Referência do texto comentado: Bouyer, Gilbert Cardoso. O caráter antirrepresentacionalista da cognição no pensamento de Merleau-Ponty. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, vol. 43, Número Especial, p. 216 –238, 2020.
O artigo intitulado “O caráter antirrepresentacionista da cognição no pensamento de Merleau-Ponty”, de Gilbert Cardoso Bouyer, tem o grande mérito de fazer uma aproximação entre autores da Filosofia contemporânea provenientes de tradições inteiramente distintas. Sua proposta consiste em estabelecer uma base comum entre alguns conceitos formulados por importantes pesquisadores, cientistas e filósofos, das Ciências Cognitivas Contemporâneas (Maturana, Varela, Pachoud, Clot, Thompson) de um lado, e, de outro, noções e conceitos elaborados por fenomenólogos (como Husserl, Heidegger, notadamente Merleau-Ponty) e pelo célebre biólogo e filósofo estoniano Jakob von Uexküll.
De acordo com o autor do artigo supracitado, nos últimos anos, a obra de Merleau-Ponty teria se tornado “[...] uma base de sustentação da ciência cognitiva contemporânea (CC), [porque ] os mesmos pressupostos da cognição incorporada presentes na CC [estariam] presentes na obra [do filósofo francês]” (Bouyer, 2020, p. 01). Nesse passo, contra aquilo que denomina “cognitivismo” (o qual reduz a cognição humana à manipulação de símbolos a partir de regras, ao modo do software de um computador) e “realismo representativo” (segundo o qual o organismo, ao se comportar, seria um agente processador de inputs, ou estímulos do meio, e emissor de outputs, ou respostas ao meio), o autor nos apresenta certos conceitos, como “gênero” (enquanto “repertório de ações possíveis a serem adotadas em determinada situação” (Bouyer, 2020, p. 03, baseado em CLOT, 2006b)), “enação” (no sentido de que haveria a emergência de uma ligação circular “entre ação e saber, entre aquele que sabe e o que é sabido”, uma “circularidade total da ação/interpretação” (VARELA 1994, citado por BOUYER, 2020, p. 4)), e affordance (“segundo o qual o mundo encontra sentido na sensoriomotricidade do agente, na intencionalidade motora do corpo, sem necessidade de passar por uma representação mental” (Bouyer, 2020, p. 09, baseado em THOMPSON, (2007)). Tais conceitos (“gênero”, “enação” e affordance), mobilizados no âmbito das CC em prol de uma concepção não representacional da inteligência e da cognição humanas, seriam perfeitamente assimiláveis às noções de “comportamento”, “intencionalidade motora” e “Unwelt”, tais como estas últimas se apresentam nos textos do autor da Fenomenologia da percepção. Consequentemente, o “conceito de representação”, que seria “o mesmo tanto na fenomenologia naturalizada quanto na ciência cognitiva” (Bouyer, 2020, p. 04), deveria ser inteiramente abandonado, em benefício da noção de “cognição incorporada”.
Impossível comentar, nesse curto espaço, a interpretação subjacente ao uso de todos os conceitos, elaborados no contexto de projetos teóricos tão distintos entre si, os quais são mencionados ao longo do artigo. Tratarei, em particular, de alguns pressupostos gerais quanto à sua interpretação da filosofia merleau-pontyana. Nesse intuito, começo por destacar a seguinte passagem, que sintetiza a hipótese defendida no artigo:
Não existe representação do mundo exterior, mas sim uma co-criação de um mundo dependente do sujeito nele incorporado e de suas percepções [...] Aquele que sabe e aquilo que é sabido, sujeito e objeto, são especificação recíproca e simultânea um do outro. Ou seja, o saber é ontológico (Bouyer, 2020, p. 5).
Em primeiro lugar, a despeito do que afirma o autor, talvez não seja descabido reiterar a seguinte pergunta: será que o conceito de “representação”, no sentido conferido ao termo, nas CC, efetivamente equivale ao sentido filosófico do conceito de “representação”, tal como ele é explicitamente criticado por Merleau-Ponty? Trata-se do mesmo conceito ou de conceitos diferentes, embora o termo utilizado seja o mesmo? Afinal, se a tese da “representação mental” é aquela segundo a qual as propriedades do mundo empírico “preexistem às atividades cognitivas do sujeito” do conhecimento (Bouyer, 2020, p. 5), como compreender a originalidade da guinada idealista operada no início da modernidade? Descartes não procurou, como se sabe, solucionar a questão do acesso às coisas exteriores pela análise das propriedades intrínsecas às próprias representações (pois estas, enquanto atos de consciência, seriam imediatamente acessíveis ao sujeito)? Nessa mesma direção, vale lembrar a famosa objeção kantiana à clássica definição da verdade enquanto correspondência ou adequação entre o conhecimento e seu objeto, em que a noção de representação desempenha um papel crucial:
Ora, só posso comparar o objeto com o meu conhecimento na medida em que o conheço. O meu conhecimento deve, pois, conformar-se a si mesmo, o que, porém, nem de longe é suficiente para a verdade. Pois, visto que o objeto está fora de mim e o conhecimento está em mim, a única coisa que posso fazer é avaliar se o meu conhecimento do objeto concorda com o meu conhecimento do objeto (KANT, 1992, p. 67, grifos do autor).
Dado que é impossível decidir, em sentido epistemológico, a partir da noção de representação, se o conhecimento do objeto concorda, ou não, com o objeto considerado em si mesmo, é justamente a hipótese da representação que interdita (e não motiva) a passagem à tese metafisica, realista, de que haveria um “mundo em si”, cujas propriedades seriam preexistentes e independentes das atividades cognitivas do sujeito, ou de que o “mundo, tal como é em si, é percebido pelo sujeito” (Bouyer, 2020, p. 5).
Além disso, vale frisar, o abandono da hipótese da representação mental, enquanto conceito explicativo (semelhante ao passo teórico de Varela, ao “fazer predominar o conceito de ação sobre o da representação”, citado por Bouyer (2020, p. 4) não equivale à negação ocorrência de representações, em sentido epistêmico ou mesmo psicológico, já que esta última, em termos fenomenológicos, constitui um dos modos de ser da consciência, concebida como intencionalidade (assim como a percepção, a imaginação, o desejo etc.). Tanto é assim que somos capazes de pensar abstratamente (nesse sentido, “representar”), por meio de signos arbitrários (como palavras), diferentes mundos possíveis, dentre os quais o “mundo exterior” que aí está. Em termos merleau-pontyanos, dizer que os seres humanos, cuja estrutura comportamental é essencialmente simbólica (MERLEAU-PONTY, 2006a), são capazes de representar, significa dizer que eles têm “não apenas um meio circundante (Umwelt), mas ainda um mundo (Welt)” (MERLEAU-PONTY, 2006b, p. 128). Não se trata, portanto, de negar a existência de representações (cf. “não existe representação do mundo exterior”, Bouyer, 2020, p. 5, 12), mas, sim, de reconhecer que, “enquanto se define a consciência pela representação, a única operação possível para ela é formar representações (MERLEAU-PONTY, 2006b, p. 631).
Merleau-Ponty, por sua vez – e esse é o terceiro ponto que gostaríamos de comentar –, sem aderir ao realismo ingênuo (pré-kantiano), procurou se afastar desde o início do idealismo (em sua versão criticista, tal como defendia Brunschvicg, representante do neokantismo francês, por exemplo) e mesmo do idealismo transcendental fenomenológico, de Husserl. Seu “antirrepresentacionismo” equivale, então, à sua crítica ao intelectualismo, presente tanto nas explicações psicológicas quanto nas filosofias transcendentais ordinárias. De fato, a naturalização da fenomenologia, feita pelo filósofo francês, decorre diretamente de seu projeto de redefinir “a filosofia transcendental, a fim de integrar nela até o fenômeno do real” (MERLEAU-PONTY, 2006a, p. 345). Nesse sentido, afirma, contra Husserl, que “o maior ensinamento da redução é a impossibilidade de uma redução completa” (MERLEAU-PONTY, 2006b, p. 10), pois a reflexão é incapaz de refazer “em sentido inverso” o “caminho já percorrido pela constituição” (MERLEAU-PONTY, 2006b, p. 327). Consequentemente, é impossível, via pensamento constituinte, o qual só opera com abstrações, apreender “a riqueza concreta do mundo e reabsorver a facticidade” (MERLEAU-PONTY, 2006b, p, 502). O intelectualismo, assim definido, faz de todo fenômeno (no caso em tela, o próprio fenômeno perceptivo) um objeto de reflexão, e este último, por seu turno, uma vez “constituído”, deixa restos que a reflexão já não consegue mais abarcar. Ressalta Merleau-Ponty, 2006b, p. 16):
É por isso que Husserl distingue entre a intencionalidade de ato, que é aquela de nossos juízos e de nossas tomadas de posição voluntárias, a única da qual a Crítica da Razão Pura falou, e a intencionalidade operante (fungierende Intentionalität), aquela que forma a unidade natural e antepredicativa do mundo e de nossa vida, que aparece em nossos desejos, nossas avaliações, nossa paisagem.
Será graças a essa “noção ampliada da intencionalidade”[2], segundo a interpretação propriamente merleaupontiana de Husserl, que a “compreensão fenomenológica” poderá distinguir-se de toda “intelecção clássica”, limitada às “naturezas verdadeiras e imutáveis”, ou seja, ao mundo reduzido à sua representação objetiva (Welt). É nesse momento que entra em cena o conceito de “intencionalidade motora”. A análise da noção de espaço, feita à luz de um caso clássico da psicopatologia, é central aqui: para Merleau-Ponty, a patologia revela aquilo que a normalidade esconde. Assim, diante de uma solicitação verbal, Schneider era incapaz de tocar uma parte de seu próprio corpo, como a ponta de seu nariz, por exemplo, ao passo que o fazia prontamente, quando se encontrava numa situação prática, estimulado pela picada de um mosquito, por exemplo. Isso evidencia que o movimento concreto de preensão (Greifen), executado por Schneider, não se reduz ao movimento abstrato de mostrar (Zeigen), já que este último depende de uma apreensão categorial (MERLEAU-PONTY, 2006b, p. 173), ausente em Schneider - enquanto “o fundo do movimento concreto é o mundo dado, o fundo do movimento abstrato, ao contrário, é construído” (MERLEAU-PONTY, 2006b, p. 159).
Será preciso, então, forjar novos conceitos, ausentes da “psicologia clássica”, que sejam capazes de “exprimir as variedades da consciência de lugar” (MERLEAU-PONTY, 2006b, p. 151), aquém da intencionalidade de ato inerente a toda consciência posicional. Tais regiões de presença do mundo vivido, aquém de toda Vor-stellung, exigem o reconhecimento de estruturas intencionais que abarquem a facticidade mesma do percebido, sua ambiguidade essencial: no movimento concreto, há “uma antecipação ou uma apreensão do resultado assegurada pelo próprio corpo enquanto potência motora, um ‘projeto motor’ (Bewegungsentwurf), uma ‘intencionalidade motora’ sem os quais a ordem” verbal, do médico, para que o paciente execute o movimento, “permanece letra morta” (MERLEAU-PONTY, 2006b, p. 159). Eis a camada pré-reflexiva ou antepredicativa, denominada cogito tácito, anterior à enunciação explícita do cogito, e sobre a qual este último, por sua vez, se sustenta. Tal gesto teórico é o que torna possível destituir a noção de representação do papel central que lhe era conferido nas abordagens, filosóficas e científicas, de inspiração intelectualista. Nesse contexto, a ideia de que, ao agir, haveria uma “cocriação”, ou seja, uma “especificação recíproca” entendida como “criação”, em sentido “ontológico”, do sujeito encarnado e do mundo que o circunda (Umwelt) (Bouyer, 2020, p. 5, 6, 13), remete a uma espécie de criacionismo cognitivo (um “saber ontológico”), algo como uma versão antropocêntrica da tese da criação contínua cartesiana, o que nos parece perfeitamente alheio aos propósitos do filósofo francês.
Resumindo os pontos destacados, à guisa de conclusão: a “cognição incorporada”, defendida por Merleau-Ponty, não implica a negação da existência de representações; também não tem nenhum compromisso com a tese de que a representação, em sentido epistêmico, pressupõe a tese metafísica, e ingenuamente realista, da existência de um “mundo em si”; e menos ainda com a ideia de que sujeito e mundo seriam realmente produzidos, ou criados, pela intencionalidade motora. Este breve comentário, entretanto, não tem qualquer pretensão de invalidar o mérito da interpretação, como um todo, proposta pelo autor do artigo em pauta.
REFERÊNCIAS
DESCARTES, R. Meditações. In: DESCARTES, R. Descartes - obras escolhidas. Trad. Bento Prado Jr. Nova Cultural Ltda, SP, p. 241-337, 1996. (Coleção Os Pensadores)
KANT, I. Lógica. Trad. Guido de Almeida. Tempo Brasileiro, RJ, 1992.
MERLEAU-PONTY, M. A Estrutura do comportamento. Trad. M. V. Martinez de Aguiar. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2006a.
MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da percepção. Trad. C. A. Ribeiro de Moura. Ed. Martins Fonte, SP, 2006b.
[1] Professor no Departamento de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFS. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4942-5467: E-mail: matheushidalgo@gmail.com.
[2] Na Fenomenologia da percepção, a temática da intencionalidade ganha relevo num contexto bastante preciso, de debate, contra o realismo do pensamento causal (empirismo), de um lado, e, de outro, contra o idealismo do pensamento reflexivo (intelectualismo) – ambos criticados por Merleau-Ponty: embora antagônicos, empirismo e intelectualismo são cúmplices inconfessos na manutenção do “prejuízo do mundo objetivo”; ambos, e cada um ao seu próprio modo, inevitavelmente acabam por reduzir a ambiguidade do percebido a um objeto que só nos pode ser dado como uma determinação do ser objetivo (MERLEAU-PONTY, 2006b). Essa ontologia subjacente é o principal alvo crítico do livro. Nesse sentido, a noção de “representação” – cuja origem é filosófica, embora também se faça presente nas explicações psicológicas – reitera o prejuízo do mundo objetivo, em sua versão intelectualista, pois abstrai do fenômeno perceptivo apenas aquilo que a consciência, em sua modalidade reflexiva, já havia depositado nele.