Referência do texto comentado: Roselino, Luis Felipe de Salles. Max Weber e Adorno sobre o conceito de progresso: contrastes da racionalização técnica na música e na pintura. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, vol. 43, Número Especial, p. 296 –317, 2020.
Num parágrafo do seu artigo “Max Weber e Adorno, sobre o conceito de progresso: Contrastes da racionalização técnica na música e na pintura”, dedicado à interpenetração estética entre composições musicais e composições picturais, Luis Felipe de Salles Roselino refere-se ao conceito adorniano de pseudomorfose aplicado à pintura. Por ser um conceito-chave na teoria estética do filósofo frankfurtiano e contribuir para a elucidação das principais teses que, no presente artigo, são elencadas, creio que ele deve ser contrastado com o de “convergência” (Konvergenz), tal como vem formulado no texto “Über einige Relationen zwischen Musik und Malerei” (1978), de Adorno.
Apesar do seu posicionamento crítico face à sociedade e racionalidade modernas e, no âmbito estético, aos modelos organicistas que consagravam o “todo” como máxima expressão da harmonia entre as “partes”, os princípios de autonomia que Adorno reivindica da arte, do discurso estético e das práticas artísticas em geral entroncam, ainda, em muitos dos ideais de emancipação legados pela Aufklärung. A arte, articulada segundo esse registo autónomo e apartada do puro entretenimento, é, por excelência, a esfera da sociedade onde gravita a própria crítica da sociedade. Logo, na terminologia dialéctica adorniana, a arte só pode ser autónoma se não for puramente autónoma, se, a bem dizer, incorporar em cada sua manifestação os elementos heterogéneos que põem em causa a sua própria autonomia. A reentrada desses elementos acontece, de forma irrefreável, já nos processos de criação artísticos, nomeadamente através das marcas históricas e sociais transportadas pelos meios materiais dos quais se servem os artistas para criar.
Ora, conectada com o ideal de autonomia da arte, encontra-se, igualmente, a questão da relação das formas artísticas entre si, a qual pode ser vertida na pergunta seguinte: podem as diversas modalidades de criar arte preservar a sua autonomia, quando submetidas à materialidade e a princípios estruturantes que lhes não são originariamente exclusivos? O texto “Die Kunst und die Künste” é, nesse sentido, um ponto hermenêutico decisivo para se compreender, no pensamento estético adorniano, uma teorização aberta do entrelaçamento das formas artísticas, que é designada de Verfransung, face ao conceito marcadamente negativo de pseudomorfose. Se, como Adorno assevera, numa linguagem assaz psicanalítica, “[...] os géneros artísticos parecem gozar de uma espécie de promiscuidade que vai contra os tabus da civilização” (ADORNO, 1967, p. 161), é porque, empiricamente, há uma crescente fluidez dos limites das artes entre si, impulsionada e expressa pelo cruzamento das dinâmicas do tempo com as do espaço. Música, pintura, escultura e literatura adquirem, agora, uma heterorreferencialidade espácio-temporal, cuja natureza se deixa discriminar apenas através da invocação da forma artística, a qual, estruturalmente, lhe serve de base: as composições de Karlheinz Stockhausen, mesmo intencionalmente musicais, congregam múltiplos elementos extramusicais importados da esfera visual; e, nas telas de Paul Klee, o inverso também acontece – a visualidade deixa-se penetrar pela musicalidade.
Embora Adorno, em rigor, não defenda uma unidimensionalidade fisiológica das modalidades sensoriais, nem, tão-pouco, uma constituição autorreferencial e autossuficiente das categoriais temporais e espaciais, ele crê que cada forma artística introduz um impulso de individuação de ambas as categoriais. Por isso, o filósofo frankfturtiano concebe, ainda, a música como Zeitkunst e a pintura como Raumkunst. No caso da primeira, por exemplo, a ordem temporal está conectada com a sequenciação objectiva do tempo e a transcendência face à simples contingência do movimento e do fluxo. Inversamente, as imagens são dadas através da simultaneidade, da qual dependem as múltiplas relações estéticas estabelecidas entre as partes de uma composição pictural.
Contudo, Raumkunst não é sinónimo de ausência de implicações temporais, como sucede no âmago da polarização espaço-tempo introduzida por Gotthold Ephraim Lessing, no seu Laokoon: oder über die Grenzen der Malerei und Poesie. A tensão que ocorre nos processos de articulação entre essas mesmas partes traz, duplamente, à expressão as dinâmicas do tempo e a sua participação decisiva na concepção dos efeitos sensoriais da simultaneidade. Da mesma maneira, a música encontra-se sujeita a uma “espacialização” (Verräumlichung), nomeadamente através dos processos de notação. Todavia, em Philosophie der neuen Musik, Adorno torna assaz claro que a total espacialização da música põe em causa tanto a objectivação expressiva do tempo quanto a temporalidade interna que anima a formação da consciência dos seres; o filósofo dirige, aqui, uma crítica assertiva à espacialização musical promovida por Igor Stravinsky, a ponto de afirmar que, nesse caso, a música tende a ser transformada num mero “parasita da pintura” (ADORNO, 1975, p. 178).
Os limites entre as artes são, antes de tudo, restrições impostas pela materialidade de cada médium, não sendo, consequentemente, objecto de uma mera mitigação formal, tal como se pretendia com a formulação wagneriana do Gesamtkunstwerk. Logo, no caso da pseudomorfose, na qual uma forma artística imita outra que lhe é materialmente oposta, há uma tendência para o sincretismo e a erosão dialéctica das diferenças que as separam. As formas artísticas podem confluir, mas, apenas, se a distinta imanência dos seus princípios não for posta em causa e tiver expressão no seio do processo que enceta as relações. Ao contrário da pseudomorfose, cuja natureza estética repousa num aparente princípio de reciprocidade, e da uniformização promovida pelo Gesamtkunstwerk, Adorno chama a esse processo dialéctico de “convergência” (Konvergenz).
A importância do texto “Über einige Relationen zwischen Musik und Malerei” tem que ver, precisamente, com a consideração positiva – vertida no conceito de convergência – das possibilidades intermediais das formas artísticas. Um dos maiores exemplos de tal articulação superior – porque aquilo que, nesse sentido estrito, converge visa, paralelamente, a divergir daquilo que aliena – é-nos dado pelo liame estético entre a atonalidade musical e os traços desfigurativos da pintura modernista. Como se lê, ainda, em Ästhetische Theorie, também a indeterminação que permeia as obras picturais da action painting e as composições da música aleatória são capazes de fornecer nexos analógicos entre as artes e, assim, objectivar um modo diferente de articular e interpelar a própria imaginação dos espectadores (ADORNO, 1970, p. 64). Aliás, essa preocupação comum em promover as potencialidades da imaginação fez com que muitos movimentos artísticos vanguardistas do século vinte edificassem os seus programas estéticos contra a reificação dos artefactos tecnológicos e a possibilidade mimética de a arte importar, acriticamente, os modelos maquínicos da tecnologia. O próprio conceito de pseudomorfose indicia, sobremaneira, um procedimento artístico mimético baseado na reprodução. Trata-se de um processo eminentemente técnico, o qual, subvertendo as contingências estéticas da criação artística, duplica as mesmas formas de manufactura dos produtos de consumo.
A pergunta que formulei no início desta breve reflexão – saber se o entrelaçamento das artes depaupera a sua própria autonomia – não abarca, ainda, na obra de Adorno, a questão dos ambientes e das superfícies tecnológicas multimodais. Quer a pseudomorfose, quer a convergência são processos poiéticos maioritariamente centrados na importação da forma; ou seja, a absorção estética que cada género artístico pode empreender, face aos demais, situa-se fora do âmbito das suas relações empíricas ou, pelo menos, não as pressupõe ab initio. Hoje, mais do que nunca, o desafio teórico passa por perceber como formas artísticas potencial e estruturalmente distintas, mas que partilham a mesma superfície de inscrição, podem, na acepção adorniana, “convergir”, sem perder a singularidade do seu perfil estético.
REFERÊNCIAS
ADORNO, T. Die Kunst und die Künste. In Theodor W. Adorno: Ohne Leitbild: Parva Aesthetica, Frankfurt am Main: Suhrkamp. 1967, p. 158-182.
ADORNO, T., Ästhetische Theorie. In Theodor W. Adorno: Gesammelte Schriften, Vol. 7, Herausgegeben von Rolf Tiedemann, Frankfurkt am Main: Suhrkamp. 1970.
ADORNO, T. Philosophie der neuen Musik. In Theodor W. Adorno: Gesammelte Schriften, Vol. 12, Herausgegeben von Rolf Tiedemann, Frankfurt am Main: Suhrkamp. 1975.
ADORNO, T. Über einige Relationen zwischen Musik und Malerei. In Theodor W. Adorno: Gesammelte Schriften, Vol. 16, Herausgegeben von Rolf Tiedemann, Frankfurkt am Main: Suhrkamp. 1978, p. 628-642.
[1] Docente na Universidade de Coimbra, Instituto de Estudos Filosóficos (IEF), Departamento de Filosofia, Comunicação e Informação. ORCID: orcid.org/0000-0003-3516-661X. E-mail: bragajoaquim77@gmail.com