Comentário: Pluralismo, relativismo e razão instrumental

 

Luis Felipe de Salles Roselino[1]

 

Referência do texto comentado: Gambarotta, Emiliano. Pluralismo y absolutismo en la crítica: dialética reflexiva y política democrática a partir de horkheimer y adorno. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, vol. 43, Número Especial, p. 92 –110, 2020.

 

            Certos esforços teóricos merecem uma consideração especial, nesse caso, aqueles que propõem mais que uma revisão bibliográfica e, de algum modo, aproximam a discussão da teoria crítica a campos pouco explorados pelos autores que a fundaram. Ora, encontramos algo assim no artigo comentado.

No campo da filosofia do direito, ética e filosofia política, vemos Habermas desempenhar um papel relevante; suas discussões com Rawls e MacIntyre contribuíram para que uma interpretação bastante particular advinda da teoria crítica se encontrasse com discussões de matrizes intelectuais diversas. Contudo, não é possível identificar tão nitidamente como um Horkheimer e um Adorno colocariam suas próprias questões e, especialmente, a que pé ficariam os problemas que Habermas julgou suplantados por sua teoria da linguagem. Em parte se admite, em parte não, já que, no momento em que a linguagem toma o lugar da consciência, o problema da ideologia perde sua radicalidade, para Habermas.

Há um tema paralelo ao artigo que poderia ser acrescentado à reflexão: trata-se da crítica à “razão instrumental”. A partir de Habermas, vemos esse conceito discutido em meio a correntes muito diversas: “[...] a observação de MacIntyre lembra uma crítica da razão instrumental [...] questões moral-práticas do tipo ‘o que devo fazer?’ são afastadas da discussão racional na medida que não podem ser respondidas do ponto de vista da racionalidade meio-fim” (HABERMAS. 1989, p. 63). Nesse ponto, já vemos o conceito de razão instrumental perder parte do teor de suas condições teóricas originais, aparecendo como um corpo estranho, pois, ao formalizar o próprio conceito da razão formal, a teoria se indispõe à reflexão metalinguística do tema.

Ainda que muito sucintamente, valeria formular assim o problema: essa filosofia que não adere à crítica radical, mas que aborda a razão instrumental, o faz como se não fosse a própria razão instrumental falando através dela, o que não pode deixar de ser um mal-entendido. Ela deveria manter a radicalidade da crítica ou aceitar as advertências de Wittgenstein contra o pragmatismo e o senso comum.

Como hoje os ideais de pureza teórica e de saber claro e distinto se espelham na lógica matemática, enquanto eles se veem tão somente como a forma válida de argumentação e não como teoria tradicional, julgam seu passado superado junto à crise dos ideais iluministas, das verdades eternas. E, se essas teorias já não estão atualmente presas a tais limitações, isso se deve à mesma confiança subjetiva nas regras do método – e não o subestimemos, acreditamos nesses meios, porque eles efetivamente dispõem de procedimentos que permitiram substituir na teoria esse suporte metafísico e desvencilhar-se dos problemas herdados. Uma vez que essas teorias podem realmente resolver questões que antes pareciam impossíveis (como visto a partir de Frege e Quine), sua condição mais recente reforça convicções pragmáticas. Foi estritamente por essas novas ferramentas e justamente por não suspeitar delas – afinal são meras ferramentas, por que suspeitar delas? – que essa limitação ideológica mais séria manteve a teoria restrita àquilo que, do ponto de vista teórico, parece mais vantajoso, válido, a forma adequada, a devida técnica, os meios apropriados etc. Assim, a postura pragmática é fortalecida por esses dois antecedentes históricos: a crise do caráter unitário da verdade e o progresso da técnica, único indício válido de qualquer progresso significativo.

             Segundo Horkheimer (2015, p. 17), o problema é que “[...] de acordo com essas teorias, o pensamento serve a qualquer esforço particular, bom ou mal. Ele é uma ferramenta de todas as ações da sociedade, mas não deve tentar estabelecer padrões para a vida social e individual”. Porém, há sempre um logos que orienta o sentido da técnica, que constitui a “tecno-logia”: por isso, mesmo restrita aos meios, a discussão não se torna isenta diante dos fins da sociedade; ele reproduz esses fin,s sem refletir sobre eles. Isso não ocorre apenas nos cálculos para produção material ou destruição em massa, mas servem ao mesmo tempo às formas de dominação legal e à legitimação das formas discursivas referentes tanto aos “interesses públicos” como aos “interesses privados”. E, deixando de lado a questão da ideologia e valores “relativos”, tais como a “dignidade humana”, a teoria crítica não parece em nada preferível em face dessas ferramentas e de sua operação exata.

O que mais teria feito Habermas abandonar a discussão da consciência, para entrar no campo da linguagem? Não seria essa mesma vantagem teórica? O que permitiria tratar a ética, por meio de um esquema lógico, senão o próprio uso instrumental da razão? Daí advém a perigosa crença no caráter de autoevidência e de imparcialidade da lógica frente à dilemática autonomia dos valores, pois é por essa mesma razão instrumental que os valores estão sujeitos à pretensão de igualdade genérica e à validade meramente subjetiva. Segundo Habermas (1989, p. 148), “[...] é só a partir desse ponto de vista estritamente deontológico da correção normativa ou da justiça que se podem filtrar, na massa de questões práticas, as que são accessíveis a uma decisão racional”; seu caminho é aceitar as regras do jogo, não refletir sobre elas.

Ao remeter ao sentido “pós-metafísico” habermasiano, Gambarotta não pretende reafirmar essa versão da história da filosofia rumo à “guinada pragmática”, porém, repensar os problemas envolvidos. Habermas e Horkheimer seguiram raízes históricas semelhantes. O mesmo teor iluminista que, em Habermas, conduz à autonomia da razão frente ao dogmatismo religioso soma-se a outras consequências em “meios e fins”; quando a filosofia empirista se desfaz do que julgava “pseudoproblemas metafísicos” (Horkheimer, 2015, p. 25), ela produz uma consequência contraditória: “Os filósofos do iluminismo atacaram a religião em nome da razão; no fim, eles mataram não a igreja, mas a metafísica e o próprio conceito objetivo de razão, a fonte de poder de seus esforços” (Horkheimer, 2015, p. 26). Nesse resultado imprevisto, eles destroem sua própria fonte de autonomia, a razão substantiva:

[...] todas essas consequências estavam contidas em germe na ideia burguesa de tolerância, que é ambivalente. Por um lado, tolerância significa liberdade em relação ao domínio da autoridade dogmática; por outro, ela promove uma atitude de neutralidade diante de todo conteúdo espiritual, que, assim se rende ao relativismo (HORKHEIMER, 2015, p. 27).

 

A partir de dois temas visíveis no artigo, podemos reconhecer dois mal-entendidos não raros em leituras formalistas da teoria crítica: o primeiro decorre de uma teoria que se crê isenta ou neutra, mas que, na realidade, não identifica seus próprios elementos ideológicos, pois, para ela, a teoria crítica estaria inadequadamente fundada em princípios deontológicos. Como suas ferramentas teóricas não dispõem de critérios para distinguir uma filosofia moral de uma teoria que desconfia da neutralidade e da relativização, tampouco consideram os valores, o que é ideológico, como algo que só pode ser tomado como objeto segundo seus efeitos na sociedade. reduzindo seu sentido prático ao sentido pessoal, subjetivo. A teoria crítica deve guiar-se pelos efeitos, sim, mas não de forma pragmática, por resultados; ao contrário, busca expor na crise dos valores da sociedade vigente seus efeitos contraditórios. Dessa forma, Horkheimer toca no tema do artigo: “[...] no pragmatismo, por mais pluralista que ele próprio se represente, tudo se torna mera matéria subjetiva, [...] um elemento na cadeia dos meios e dos efeitos” (HORKHEIMER, 2015, p. 56).

O segundo equívoco provém de falsas conclusões binárias (~a  b): se a teoria crítica suspeita da relativização dos valores modernos, logo, ela defende algo oposto, valores absolutos. Ou, igualmente falso, como se opõe ao autoritarismo da razão instrumental, logo, ela defende o ideal da convivência pacífica e da tolerância como sendo a solução, conformando-se ao discurso cínico dos dias atuais. Ao igualar a condição geral dos valores, a razão subjetiva torna-se cega para a possibilidade de que algum desses ideais possa superar/suprimir as mesmas necessidades técnicas que reforçam sua crise.

 

Referências

HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro. 1989.

HORKHEIMER, Max. Eclipse da Razão. São Paulo: UNESP, 2015.

 



[1] Docente no Departamento de Ciências Humanas, Universidade do Estado de Minas Gerais. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2512-5681. E-mail: felipe@guns.ru.