ComentÁrio

 

Rodrigo Alvarenga[1]

 

Referência do texto comentado: Pommier, E. La différence phénoménologique selon Barbaras et Marion (Projet, méthode et ligne de tension). Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, vol. 43, n. 3, p. 96 –119, 2020.

 

Começo este comentário com uma citação do próprio autor do artigo. Assinala Pommier (2020, p. Xxxx):

Un sourire n’est jamais qu’un sourire et l’on aurait peut-être tort d’y voir autre chose que cela que ce qui, dans ce phénomène, se donne, à savoir le plissement de lèvres exprimant un contentement réel ou feint. Pourtant, nous sentons bien aussi qu’en présence d’une certaine manière de sourire, à l’écoute d’une mélodie particulière, en lisant telle page de littérature ou de philosophie ou bien en recevant un singulier présent, quelque chose se passe qui semble nous conduire en-deçà ou au-delà du simple phénomène, de son contenu, comme si quelque chose en lui l’excédait, qu’il signifiait davantage que son être-là, que son être advenu.

 

Diante da cisão radical entre sujeito e objeto, aprofundada pela ontologia moderna como uma forma de alcançar a objetividade do conhecimento científico, a fenomenologia se coloca como um método de investigação que pretende descrever a experiência do sorrir, de tal modo que recupere o sentido do ato originário, cujo extremo subjetivismo ou objetivismo comprometeu. Que o sorriso não é pura expressão de um sujeito solipsista ou simplesmente a manifestação neurofisiológica de um estímulo exterior, mas algo que se deve compreender justamente naquilo que se encontra não reduzido ao sujeito ou ao objeto, parece-nos evidente. Contudo, como ter acesso a esse campo originário da experiência do mundo sensível, sem que esse campo se objetifique pela própria descrição e reinstaure os prejuizos clássicos do subjetivismo e do objetivismo? Seria possível fazer filosofia sobre uma experiência já perdida no tempo e que apenas ganha sentido enquanto fenômeno de expressão?

Para essas questões tão preciosas para a fenomenologia, a ciência respondeu com o ceticismo, ignorando qualquer possibilidade de teorizar sobre aquilo que não se pode observar como um objeto. O sorriso, nesse caso, poderia ser descrito apenas como uma forma de o cérebro descarregar as tensões cotidianas, para não entrar em colapso, ou como pecado; loucura. Claro que a epistemologia e a ontologia da ciência, na atualidade, têm conhecimento sobre o limite de sua descrição, porém, como tal descrição traz um resultado prático incontornável, já não há mais espaço na contemporaneidade para discussões de natureza fenomenológica, ao menos no que se refere à cultura acadêmica e científica dominante no Brasil.

Daí o mérito do artigo do colega Pommier, que apresenta um análise muito interessante sobre o aparecer da consciência a si mesma, ou seja, sobre o nascimento transcendental do sujeito em duas perspectivas contemporâneas bastante importantes: a ontologia da vida, do professor Renaud Barbaras, da Universidade Paris 1 (Panthéon-Sorbonne), e a doação originária de Jean-Luc Marion, professor da Universidade de Chicago. Ao comparar os dois autores, ganha destaque a aproximação entre ambos, mas também são marcadas algumas diferenças. Como herdeiros de Husserl, Heidegger, Merleau-Ponty, Derrida, entre outros, os dois filósofos estão preocupados em pensar o fenômeno da expressão enquanto nascimento da subjetividade, de modo a livrar-se de todo e qualquer ranço solipsista que colocaria o fundamento da aparição da consciência no próprio sujeito. Enquanto Barbaras irá explicar a dinâmica da manifestação, recorrendo a uma espécie de metafisica renovada, Marion dedicará atenção especial ao elemento passivo da doação originária, mas não se trata aqui de expor as principais semelhanças e diferençãos entre as duas perspectivas, visto que isso já foi feito pelo autor.

Gostaria apenas de complementar um pouco a discussão sobre a aparição da subjetividade, considerando a questão do decurso da temporalidade, pois, no campo da fenomenologia, os aspectos transcendentais da consciência enquanto fluxo temporal são importantes para se tentar compreender como é possível que a consciência apareça a si mesma, ao mesmo tempo como passividade pré-reflexiva e atualidade constituinte. Isso porque essa cisão entre o sujeito e o objeto, entre aquele que vive e aquele que se percebe vivendo, entre a experiência do sorrir e a experiência daquele que percebe o sorriso e suspeita de uma profundidade quase que ilimitada sobre o conteúdo do que nele se expressa, está diretamente relacionada com a própria temporalidade. Tempo e sujeito, nesse sentido, estão profundamente implicados, afinal, como pensar o movimento pelo qual a realidade se presentifica, deixando um fundo de rastros, enquanto transcendência ignorando a temporalidade? Na verdade, é desse movimento temporal que se trata a dinâmica da manifestação para Renaud Barbaras (2013, p. 327).

C’est pourquoi, comme on l’a vu, le sujet tend vers cette origine perdue et, en tendant vers elle, la fait paraître confortemént à son être propre, à savoir précisément comme cela qui s’efface toujours, s’absente de se qui le présente. Ainsi, avec l’archi-événement naît un procès qui tend à en combler la bèance et l’archi-èvénement n’est en vérité rien d’autre que la naissance même de ce procês. Celui-ci tend à réaliser une coïncidence impossible, à rejoindre cette origine à jamais perdue; procès infini pour autant qu’il fait paraître la distance dans le mouvement qui la franchit, éloigne à mesure qu’ils s’approche, creuse la béance en même temps qu’il la comble. Ce procès n’est autre que celui de la temporalisation.

           

            Com relação ao conceito de Dom de Jean Luc Marion, também teremos um modo de compreensão da temporalidade que se desenvolverá a partir da crítica ao Dasein de Heidegger, enquanto modo de superação do Eu metafísico. De acordo com Marion (2003), Ser e Tempo constituem uma forma de tentar ultrapassar os limites colocados pelo sujeito transcendental de Kant e de Husserl, visto que a perspectiva do ser-no-mundo não diz respeito à colocação de um objeto por um sujeito, mas à abertura dessa região do ser que antecede ou se encontra- subentendida à dicotomia, ou seja, o enraizamento e a abertura ao mundo. Contudo, a analítica existencial de Heidegger acaba restarurando a subjetividade em função da sua centralidade no Dasein:

Dasein sucede ao sujeito renunciando à auto-constituição do eu transcendental, mas ainda se reivindica a si mesmo pela autarquia da resolução; faltalhe ainda deixar-se reivindicar por uma instância, diferente dele (aqui, o ser) para poder suceder finalmente ao sujeito sem herdar outra vez a subjetividade. Somente o interpelado rompe com o sujeito, mas Dasein não se abandona ainda à interpelação (MARION, 2010, p. 124).

 

            O dom consiste justamente nesse esforço de decentralização do sujeito, que fora considerado insuficiente, pela analítica existencial do Dasein. “Porque antes que eu seja o que sou, antes que eu seja ou me invente poder ser um sujeito ou um Dasein, torna-se necessário que a surpresa me convoque. No começo, o taumazein, a admiração” (MARION, 2010, p. 126). A forma radical da decentralização do sujeito constituinte se manifesta na doação originária que caracteriza o amor, pois demonstra um modo de relação em que não há objetivação do outro, porém, manutenção da alteridade, de um terceiro que foge ao controle do ego e do alterego e os descentra, numa dimensão erótica. Por meio da fidelidade se realiza a presentificação do fenômeno erótico, ponto fundamental do amor, para Marion (2003, p. 308):

A fidelidade não tem, aqui, um estatuto intimamente ético, facultativo e psicológico, mas uma função estritamente fenomenológica – permite temporalizar o fenômeno erótico de forma a assegurar-lhe uma visibilidade duradoura e que se imponha. Sem a fidelidade, o fenômeno erótico torna-se simples instantâneo, desaparecendo assim que aparece, uma intermitência fenomenal.

 

Por tudo isso, é curiosa a opção do autor em não trabalhar com a questão da temporalidade, em seu texto; contudo, o que realmente importaria analisar junto com o colega, para além das semelhanças e diferenças entre Barbaras e Marion, seria a validade das soluções encontradas pelos dois filósofos para o problema do solipsismo da consciência, como forma de explicar o ato ou passividade originária do fenômeno da correlação. Afinal, será que abrir o campo da metafísica, como propõe Barbaras, para falar numa espécie de a priori universal da correlação, um arquievento enquanto movimento de um movimento no mundo que abre para uma negatividade intranponível, é um caminho de superação do solipsismo? Por outro lado, seria o dom e o amor uma forma de fugir da busca por um fundamento universal da correlação, ou é apenas um outro modo de oferecer esse fundamento, considerando a aproximação da filosofia de Marion com a teologia? Analisar criticamente as soluções apresentadas pelos dois filósofos poderia ser uma boa forma de o colega dar continuidade aos estudos apresentados nesse artigo.

 

Referências

BARBARAS, Renaud. Dynamique de la manifestation. Paris: Vrin, 2013.

MARION, Jean-Luc. Le phénomène érotique: six méditations. Paris: Grasset, 2003.

BARBARAS, Renaud O interpelado. Tradução por José Reinaldo Felipe Martins Filho. Griot – Revista de Filosofia. Amargosa, Bahia, v. 2, n. 2, dezembro/2010.

 

 



[1] Docente no Programa de Pós-Graduação em Direitos Humanos e Políticas Públicas PUCPR. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8546-4442. E-mail: alvarenga.rodrigo@pucpr.br.