Comentário

 

Raphael Guazzelli Valerio[1]

 

Referência do texto comentado: Silva, S. R. O. Morte impune, luto proibido: vida nua e vida precária em Giorgio Agamben e Judith Butler. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, vol. 43, n. 3, p. 292 –310, 2020.

 

O excelente e original artigo de Reginaldo Oliveira Silva, “Morte impune, luto proibido: vida nua e vida precária em Giorgio Agamben e Judith Butler”, procura fazer confluir dois conceitos que já gozam de uma fortuna crítica considerável, vale dizer, vida nua e vida precária, respectivamente, em um terreno comum. Embora possamos enquadrar Agamben e Butler em algo como uma segunda geração daquilo que Peters (2000) chamou de pós-estruturalismo ou filosofia da diferença e, ainda que ambos colham diversas de suas hipóteses no canteiro aberto por Foucault, sobremaneira na hipótese biopolítica, essa singular aproximação nos é desconhecida, ao menos em pesquisa na língua nacional.

A hipótese do artigo nos parece certeira, pois, tanto em Agamben como em Butler, a política moderna caminha a passos largos na direção de tornar-se meramente uma máquina letal, cujo objetivo último é tão somente a produção de vidas matáveis e impassíveis de luto. A atual crise sanitária causada pela pandemia da COVID–19 nos parece fortalecer tal pressuposto. Vejamos o cenário a partir de Giorgio Agamben, cuja obra se nos deu a conhecer de forma mais razoável.

Não são poucas as críticas que pesam sobre o filósofo italiano. Mesmo alguém como Antonio Negri, que em certa medida bebe de fontes próximas às de seu conterrâneo, considera a obra de Agamben extremamente pessimista, terrífica e com apreço a negatividade (NEGRI, 2011). Não se trata aqui de opor ambos os filósofos e sair em socorro de Agamben: talvez seu pensamento seja tudo isso, mas é oportuno apenas notar como sua obra, sobretudo seu conceito de vida nua, nos parece um paradigma formidável para a compreensão de nosso presente.

A biopolítica, para Agamben, é caracterizada pela constante produção da vida nua, por meio da decisão soberana. A soberania é dispositivo através do qual é possível separar a vida de suas formas de vida e, dessa maneira, produzir a vida nua. Dito de outro modo, a política ocidental se constitui nessa possibilidade de opor uma vida qualificada a uma vida sem valor. Ora, é isso que vemos na ação ético-política dos antigos. Uma vida desprovida de sua forma, uma mera vida, como dizia Benjamin (1986), só poderia ocorrer no interior do Oikos, isto é, a economia, donde reinava a violência e a sobrevivência. Esse âmbito era necessariamente inverso ao da vida pública.

Para o filósofo italiano, a história política é a tentativa sempre refundada e mais uma vez retomada de separar no vivente esses dois elementos, a vida nua e a vida qualificada. A experiência ocidental da qualificação da vida humana enquanto vida política passa por uma inclusão exclusiva (cf. AGAMBEN, 2004, p. 29ss). Explica-se. A vida, em sua nudez, enquanto suporte último dos gêneros de vida, isto é, enquanto vida política e autárquica, precisa ser separada e dividida e, ao mesmo tempo, necessita ser incluída como a negatividade da pólis. Em suma, a vida nua é incluída na comunidade política, por meio de sua suspensão, sua exclusão.

Definamos a política como uma máquina ontológico-biopolítica (AGAMBEN, 2017, p. 229). A máquina politiza a vida, dá a ela um caráter político, ao dividi-la: de um lado, a vida nua, zoé, de outro a vida qualificada, bíos. Todavia, o centro dessa máquina, onde tudo se passa, está vazio, ela não tem outro conteúdo que não a cesura, a separação em si mesma. A máquina se deixa ver somente porque já está construída a partir de separações. Biopolítica, portanto, mas também ontológico-política, pois, do modo como as coisas se passam, poderíamos dizer que, conforme Agamben, a política como obra do humano[2] é uma práxis na qual o lógos separa aquilo que é inseparável, quer dizer, a vida vegetativa da vida qualificada, o fato da vida da forma como levamos a vida.

O problema, então, é que, na modernidade, o objeto e o objetivo da política deixaram de ser o bíos e tornaram-se a zoé, em termos foucaultianos. Ou a vida biológica, isto é, econômica e reprodutiva, ocupando cada vez mais o centro da vida política, em termos arendtianos. A politização da zoé, da vida nua, nos é apresentada como o evento político decisivo da modernidade, pois modifica radicalmente os conceitos políticos gregos, dos quais nos servimos por três mil anos. A modernidade, assim, ao colocar a vida biológica, a vida nua, no centro dos cálculos e mecanismos do poder, trouxe à tona o dispositivo originário por meio do qual se formou a política e o direito.

A atual crise sanitária, talvez sem precedentes na história – ainda é cedo para dizer –, demonstra como estamos presos ao paradigma da vida nua. Diante de um cenário de catástrofe, esquerda e direita não conseguem propor nada para além da organização econômica da humanidade. De um lado a necessidade de sobrevivência da população, de outro, a sobrevivência do mercado. Para não criar mal-entendidos, estamos cientes e concordamos com a necessidade de políticas públicas de isolamento e, sobretudo, de atenção financeira aos mais expostos – todavia, é pouco.

 

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, G. Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2004.

AGAMBEN, G. O Aberto. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.

AGAMBEN, G. O uso dos corpos. São Paulo: Boitempo, 2017.

ARENDT, H. A condição humana. 11ª Ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.

BENJAMIN, Walter. Crítica da Violência – Crítica do Poder. In: BENJAMIN, Walter. Documentos de Cultura Documentos de Barbárie [Escritos Escolhidos]. São Paulo: Cultrix: Editora da Universidade de São Paulo, 1986.

FOUCAULT, M. História da Sexualidade I. A vontade de saber. 5ª ed. Rio de Janeiro. Edições Graal. 1984.

PETERS, M. Pós- estruturalismo e filosofia da diferença. Belo Horizonte. Autêntica. 2000.

NEGRI, A. A Linguagem e a Morte. Revista Lugar Comum. N. 27. Janeiro de 2011, p. 336-337.

VALERIO, Raphael Guazzelli. Teoria biopolítica da formação humana. Curitiba: Editora UFPR, 2020. No prelo.

VALERIO, Raphael Guazzelli. Antonio Negri e o monstro (bio)político: genealogia do conceito de multidão. Educação e Filosofia, Uberlândia, v. 31, n. 61, p. 83-105, jan./abr. 2017.

 



[1] Professor adjunto do Departamento de Fundamentos Sócio-Filosóficos da Educação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Doutor em Educação (UNESP-Marília). ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2058-6478. E-mail: guazzellivalerio@hotmail.com

[2] A própria ideia de humano também é produto da máquina (AGAMBEN, 2013; VALERIO, 2020).