública dentro dele, ou seja, ao entendimento de que a opinião pública é a agregação ou soma de opiniões individuais. Destacamos aqui dois expoentes, entre esses críticos: Herbert Blumer e Pierre Bourdieu.
Em meados do século XX, em plena ascensão das opinion polls, Blumer destoou do paradigma em voga, referente à visão quantificadora da opinião pública, e propôs um novo entendimento que era essencialmente conversacional e baseado na interação social. Segundo Anstead e O’Loughlin (2015, p. 214, tradução nossa), Blumer alicerçou suas críticas às pesquisas de opinião pública sobre três alegações: “O público é social, a opinião pública é hierárquica e a verdadeira opinião pública exige que o público se envolva em debates políticos.” Especificamente sobre o modelo tradicional de pesquisa, Blumer produziu críticas contundentes quanto à fundamentação teórica adotada pelos pesquisadores da opinião pública e sobre a aplicação indevida das técnicas de pesquisa, chegando a questionar, inclusive, a natureza científica das pesquisas de opinião pública. Segundo o autor (BLUMER, 1986, p. 195-197), faltaria ao modelo tradicional de pesquisa um objeto abstrato e genérico, “opinião pública”, o qual fosse isolado pelos pesquisadores, de modo a guiar a produção das pesquisas. Ademais, o autor considerava que não há esforço por parte dos pesquisadores para produzir generalizações ou critérios que caracterizem ou distingam a opinião pública, a fim de explicá-la e levar adiante o seu entendimento. Nas palavras de Blumer (1986, p. 196-197): “O trabalho deles [pesquisadores] se trata meramente da aplicação de suas técnicas. Eles não estão preocupados com análises independentes da natureza da opinião pública, para julgar se a aplicação das suas técnicas se encaixa a tal natureza.”
Por sua vez, Bourdieu (1987) faz, em A opinião pública não existe, uma crítica epistemológica às pesquisas de opinião pública do modelo tradicional, opondo-se à interpretação da opinião pública, enquanto agregação ou soma de opiniões individuais, ou seja, combatendo essa visão essencialmente quantitativa. No texto, o sociólogo tece uma linha de raciocínio que procura desvendar e refutar algumas premissas estabelecidas por trás da produção das pesquisas. Para tanto, Bourdieu identifica três postulados, os quais, nas palavras dele, “[...] implicam, parece-me, toda uma série de distorções que são observadas, mesmo quando todas as condições do rigor metodológico são obedecidas na coleta e análise dos dados” (BOURDIEU, 1987, p. 138, grifo nosso), ou seja, distorções nas pesquisas que independem dos protocolos metodológicos usados pelos grandes institutos. Esses postulados são os seguintes: “[...] toda pesquisa de opinião supõe que todo mundo pode ter uma opinião; ou, em outras palavras, que a produção de uma opinião está ao alcance de todos” (BOURDIEU, 1987, p. 137); “[...] todas as opiniões se equivalem” (BOURDIEU, 1987, p. 138); e “[...] no simples fato de fazer a mesma pergunta para todo mundo acha-se implícita a hipótese de que existe um consenso sobre os problemas, em outras palavras, de que existe um acordo sobre as perguntas que merecem ser feitas.” (BOURDIEU, 1987, p. 138).
Assim como Blumer, Bourdieu (1987, p. 137-138) defendia que a equidade de valor entre as opiniões dos indivíduos – um dos princípios das pesquisas – é enganosa, por mais que isso soasse antidemocrático. Ao contrário, os autores não veem problema em afirmar que certos cidadãos são mais influentes do que outros, e que isso tem impactos sobre a opinião pública (GLYNN et al., 2016, p. 16). Em suma, ambos entendem haver certos problemas com as pesquisas de opinião pública que devem ser pensados, antes mesmo da ida dos pesquisadores ao campo, problemas estes de natureza epistemológica. Tanto para os dois autores citados quanto para as correntes críticas que deles decorreram, a opinião pública é mais complexa do que a representação obtida pelas tão bem-sucedidas opinion polls, uma vez que esse objeto, segundo eles, seria constituído no choque social nascido da interação entre os interesses de diferentes grupos e indivíduos.
3 O NOVO MODELO DE PESQUISAS DE OPINIÃO PÚBLICA
O problema de conciliação entre teoria e metodologia, nos estudos de opinião pública, não apenas persistiu até os dias de hoje, como foi reacendido pelo que Couldry e Hep (2016, p. 45-47) chamam de onda de digitalização, caracterizada pelos adventos dos computadores, da Internet e, mais recentemente, das mídias sociais. Isto se dá dessa forma, pois, na medida em que há um desenvolvimento material e tecnológico profundo, na sociedade, alteram-se também as próprias dinâmicas da esfera pública, que adquire uma faceta digital. Consequentemente, a opinião pública também passa a se originar e ser propagada nesse novo ambiente, especialmente em seu formato mais refinado: o dos sites denominou dataísmo (a crença no poder dos dados e das instituições que deles dispõem), em um contexto onde os objetos das mais diversas áreas das ciências, tais como as ciências da computação, a física, a matemática, a ciência política, a bioinformática, a sociologia etc., vêm sendo afetadas pelo crescente uso do Big Data (BOYD; CRAWFORD, 2012, p. 663), as opiniões dos indivíduos, por consequência, não escapam ao irrefreável movimento de datificação – em outras palavras, o tornar o mundo em dados quantificáveis passíveis de análises preditivas (MAYER-SCHÖNBERGER; CUKIER, 2013, l.8).
Existem diferentes interpretações para o termo Big Data, provenientes das mais diversas áreas do conhecimento (DEMCHENKO, 2014, p. 105). Pensando no senso comum, podemos adotar a definição segundo a qual “[...] o rótulo ‘Big Data’ é usado para descrever um conjunto de práticas envolvendo a coleta, processamento e análise de grandes conjuntos de dados.” (SCHÄFER; VAN ES, 2017, p. 15, tradução nossa). No entanto, como certas características se sobressaem e afetam contundentemente a maneira de se abordar o estudo da opinião pública, daremos também a nossa interpretação. Para além das grandes quantidades de dados, cremos que três aspectos caracterizam o Big Data, a saber: a velocidade, a exaustividade e a possibilidade de se utilizar modelos estatísticos não paramétricos.
De acordo com Kitchin e McArdle (2016, p. 7), a velocidade e a exaustividade são as características, as quais, em meio a tantas outras, distinguem ontologicamente o Big Data. A primeira delas, a velocidade, diz respeito à possibilidade de coleta ininterrupta (contínua) dos dados que constituem as amostras da pesquisa – com as metodologias tradicionais das ciências sociais, a coleta das amostras é feita ocasionalmente e, em alguns casos, com grande lapso temporal entre uma coleta e outra. Já a segunda, a exaustividade, concerne à possibilidade de se coletar e analisar o universo inteiro de uma determinada população (n = all), ao contrário do que ocorre no modelo tradicional, quando, limitadas por questões de tempo e custo, as amostras são estatisticamente extrapoladas, a fim de se representar a totalidade de um universo.
Somado à interpretação de Kitchin e McArdle, o terceiro aspecto que julgamos definir o Big Data é a possibilidade de se empregar modelos estatísticos não paramétricos. Pensando nas transformações que o Big Data traz para os processos científicos, Pietsch (2013, p. 12-13) destaca que as tradicionais análises paramétricas, elaboradas por meio de modelos verticais hierárquicos, dão lugar a modelos horizontais, que dispensam o uso de leis e regras gerais a priori, de maneira a se identificar correlações no interior dos dados analisados. As análises de mídias sociais do novo modelo de pesquisa de opinião pública, feitas por meio de abordagens horizontais – onde os dados são colhidos e a parametrização só se dá a posteriori – permite que os parâmetros de análise sejam constituídos continuamente, conforme uma aplicação algorítmica intensiva sobre os dados.
Portanto, em produção paralela às pesquisas de opinião pública tradicionais, hoje temos aquelas que se utilizam das opções metodológicas possibilitadas por tais características, e que tanto podem se focar no estudo de opiniões individuais (NEETHU; RAJASREE, 2013) quanto no da opinião pública em geral (O’CONNOR et al., 2010). Graças ao Big Data, o diferencial do novo modelo reside no uso de métodos e técnicas específicas para a coleta e análise dos dados que se diferenciam profundamente dos questionários e entrevistas – tipicamente adotados pelos institutos de pesquisa tradicionais. Em vez disso, nesse novo modelo, a coleta e análise dos dados é feita por meio do monitoramento de mídias sociais, como, por exemplo, o Facebook e o Twitter:
Metodologias de survey e polling [...] nos deram inúmeras ferramentas e técnicas para realizar medições representativas da opinião pública. [...] Com a ascensão dramática das mídias sociais baseadas em texto, milhões de pessoas transmitem seus pensamentos e opiniões em uma grande variedade de tópicos. [...] então, minerar a opinião pública, a partir do conteúdo de textos livremente disponível poderia ser uma alternativa mais rápida e menos dispendiosa às pesquisas tradicionais. (O’CONNOR et al., 2010, p. 122, tradução nossa).
Aqui se coletam as postagens de texto dos usuários de mídias sociais para, em seguida, analisá-las enquanto opiniões de fato desses mesmos usuários. Entretanto, pela falta de representatividade demográfica dos usuários de mídias sociais, nesse modelo, não há a intenção de analisar individualmente as opiniões e nem de prever cenários futuros, mas se busca, tão somente, monitorar o debate público realizado na Internet (RUEDIGER, 2018, p. 5-14) ou representar a opinião agregada da população [de usuários] sobre determinado assunto ou tópico (O’CONNOR et al., 2010, p. 125). Nesse modelo, não mais se utilizam os surveys, pois o pesquisador de campo e as técnicas tradicionais são substituídos pelas plataformas digitais e pelas técnicas que ensejam a coleta de dados dessas plataformas.
Se, no modelo tradicional, a visualização dos dados é feita por meio de tabelas ou gráficos simples, no novo modelo, ela passa a ser feita através de grafos complexos. Nesse caso, os nós – representando usuários das mídias sociais (indivíduos ou organizações) – se relacionam por meio de arestas, de forma a construírem grandes redes: “Parte-se da análise de como os nós se conectam e relacionam para realizar a análise que, posteriormente, pode agregar dados de atributos e outros. E as conexões podem ser de diversos tipos, intensidades e direções.” (SILVA; STABILE, 2016, p. 238). Isto é especialmente importante, pois se cria a possibilidade de uma análise da opinião pública fundamentada sobre as relações entre diferentes atores (cidadãos, políticos, veículos jornalísticos, instituições governamentais, corporações etc.).
O resultado disso é uma representação – em larga escala – da opinião pública que não mais se debruça sobre a agregação ou soma de opiniões individuais, porém, em quais grupos da sociedade interagem entre si – e de que forma – diante de determinados problemas ou tópicos de interesse. É possível determinar quais são os principais atores (indivíduos ou organizações) da esfera pública digital, quais grupos contam com mais apoiadores e em que medida eles se relacionam, além de se tornar possível visualizar o movimento de formação e propagação da opinião pública, nas redes, em um dado espaço de tempo.
Em face disso tudo, afirmamos que não apenas os métodos e técnicas do estudo da opinião pública foram ampliados, mas o próprio entendimento do que é a opinião pública também é impactado. Herbst (2011) enfatiza que, com a chegada da Internet e das mídias sociais, o embate epistemológico entre perspectivas teóricas e empíricas da opinião pública foi atualizado. Para a autora, há uma luta subterrânea, nesse campo de estudo, constituída por duas abordagens opostas que podem ser encontradas em qualquer época: uma abordagem quantificadora e uma conversacional, ou, em outras palavras, “[...] opinião pública como uma agregação de opiniões individuais e opinião pública como uma conversa não quantificada, mas poderosa.” (HERBST, 2011, p. 88).
O que aqui chamamos de modelo tradicional está incluído na abordagem quantificadora, ao passo que o que consideramos novo modelo está incluído na abordagem conversacional. Finalmente, a autora reconhece que, com o uso das novas tecnologias, podemos identificar e estudar traços da opinião pública que eram evocados por autores críticos ao modelo tradicional, como Blumer, e que não podem ser plenamente apreendidos pelas opinion polls (HERBST, 2011, p. 96).
4 ANÁLISE PRAGMÁTICA SOBRE A TRANSIÇÃO ENTRE MODELOS
Julgamos necessário começar defendendo a ideia de que ambos os modelos de pesquisa aqui abordados constituem investigações científicas e que, por consequência, se encontram inseridos no método científico de fixação de crenças. Segundo Peirce, como vimos, a realidade existe independentemente daquilo que nós pensemos ou creiamos acerca dela, de sorte que o método científico deve, justamente, fixar a nossa opinião ou crença sobre a realidade, de acordo com a própria realidade. Por sua vez, a opinião pública, enquanto objeto investigado a partir do método científico, deve, ela mesma, ser um objeto real e independente das pesquisas e metodologias a serem utilizadas para estudá-lo.
Pensamos, pois, que a opinião pública é um fenômeno que se encontra na realidade (seja aquela opinião pública referida pelos filósofos da modernidade, seja aquela que é possibilitada pelas novas tecnologias digitais contemporâneas), e qualquer que seja a realidade desse objeto, ele já existia anteriormente à invenção das pesquisas científicas de Gallup ou do monitoramento de mídias sociais. Por mais que o fenômeno “opinião pública” seja dialeticamente afetado pela própria produção e publicização das pesquisas, a sua realidade é algo já notado há séculos, ou seja, caso a produção das pesquisas de opinião pública cessasse ou nunca tivesse existido, em nada – ou pouco – mudaria o fato de a opinião pública ser um fenômeno presente na realidade e, ainda mais profundamente, ser um fenômeno complexo (vide os séculos de intensos debates sobre a sua natureza e funcionamento).
No entanto, aquilo que se entendia por “opinião pública” foi abruptamente alterado com a invenção das pesquisas científicas, ao passo que, na prática, não vemos a opinião pública, enquanto fenômeno complexo e real, o qual nasce e se desenvolve no interior da esfera pública, sendo efetivamente impactada por essa invenção. O uso que se faz da opinião pública como soma ou agregação de opiniões individuais é, sem dúvida, diferente daquele que se fazia antes das pesquisas, quer para previsão de eleições, quer para tomada de decisões por parte de políticos ou corporações. Logo, para o uso que se faz da opinião pública, as mudanças trazidas pelas opinion polls foram, de fato, profundas. Todavia, essas mudanças não impactaram profundamente a natureza da própria opinião pública, nem possibilitaram uma compreensão mais complexa do objeto opinião pública, enquanto fenômeno da realidade.
Isto é, apesar de impactar grandemente o uso que se faz da opinião pública, a invenção de Gallup não teve esse mesmo grau de impacto para a obtenção de uma crença acerca da natureza da opinião pública que fosse baseada na realidade do objeto. Poder-se-ia argumentar que o modelo tradicional, com pesquisas como as do Instituto Datafolha e IBOPE, traz, de alguma forma, uma compreensão mais profunda do objeto “opinião pública”. Quanto a isso, nós estamos de acordo com as críticas feitas por Blumer e Bourdieu ao modelo tradicional de pesquisas, segundo as quais a opinião pública é mais complexa do que a mera soma ou agregação de opiniões individuais, sendo elas resultantes do choque de interesses e relações de diversos atores sociais (indivíduos e grupos). Ou, ainda, estamos de acordo com o entendimento de Herbst, para quem a “verdadeira” opinião pública é um fenômeno conversacional complexo – e, por esse motivo, dificilmente quantificável.
No fundo, o significado do conceito de opinião pública é alterado com a ascensão de cada modelo de pesquisa. Se conceitos como os de “cadeira” e “ouro” se encontravam inseridos nos dois primeiros níveis de clareza das ideias, o conceito de “opinião pública” está no terceiro nível. Lembremos, pois, que o terceiro nível de clareza das ideias associa o ato de definir um conceito ao ato de inquirir a realidade, e isso é precisamente o que vemos nas pesquisas de opinião pública. Ao tratarmos dos dois modelos (o tradicional e o novo), notamos que, para além de um apanhado de procedimentos metodológicos, cada um deles compreende a opinião pública conforme uma base epistemológica – a qual, por sua vez, é resultante de um paradigma definido. De um ponto de vista pragmático, isso é absolutamente relevante, porque, em última análise, o que cada modelo de pesquisa entende por opinião pública – ou seja, o significado dado ao objeto “opinião pública” – afeta fundamentalmente o que se buscará conhecer a respeito dela. Por consequência, o significado desse objeto está associado aos efeitos práticos da adoção de um modelo ou outro.
O método científico empregado para inquirir a realidade a propósito do que é a opinião pública, a saber, as próprias pesquisas de opinião pública, deveria, segundo o pragmatismo de Peirce, adequar a nossa crença sobre o fenômeno com o que o fenômeno é, na realidade. Nesse sentido, assumindo as posições de Blumer, Bourdieu e Herbst, o modelo que melhor nos ajudaria a definir uma significação do objeto “opinião pública” é o novo modelo. Neste, o significado de “opinião pública”, ainda que quantificável, encontra-se nas relações entre diferentes atores da sociedade, e não na opinião individual de cada um que compõe a esfera pública. Portanto, ao realçar a complexidade do aspecto conversacional do fenômeno, o novo modelo concebe por opinião pública algo mais próximo do que é visto na realidade da esfera pública digital. As consequências práticas (referenciando a máxima pragmática) da adoção desse significado condizem mais com o que é visto na realidade, do que as consequências práticas da adoção do significado dado à opinião pública no modelo tradicional, no qual a opinião pública é compreendida como a soma ou agregação de opiniões individuais.
Para Peirce, a realidade é algo que seria representado virtualmente – e verdadeiramente – pela opinião de uma comunidade ideal de pesquisadores que tivesse a seu dispor todo o tempo e recursos necessários. Trazendo isso para o nosso contexto, temos a seguinte compreensão: a opinião pública é um fenômeno da realidade que se procura apreender; em uma situação ideal, os pesquisadores da opinião pública, diante da possibilidade de tempo e recursos infinitos, encontrariam, finalmente, a verdadeira opinião pública, ou seja, a opinião pública tal como ela é, na realidade. Peirce dizia que sim, nós poderíamos já estar sob a posse dessa opinião final e verdadeira sobre nosso objeto de estudo, mas, infelizmente, não temos como ter a certeza sobre isso.
Nesse sentido, as metodologias das quais dispomos hoje talvez não sejam suficientes para apreendermos o fenômeno da opinião pública, em sua complexidade mais profunda. De todo modo, certas metodologias apresentam resultados mais complexos da opinião pública do que outras – embora com certos problemas, como o da representatividade demográfica. Portanto, a partir dos modelos que temos sob nossa posse, hoje, cabe aos pesquisadores da opinião pública buscarem, de acordo com o método científico consensual e sua inerente possibilidade de falha e constante revisão, uma compreensão do fenômeno opinião pública que associe o significado desse objeto àquilo que se encontra complexamente presente na realidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com a chegada da onda de digitalização, vieram à tona tecnologias como a Internet, as mídias sociais e, mais recentemente, o Big Data. As transformações sociais e materiais trazidas por tais tecnologias consolidaram uma faceta da esfera pública que é essencialmente digital, o que acabou por impactar profundamente o estudo da opinião pública. Não apenas novas metodologias para análise e mensuração da opinião pública surgiram, mas a compreensão e o significado sobre o objeto foram alterados. Se, com a ascensão do modelo tradicional, o até então teórico e complexo entendimento filosófico da opinião pública foi abafado por uma visão quantitativa, na qual a opinião pública é interpretada como a soma ou agregação de opiniões individuais, com a ascensão do novo modelo, abre-se espaço para o retorno de uma visão conversacional da opinião pública.
Aos olhos do pragmatismo de Peirce, essas mudanças são de extrema relevância, uma vez que as pesquisas de opinião pública atuam como meios para que possamos inquirir a realidade a respeito da opinião pública ela mesma. Após séculos de debate teórico em torno da natureza desse fenômeno, temos em mãos hoje métodos e técnicas de pesquisa empírica que permitem uma apreensão – ainda que embrionária – da opinião pública, baseada em uma interação complexa entre atores sociais.
Finalizaremos este artigo, reafirmando que não vemos os dois modelos de pesquisa de opinião pública aqui abordados como sendo excludentes. Pelo contrário, consideramos que um trabalho coordenado entre pesquisadores de ambas as abordagens, aliado a explicações teoricamente fundamentadas sobre o objeto “opinião pública”, pode levar adiante uma compreensão mais profunda e historicamente suportada desse objeto.
PUBLIC OPINION AND TECHNOLOGY: THE IMPACTS OF BIG DATA IN PUBLIC OPINION STUDIES UNDER THE LOOK OF PRAGMATISM
Abstract: In this article, we investigate how the study of public opinion is influenced by public opinion polls as they work as a means of inquiring reality. With the growing movement of datification in the world, scientific and technological transformations emerge and impact the field of public opinion studies. Today, on the one hand, we have traditional opinion polls and, on the other, the researchers made possible by the advent of Big Data. In addition to a collection of methodological protocols, each model encompasses a meaning of "public opinion", going back to the old epistemological clash between theory and methodology present in this field of study. We will describe the main differences between these two models and then, under the perspective of Peirce's pragmatism as a theory of meaning, to analyze the transition we are going through today.
Keywords: Public opinion polls. Big Data. Meaning. Pragmatism.
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Recebido: 13/11/2020
Aceito: 13/5/2021
[1] Professor na Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6558-0550. E-mail: vinicius.romanini@usp.br.
[2] Mestre pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9170-573X. E-mail: pedrocaldas@usp.br.
[3] Essential Peirce (PEIRCE, 1992, 1998). Nas citações, o primeiro número após a sigla indica o volume e os demais, após dois pontos, se referem às páginas.
[4] Collected Papers (PEIRCE, 1931-1958). Nas citações, o primeiro número após a sigla indica o volume e os demais, após o ponto, são atinentes ao parágrafo.
[5] Naquele momento, o autor passa a chamar o pragmatismo de pragmaticismo, para que suas elaborações originais não fossem mais confundidas com outras que haviam sido criadas por terceiros. Depois de algum tempo, Peirce voltaria a utilizar o termo pragmatismo, a fim de se referir às suas próprias elaborações.
[6] A saber: (1) A opinião pública é uma agregação de opiniões individuais; (2) A opinião pública é um reflexo das crenças da maioria; (3) A opinião pública é encontrada no choque entre interesses de certos grupos; (4) A opinião pública reflete a influência da mídia e das elites; (5) A opinião pública é uma ficção.