Comentário

 

Sandro Sena[1]

 

 

Referência do texto comentado: Periñán, Juan José Garrido. Caminos y esbozos para una apertura fenomenológica del horizonte mismidad desde la constitución del mundo en ser y tiempo de Heidegger. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, vol. 43, Número Especial, p. 249 –275, 2020.

 

Com grande satisfação, recebo pela primeira vez o convite para escrever um texto científico – por natureza, texto dirigido a todos e a todas –, tendo em vista alguém. Um ente, assim propôs Heidegger, que pode, em seu ser, ser o ente quem ele mesmo é, um ente que pode ser si-mesmo. Por um feliz acaso, as condições criadas por vós-mesmos, editoras e editores de TRANS/FORM/AÇÃO, para esse diálogo, não poderiam ser mais favoráveis, posto ser justamente o fenômeno existencial da mismidad, o tema filosófico ao qual tu-mesmo, Prof. Juan Periñán, dedicas tuas reflexões na contribuição acima publicada, para proveito dos estudiosos e estudiosas da fenomenologia – nós-mesmos. O que significa esse mesmo”? Para qual direção se deve voltar o olhar fenomenológico, de modo a ver e conceber o seu ser e estrutura ontológica? Em qual campo fenomenal reluz primariamente a mismidad do ser-aí?

Para a última questão, o título “Caminos y esbozos para una apertura fenomenológica del horizonte mismidad desde la constitución ontológica del mundo en Ser y Tiempo” apresenta uma resposta que será cuidadosamente elaborada, ao longo do escrito, através de reconstruções rigorosas das análises heideggerianas do momento estrutural “mundo” – em especial do acoplamento entre respectividade (Bewandtnis) e significância (Bedeutsamkeit) –, pertencente à estrutura unitária e total formalmente indicada em Ser e tempo, com a expressão “ser-no-mundo”. Não seria preciso esperar o pensador traduzi-la posteriormente como a unidade de existencialidade (ser-se-adiante),  faticidade (já-ser-em) e caída (ser-junto-a), isto é, o próprio ser do ser-aí enquanto Cuidado (Sorge), para que a mismidad mostre a sua face; essa já aparece na descoberta do existencial mundanidade, preparada com grande agudeza metodológica por uma análise do simples uso cotidiano de entes intramundanos utensiliares,

[...] pues lo que afirma Heidegger, ni más ni menos, es que el complejo de fines del para-algo ha de remitir, como suelo fundante, a la experiencia propia, y genuina, del Dasein, a lo que éste es: experiencia de sí mismo. El útil es útil si y solo si remite a la experiencia propia del Dasein, [um ente não caracterizado ontologicamente por dizer-respeito-a outro ente, mas por ser por-mor-de si.] (Periñán , 2020, p. 14).

 

A correção de tuas análises, Prof. Juan Periñán, é manifesta. E precisamente por isso, fez entrar no meu horizonte de questionamento sobre a arquitetura da analítica existencial do Dasein, o sentido de negatividade do si-mesmo impessoal, tal como estabelecido, ademais, “de un modo bastante abstracto-formal, en las derivaciones en torno a la “[...] impropiedad/propiedad” [Uneigentlichkeit/Eigentlichkeit] del existir.” (Periñán , 2020, p. 2) Que a constatação desse caráter negativo não pareça ser coisa de somenos, em tuas reflexões, mostra o anúncio de que moverás as análises numa direção “[...] en contra de los propios análisis heideggerianos sobre el uno (§§. 25-27) (Periñán , 2020, p. 1), o que interpreto da seguinte maneira: a favor de estabelecer positivamente o si-mesmo, em seu modo possível de Man-selbst, existência imprópria.

Avanço, pois, o presente comentário, com um esboço de determinação do sentido da negatividade e possível positividade do si-mesmo, bem como do fundamento dessas possibilidades e da sua divisão. Para isso, articulo de maneira breve a distinção entre três conceitos, os quais se encontram espalhados e analisados segundo diferentes perspectivas e interesses, por toda a fase ontológico-fundamental do pensamento heideggeriano, a qual se estende para além do tratado Ser e tempo, mas que surgem convenientemente reunidos numa passagem da preleção Einleitung in die Philosophie, de 1928/1929:

Esse ser-por-mor-de-si (Umwillen-seiner) constitui si-mesmo (Selbst) como tal. A simesmidade (Selbstheit), enquanto determinação ontológica do ser-aí, não consiste primariamente apenas numa consciência que esse ente tem de si; a auto-consciência, enquanto reflexão, é sempre e somente uma consequência da simesmidade, mais precisamente: no por-mor-de-si, o ente que chamamos ser-aí é de tal forma revelado, que ele sempre é posto diante de seu poder-ser mais próprio e frente a ele deve se decidir o que pode o seu ser mais próprio no tocante as possibilidades que lhe pertencem essencialmente: ser-com com outro (Mitsein mit Anderen), ser-junto ao ente simplesmente dado (Sein bei Vorhandenen) e ser-si-mesmo (Selbstsein). (HEIDEGGER, 2001, p. 324)

 

O termo Selbst, si-mesmo, é um conceito ôntico, indicando esse ente que o ser-aí mesmo é. O termo Selbstsein, ser-si-mesmo, é um conceito ontológico, realçando uma possibilidade existencial. O termo Selbstheit,  simesmidade,  é também um conceito ontológico, todavia, no uso que dele faz Heidegger, não parece ser indicada uma possibilidade existencial da mesma forma que os termos “ser-si-mesmo”, “ser-com”, “ser-junto-a” e tantos outros, porém, um caráter do modo de ser existência em geral: “por-mor-de” – “A existência do ser-aí é determinada através do por-mor-de. É característico do ser-aí que, para esse ente, em seu ser, esse próprio ser esteja em jogo num determinado modo. O ser e poder-ser do ser-aí é aquilo por-mor-de que ele existe” (HEIDEGGER, 1978,  p.   239).

Aquelas possibilidades essenciais, por-mor-das quais o ser-aí é – Selbstsein, Mitsein, Sein-bei – são poderes ontológicos, para os quais o ser-aí há de transcender (e já sempre transcendeu) num projeto de compreensão (e já sempre compreendeu), para assim sê-los. “O ser-aí ultrapassa o ente de tal modo que, pela primeira vez nessa ultrapassagem ele se comporta com o ente e, assim, ele também se comporta pela primeira vez consigo enquanto ente, ou seja, ele próprio pode ser um si-mesmo.” (HEIDEGGER, 2001, p. 306) Em resumo: enquanto simesmidade diz o mesmo que transcendência, compreensão, ser-si-mesmo diz uma possibilidade transcendental em sentido puramente existencial.

Da mesma maneira que ser-com outro e ser-junto-à coisa , ser-si-mesmo (Selbstsein) é) um poder-ser aberto no modo da compreensão, por-mor-do qual o ser-aí existe (Selbstheit) e para o qual se projeta, para ser o ente quem ele mesmo é, ou seja, para ser um si-mesmo (Selbst). E como tudo o que o ser-aí é como poder-ser, ser-si-mesmo é uma possibilidade sua. Sendo e tendo de ser sua possibilidade ontológica de ser-si-mesmo, ele sempre “foi”, “é” e “será” enquanto esse si-mesmo ou própria ou impropriamente: “Ambos os modos de ser, propriedade e impropriedade [...] se fundam nisto: que o ser-aí é determinado por ser-sempre-meu (Jemeinigkeit).” (HEIDEGGER, 1967, p. 42-43).

Caracterizado ontologicamente por ser-por-mor-de e por ser-meu, o ente que pode, em seu ser, ser um Selbst, não encontrará nesse ser fundamento algum para ser como esse ente, quem ele mesmo é. Para ser-si-mesmo (bem como para ser qualquer um dos seus poderes existenciais) não há por quê. Daí que, “[n]a ultrapassagem de si, se revela pela primeira vez o abismo que o ser-aí sempre é para ele próprio, e somente por que este abismo do Ser-si-mesmo (Abgrund des Selbstseins) é aberto através da e na transcendência [isto é, através da e na Selbstheit], ele pode se tornar encoberto e invisível.” (HEIDEGGER, 1978, p. 234). Sendo um si-mesmo sem fundamento para tal, o ser-aí é encarregado de sê-lo como a sua possibilidade fundamental: “Enquanto esse ente que só pode existir como entregue ao ente que ele é, ele é, existindo, o fundamento do seu poder-ser [...]

O si-mesmo, o qual, enquanto tal, tem de colocar o fundamento de si próprio, nunca pode se apoderar deste, mas tem de, existindo, assumir ser-fundamento. Ser o próprio fundamento lançado é o poder-ser que está em jogo no cuidado.” (HEIDEGGER, 1967, p. 284) Lançado na existência, não na presença, o ser-aí já assumiu a carga de ser-fundamento da própria possibilidade abismal de ser-si-mesmo e, desde essa assunção, pode ser o si-mesmo quem ele sempre é como qualquer um pode ser (si-mesmo em sentido impróprio) ou pode ser o si-mesmo quem ele sempre é como só ele pode ser (si-mesmo próprio), se se deixa iluminar o ser-no-mundo com a luz da própria morte, a possibilidade que impossibilita todas as possibilidades por-mor-das quais existe, ou seja, se ele se compreende finito.

De fato, quem o ser-aí é, de início e na maioria das vezes, é o si-mesmo impessoal, e não é fortuito que o “horizonte mesmidad”, como mostra o Prof. Juan Periñán, se abra, ainda que de maneira não temática, no mundo das ocupações, no qual o ser-aí, de início e na maioria das vezes, não é ele mesmo. Porém, segundo o exposto, a negatividade desse “não” não pode significar ausência de simesmidade. Por conseguinte, só posso concebê-la da forma que segue: o ente que pode ser si-mesmo, e para sê-lo já assumiu a carga de ser-fundamento dessa possibilidade, carrega também consigo a possibilidade e tendência de se aliviar desse peso, como já escrito, de “insustentável leveza” – a do ser como existência, Selbstheit. Quer assumido com propriedade, quer assumido com impropriedade, o ser-si-mesmo reluz pleno de positividade ontológica em todos os caminhos práticos, poiéticos, teóricos ou estéticos do meu ser-aí.

 

Referências

Heidegger, M., Einleitung in die Philosophie (GA 27), Frankfurt am Main, ed. O. Saame et I. Saame-Speide, Vittorio Klostermann Verlag, 2001.

Heidegger, M. Metaphysische Anfangsgründe der Logik im Ausgang von Leibniz (GA 26), ed. K. Held, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann Verlag, 1978.

Heidegger, M. Sein und Zeit, Tübingen. Max Niemeyer Verlag, 1967.


 

 



[1] Docente da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Departamento de Filosofia do Centro de Filosofia e Ciências Humanas. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2119-7741. E-mail: sandrosena@gmail.com.