comentário

Quatro teses acerca de Liberdade democrática como desenvolvimento de si, resistência à opressão e à injustiça epistêmica

 

Neiva Afonso Oliveira[1]

 

Referência do texto comentado: Dalaqua, G. H. Liberdade democrática como desenvolvimento de si, resistência à opressão e à injustiça epistêmica. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, vol. 43, n. 3, p. 186 –205, 2020.

 

Pretendo, neste ensaio, impulsionada e motivada pela leitura que fiz do artigo do Professor Gustavo Hessmann Dalaqua, lançar quatro teses gerais que interconectam os conceitos tratados no texto. A primeira tese compila uma retomada teórica do conceito de democracia, por meio de uma abordagem que fará com que os leitores, de alguma forma, se sintam situados e colocados frente a frente com os demais conceitos – desenvolvimento de si, resistência à opressão e injustiça epistêmica. A segunda, a terceira e a quarta teses trarão apontamentos sobre esses conceitos, desde uma metodologia relacional, e focalizarão aspectos de intertextualidade, o que pode ser salutar para o tipo de argumentação levada a cabo em um Ensaio como este.

O debate em torno da liberdade democrática é marcado por uma ambiguidade estratégica que pode atender a duas demandas: uma de cunho mais firmemente ligado ao liberalismo clássico, que tem a liberdade como pedra de toque, para avaliar o quanto um ou outro modelo liberal permite o desenvolvimento e o progresso das potencialidades humanas (desenvolvimento de si); e outra vertente de cunho mais social e que aprofunda a questão dos valores democráticos, conduzindo-os inclusive a uma reflexão, em um nível mais ligado à funcionalidade do conceito democracia – às questões imperativas e exigentes da democracia participativa, da resistência à opressão e à injustiça epistêmica. Em outras palavras, desejo afirmar, preliminarmente, que o conceito liberdade democrática pode prestar-se a análises tanto de cariz liberal (liberalismo clássico) quanto de características mais coletivistas ou comunitaristas.

 

1ª Tese: O conceito liberdade democrática enseja uma dupla variação, a dos conceitos liberdade e democracia, que estão de tal forma imbricados, a ponto de obstruir compreensões na linha do autoritarismo e do abuso de poder.

Grosso modo, não existe democracia onde não haja liberdade, uma vez que, sendo democracia a designação de governo do povo, não podemos imaginar que exista algum aglomerado humano que não deseje a liberdade. Nas diversas caracterizações ou nos seus diferentes modos de aparecer, a ideia de democracia pressupõe o reconhecimento recíproco dos membros da sociedade como integrantes voluntários do processo de decisão política. Todavia, é somente a partir do Iluminismo e no seu contexto que as ideias políticas voltaram a recuperar o sentido de democracia. E isso acontece à base de um novo pressuposto, o qual é a autonomia da razão humana, cujo potencial liberador e libertador absorve e, inclusive, transborda do conceito de liberdade individual. Como vemos, liberdade democrática, enquanto condição do homem livre das tutelas, faculta e proporciona uma série de circunstâncias que vão desde a expressão de uma vontade individual, como também quando, interferindo na pólis, possibilita a legitimação das decisões políticas em torno do bem comum ou da liberdade de todos.

 

2ª Tese: Embora caracterizada por conflitos econômicos e sociais e por conflitos ou distorções de classes inconciliáveis entre si, a sociedade contemporânea obedece às prerrogativas da ideia de democracia, através da pujança do sistema do direito liberal que diz garantir o desenvolvimento das qualidades individuais do cidadão ou seu desenvolvimento de si.

Uma das ideias por meio da qual o liberalismo de cunho filosófico rechaça o utilitarismo clássico é justamente a falta de ênfase do utilitarismo no indivíduo e na valorização do exercício de sua vontade, preterindo-o em relação ao coletivo. O liberalismo, enquanto escola, joga suas fichas no desenvolvimento e no progresso das potencialidades individuais e lança luz política no desenvolvimento de si como entidade humana a ser preservada. Na esteira da juridificação da liberdade humana de autodesenvolver-se, caberia ao direito liberal garantir o exercício pleno desse desenvolvimento. Tal máxima, codificada a serviço de todos os indivíduos que façam parte do tecido social, não os junta apenas numa organização social única, mas os toma e os reconhece, também, como membros indiferentes, como membros com estado de igualdade, sem, todavia, levar em consideração suas diferenças. É o sistema do direito liberal que lança mão da homogeneização de um conjunto de pessoas heterogêneas e não se ocupa de interpretar ou fazer valer as diferenças materiais, sociais (e econômicas) que desenham o interior da comunidade como um todo. Entretanto, a ideia de sujeito responsável pelo desenvolvimento de si resta preservada, diante de circunstâncias históricas que já o fizeram sem autonomia.

 

3ª Tese: Ao privilegiar o desenvolvimento de si com a finalidade de congraçar exigências da ideia de democracia com a racionalidade econômica que vigora, a energia estruturadora do direito liberal não se coaduna com a realização material das relações. A resistência à opressão não pertence ao círculo de ações do direito liberal.

A tarefa do direito liberal moderno – de possibilitar o reconhecimento de igual liberdade para todos (a homogeneização da democracia) – é considerada algo natural, sem quaisquer infortúnios para a sua defesa. Ocorre que, no modelo capitalista, as condições materiais não estão desenhadas para todos e o direito que defende a prerrogativa de não intervenção nas relações sociais, porque ofenderia a liberdade individual, não tem como interferir com atos de resistência à opressão. Em outras palavras, o direito liberal democrático não tem como intervir, em nome da liberdade ameaçada, num campo (econômico) no qual as pessoas são consideradas mercadorias, coisas ou são vistas como objetos fruto dos resultados econômicos. Tampouco, não consegue oferecer condições materiais dignas para que os cidadãos realizem seus interesses. Como resultado, temos que a simples garantia da liberdade não assegura, por si só, a justiça material. Na relação de litígio entre a legalidade e a legitimidade, vence a primeira. Entrementes, o direito tenta, por meio de princípios, incluir os cidadãos, ao passo que a economia ou as condições econômicas e materiais tratam de excluí-los. A resistência à opressão e à injustiça social não é, de fato, consequência da ação ou da dinâmica do direito liberal democrático.

 

4ª Tese: Quando legitima relações materiais opressoras, o Estado liberal democrático acolhe a injustiça epistêmica, fenômeno decorrente do processo excludente que se manifesta como uma dimensão psíquica da opressão e faz gerir o colonialismo cultural.

O sistema do direito liberal enquanto um arcabouço teórico político traz consigo o nascedouro de duas de suas crias: o Estado do direito e o Estado do bem-estar social. Essas duas formas de gerência das relações sociais e políticas, no mundo contemporâneo, buscam legitimar o alcance e os limites da responsabilidade do Estado liberal pelas crises e injustiças materiais, originadas da produção capitalista. Trata-se aí, em realidade “[...] do conflito entre a primazia do princípio de legalidade, fundada e defendida pelo direito, e o da justiça social como norma ético-moral, legitimada pela ideia da justiça” (Flickinger, 2003, p.168). Caímos, então, na “armadilha” do princípio da liberdade democrática garantida para todos. Em outras palavras, o respeito ou a admissão do princípio da legalidade obriga-nos a aceitar, ao mesmo tempo, estruturas sociais materialmente injustas como normatizadas e aceitas no nível da ocorrência da injustiça epistêmica, aquela que distribui danos a tantos quanto estiverem excluídos da lógica do direito liberal.

Feitas essas digressões provocadas pela leitura do artigo do professor Gustavo Hessmann Dalaqua, espero ter estado acompanhada da tese de Paul Ricoeur, de que o texto nos provoca a uma dialética da compreensão e, nesse sentido, nos descompromissamos de expressar aquilo que o autor quis dizer e fazemos nossas interpretações muito já a partir do que temos construído. Embora me permitindo não citar os autores trabalhados pelo professor Dalaqua, desejo que, de alguma forma, tenha realizado uma conversação produtiva.

 

Referência

FLICKINGER, Hans-Georg. Em nome da liberdade: elementos da crítica ao liberalismo contemporâneo. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003.


 

 



[1] Professora associada da Universidade Federal de Pelotas/RS. Orientadora, na área da Filosofia da Educação, do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5513-5530 . E-mail: neivaafonsooliveira@gmail.com.