Comentário

Susana de Castro[1]

 

Referência do texto comentado: Cunha, I. F. da.Valores, Verdade e Investigação: uma alternativa pragmatista ao não cognitivismo de Russell. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, vol. 43, n. 3, p. 213 –234, 2020.

 

Em seu texto, Ivan F. da Cunha apresenta um dos maiores embates da filosofia contemporânea, a saber, a divisão entre realistas e não realistas, em outras palavras, entre aqueles que acham que a divisão metafísica entre real e aparente é fundamental, para definir um critério de verdade correspondentista, e aqueles que não acham que essa diferença seja importante. Mostra por que, apesar de realista e correspondentista, Russell defende, na parte final do The Scientific Outlook, que a ciência não pode ser a única a definir os rumos da sociedade, pois isso nos levaria à possibilidade de que uma oligarquia detentora dos meios de financiamento da pesquisa científica e de seu direcionamento, para a aplicação do conhecimento científico no desenvolvimento de tecnologias, definisse que toda pesquisa e tecnologia fosse direcionada para o aprimoramento dos modos de produção – inclusive com o desenvolvimento de tecnologia genética voltada para a criação de castas de trabalhadores dóceis ao sistema de trabalho.

De acordo com Russell, a ciência precisa da “sabedoria”, ou dos valores, a fim de não ser pervertida para atender exclusivamente aos interesses de alguma oligarquia econômica. “Fatos” e “valores” são duas coisas distintas, para Russell. Por causa de sua adesão ao realismo, isto é, ao objetivismo correspondentista, ele, entretanto, não atribui conhecimento aos juízos de valores. Por essa razão, Russell não concorda com a concepção instrumental e funcionalista da ciência defendida por John Dewey, segundo a qual a ciência não é determinada pela busca por afirmações verdadeiras, mas por instrumentos que funcionem. Ou seja, uma concepção de ciência guiada por noções como “o que é melhor para determinada situação e contexto”.

Contra essa versão de que a análise do que é prejudicial ou benéfico para a sociedade tem um caráter valorativo e não cognitivo, pois não está baseada em fatos, mas sim em escolhas subjetivas, Cunha apresenta a teoria pragmatista dos três tipos de valoração de C. I. Lewis e a teoria do conhecimento como investigação de Dewey.

No terceiro sentido de valoração, “atribuição da propriedade objetiva de ser valioso a um existente ou possível existente”, proposto por Lewis, Cunha encontra elementos para fundamentar a tese de que há juízos valorativos que são cognitivos. Dizer, por exemplo, que meu vizinho é um bom músico é um juízo que emite um valor, mas tem uma carga alta de objetividade, uma vez que se baseia em fatos objetivos, como o de ele ser, por exemplo, músico de uma orquestra famosa.

Uma questão importante levantada por Cunha, para enfraquecer a tese de que juízos valorativos não são cognitivos, é a análise do entendimento compartilhado que podemos ter a respeito, por exemplo, de um romance distópico como Admirável Mundo Novo. O romance levanta elementos suficientes para que o leitor retire dele um conteúdo cognitivo, a saber, o entendimento dos malefícios de uma sociedade dominada exclusivamente por ideais econômicos do consumo e da ciência. Assim, apesar de não se basear em fatos, porém, em um juízo de valor sobre como uma sociedade nesses moldes seria, Huxley promove um conteúdo ficcional que pode ser compartilhado.

Há quem diga que Aldous Huxley teria lido o livro de Russell, The Scientific Outlook, antes de escrever Admirável Mundo Novo e se inspirado nesse livro (CONGDON, 2011, p. 86). De qualquer forma, como afirma Cunha, as predições negativas de Russell acerca de um futuro dominado pela ciência e tecnologia e desprovido de sabedoria aparecem no livro de Huxley.

Como segundo elemento, contra a tese de Russell de que juízos valorativos são não cognitivistas, Cunha traz a teoria pragmatista da investigação, originada nos trabalhos de Peirce e desenvolvidas pela obra de John Dewey. Para julgar se determinada ação no futuro trará benefícios, ou não, é necessário investigar o passado, elaborar um problema e uma hipótese para a solução desse problema. Pode ser, é claro, que a solução apresentada acabe se mostrando equivocada no futuro, mas, de qualquer modo, dado o processo de elaboração do juízo, pode se dizer que há argumentos suficientes para sustentar determinada posição e que esses argumentos são facilmente verificados por outros. Assim, ao afirmar que meu vizinho é bom músico, emito um juízo verdadeiro, na medida em que minha crença está baseada em uma investigação que fiz acerca da formação do meu vizinho e sua longa experiência como músico. Além, é claro, das experiências pessoais que tenho, ao escutá-lo ensaiar todas as manhãs.

Penso que o trabalho de Cunha se enriqueceria bastante com a análise da obra do neopragmatista Richard Rorty (2008). Para o americano, o pragmatista é (i) um antiessencialista, (ii) alguém que nega que haja diferença entre fato e valor, e (iii) alguém que nega que haja um fundamento do conhecimento no “real”, e para quem a verdade é o resultado da busca por consenso na “conversação”. Rorty sempre salientou, além disso, a importância da imaginação para o conhecimento. Na verdade, ele mostra como a razão fica a reboque da imaginação, na ordem do conhecimento. Por isso, não hesitaria em sustentar que não há diferença “substancial” entre o tratado filosófico de Russell, o científico de algum geneticista de renome e o romance de Huxley. Todos buscam “convencer” o público acerca da importância e “verdade” de suas teorias.

Assim, Rorty concordaria com Cunha de que a leitura da obra de Huxley leva o leitor a certas conclusões que podem ser justificadas e compartilhadas, por isso, o conteúdo da obra de ficção não pode ser tomado como algo não compartilhado. É evidente, para Rorty, que a ficção produz conhecimento, mesmo que seu “fundamento” seja da ordem de hipóteses e suposições sobre a sociedade no futuro. Diferentemente, talvez, de Cunha, para Rorty não há nenhum sentido em falar de uma realidade que serve de fundamento a teorias, hipóteses, julgamentos. Por isso, para ele não há diferença entre fato e valor. Toda “teoria” passa pela capacidade de convencimento, persuasão, do discurso, para ser chamada de verdadeira. Por isso, ela não pode ser “eterna”. Toda teoria em vigor pode, amanhã ou depois, ser substituída por outra melhor. O critério fundamental para a escolha de certa hipótese como verdadeira é sua capacidade utilitária, isto é, sua capacidade de gerar o maio número de benefícios ao maior número de pessoas.

 

Referências

RORTY, Richard. Consequences of pragmatism. Minneapolis: University of Minnesota Press, [1982] 2008.

Congdon, Brad. Community, Identity, Stability: The Scientific Society and the Future of Religion in Aldous Huxley’s Brave New World”. In: English Studies in Canada, 37.3-4. Setembro-Dezembro, 2011. P. 83-105.


 



[1] Professora Associada do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6290-2729. E-mail: decastrosusana@terra.com.br