Comentário: Uma resposta estética (extravagante?) para um “problema insolúvel”

 

Osvaldo Fontes Filho[1]

 

Referência do texto comentado: Camargo, Jeovane. Sobre as consequências filosóficas do primado da percepção em Merleau-Ponty. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, vol. 43, Número Especial, p. 216 –239, 2020.

 

O texto de Jeovane Camargo evoca com insistência a figura do “problema insolúvel”. Ela lhe é sugerida pelo próprio autor que serve de objeto para sua análise. Merleau-Ponty, como se sabe, assume em O visível e o invisível que os problemas suscitados em sua inicial fenomenologia da percepção se mostram insolúveis, por força da dualidade ali persistente entre sujeito e objeto, corpo e mundo, percepção e linguagem. O texto de Jeovane Camargo é por inteiro pautado na observância de insuficiências (trabalho de desconfiança do filósofo, garante-lhe Nietzsche) de um pensamento que não parece capaz de avançar para além de uma “dimensão negativa”: a falta, o vazio, a ausência, o invisível. A conclusão é peremptória: a postulação de um solo originário antepredicativo é a razão dos problemas insolúveis nos quais recai o filósofo, em sua fenomenologia da percepção. O ajuizamento final é, mesmo, um tanto severo: na impossibilidade de se subtrair às dicotomias renitentes entre corpo e mundo, a ontologia merleau-pontyana teria passado a contemplar “uma sensibilidade do próprio mundo”, processo de generalização/ampliação da perspectiva inicial (o ser percebido como “um recorte do Ser total”), modo de o filósofo se dar “um sentimento de bem estar – um sentimento de poder”.

Talvez seja caso de evocar o estatuto que a interrogação assume, no último Merleau-Ponty, de modo a contemplar acepção menos recriminatória das transferências em seu pensamento entre o fenomenológico e o ontológico. Quando, em O visível e o invisível, Merleau-Ponty apregoa uma renovada ontologia, um "novo ponto de partida" para o pensamento do Ser, ele o faz sob a chancela da natural incompletude do mundo e dos fenômenos. Emblemática da impossibilidade de dissolução (Auflösung) fenomenológica de todas as oposições filosóficas que postulava Husserl, a abertura da fé perceptiva para o mundo, do eu para o outrem, do sensível para o inteligível, do silêncio para a expressão demonstra que, a despeito de qualquer dualismo renitente, todo Ser é inacabado, incessantemente aberto para horizontes de sua modulação aspectual. É enquanto inacabado que esse Ser se mostra a resposta a uma questão filosófica radicalizada sobre o mundo. A fenomenologia indicara a Merleau-Ponty que não há como objetivar uma redução a um "sistema coerente das aparências" segundo a constituição psicofísica do humano. A interrogação filosófica, como ele a entende, em O visível e o invisível, incrimina todo inventário dos atos e atitudes evocadores de sentidos acabados – enquanto anulação do “intermundo [...] onde se cruzam nossos olhares e se confrontam nossas percepções” (MERLEAU-PONTY, 1992, p. 55).

Nesse sentido, mostra-se radical apenas a questão que se reporta a si mesma (MERLEAU-PONTY, 1992, p. 103). Se a fé perceptiva desautoriza toda iniciativa de "aproximação objetivante ou reflexionante", é porque preserva a profundidade e a distância essenciais a seu objeto. Endereçando-se a um "ser poroso", ocupa-se em lhe preservar "o vazio, o espaço livre" que ele exige, mesmo se, para tanto, dele obtenha apenas a confirmação de seu espanto. A Filosofia não tem como desfazer uma relação com o mundo feita por uma subjetividade entendida lacunar (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 384); ela permanece questão, ao não se deixar reter por cristalizações, a priori intermináveis. Ela visa, antes, a ressonâncias, ao modo como os seres ou qualia que se sedimentam nos fenômenos deslizam de modo selvagem e barroco, por entre os hiatos do sensível e do inteligível, do visível e do invisível, do pensável e do impensável.

O que então propõe o último Merleau-Ponty não esbarra num “problema insolúvel”, ao persistir no “pressuposto de um originário contato sensível mudo entre corpo e mundo”, conforme afirma Jeovane Camargo, de modo arrematado, ao final de seu texto, mesmo porque o filósofo não mais entende sua incursão na carne do mundo como passível de solução. Antes, ele renova as explicações com a ontologia através da experiência perceptiva como experiência interrogativa, de sorte a deixar ser o mundo percebido em lugar de dispô-lo diante, e a acompanhar as coisas se fazendo e se desfazendo como uma espécie de “deslizar aquém do sim e do não" (MERLEAU-PONTY, 1992, p. 102), embora persistam as dualidades do pensamento clássico.

Deixar ser o mundo, ao mesmo tempo em que o dizemos: esse paradoxo se esclarece como modalidade de pensamento, quando a Filosofia esposa a prática artística. A ontologia escapa dos empecilhos criados pela fenomenologia por via estética, entendida em amplos termos como “uma interrogação contínua [...], uma empresa perpétua de marcação de nós mesmos sobre as constelações do mundo, e das coisas sobre nossas dimensões" (MERLEAU-PONTY, 1992, p. 104). Modalidade primeira desse “infatigável percurso das coisas” que é a vida, o interrogativo é o estilo mesmo de uma Filosofia que não deixa de alertar ao fato de que ela

[...] não é um modo derivado por inversão ou troca do indicativo e do positivo, nem afirmação nem negação veladas ou esperadas, mas maneira original de visar alguma coisa, por assim dizer, uma questão-saber, que, por princípio, não pode ser ultrapassada por qualquer enunciado ou ‘resposta’, talvez, por conseguinte, o modo próprio de nossa relação com o Ser, como se fosse o interlocutor mudo ou reticente de nossas questões” (MERLEAU-PONTY, 1992, p. 126).

 

É precisamente porque, como assevera Merleau-Ponty, em Signes, “ver é por princípio, ver mais” – para nos fazer ver o invisível como “o relevo e a profundidade do visível” –, que não há como procurar suplantar um problema, ou seja, uma falta de resposta temporária. Haveria uma “pregnância do invisível no visível” eficaz e insistente, como uma “carne do imaginário” (MERLEAU-PONTY, 1996, p. 173). O “ver mais do que se vê” está fundado na latência de uma dimensão que o último Merleau-Ponty qualifica de bom grado como “mítica”, com suas dinâmicas espaço-temporais plenamente particulares e suas implicações ontológicas inexploradas. Em suma, é nesse sentido que o elemento que ele nomeava de “visibilidade” também pode receber o outro nome de “carne” das coisas.

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Há consequências extravagantes a que se é conduzido, admite Merleau-Ponty, quando se leva a sério, quando se interroga, a visão. Nunca se terminará de ruminá-las, nesse “domínio estranho ao qual a interrogação propriamente dita dá acesso” (MERLEAU-PONTY, 1992, p. 184-185). Não parece, pois, casual que a “virada icônica” (iconic turn ou ikonische Wende), que propôs a análise renovada do estatuto contemporâneo das imagens (e de um pensamento em imagem ou segundo a imagem, aquém das lógicas da linguagem predicativa), tenha se interessado pelas tais “consequências extravagantes” de uma precessão recíproca da visão e do visível. É por sua equivocidade que as imagens recusam uma “lógica proposicional do tipo linguageira”, em favor de um “pensamento com os olhos” (BOEHM, 2017, p. 29). Os acontecimentos da mediação visual implicariam uma lógica própria que, de certo modo, estava já intuida no postulado essencial de Merleau-Ponty: haveria uma “inversão” do olhar a revelar nosso pertencimento ao visível, bem como o parentesco entre o visível e os videntes. “O que vemos só vale - só vive – em nossos olhos pelo que nos olha”, nas palavras de Didi-Huberman (1998, p. 29).

É uma relação dessa natureza que Merleau-Ponty reconhecia entre o pintor e o mundo que ele representa: “os papéis inevitavelmente se invertem” (MERLEAU-PONTY, 1993, p. 31). A posição seguramente foi considerada por W. J. T. Mitchell, ao sustentar que “as imagens apresentam não apenas uma superfície, mas uma face que encara o espectador” (MITCHELL, 2017, p. 167). E Merleau-Ponty não estava longe das exigências epistemológicas que levaram Didi-Huberman a iniciar assim seu A pintura encarnada : “A pintura pensa. Como? Esta é uma questão infernal. Talvez inaproximável para o pensamento” (MERLEAU-PONTY, 2012, p. 19). O ser da sensação, advindo da experiência de uma reversibilidade ideal do sensiente e do sentido (do dentro e do fora), parece ser instância última de uma metafísica da visão inequivocamente revisionista. A lembrar como Lyotard propõe uma episteme do não-idêntico, na qual “aprender a ver é desaprender a reconhecer” (LYOTARD apud ALLOA, 2012, p. 150).

Portanto, importaria talvez explorar melhor as implicações ontológicas da fórmula “ver, é por princípio, ver mais”, que equivale a afirmar que é um ver “conforme ou com” o que se vê, para retomar uma fórmula de O olho e o espírito (MERLEAU-PONTY, 1993, p. 23). É certo que tal implica questionar a nossa tradição filosófica (a começar do platonismo e sua acepção negativa da “imagem”, essa “mal-reputada” palavra, no dizer de Merleau-Ponty), sempre pensada por distinções e oposições mais do que por inerências (habitar uma imagem, o credo de nossos tempos). Mesmo porque os dualismos, se não se desfazem, ao menos se desconstrõem diante desse “campo complexo de reciprocidade visual”, em favor de um “conceito adequado de cultura visual” capaz de apontar para as “vontades” das coisas visuais (MITCHELL, 2017, p. 186).

Nessa perspectiva, procurar por uma “ontologia contemporânea” (MERLEAU-PONTY, 1996, p. 390-391) nas artes em geral, em particular na pintura (essa “filosofia figurada” de que fala O Olho e o Espírito) e no cinema, não significa resolver um “problema insolúvel”. Trata-se de explorar “o movimento inscrito na textura das figuras ou das qualidades”, como um revelador de seu ser (MERLEAU-PONTY, 1968, p. 15). Um “erro de falsa causalidade”, como denota Jeovane Camargo, qual seja, o de desvelar um agente (uma vontade) por detrás dos acontecimentos? Trata-se, antes, de explorar maneiras de habitar o mundo totalmente diferentes do modo como a lógica perceptiva procura relacionar nosso corpo ao mundo – bem como há uma maneira nova de simbolizar os pensamentos, por exemplo, pelo “movimento da representação inerente ao cinema” (MERLEAU-PONTY, 1968, p. 20). Explorar esse viés da herança merleau-pontyana nos levaria, inevitavelmente, ao que Jacques Rancière chama de “o novo visível” , que não faz ver, mas “impõe presença”. Em face dessa presença, “a palavra não é mais identificada ao gesto que faz ver”; é subdeterminação que “se torna o próprio modo da apresentação sensível própria da arte” (RANCIÈRE, 2012, p. 131). O Fora é sempre já falante, como sustenta Jeovane Camargo, com a ajuda do poeta Alberto Caeiro, mas porque a palavra é já “realidade imediata”.

Detenhamo-nos aqui, nessa desregulada relação de circularidade entre o visto e o falado, uma das consequências (ainda que indireta) da “reversibilidade sempre iminente e nunca realizada de fato”, a fim de tomar uma fecunda definição de Merleau-Ponty (1964, p. 194). Não por acaso, ao tratar da relação dos artistas com a construção de saberes sobre o mundo, Didi-Huberman constata: “deslocando os pontos de vista, revirando os espaços, inventando novas relações, novos contatos, [eles] sabem encarnar as questões mais essenciais, o que é bem melhor que acreditar responder a elas” (DIDI-HUBERMAN, 2009, p. 37).

 

Referências

ALLOA, E. Iconic Turn. Alcune chiavi di svolta. Lebenswelt. n. 2, 2012, p. 144-159.

BOEHM, G. Aquilo que se mostra. Sobre a diferença icônica. In: ALLOA, E. (Org.), Pensar a imagem. Belo Horizonte: Autêntica editora, 2017, p. 23-38.

DIDI-HUBERMAN, G. O que vemos, o que nos olha. Trad. Paulo Neves. São Paulo : Editora 34, 1998.

DIDI-HUBERMAN, G. Ser Crânio. Lugar, contato, pensamento, escultura, tradução de Augustin de Tugny e Vera Casa Nova. Belo Horizonte: C/ Arte, 2009.

DIDI-HUBERMAN, G. A Pintura Encarnada. Trad. Osvaldo Fontes Filho e Leila de Aguiar Costa. São Paulo: Escuta/FapUNIFESP, 2012.

MERLEAU-PONTY, M. Notes des cours au Collège de France: 1958-1959 et 1960-1961. Paris: Gallimard, 1996.

MERLEAU-PONTY, M. O visível e o invisível. trad. J.A. Gianotti e A. Mora d’Oliveira. São Paulo: Perspectiva, 1992.

MERLEAU-PONTY, M. L'oeil et l'esprit . Paris: Gallimard, 1993.

MERLEAU-PONTY, M. Resumé de Cours. Collège de France 1952-1960. Paris: Gallimard, 1968.

MERLEAU-PONTY, M. Phénomenologie de la perception. Paris: Gallimard, 1945.

MITCHELL, W. J. T. O que as imagens realmente querem? In: ALLOA, E. (Org.) Pensar a imagem. Belo Horizonte: Autêntica editora, 2017, p. 165-190.

RANCIÈRE, J. O destino das imagens. Trad. Mônica Costa Netto. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.

 



[1] Docente na Universidade Federal de São Paulo. ORCID: orcid.org/0000-0002-2358-3902. E-mail: osvaldo.fontes@unifesp.br