Comentário

 

Adriano Correia[1]

 

Referência do texto comentado: Galantin, D. V. A dimensão literária do diagnóstico do presente em Foucault. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, vol. 43, n. 3, p. 63 –88, 2020.

 

Em texto publicado em 1984, pouco antes de sua morte, Foucault volta-se uma vez mais para o clássico texto de Kant sobre a Aufklärung, que assume para ele uma decisiva centralidade na autocompreensão de sua própria tarefa e trajetória como filósofo. Em seu texto, Kant se empenha por compreender o presente buscando antes pela diferença que ele instaura em relação ao passado, em vez de procurar compreendê-lo a partir de alguma totalidade ou de alguma realização futura. Foucault acaba por indicar que independentemente de o diagnóstico de Kant de uma saída da menoridade poder não ser tomado por acurado em nossos dias, resta claro que em sua interrogação sobre o presente e sobre nós mesmos ele revelou um modo de filosofar que não teria perdido sua atualidade e seu vigor. Foucault conclui indicando que a ontologia crítica de nós mesmos “tem de ser compreendida como uma atitude, um êthos, uma vida filosófica em que a crítica do que somos é simultaneamente a análise histórica dos limites que nos são impostos e um experimento com a possibilidade de ir além deles” (FOUCAULT, 1984, p. 50).

Na pergunta pela atualidade, pelo presente, conforma a filosofia como problematizadora de sua própria atualidade discursiva e o filósofo como aquele que indaga sobre o estatuto do seu pertencimento a sua própria atualidade. Esta filosofia do acontecimento poderia bem ser caracterizada como “discurso da modernidade e sobre a modernidade” (FOUCAULT, 1994, p. 681), mas um contexto ainda nosso. Para Foucault, Kant fundou as duas tradições críticas que constituem a filosofia moderna: uma filosofia crítica que se apresenta como analítica da verdade e se pergunta sobre as condições sob as quais é possível o conhecimento verdadeiro, e um pensamento crítico que se apresenta como ontologia de nós mesmos e se pergunta pelo “campo atual das experiências possíveis” – ontologia do presente na qual Foucault situa sua própria obra (FOUCAULT, 1994, p. 687-688).

Em seu texto, Daniel Galantin explora esta articulação ao longo da obra de Foucault detendo-se principalmente no que designa como “dimensão literária” do diagnóstico do presente. Esta dimensão literária estaria diretamente conectada não apenas a um deslocamento do olhar provocado pelo próprio ato da escrita, mas ainda à identificação de fissuras ou diferenças que situariam ao mesmo tempo o filósofo no interior de seu próprio tempo e na distância que o permite no diagnóstico abarcar as aberturas ou diferenças que marcam a atualidade e eventualmente promover deslocamentos – situar-se sem propriamente sentir-se inteiramente em casa no presente. O próprio diagnóstico se afiguraria como uma experiência-limite – ou, poderíamos acrescentar, uma experiência com os limites. A experiência é ela mesma transfiguradora não apenas da imagem de si, mas do próprio mundo mediante a exposição de suas fissuras, tarefa na qual a história desempenha um papel decisivo.

Como bem destaca Daniel Galantin, em 1978 Foucault concede uma longa entrevista em que permite entrever suas considerações dos 1960 sobre a obra de Bataille, a partir das quais pensou um diagnóstico não estático, que tanto desloca o autor quanto dá a ver e provoca cesuras na atualidade. Nesta entrevista ele chega à noção de livro-experiência, com a qual busca capturar a imagem de um texto vivo que não é o mero desaguar das elaborações previamente articuladas do autor, mas antes o seu desbordar de toda pretensão sistemática na provocação a si, estendida aos outros, mediante a própria experiência de concepção do diagnóstico pelo texto. Daí que Foucault se afirme não como um teórico, mas como um experimentador, forjado e deposto antes de tudo em seus próprios textos.

Não deve ser tido por desimportante que no mesmo ano de 1978 Foucault tenha proferido a conferência “O que é a crítica: crítica e Aufklärung” e inscreva sua própria obra no âmbito da virtude geral que é a atitude crítica, mobilizada por uma disposição para a não sujeição, como reação a uma crescente governamentalização, como uma arte de não ser governado, uma oposição ao feixe de relações que amarram o sujeito ao poder e à verdade: “a arte da inservidão voluntária, aquela da indocilidade refletida” (FOUCAULT, 2015, p. 39).

Além de experimentador, mais que teórico, Foucault apresenta-se mais como crítico que como filósofo e inscreve-se deliberadamente na companhia de Bataille, Blanchot, Klossowski e Nietzsche, por uma parte, como destacado por Daniel Galantin, e da Escola de Frankfurt, de Nietzsche novamente, Hegel e Kant. Trata-se da convergência de dois esforços de dessubjetivação e desassujeitamento em relação ao jogo do poder e da verdade, na confluência entre livros-experiência e vigilante atitude crítica. A diversidade de temas, interesses e abordagens na obra de Foucault não dissolve esse fio tênue que articula sua atividade filosófica, compreendida como diagnóstico da atualidade, ontologia do presente, compreensão do contemporâneo, indagação paciente sobre suas aberturas conformada por nossa “impaciência pela liberdade” (FOUCAULT, 1984, p. 50).

 

REFERÊNCIAS

FOUCAULT, Michel. “What is Enligthenment?”. In: Rabinow, P. (éd.), The Foucault Reader. New York: Pantheon Books, 1984, p. 32-50.

FOUCAULT, Michel. Qu'est-ce que les Lumieres? Dits et écrits, v. 4, 1980-1988. Paris: Gallimard, 1994, p. 679-688.

FOUCAULT, Michel. Qu 'est-ce que la critique? In: FOUCAULT, Michel. Qu'est-ce que la critique? suivi de La culture de soi. Paris: Vrin, 2015, p. 33-80.

 



[1] Docente na Universidade Federal de Goiás - UFG – Goiás. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3320-2939. E-mail: correiaadriano@yahoo.com.br