Outros Inconscientes: Desconstruindo a Translucidez da Consciência Sartriana

                                                                        

Fernanda Alt[1]

Resumo: Este artigo coloca em questão o conceito de transparência da consciência, em Sartre, mostrando outras possibilidades de se pensar modos “inconscientes”, que não o freudiano, em sua filosofia. Ao rejeitar o inconsciente psicanalítico, ao mesmo tempo que propõe uma filosofia da consciência transparente, Sartre é frequentemente interpretado como aquele que assume e potencializa os problemas levantados pela herança do sujeito cartesiano, no séc. XX. Assim, é preciso, em primeiro lugar, apontar quais são esses problemas para, em seguida, interrogar o sentido da consciência transparente em Sartre, no intuito de verificar se, de fato, este acarreta nas consequências mais clássicas de tal característica. Nesse movimento, ocorre que a própria consciência revela elementos desconstrutivos, graças a seu caráter “espectral”, traço implícito, porém presente no texto de Sartre. Além disso, a investigação torna possível vislumbrar outras formas inconscientes – nesse caso, aspectos que indicam desconhecimento e opacidade na relação a si –, colocando finalmente em questão tal herança e suas consequências.

 

Palavras-chave: Inconsciente. Transparência. Má-fé. Sartre. Sujeito.

 

INTRODUÇÃO

          A segunda metade do séc. XX caracterizou-se, segundo Alain Badiou (2012, p. 12), como uma “imensa discussão sobre Descartes” , por ser ele o inventor da noção de sujeito, em torno da qual um grande debate se concentrou. Badiou destaca elementos desse momento da filosofia francesa contemporânea, os quais revelam um desejo de modernização, através de transformações também artísticas, sociais, culturais, científicas etc. O efeito de todo esse processo é que o sujeito, mesmo com outros nomes (sua “morte” à parte), “[...] não pode ser o sujeito racional e consciente vindo diretamente de Descartes; nem pode ser, para dizer mais tecnicamente, o sujeito reflexivo; ele deve ser algo mais obscuro.”[2] (BADIOU, 2012, p. 18). Daí a importância da psicanálise no quadro da filosofia contemporânea, visto que Freud mostrou notavelmente que a questão do sujeito vai além dos domínios da consciência. Como resultado, “[...] toda a filosofia francesa contemporânea se envolveu numa grande e severa discussão com a psicanálise” (BADIOU, 2012, p. 19), numa relação de cumplicidade e rivalidade, fascínio e amor, hostilidade e ódio, conclui Badiou.

            Esta é uma breve consideração sobre o cenário no qual Sartre desenvolve sua filosofia da liberdade, que é, muitas vezes, tomada como a herança por excelência da filosofia da consciência cartesiana, na contemporaneidade. Ao mesmo tempo, essa filosofia é também conhecida por sua rejeição do inconsciente freudiano, o que a distancia da possibilidade de realizar a tarefa de ir além do sujeito de Descartes, substituindo-o por “[...] algo mais obscuro, mais relacionado com a vida, com o corpo, um sujeito menos estreito do que o sujeito consciente.” (BADIOU, 2012, p. 19). Ao não somente propor uma filosofia da consciência, mas, sobretudo, reivindicar a manutenção de sua característica de transparência, Sartre parece não escapar aos problemas frequentemente apontados nesta “imensa discussão sobre Descartes”, cedendo finalmente às ilusões dos poderes da consciência. Dito de outro modo, ao desenvolver uma filosofia da consciência transparente, ao mesmo tempo que critica o inconsciente psicanalítico, Sartre desponta de imediato como um herdeiro direto da luzcartesiana, carregando consigo todas as consequências que tal herança implica.

            Esse ponto é fundamental para os estudos sartrianos, pois o que está em jogo aqui é se, de fato, o ser humano se conhece ou não, se domina ou não suas próprias ações, se existem ou não desejos mais profundos que vão para além das escolhas voluntárias. Se é certo que o pensamento sartriano carrega consigo alguns problemas fundamentais identificados no cerne do cartesianismo, as consequências políticas que daí decorrem são realmente importantes: lidaremos com um sujeito que será interpelado por sua racionalidade consciente, sua capacidade de realizar escolhas individuais voluntárias, presumindo haver domínio de si. Esse é o motivo pelo qual Foucault (2001, p. 671) dizia sentir “[...] nenhuma compatibilidade com o existencialismo, tal como definido por Sartre. [Neste,] o homem pode ter controle total sobre as suas próprias ações e a sua própria vida”; e complementa: “[...] mas há forças que podem intervir e não podemos ignorá-las.” Pode-se entrever aí a ideia de que a filosofia de Sartre, a qual é uma filosofia da consciência, suporia tal “domínio de si” (maîtrise de soi) do sujeito – um controle completo do ser humano sobre as suas ações e sua vida –, em razão de não admitir um plano inconsciente. Assim, uma tal recusa, somada à ideia de uma consciência transparente, resultaria necessariamente na impossibilidade de haver desconhecimento de si (méconnaissance de soi) por parte do sujeito, logo, jamais erro ou ilusão na relação a si.

            Diante dessas questões, parece ocorrer, na maioria das vezes, a insistência numa falsa alternativa: ou se admite um sujeito do inconsciente nos moldes fornecidos pela psicanálise, ou se permanece preso aos problemas decorrentes da filosofia da consciência. Merleau-Ponty e outros fenomenólogos, por terem reivindicado uma dimensão de “opacidade” no sujeito, figuram como exceções à limitação que uma tal oposição implica. Todavia, quanto a Sartre, creio que temos de provocar certo deslocamento no modo como sua filosofia é situada, quando confrontada a essas alternativas.

 

1 O problema da transparência da consciência

            De A Transcendência do Ego (SARTRE, 2003b) a O Ser e o Nada (SARTRE, 2012), a consciência pré-reflexiva, que é a estrutura mais imediata da relação consciente a si, não perde sua característica de translucidez. Da mesma forma, tudo aquilo que é da ordem do objeto é designado pela qualidade de opacidade. O argumento de Sartre (2003b), nos primeiros escritos, é o de que o Ego, ou qualquer outro objeto, consiste num centro de opacidade e não pode ser admitido na região consciente, senão ao preço de substancializá-la. Após a mudança ocorrida em seu pensamento, no final dos anos 1930 – devido à introdução da categoria de facticidade e à substituição de uma concepção instantaneísta da temporalidade pela ek-stática[3] – a consciência, que era até então caracterizada como nua, pura negatividade, passa a ser uma dimensão do “para-si”, que é o modo de ser da consciência, estruturado por uma dialética entre “ser e não ser”. Porém, mesmo após essa mudança fundamental, a transparência continua sendo uma qualidade da consciência, de sorte que tudo o que diz respeito à região ontológica “para-si” deve ser translúcido.

            Ao dotar a consciência da característica de translucidez, Sartre se inscreve numa tradição filosófica em torno da ideia de luminosidade, a qual Derrida (1972, p. 318), em “A mitologia branca”, identifica como sendo “o círculo do heliotropo”. Desde Platão, é à luz do sol que se contemplam as verdades, no momento em que o olhar se habitua a não mais estar nas sombras da caverna; em Descartes, é “[...] a luz natural [que] constitui o éter mesmo do pensamento e do seu discurso próprio”, sublinha Derrida (2003, p. 319). O cogito cartesiano passa a ser então um novo paradigma, não somente do lugar de luminosidade divina, mas também da transparência do sujeito a si mesmo, atravessado por tal luminosidade.

Desde então, na tradição idealista clássica pós-cartesiana, “[...] o sujeito designa este ponto de ser transparente, numa postura de doação imediata a si próprio, através da qual todo o acesso à existência como tal passa.” (BADIOU, 1982, p. 294). Ao falar de luminosidade, translucidez, sombras, opacidade e, principalmente, ao “partir do cogito”, Sartre dá continuidade, portanto, à herança dessa tradição filosófica. Para Badiou (1982), o não ser da consciência livre sartriana é o verdadeiro nome da transparência; o cogito sartriano é “transparência de sua transparência”, e o que o cogito nos dá, neste caso, e que torna uma ontologia possível, é o nada (rien) (BADIOU, 1982, p. 294). Quais seriam, portanto, as implicações da posição sartriana, ao afirmar uma consciência transparente?

            Nas análises sobre o inconsciente, em Philosophie de la Volonté I, Ricœur (2009, p. 471) faz algumas considerações sobre em que consiste o “[...] fracasso da doutrina da transparência da consciência.” Seus argumentos, grosso modo, fazem-nos compreender que uma filosofia da consciência transparente se baseia num preconceito simétrico ao que Politzer (2012) chamava de problema do “realismo do inconsciente”. A crítica deste último à psicanálise, em Crítica dos fundamentos da psicologia, de 1928, foi de grande influência. Worms (2013, p. 7) resume bem a questão central dessa obra: “Deverá a ignorância do sujeito sobre si, que é a grande descoberta da psicanálise, levar à afirmação (ontológica, biológica nas suas profundezas) do inconsciente, ou, pelo contrário, esta trai o sentido desta descoberta?”

Para Ricœur (2009), é possível encontrar uma resposta original a essa pergunta, ao abrir mão, ao mesmo tempo, de uma concepção realista do inconsciente e idealista da consciência. A ilusão desta última perspectiva é a de que a consciência pode se autoposicionar, de maneira a se apreender completamente, num movimento cujo paradigma se encontra justamente no cogito cartesiano. Além disso, a consciência transparente é pura espontaneidade e não admite passividade, de modo que os filósofos que a pressupõem “[...] recusaram ao pensamento esse fundo obscuro e essa espontaneidade oculta a si mesma.” (RICŒUR, 2009, p. 437). A alternativa entre um realismo do inconsciente e uma consciência transparente é, por fim, um falso dilema, pois há de se pensar uma passividade inerente à atividade, dado que é justamente ao admitir este “fundo obscuro” que Ricœur (2009, p. 275) acredita ser possível à fenomenologia “[...] ultrapassar uma eidética demasiado clara, a ponto de elaborar os ‘index’ do mistério da encarnação.”

            Nesse mesmo sentido, Merleau-Ponty (2014, p. 441) afirma que, “[...] se somos em situação, somos circundados, não podemos ser transparentes para nós próprios, e é necessário que o nosso contato conosco mesmos seja feito apenas por equívoco”, de maneira que toda “percepção interior” é inadequada. Conceber uma consciência transparente é, assim, filiar-se à herança cartesiana do cogito de uma apreensão imediata e adequada de si, desprendida da facticidade. Além disso, trata-se de um sujeito necessariamente solipsista, já que

[…] o contato do meu pensamento consigo mesmo, se for perfeito, fecha-me sobre mim mesmo e me impede de jamais me sentir ultrapassado, não há aí abertura ou “aspiração” a um Outro para este “Eu” (Moi) que constrói a totalidade do ser e a sua própria presença no mundo, que se define pela “posse de si mesmo” e que só encontra lá fora o que ele colocou. (Merleau-Ponty, 2014, p. 431).

 

            Tendo em vista essas breves considerações, podemos destacar resumidamente três problemas centrais da transparência da consciência: esta supõe, em primeiro lugar, uma adequação do sujeito a si, o que implicaria algum tipo de identidade; em segundo lugar, a transparência comporta um “domínio de si” (maîtrise de soi) do sujeito que é completamente consciente de si mesmo – o que exclui a possibilidade de um “desconhecimento de si” (méconnaissance de soi); por último, a consciência transparente caracteriza uma subjetividade pura, de sobrevoo e não encarnada. Solipsismo, domínio de si, idealismo, identidade – seriam estas as consequências do conceito de translucidez na filosofia de Sartre? Vejamos.

 

2 Curiosa transparência…

            Em primeiro lugar, sabemos que, em O Ser e o Nada (SARTRE, 2012), a definição do “sujeito” como para-si é desenvolvida como uma crítica à identidade. Colocamos sujeito entre aspas, precisamente por essa razão, pois, se, como diz Descombes (2004, p. 22), “[...] de modo geral, chamamos de sujeito (subjectum) o termo que consideramos idêntico a si mesmo em diferentes circunstâncias”, este, definitivamente, não é o caso do modo de ser para-si. Sendo o para-si negação da identidade e nunca idêntico a si, devemos compreender dessa mesma maneira a noção de presença a si, que é uma de suas estruturas imediatas, porque, ao usar termos clássicos das filosofias do sujeito como “consciência de si” e “presença a si”, Sartre se encontra no interior dessa tradição, embora sua concepção de “presença a si” se apresente como uma crítica às anteriores:

[…] consideramos frequentemente esta presença a si como uma plenitude de existência, e um preconceito difundido entre os filósofos atribuiu à consciência a mais alta dignidade de ser. Mas este postulado não pode ser mantido após uma descrição mais detalhada da noção de presença. (SARTRE, 2012, p. 113).

 

            Qual é então a diferença? Vimos há pouco a relação entre a ideia de transparência da consciência e a adequação do sujeito a si que implica identidade. Essa posição envolve certamente uma concepção da temporalidade, a qual Derrida (2012), inspirado em Heidegger, mostrou muito bem ser própria à “metafísica da presença”. Em A Voz e o Fenômeno (DERRIDA, 2012), a crítica derridiana à fenomenologia de Husserl concentra-se no fato de que este deixa intacto um pressuposto, quando pratica a redução fenomenológica, que é" [...] o presente ou a presença do sentido a uma intuição plena e originária.” (DERRIDA, 2012, p. 3). Isso significa que, por mais que a teoria husserliana da temporalidade possa apresentar uma complexidade interessante, de acordo com “o princípio dos princípios” que marca seu intuicionismo, o presente vivo permanece sendo o ponto-de-origem (point-source) de suas investigações fenomenológicas.

            A “presença a si” acarreta, por conseguinte, um modo de identidade do sujeito consigo mesmo, já que, se é concebível apreender a própria vivência pela reflexão, isto pressupõe a possibilidade de apreender a si mesmo no presente. Diante disso, cabe questionar, em primeiro lugar: como Sartre pode ainda se apoiar numa “presença a si” visto que sua temporalidade não é mais instantaneísta, e já que, sendo assim, como dizia Derrida (2012), criticando Husserl, o olhar não pode “permanecer”?

             Presença a si em Sartre não resulta, portanto, num sujeito pleno, idêntico; trata-se, na verdade, de um “escape”, uma diferença, uma “ausência”, uma presença finalmente estranha às definições tradicionais do termo: a consciência “[...] nãocoincide consigo mesmo numa adequação plena” (SARTRE, 2012, p. 110), dado que ela é “[...] uma maneira de não ser sua própria coincidência, de escapar à identidade.” (SARTRE, 2012, p. 113). Howells (1992), em Sartre and the deconstruction of the subject, chega mesmo a ver nessa “presença” sartriana – que é aquela que impede a identidade – uma antecipação da desconstrução do sujeito husserliano realizada por Derrida (2012), em A Voz e o Fenômeno. Sem entrar no mérito se essa afirmação procede, de fato, a presença a si em Sartre não significa adequação ou identidade do sujeito, características que normalmente são atreladas às filosofias da consciência, sobretudo à consciência transparente.

            Evidentemente, ao pensar a consciência como “presença a si”, Sartre se inscreve no quadro mais clássico da metafísica da presença. No entanto, essa inscrição é paradoxal, considerando que se trata de uma presença que não se refere mais a uma plenitude ou a um imanentismo e nem mesmo à primazia da reflexão, visto que é pré-reflexiva. Tal estrutura é descrita como um “jogo de reflexos” (SARTRE, 2012), de sorte que a consciência seja sempre “olhada” e, por isso, “contestação em si mesma” (SARTRE, 2003a, p. 156), consciência perturbada (troublée) (SARTRE, 2012). O jogo de reflexos que a caracteriza é “[...] um jogo perpétuo de ausência e de presença” (SARTRE, 2013, p. 156), o que faz com que seu modo de ser adquira – ao contrário de uma plenitude que pode ser intuída – um caráter espectral que veda qualquer tipo de intuição.

Assim, a “díade fantasma” (dyade fantôme), a qual é a consciência pré-reflexiva, consiste num tipo de ser que, se quisermos apreendê-lo, “[...] ele escorre entre os dedos” (SARTRE, 2012, p. 112). O nada (néant) que “separa” um termo do outro não é passível de ser apreendido, o que pode ser observado na descrição da consciência de crença:

[…] a separação que separa a crença de si mesma não se deixa apreender nem sequer ser concebida à parte. Se tentarmos detectá-la, ela se esvanece: encontramos a crença como pura imanência. Mas se, pelo contrário, quisermos captar a crença como tal, então a fissura está ali, aparecendo quando não queremos vê-la, desaparecendo desde que buscamos contemplá-la. (SARTRE, 2012, p. 117).

 

            É interessante notar o elemento espectral desta última afirmação: “Mas se, pelo contrário, quisermos captar a crença como tal, então a fissura está ali, aparecendo quando não queremos vê-la, desaparecendo desde que buscamos contemplá-la.” Contrariamente à plenitude do idêntico, a presença a si fantasmática descrita por Sartre significa, na realidade, escape, disjunção na relação do sujeito consigo mesmo. Trata-se, portanto, de um modo de existência que possui as características de um espectro, o qual é o elemento que vem perturbar um suposto imanentismo consciente.

            Ao abordar o espectro, nós nos voltamos para as análises de Derrida (1993) sobre a forma de presença que lhe é própria. O autor mostra como o espectral é justamente o que abala a contemporaneidade a si do sujeito, na medida em que nele lidamos com uma temporalidade que não é mais a da presença plena e positiva: é próprio ao espectro o ir e vir, o frequentar, o habitar sem residir num campo de aparição, como um assombrar (hanter). No que concerne ao problema da transparência da consciência, na questão da adequação do sujeito a si, aquilo que Sartre chama de presença a si corresponde à estrutura espectral do jogo de reflexos que quebra a contemporaneidade a si própria a uma presença efetiva, porque é uma presença que também é ausência a si.

            O segundo ponto destacado acima sobre o problema da transparência da consciência diz respeito à ideia de que uma consciência transparente implica “domínio de si”. Em Sartre, esse aspecto se acentua ainda mais, dada a sua oposição ao inconsciente freudiano ou a todo tipo de opacidade no campo da consciência, como aponta frequentemente Merleau-Ponty. Ora, se não há zonas inconscientes ou zonas de opacidade no campo da relação a si, tudo se passa como se o sujeito conhecesse a totalidade de seu ser. No entanto, a particularidade da translucidez própria à consciência em Sartre reside no fato de que essa translucidez é, nas palavras de Vincent de Coorebyter, uma invisibilidade total, a qual, contrariamente ao conhecimento de si, é o que impede esse conhecimento mesmo. Segundo De Coorebyter (2000, p. 275),

[...] longe de constituir um território inviolável onde a consciência gozaria de um domínio sobre si perfeito, o translúcido é apenas um elemento abstrato da díade, elogiado por Sartre na medida em que é inteiramente dedicado a outro que não si mesmo, impossibilitado de permanência (séjour) interior ou autoiluminação fascinada.

 

Porque, conforme De Coorebyter (2000, p. 259),

[…] contrariamente às censuras feitas a Sartre, o translúcido não é conhecimento de si, ilusão de autointuição, fantasma metafísico de adequação do pensamento a si em um pensamento de si: enquanto Sartre pretende distingui-los, esses críticos confundem o retorno a si do cogito com o exílio inerente ao pré-reflexivo. Este último se escapa em prol da iluminação do visado: do mesmo modo que a luz não pode clarear a luz, a consciência translúcida não pode se apreender como tal pois ela não teria nada a apreender; ela não é reflexão no sentido cartesiano mas, como diz Heidegger, no sentido óptico do termo. […] A translucidez é o contrário das figuras do domínio; a consciência se perde para se recuperar sobre a visada das coisas.

 

            O nível de consciência que Sartre chama de pré-reflexivo não é então, finalmente, passível de ser conhecido, visto que é um campo de invisibilidade. Nesse sentido, a estrutura espectral da consciência implica um tipo de opacidade na relação do sujeito a si, opacidade não mais designando uma característica própria aos objetos, mas agora significando essa cegueira inerente à relação a si, a “perturbação”, proveniente da díade fantasma que quebra todo tipo de adequação e, consequentemente, de conhecimento completo e fechado na relação a si. O que chamo de opacidade espectral corresponde, assim, ao fato de que o pré-reflexivo é uma espécie de “saber implícito de si” que comporta necessariamente um “não saber”. Um modo paradoxal, como nota Romano (2003), justamente porque, ao mesmo tempo que temos uma transparência e presença a si inalienável, esta se traduz em opacidade, sem a qual não haveria necessidade de uma “psicanálise existencial”. Com efeito, o papel da psicanálise existencial proposta por Sartre (2012) é o de decifrar o projeto fundamental do para-si – que é a escolha original da maneira de ser de um sujeito particular no mundo –, projeto que se caracteriza, parafraseando Barrès, como “[...] um mistério em plena luz.” (SARTRE, 2012, p. 582).

            O último aspecto que coloca em questão o sujeito translúcido e transparente, no sentido clássico em Sartre, corresponde ao que Merleau-Ponty chamava de consciência de sobrevoo. Nesta se localiza o terceiro problema: a ideia de que uma consciência transparente é o outro nome de uma subjetividade pura, não encarnada. Deve-se, então, pensar como Sartre consegue conciliar ao mesmo tempo a estrutura da facticidade com a consciência transparente. Dito de outro modo, como ele pode garantir um pertencimento do sujeito ao mundo, inscrição dada pela estrutura da facticidade, ao afirmar uma subjetividade pura? Devemos, pois, considerar com rigor a estrutura imediata da facticidade do para-si, em O Ser e o Nada (SARTRE, 2012), que é aquela sob a qual ocorre o ato de nadificação da consciência, o qual só se dá na medida em que o sujeito para-si “é”. Sobre essa constante nadificação de si que caracteriza o modo do sujeito para-si, Sartre (2012) aponta que ela deixa sempre um resto de em-si que o assombra constantemente, como sua contingência original.

Se, após o ato de nadificação, há sempre tal resto – um traço de ser que continua a assombrar o para-si –, isso significa que, ao se nadificar, o para-si não se desprende totalmente do ser que ele é, e que esse resto de em-si permanece “presente”, como algo que perturba a suposta pureza da dimensão subjetiva. É essa mesma presença que motiva o para-si como “fuga” da contingência, sem a qual não se pode compreender algo como “fuga” e nem mesmo – inversamente – o desejo como falta e busca de completude. Se tal aspecto compõe o modo de ser mesmo do para-si, o assombramento pela contingência original é incessante e essencial, ratificando o papel da facticidade no pertencimento ao mundo, e a perturbação da suposta pureza subjetiva pelo assombramento.

            A espectralidade vem finalmente colocar em questão o significado da translucidez como sendo equivalente à identidade do sujeito, à possibilidade de um “domínio de si” e à afirmação de uma subjetividade pura. Já a díade fantasma atesta tal impossibilidade à identidade e o desconhecimento próprio à invisibilidade do pré-reflexivo. Por fim, o assombramento dos modos provenientes da facticidade do para-si vem revelar a existência de zonas de sombreamento que reforçam a opacidade, convidando-nos a explorar outros modos de consideração do inconsciente, ou melhor, a colocar a questão se pode haver aí “outros inconscientes”.

 

3 Inconsciente, não saber e má-fé

            Leitores familiarizados com a crítica de Sartre ao inconsciente podem realmente se espantar com uma afirmação do tipo: “[...] há, com efeito, um inconsciente no centro da consciência: não se trata de alguma potência tenebrosa e sabemos que a consciência é inteiramente consciência; trata-se da finitude interiorizada.” (SARTRE, 2007, p. 89, grifo nosso). O trabalho sobre Mallarmé, de onde retiramos essa citação, data de 1953, ou seja, dez anos após a publicação de O Ser e o Nada. Isso não significa que o filósofo tenha mudado radicalmente sua crítica ao inconsciente freudiano, mas que, sobretudo, ele aos poucos passa a admitir explicitamente que a consciência envolve, em certo sentido, opacidade. Esse aspecto se deixa entrever, se tomarmos as declarações de Sartre a respeito do uso cada vez maior da noção de vivido (vécu), no lugar de consciência. Essa noção permite compreender tal opacidade inerente à “presença a si”:

A introdução da noção de vivido representa um esforço para conservar esta “presença a si” que me parece indispensável à existência de todo fato psíquico, uma presença que é ao mesmo tempo tão opaca, tão cega, que é também “ausência de si”. O vivido é sempre, simultaneamente, presente a si e ausente de si. (SARTRE, 1976, p. 112).

 

            Da mesma forma, na conferência Que é a subjetividade?, de 1960, Sartre (2013) fala em termos de “obscuridade a si”. Vejamos este trecho do debate que se seguiu à conferência:

Voz: Se me permite, talvez haja uma coisa a observar: a vida no interior, de Flaubert, do seu pai, do seu irmão, o colégio, o médico, etc. Poder-se-ia dizer: está em Flaubert como algo que ele guarda nele, na sua obscuridade e nas profundezas de sua obscuridade. Então temos a prova de que algo a que chamamos o inconsciente é o exterior que se encontra em mim. Concorda?

Sartre: Exato. Era isso que eu queria dizer. É o exterior: é a própria sociedade, penso nela reconhecendo-a fora e eu me projeto, ou seja, eu a projeto sobre ela mesma. No fundo, se quiser, são duas fases diferentes que se juntam, duas socialidades; e é a mesma socialidade, é o mesmo condicionamento.

Voz: O que é importante é que com base nisso nós podemos trabalhar, analisando a palavra “inconsciente” numa outra forma.

Sartre: Eu disse “não saber”, em geral, porque se trata da realidade.

Voz: Sim, sim, exatamente, mas essa é a realidade da objetividade que guardo em mim, não é algo inteligível: essa é a questão. Concorda?

Sartre: Concordo plenamente. (SARTRE, 2013, p. 127-128).

 

            Segundo essa fala, na qual o interlocutor nos esclarece mais do que o próprio Sartre sobre o que está em jogo, este último prefere chamar de “não saber” essa realidade objetiva em nós, que consiste numa espessura de obscuridade. Não se trata, portanto, do inconsciente psicanalítico – aquele que Deleuze e Guattari diziam ser um teatro –, mas algo da realidade objetiva interiorizada na própria subjetividade, um tipo de “não saber”.

            A rejeição de Sartre ao inconsciente psicanalítico é marcante e tornou-se um fato conhecido e por diversas vezes criticado (crítica que, na maioria das vezes, abarca sua leitura de Freud como um todo). Todavia, sua relação com a psicanálise é, na verdade, bastante paradoxal, de modo que, para Pontalis (1972, p. 360), deve-se “[...] um dia escrever a história da relação ambígua, feita de uma atração e de uma reticência igualmente profundas, que Sartre mantém com a psicanálise há trinta anos, e talvez até reler o seu trabalho a partir desta perspectiva.” No Esboço para uma teoria das emoções, Sartre (1995) faz uma breve e bem resumida apresentação da sua posição com relação à teoria psicanalítica, quando conclui que o paradoxo é, com efeito, constitutivo dessa própria teoria, a qual busca simultaneamente explicar os fenômenos por relações causais e compreender seus sentidos. São duas atitudes que, segundo Sartre, seguindo os passos de Dilthey e Jaspers, são incompatíveis.

Não há como negar, assim, a importância já citada da crítica de Politzer (2012) ao “realismo do inconsciente”, em Crítica aos fundamentos da psicologia, sobre a qual Tomès (2012) identifica uma proximidade com as de Sartre, embora ele se pergunte qual foi, de fato, a sua influência. Segundo o autor, “[...] sem utilizar a terminologia de Politzer, Sartre parte exatamente da mesma constatação: o fascínio das psicologias pelo modelo das ciências naturais é precisamente o que as impede de compreender o que faz a especificidade da vida psíquica humana” (TOMÈS, 2012, p. 232), embora, para Politzer, isso não signifique um retorno a uma filosofia da consciência.

            Em O Ser e o Nada, Sartre (2012) desenvolve alguns pontos de sua crítica à psicanálise freudiana (que ele chama, por vezes, de psicologia empírica), mas esboça, ao mesmo tempo, uma afinidade com relação ao caráter hermenêutico de seu método, o qual consiste na possibilidade de interrogação dos sentidos de cada conduta humana. A psicanálise existencial é um método propriamente sartriano, que, por não ser clínico, “[...] ainda não achou seu Freud.” (SARTRE, 2012, p. 620). Nome polêmico, já que este não aceita justamente a hipótese fundamental da psicanálise – o inconsciente –, o que seria equivalente, como diz Tomès (2013, p. 51), a algo como “[...] um cartesianismo sem cogito, ou um marxismo sem luta de classes.” De todo modo, trata-se, como frisava Pontalis, de uma relação bastante ambígua[4], conclusão em sintonia com as análises de Badiou, mencionadas acima, sobre combinação entre cumplicidade e rivalidade entre psicanálise e filosofia como sendo uma das marcas do século XX.

            Comecei dizendo que essa rejeição do inconsciente psicanalítico, somada à ideia de uma consciência transparente, fez com que a posição sartriana sobre a relação do sujeito a si pudesse ser interpretada em termos de domínio autocentrado, sem possibilidade de desconhecimento de si. No entanto, a questão é mais complicada, se considerarmos que a crítica ao inconsciente freudiano não descarta o desconhecimento do sujeito sobre si, um “não saber”, por fim, uma “opacidade” própria à translucidez, explicitamente tematizada nas entrevistas que viemos de citar. Cabestan (2015), por exemplo, afirma que o fato de não admitir o inconsciente freudiano não significa que Sartre não admita a ideia mesma de inconsciente. O autor identifica que o desconhecimento de si possibilitado pela noção de vivido não é tão original em relação a O Ser e o Nada, já que, nessa obra, há uma distinção entre consciência e conhecimento, a qual faz com que o para-si viva seu projeto sem conhecê-lo inteiramente.

Esse ponto nos remete à invisibilidade apontada acima, ou seja, ao fato de que a translucidez indica a impossibilidade de tomar-se imediatamente a si mesmo como objeto de conhecimento, o que corresponde a um tipo de “não saber” – para usar o termo de Sartre – próprio da relação a si. A questão é que esse “não saber” não é pensado como sendo uma instância à parte da compreensão de si do sujeito, isto é, Sartre (2012, p. 85) acredita ser um problema Freud ter “cindido em dois a massa psíquica”, dotando a consciência de um caráter passivo com relação ao inconsciente. Para Sartre, tal separação substancializa o psíquico, ao hipostasiar os termos que se encontram separados, com o que ele não pode concordar. O que ele faz, então, é tentar realizar uma ousada síntese entre o “aparecer a si”, próprio da consciência husserliana, com o saber implícito de si, caraterístico do existencial compreensão, em Heidegger.

Isso significa que, aos seus olhos, não é possível haver uma cisão efetiva, na medida em que o para-si é projeto e, logo, assunção de todo o seu ser. Nesse sentido, se há autoengano do sujeito por si mesmo, as duas funções – a do enganador e a do enganado – devem ser integradas no mesmo movimento projetivo, ou seja, o sujeito é ao mesmo tempo e sem duplicidade efetiva, aquele que engana e aquele que é enganado. Segue-se que a coexistência dessas duas posições no para-si é característica do fenômeno que Sartre denomina má-fé (mauvaise foi), por sua vez, possibilitado pela sua própria estrutura “semidual” de “ser o que não se é e não ser o que se é” do para-si. Em outros termos, sendo o para-si esta tensão entre “ser e não ser”, ele encontra-se sempre diante da possibilidade de fazer-se de má-fé, isto é, de negar que ele seja essa mesma tensão.

            Logo, é importante fazer uma distinção entre o “não saber”, que é o desconhecimento de si, a invisibilidade pré-reflexiva e a má-fé, jáo que não estão no mesmo plano. No caso da má-fé, a consciência se motiva a não saber, enquanto, no primeiro caso, trata-se de uma característica do modo ontológico da pré-reflexão, embora a presença a si, como esboço de dualidade na unidade, seja condição de possibilidade para o para-si realizar esse esboço sob a forma de autoengano. Para explicar esse fenômeno, Sartre (2012) se utiliza da estrutura da mentira – alguém que sabe a verdade engana alguém que a desconhece – como paradigma dessa relação dual e unitária da relação a si: o para-si engana a si mesmo. Em contraposição a algo que pudesse ludibriar a consciência “de fora”, a má-fé “[...] não vem de fora à realidade humana. Não sofremos de sua má-fé, não somos infectados dela, não é um estado” (SARTRE, 2012, p. 83). Esse fenômeno consiste, portanto, num fazer-se de má-fé, com o objetivo de “[...] mascarar uma verdade desagradável ou apresentar como verdade um erro agradável.” (SARTRE, 2012, p. 83).

Podemos argumentar, de outra maneira e de forma breve, que a má-fé é uma fuga da angústia própria ao modo de ser sempre em questão, em sursis, negação da identidade ou simplesmente, liberdade. No entanto, o modo desse fazer-se da fuga de má-fé é bastante peculiar, dado que ele não é da ordem da deliberação. Sartre o compara a um adormecimento:

Sejamos claros que não se trata de uma decisão refletida e voluntária, mas de uma determinação espontânea do nosso ser. Colocamo-nos de má-fé como quem adormece e estamos em má-fé como quem sonha. Uma vez realizado este modo de ser, é tão difícil sair dele como acordar: é que a má-fé é um tipo de ser no mundo, como a vigília ou o sonho, que tende por si só a perpetuar-se, mesmo que a sua estrutura seja do tipo metaestável. (SARTRE, 2012, p. 103-104).

 

            Este é o verdadeiro problema da má-fé, o fato de ela ser um tipo de , ou seja, de crença. Não se trata de um ato reflexivo voluntário, mas de um querer pré-reflexivo que decide sobre a natureza da fé, como uma “[...] fé que se quer mal convencida.” (SARTRE, 2012, p. 104). Fazer-se de má-fé é, assim, um modo de estar no mundo, de desvelar um mundo da má-fé, assim como dormir revela um mundo imaginário. Acontece que essa escolha pré-reflexiva é uma decisão que “[...] não ousa dizer seu nome, ela se crê e não se crê de má-fé. E é ela que, assim que a má-fé surge, decide sobre toda a atitude ulterior e, por assim dizer, sobre a Weltanschauung [visão de mundo] da má-fé.” (SARTRE, 2012, p. 103).

O projeto de má-fé decide (pré-reflexivamente, pois ser e escolher-se equivalem-se no nível ontológico) sobre a natureza insatisfatória das verdades, sobre a falta de exigência nas evidências, em não se colocar à prova etc. Entretanto, sendo a crença sempre consciência pré-reflexiva de crença, a consciência é sempre olhada, de modo que, por mais que ela se encontre cativa de sua própria armadilha – que é o caso na má-fé –, não há como escapar do paradoxo de ser, ao mesmo tempo, aquela que se engana e aquela que é enganada, e ainda ser o testemunho do próprio autoengano. Se não fosse assim, não haveria como realizar toda essa metamorfose, a fim de mascarar o próprio modo de ser liberdade, pois só há como fugir de algo, na medida em que se sabe, de algum modo, do que se deve fugir. Em outros termos, “[...] só posso querer ‘não ver’ certo aspecto do meu ser se estiver precisamente consciente do aspecto que não quero ver. Isto significa que tenho que o indicar no meu ser para poder dele me desviar.” (SARTRE, 2012, p. 78-79).

            É nesse ponto que as análises sartrianas sobre a má-fé convergem com a crítica ao inconsciente freudiano, ou talvez encontrem aí a própria razão de sua formulação. Isso, em dois sentidos. Primeiro, porque, ao pensar sobre a concepção de censura em Freud, Sartre encontra argumentos para afirmar seu ponto sobre a dualidade na unidade própria ao autoengano; em segundo lugar, pela razão de que ele acaba atribuindo a pressuposição mesma da hipótese do inconsciente freudiano a uma conduta de má-fé, isto é, no sentido de que conceber tal inconsciente pode servir aos fins de mascaramento da liberdade.

Por isso, se a versão sartriana de oposição ao “realismo do inconsciente” ou ao biologismo da psicanálise não é assim tão original, pode-se dizer que o fato de ele ter considerado o inconsciente freudiano como possibilidade de justificativa de má-fé é realmente uma peculiaridade de sua filosofia. Esta consiste na discussão propriamente sartriana das consequências morais e políticas da hipótese do inconsciente freudiano, que é o fato de que tal hipótese possa servir como fuga da responsabilidade da existência. Dito de outro modo, Sartre não critica somente o biologismo ou o mecanicismo da psicanálise, mas, principalmente, o modo pelo qual essa teoria pode ser utilizada para fins de má-fé, ou seja, como tentativa de legitimar a existência contingente, através de explicações deterministas que desresponsabilizam o sujeito. Ser sujeito, sustenta Sartre (1972, p. 334), “[...] é tão cansativo e, no divã, tudo convida a substituir a responsabilidade angustiante de ser pela sociedade anônima das pulsões.”

            Como mencionamos a respeito da contradição intrínseca à psicanálise apontada por Sartre (1995), no Esboço, entretanto, o caso não é tão simples. Em O Ser e o Nada, ele reconsidera as posições de Freud, na medida em que seja possível sair da “[...] linguagem e [da] mitologia coisista (chosiste) da psicanálise” (SARTRE, 2012, p. 87). DesSa vez, o psicanalista existencial acredita encontrar na própria concepção freudiana de censura razões que evidenciam a relação compreensiva a si do pré-reflexivo, na medida em que

[…] a censura, a fim de aplicar a sua atividade com discernimento, deve saber o que ela recalca. Se, com efeito, renunciarmos a todas as metáforas representando o recalcamento como um choque de forças cegas, temos então de admitir que a censura tem de escolher e, para escolher, se representar. (SARTRE, 2012, p. 87).

 

            Sartre (2012) pretende, por conseguinte, através da análise da censura, mostrar que o fenômeno da má-fé não presume mais uma cisão entre aquele que engana e aquele que é enganado – “uma mentira sem mentiroso” – mas um autoengano do sujeito por ele mesmo, com a finalidade de fuga da existência contingente.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

            Dada a falsa alternativa entre o realismo do inconsciente e o idealismo da consciência, a crítica ao inconsciente psicanalítico não deve, portanto, direcionar para o seu oposto, isto é, para a apologia do domínio de si do sujeito. Sendo a pré-reflexão um campo de invisibilidade, um desconhecimento de si (e não um autoengano, como na má-fé), a translucidez traduz-se paradoxalmente em um sentido de opacidade estranho àquele que estamos habituados a encontrar, no texto sartriano, normalmente atribuído a uma realidade substancial. Como este último sentido foi bastante utilizado por Sartre, como qualidade de objetos que justamente substancializariam a consciência, devemos enfatizar que tal opacidade que agora está em jogo diz respeito a um desconhecimento de si pelo sujeito, próprio ao plano pré-reflexivo, que acaba por ultrapassar um possível dualismo entre translucidez e opacidade.

Com efeito, esse outro sentido de opacidade revela uma união paradoxal entre os dois termos, já que a translucidez, na medida em que é invisibilidade, traz consigo uma opacidade do sujeito na relação a si, no sentido de que nela ele se desconhece, o que o caracteriza como sendo “um mistério em plena luz”. A opacidade espectral apresentada aqui corresponde então a esse desconhecimento próprio à invisibilidade da díade fantasma pré-reflexiva, em sua diferenciação para com a opacidade, que é sinônimo de substancialidade, e ainda aponta para a possibilidade de ir além do dualismo translucidez/opacidade. Ademais, não é somente essa característica da opacidade como “desconhecimento de si” que contesta tal dualismo. Devemos levar em conta, ainda, em que medida essa dimensão é desde sempre uma translucidez assombrada pela facticidade, também em seu movimento de finitude interiorizada que é o “não saber” descrito acima.

Em Mallarmé, Sartre (2007) se refere a esse aspecto como a “face sombria” da translucidez. Já em “A Liberdade cartesiana”, a finitude é comparada ao poder de negação, e é ainda pelo nada que Sartre (1989, p. 300) escapa ao Deus de Descartes: “[...] pela minha finitude e pelos meus limites, pela minha face sombria, afasto-me dele.” Finitude interiorizada e facticidade atestam o engajamento do para-si no mundo e fazem da face sombria uma dimensão que assombra constantemente o para-si, atravessando sua translucidez. Por essa razão, pode-se falar em graus de clareza e opacidade na realidade do para-si, o que favorece o trabalho da psicanálise existencial.[5] Desde o Esboço, Sartre (1995) admite que dizer que, para a consciência, ser e aparecer se equivalem não é o mesmo que dizer que suas significações são explícitas, pois “[...] há de fato muitos graus possíveis de condensação e clareza.” (SARTRE, 1995, p. 36).

Em um momento tardio do seu pensamento, como vimos, a obscuridade que habita o para-si é manifestamente tematizada a partir da noção de vivido (vécu), a qual, de alguma forma, substitui a de consciência. Com o emprego dessa noção, Sartre (1976) sai de uma postura de “rejeição do inconsciente”, a fim de mostrar como ele mesmo pensa o que seria um modo “consciente-inconsciente”, termo que anteriormente atestaria a seus olhos uma contradição absurda. Ele descreve, então, o vivido como “[...] um conjunto cuja superfície é totalmente consciente e, sem ser do inconsciente, é escondido”; o que torna possível mostrar, por exemplo, “[...] como Flaubert não se conhece e como ao mesmo tempo se compreende admiravelmente.” (SARTRE, 1976, p. 111).

            Curiosa translucidez essa que resulta em tais zonas de opacidade e mesmo num consciente-inconsciente. Parece que estamos diante, não de uma falsa alternativa entre Freud e Descartes, mas de um vasto campo de investigação sobre a relação de Sartre com o inconsciente e, principalmente, sobre suas contribuições interpretadas frequentemente de modo apressado e conclusivo, quando se trata do debate em torno da questão do sujeito na contemporaneidade e suas consequências fundamentais.

 

Others Unconscious: Deconstructing the Translucidity of the Sartrian Consciousness

 

Abstract: This article questions the concept of transparency of consciousness in Sartre, while showing other possibilities of thinking “unconscious” modes, other than the Freudian, in his philosophy. By rejecting the psychoanalytical unconscious, at the same time as proposing a philosophy of transparent consciousness, Sartre is often interpreted as the one that assumes and potentializes the problems raised by the heritage of the Cartesian subject in the 20th century. Thus, it is necessary, in the first place, to point out what these problems are and then to question the meaning of transparent consciousness in Sartre, in order to verify whether it in fact entails the most classical consequences of such characteristic. In this movement, it hapens that the consciousness itself reveals deconstructive elements due to its “spectral” character, an implicit but present trait in Sartre's text. Moreover, the investigation still makes it possible to glimpse other unconscious forms - in this case aspects that indicate ignorance and opacity in self-relationship -, finally calling into question such inheritance and its consequences.

 

Keywords: Unconscious. Transparency. Bad faith. Sartre. Subject.

 

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Recebido: 20/10/2020

Aceito: 29/01/2021


 

 



[1] Pós-doutoranda em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), São Carlos, SP – Brasil. Apoio: FAPESP 2017/24307-9. Prêmio CAPES de Filosofia em 2018. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8684-9392. E-mail: fernandaalt@gmail.com.

[2] Todas as traduções são livres.

[3] Esse tema foi desenvolvido em outro artigo: ALT, F. Do instante à ek-stase: a mudança na teoria do tempo em Sartre. O que nos faz pensar, Rio de Janeiro, v. 26, n. 40, p. 305-329, jan./jun. 2017.

[4] A relação paradoxal de Sartre com a psicanálise se estende até suas breves observações sobre Lacan, quem, a seu ver, lhe “[...] esclareceu o que é o inconsciente” (SARTRE, 1972, p. 97). Sobre a dificuldade com relação a Freud, Sartre (1972, p. 105) a atribui à cultura francesa cartesiana, “[...] imbuída de racionalismo, [para quem] a ideia de inconsciente chocava profundamente.” É curioso pensar ainda sobre o episódio que envolve a produção do filme de John Huston – Freud, the secret passion –, cujo roteiro fora encarregado a Sartre. O projeto finalmente deu errado, pois, segundo Sartre (2000, p. 42), “[...] não se escolhe alguém que não acredita no inconsciente para fazer um filme glorificando Freud”; porém, Sartre (1972, p. 103) diz, em outro momento, que foi Huston que não compreendeu o que é o inconsciente!

[5] Essas mesmas análises de luz e sombra podem ser estendidas ao plano reflexivo. A reflexão pura enquanto apreensão pela angústia da característica de invisibilidade da pré-reflexão e a reflexão impura enquanto produtora de sombras que passam também a assombrar o nível translúcido. Esse plano não foi explorado aqui, visto que o objetivo, neste momento, consiste na possibilidade de desconstrução do plano translúcido pré-reflexivo.