Comentário
a “A dimensão literária do diagnóstico do presente em Foucault” de Daniel Verginelli Galantin
Referência do texto comentado: Galantin, D. V. A dimensão literária do diagnóstico do presente em Foucault. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, vol. 43, n. 3, p. 63 –88, 2020.
“Não me pergunte quem eu sou nem me diga para permanecer o mesmo: é uma moral de estado civil, ela rege nossos papéis. Que ela nos deixe livres quando se trata de escrever”, diz Foucault (1969, p. 28). Essa famosa passagem, que encerra a Introdução de A arqueologia do saber, é relembrada por Daniel Verginelli Galantin (daqui em diante, DVG), em seu belo artigo[2] sobre a dimensão literária do diagnóstico do presente em Michel Foucault. Ela é muito bem escolhida. Afinal de contas, Foucault não apenas reivindicou a liberdade da escrita filosófica, mas efetivamente a praticou, não hesitando em mudar a direção de suas pesquisas e seus métodos de análise, quando considerava necessário. E o mais importante é que essas mudanças de percurso, longe de colocarem seu trabalho sob o risco da contradição, estão incorporadas em sua filosofia.
A obra de Foucault, portanto, traz o selo da liberdade, como, aliás, já afirmava (e, de meu ponto de vista, de maneira muito convincente) John Rajchman (1987), em um livro publicado há mais de trinta anos. Mas qual é o sentido dessa liberdade? Em qual dimensão ela deve ser tomada (metodológico-filosófica, existencial)? Tenho a impressão de que essas são as questões de fundo do artigo de DVG e gostaria de mostrar, neste breve comentário, como ele as enfrenta. Mas gostaria ainda, mesmo sem poder desenvolvê-las, de chamar a atenção para duas considerações suscitadas por este texto.
Vamos voltar, então, à passagem de A arqueologia do saber. A defesa da liberdade de escrita frente à moral de cartório deve ser inscrita, para sua plena compreensão, no âmbito do trabalho filosófico de Foucault, que tem em seu núcleo, acredita DVG, a atividade de diagnóstico. Em que essa atividade consiste, DVG nos esclarece, recorrendo a algumas entrevistas dadas por Foucault no final dos anos sessenta e, em especial, àquela concedida a Claude Bonnefoy, em 1969.[3] Esta última é crucial para DVG, porque Foucault vincula, aí, o diagnóstico com a literatura, e isso por duas vias. A primeira indica que o diagnóstico que Foucault deseja fazer se encontra no nível da linguagem, da escritura e dos discursos. Ora, a experiência literária é, por excelência, aquela em que experimentamos diretamente a espessura do ser da linguagem ou, ainda, o redobramento da linguagem sobre si mesma. Porém, a segunda via, aquela que é mais enfatizada por DVG, desvela outro aspecto da experiência literária: o processo da escrita produz uma alteração naquele que escreve.
Levando em conta este último aspecto, é possível compreender o forte interesse de DVG pelo texto que Foucault publicou em 1963, no qual comenta a obra de Georges Bataille, isto é, o “Prefácio à Transgressão”. Nesse texto, com efeito, a propósito da noção de experiência-limite, nós nos deparamos com esse elemento decisivo da atividade de diagnóstico: a transfiguração do mundo concomitante à transformação do sujeito. A aposta de DVG é a de que esse elemento literário será retido no desenvolvimento do trabalho de Foucault, podendo ser reconhecido mesmo em sua fase mais tardia, na qual estará em jogo, no exercício do governo dos outros e de si, a autoconstituição do sujeito. Da transgressão, em Bataille, passando pelo diagnóstico e chegando à ontologia do presente, teríamos um elemento de continuidade, que poderia ser formulado (em meus próprios termos) como um “princípio de transitividade” (tomando este último termo em sua acepção matemática) entre o sujeito e o mundo.[4]
A partir daí, gostaria de fazer as breves ponderações anunciadas: a primeira delas diz respeito ao lugar da verdade, nas análises de Foucault, ao qual DVG não concede muita atenção. A segunda ponderação retoma o problema da liberdade, assumindo o pressuposto de que esta é a questão de fundo que temos de abordar, se quisermos entender plenamente os desdobramentos éticos e políticos do diagnóstico (não estou, em absoluto, postulando a necessidade de uma filosofia primeira para Foucault, mas simplesmente levantando a hipótese de que a transgressão, o diagnóstico e a crítica se articulam, a partir de uma concepção não tematizada de liberdade).
No que toca à questão da verdade, convém lembrar que, no mesmo período analisado por DVG, os diversos trabalhos de Foucault sobre a literatura enfatizam sua conexão com a morte e a loucura. Não escapa a DVG a primeira conexão, central na entrevista a Claude Bonnefoy. Porém, a relação entre literatura e loucura é igualmente importante, como é fácil constatar, tanto a partir dos textos contidos nos Dits et écrits, quanto em uma conferência que Foucault pronunciou em Túnis, em abril de 1967. Para meus propósitos, destaco uma passagem dessa conferência, na qual Foucault afirma que a literatura, na modernidade, tomou o lugar da loucura como aquele da enunciação da verdade: por um lado, o discurso literário, herdeiro da palavra do louco, é uma palavra vazia, inadequada para dizer a verdade, entendida como aquilo que realmente acontece; por outro lado,
[...] a palavra literária é feita para desvelar algo que nossos discursos cotidianos, que nossos discursos científicos, que o peso acabrunhante de nossos discursos filosóficos não podem dizer: e esse algo é uma espécie de verdade debaixo, ou verdade além, e vocês sabem que o destino dos homens foi melhor dito pelos grandes romancistas ou pelos grandes homens de teatro de nosso mundo do que pelos filósofos e pelos cientistas (FOUCAULT, 2019, p. 63).
Malgrado a simplicidade dessa formulação, que retoma as análises de História da loucura em uma configuração conceitual diferente (de cariz sociológico), ela permite compreender algo fundamental: o espaço literário, ao mesmo tempo interno e externo à linguagem, configura-se como um lugar de enunciação da verdade. Ora, acredito que Foucault irá conservar essa intuição, reativando-a em seus últimos cursos, quando empreender suas análises da parresia, tendo em vista a definição da filosofia como crítica.
Por fim, talvez valha a pena se perguntar sobre o status do diagnóstico foucaultiano, do ponto de vista ético e político. DVG não tem dúvidas: trata-se de uma “alteração de si e do mundo fundamentalmente ateleológica”, afirma. Estou de acordo, em linhas gerais, e parece despropositado pressupor um déficit normativo em Foucault. Caberia, por outro lado, indagar se a ausência de normatividade é incompatível com uma compreensão mais positiva do diagnóstico. Acredito que não. E o que estou chamando de compreensão mais positiva é precisamente o problema da liberdade, que ganha mais densidade no trabalho mais tardio de Foucault. É importante notar que o termo diagnóstico cederá lugar – a partir da segunda metade dos anos setenta – ao termo crítica. Haveria diferença substancial entre uma coisa e outra? Ora, parece-me que o diagnóstico (como bem demonstrou DVG) opera na diferença (e, portanto, inscreve-se mais claramente no domínio do negativo), ao passo que a crítica aponta (sem precisar defini-las em sua positividade) as possibilidades de ser diferente. Certamente, Foucault coloca a crítica sob o prisma do negativo (utilizando expressões como “desassujeitamento” ou “ser, pensar e fazer de outra forma”), mas, ao mesmo tempo, incorpora em seu vocabulário termos como “governo”, “prática” e “cuidado”, os quais colocam em perspectiva diferente a subjetividade política e ética, termos com os quais é mais fácil ver como, em filigrana, se desenha a figura da liberdade.
Que fique claro que não estou sugerindo uma evolução no pensamento de Foucault em direção a uma filosofia da liberdade, a qual, de resto, jamais é satisfatoriamente tematizada pelo filósofo. Apenas faço notar que o momento final de seu percurso explicita que não se compreende a atividade do diagnóstico sem a referência à liberdade. O artigo de DVG parece, em negativo, endossar essa leitura. Por exemplo, quando ele afirma que,
[...] ao tratar de um passado que ainda não passou completamente, o diagnóstico do presente integra um esforço para se desprender ativamente deste passado e transformar o presente. A história, quando vinculada ao diagnóstico, se torna, então, um instrumento de distanciamento com relação a este presente que ressoa um passado próximo, ao mesmo tempo em que ela dá espaço a um presente outro.
É legítimo perguntar, então, se surgiria aqui algo não recoberto pela abordagem “ateleológica”, pois, como poderíamos justificar essa “avidez” do desprendimento do passado? O que regeria a decisão de tomar a história como “instrumento de distanciamento com relação ao presente”, se não o desejo de liberdade?
Referências
Foucault, Michel. L’archélogie du savoir. Paris: Gallimard, 1969.
Foucault, Michel. Folie et Civilisation. In: Foucault, Michel. Folie, langage, littérature. Paris: Vrin, 2019.
Machado, Roberto. Foucault, a filosofia e a literatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.
Rajchman, John. Foucault: a liberdade da filosofia. Trad. de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1987.
[1] Professor do Departamento de Filosofia da UFMG. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-9455-2057 E-mail: heltonadverse@hotmail.com
[2] Outro de seus méritos é mostrar, de modo inequívoco, a presença da literatura no núcleo da reflexão de Foucault, incluindo seus trabalhos finais. Por conseguinte, esse estudo indica os impasses a que conduz uma interpretação como a de Machado (2000), o qual aposta no “ocaso da literatura” em sua obra.
[3] Não me parecendo necessário reproduzir em sua íntegra a definição de diagnóstico apresentada por DVG, retenho apenas seus traços essenciais: trata-se de, por meio da análise de determinadas disciplinas, diagnosticar o estado do pensamento no presente, tendo em vista não a reconstrução de uma identidade, mas assinalar a diferença que nos constitui no tempo atual. O diagnóstico, voltado ao presente, não nos diz quem somos, mas indica quem estamos deixando de ser ou não somos mais, no presente. O ponto fulcral da análise de DVG (que será abordado em seguida) consiste no seguinte: diagnosticar o presente não é apenas o sinal da diferença no campo da linguagem (e daquilo que é conhecido), mas produz igualmente a diferença no domínio subjetivo (naquele que conhece).
[4] Em diversas ocasiões, DVG insiste sobre a transitividade do diagnóstico, anunciada em Bataille e presente ainda no Foucault tardio: “O diagnóstico propicia um saber eminentemente transfigurador do real e se declina numa voz média na medida em que também é uma ação transformadora de si mesmo”. Ou, ainda, refutando a crítica de Béatrice Han: “Contudo, na medida em que o diagnóstico foucaultiano tem como efeito alterar tanto o presente quanto o sujeito do diagnóstico, ele é um procedimento de apagamento do rosto e enucleação do olhar, e não de sua correção. Censurar sua falta de fundação em direito é tentar impor uma teleologia a uma alteração de si e do mundo fundamentalmente ateleológica”. Vale destacar aqui o inteligente recurso à noção de “voz média” verbal, cuja definição DVG encontra em Benveniste e que expressa exatamente o que entendo por “transitividade”. Diz DVG: “Segundo Benveniste, a oposição verbal entre ativo e médio é anterior à oposição entre ativo e passivo. Em linhas gerais, nas línguas indo-europeias, a diátese ativa indica um processo em que o sujeito se encontra numa posição exterior, enquanto na média, o sujeito é afetado pelo próprio processo do qual ele é a sede”.