comentário: A lógica do tempo e de outras palavras fundamentais

 

Augusto B. de Carvalho Dias Leite[1]

 

Referência do texto comentado: Cruz, E. L. O tempo como critério de verificação da possibilidade do discurso filosófico. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, vol. 43, n. 3, p. 147 –164, 2020.

Penso ser ocioso reiterar as qualidades do texto de Estevão Lemos Cruz, que possui precisão filológica e um argumento em boa medida original. Para o leitor atento, tal artigo é uma importante contribuição para se pensar, segundo as palavras do autor, o fato de que

[...] o tempo é o elemento vinculador das condições de possibilidade da predicação e que só pode haver algo assim como o enunciado na medida em que há temporalidade; [no entanto, a predicação] é incapaz de expor adequadamente tanto o próprio tempo quanto todas as outras palavras fundamentais”, porque “o enunciado se fundamenta na estrutura imprópria da temporalidade (cruz, 2020, p. XXXX).

 

Trata-se, portanto, do desdobramento de uma conhecida tese que abre novos horizontes para o pensamento filosófico nos anos 1920, descoberta pelo hercúleo trabalho de Martin Heidegger, a saber, ser é tempo.

O artigo em questão, por conseguinte, responde de maneira clara (apesar de utilizar o “obscuro” vocabulário heideggeriano) à interrogação que se coloca, qual seja, em que medida uma predicação possui necessariamente um caráter temporal. Mas, indiferente a isso, Estevão Cruz termina realizando uma nova questão, na verdade, um problema já muito antigo originado dos inconvenientes lógicos da teologia, e que ainda permanece como um enigma teórico: “será que há alguma possibilidade discursiva que possibilite um acesso às palavras fundamentais?”; ou, ainda, haveria a possibilidade de a predicação originar-se daquilo que Heidegger chamou de modo próprio da temporalidade, o adiantar-se que instantaneamente se repete?

Assim, mesmo que de modo breve, gostaria de me dedicar ao desafio proposto por Estevão Cruz – ou continuar o seu pensamento, nas palavras de Hans-Georg Gadamer –, pois me parece que Heidegger não responde categoricamente, porém, inicia uma resposta à última pergunta do artigo, ao questionar o aspecto substancial do ser, ao afirmar sua verbalidade.

 

A origem da ontologia afirma que o ser é dito e o não-ser contradito

Sabe-se que é Parmênides de Eleia quem delimita de maneira inquebrantável os dois caminhos que estruturam os fundamentos da ontologia: a via da verdade, que é o caminho do ser, e a via da mera opinião dos mortais, o caminho do não-ser (DIELS, 1897; AUBENQUE, 1987). Dessa doutrina sobre o ser – localizada no fragmento II do poema Da Natureza, de Parmênides – deriva o princípio da não-contradição aristotélico (ARISTÓTELES, 1957, 1005b), o qual sobrevive hoje como fundamento da lógica formal do enunciado ou dizer (RUSSELL; WHITEHEAD, 1963, p. 111).

O caminho do ser legitima-se metafisicamente como não-contraditório. Em oposição a essa via, assim, o não-ser não se legitima logicamente, precisamente por ser contradição. O μὴ εἶναι [não-ser] (DK 28.B2) de Parmênides nada mais seria que uma manifestação contraditória (Galgano, 2019) Ou seja, de acordo com a história da ontologia, toda contradição recai em uma impossibilidade lógica que implica uma impossibilidade ontológica, isto é, o ser somente e efetivamente é, na medida que não contradiz, enquanto o não-ser não é precisamente porque contradiz. A possibilidade de dizer (o que não contradiz) é própria ao ser; a impossibilidade de dizer (o que contradiz) é imprópria ao ser, configura o não-ser.

Nessa passagem breve do poema de Parmênides, concentra-se, pois, a razão de toda ontologia – ou ontoteologia, diria Heidegger –, a qual se estrutura pela coincidência entre ser, verdade e presença (GA I.14 147-148), localizando o seu escopo apenas nesse âmbito afirmativo da existência, cujo dizer, segundo a doutrina do ser de Parmênides, seria, por isso, possível. Por outro lado, encontra-se determinada pelo não-ser toda negatividade própria ao que é contraditório, por conseguinte, presumivelmente indizível.

Não se pode dizer sobre aquilo que é essencialmente contraditório, de acordo com a história da ontologia. E isso institui um grave problema de implicações imediatas, quando Heidegger descobre que ser é tempo, uma vez que o tempo – ou sua expressão mais simples, a impermanência ou transitividade da existência – é um fenômeno basicamente contraditório; pois o tempo apenas existe na medida que deixa de existir; o ser do tempo somente se afirma não-sendo mais, quando nega sua própria existência; afinal, a passagem do tempo é seu fenômeno principal.

 

A ontologia se desviou de um fenômeno elementar, o tempo

A soberania do “substantivo ser” e o esquecimento da infinitude do “verbo ser” configuram, para Heidegger, marca indelével da ontologia, pois o verbo requer tempo, aspecto excluído da história da ontologia por ser contraditório; diferentemente do substantivo, que simplesmente subsiste, o verbo existe. A “transitividade do vebo ser é a maior descoberta de Heidegger” (LEVINAS, 1993, p. 53). E, ao demonstrar que o tempo compõe a ontologia, Heidegger evidencia a gravidade de se assumir a doutrina do ser de Parmênides como norma, porque entender o ser unicamente como substância “que verdadeiramente é presente” exclui da ontologia a sua potência verbal, isto é, temporal.

Ontoteologicamente não se pode dizer sobre o tempo justamente, porque se trataria, então, do reino do não-ser. Mas Heidegger questiona as duas vias de Parmênides, ao unificá-las em um caminho único, uma ontologia fundamental, a via do (não-)ser que é tempo. Na verdade, de acordo com a proposta de Heidegger, trata-se de explorar a negação que se encontra entre o ente e o ser, segundo a diferença ontológica entre ser (o que possibilita a realidade) e ente (as formas concretas do real) (GA I.9 123). Ou seja, ao simplesmente demonstrar a verbalidade da existência, Heidegger institui a quebra do princípio ontológico da proeminência do ser, em detrimento do não-ser – e sua consequente separação –, o que pavimenta uma vereda lógica para dizer sobre o tempo e outras palavras fundamentais.

A possibilidade de “dizer sobre os entes ou acerca da realidade física” é uma operação lógica já demonstrada – mesmo permanecendo um evidente desafio teórico –, todavia, a possibilidade de dizer sobre o ser – e seus variados outros nomes (natureza, verdade, tempo etc.) –, apesar de sua longa história, ainda carece de uma adequada demonstração de sua viabilidade. Nesses termos, não ousaria desenhar aqui um acesso objetivo que leve ao ser, por isso optei por tentar apenas expor rapidamente onde se situa o problema e a origem da lógica que autoriza dizer sobre os entes, mas não sobre o ser.

 

A lógica do tempo é o não-ser, a contradição

Qualquer tese ontológica sobre o tempo é incompatível com a doutrina do ser de Parmênides, visto que o tempo é contradição.[2] A doutrina parmenideana estaria na estrutura básica da interdição à “pergunta sobre as palavras fundamentais”, visto que dela se desdobra a limitação da existência no âmbito do “ser substantivo” em prejuízo do “ser verbal”, que abarca a possibilidade de dizer sobre a essência dos fundamentos. Heidegger, ao seguir os passos deixados por Hegel acerca da pura indeterminação da existência ou a negatividade – na Phänomenologie des Gestes, de 1807, e na Wissenschaft der Logik, de 1812-1816 –, direciona a reflexão sobre o logos do ser até a esfera contraditória do não-ser. E a possibilidade discursiva que permite acesso às palavras fundamentais estaria precisamente na temporalidade do ser, nas formas contraditórias que a negatividade da existência oferece.

 

Referências

Aristoteles Metaphysica. Ed. Werner Jaeger. Oxford University Press, 1957.

AUBENQUE, Pierre. Études sur Parménide (tomes I et II). Paris: Vrin, 1987.

DIELS, Hermann; KRANZ, Walther. Die Fragmente der Vorsokratiker. Vol. 1. Berlin: Weidmann, 1952.

DIELS, Hermann. Parmenides Lehrgedicht. Berlin: Weidmann, 1897.

GALGANO, Nicola. Parmênides. O não ser como contradição. São Paulo: Paulus, 2019.

HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Werke. Frankfut am Main: Suhrkamp, 1986.

HEIDEGGER, Martin. Gesamtausgabe. Frankfurt am main: Vittorio Klostermann, (1977-). (GA)

LEVINAS, Emmanuel. Dieu, la mort et le temps. Paris: Grasset & Fasquelle, 1993.

MCTAGGART, John Ellis. The Unreality of time. Mind, n. 17, 1908.

RUSSEL, B.; WHITEHEAD, A. N. Principia Mathematica. Cambridge: University Press, 1910.


 



[1] Docente na Universidade Federal do Espírito Santo. ORCID: http://orcid.org/0000-0001-6821-9074. E-mail: augustobrunoc@yahoo.com.br

[2] McTaggart (1908), ao identificar a essência contraditória da ideia de tempo, mas sem questionar a ontologia substantiva que ampara a metafísica, acaba optando por negá-la.