Comentário: Experimentos de Pensamento e Ficção Científica

 

Pedro Pricladnitzky[1]

 

Referência do texto comentado: Murr, C. E. Desfamiliarização e ficção científica: uma abordagem de base schrödingeriana à construção do objeto literário. Trans/Form/Ação: revista de filosofia da Unesp, vol. 43, n. 3, p. 32 –58, 2020.

 

O texto “Desfamiliarização e ficção científica: uma abordagem de base schröndigeriana à construção do objeto literário” apresenta instigantes considerações sobre a construção de objetos científicos e a sua relação com obras de ficção. A comparação entre ficção e ciência nos remete, por sua vez, a uma série de questões relacionadas aos elementos centrais da reflexão filosófica da atividade científica: pode a ficção científica ser um instrumento relevante para a filosofia da ciência? O que um gênero literário, de cinema e entretenimento em geral poderia nos ensinar acerca das nossas ferramentas especulativas?

Ciência é uma atividade humana e social, que possui como finalidade a produção de um certo tipo de conhecimento. Essa especificidade está relacionada à institucionalização e à determinação de um método. A investigação da natureza do conhecimento científico e do seu método são temas caros à filosofia da ciência. Costumeiramente, essa investigação se desdobra nos seguintes aspectos: a epistemologia da observação e experimentação; os tipos de raciocínio (indutivo, dedutivo ou abdutivo); e a formação de hipóteses e teorias (HEMPEL, 2002). A compreensão desses dois últimos elementos, hipóteses e teorias, se beneficia enormemente da comparação entre objetos científicos e objetos de ficção, pois ambos são tipos de experimentos de pensamento (Scheneider, 2015).

Experimentos de pensamento são artifícios da imaginação. São empregados para vários propósitos, como entretenimento, educação, análise conceitual, formação de hipóteses, seleção de teorias, entre outros. Um experimento de pensamento filosófico é uma situação hipotética que nos apresenta algo que costumeiramente ultrapassa os limites da tecnologia atual ou até é incompatível com as leis da natureza, mas que supostamente é capaz de revelar algo filosoficamente esclarecedor. Usados como uma ferramenta para auxiliar na compreensão de um cenário complexo ou para destrinchar um conceito abstrato, não consistiriam em um tema polêmico. Porém, experimentos mentais podem auxiliar na compreensão da realidade? Isto é, teorias e hipóteses que são desenvolvidas na nossa imaginação nos trazem lentes para enxergar o mundo? Há experimentos de pensamento que nos permitem adquirir novo conhecimento acerca da natureza sem dados empíricos? Se sim, de onde a nova informação viria, se não do contato com o objeto que está consideração no cenário imaginado? Essas questões são fundamentais para desenvolvermos uma concepção precisa de experimentos de pensamento científicos, pois muitos os reconhecem como uma ferramenta ocasional potente para o aumento da nossa compreensão da natureza. Nesse aspecto, tangenciamos o debate entre realismo e antirrealismo científico e a função atribuída às representações científicas. Ou seja, quando utilizamos expressões como “centro de massa”, “força gravitacional” ou “elétrons”, estamos nos referindo a coisas no mundo? (van Fraassen , 1980; Hacking, 1983). É esse uso de experimentos de pensamento que atrai mais atenção, seja na filosofia, seja na ciência (KUHN, 1977).

Qual é a diferença essencial entre experimentos mentais e experimentos empíricos? A resposta parece óbvia. Apenas um deles envolve experiência de algo no mundo. Isso, por sua vez, não é isento de pressuposição acerca das relações que a observação empírica tem com a realidade. Exceto pelo fato de serem realizados “na mente”, experimentos de pensamento são bastante similares a experimentos empíricos. Em ambos os casos, há um arranjo deliberado dos elementos que constituem o experimento. Nós observamos o que acontece.[2] Após, extrai-se uma conclusão. Ainda que se possa alegar a sua semelhança, há muita controvérsia em torno da capacidade epistêmica dos experimentos mentais.[3] Dentre a investigação sobre a sua natureza e função, temos a confluência de outros tópicos de grande relevância filosófica: a natureza da imaginação, a importância do entendimento em contraste com a explicação, o papel da intuição na cognição humana e a relação entre ficção e verdade (Goodman, 1983).

Experimentos de pensamento podem demonstrar um ponto, entreter, ilustrar um enigma, explicitar uma contradição no pensamento, e nos mover a fornecer uma perspectiva mais aprofundada. Na maioria das vezes, experimentos de pensamento são comunicados em uma forma narrativa. Não é claro, contudo, se qualquer narrativa hipotética conta como um experimento de pensamento. Isso valeria também para todo pensamento contrafactual? Rescher (2003), por exemplo, pensa que sim. Haveria uma estrutura lógica fundamental que forneça unidade aos experimentos mentais? (Sorensen , 1998). Seja como for, é inegável que possuam uma história intelectual renomada. Tanto a criação da relatividade e a interpretação da mecânica quântica dependem fundamentalmente de experimentos de pensamento: por exemplo, o elevador de Einstein e o gato de Schröndiger. Filósofos, ainda mais do que físicos, fazem um grande uso. René Descartes, por exemplo, nos pediu para imaginar que o mundo físico que nos cerca fosse uma ilusão elaborada. Ele imaginou que o mundo fosse apenas um sonho ou, até pior, uma farsa orquestrada por um gênio maligno, cujo objetivo é nos enganar. Ele então nos pergunta: como podemos ter certeza de que não estamos sendo enganados, em alguma dessas maneiras? Similarmente, Platão nos convida a examinar a alegoria da caverna, talvez o mais clássico experimento de pensamento da história da filosofia. O cenário descrito pela alegoria é análogo ao nosso conhecimento da realidade? Isto é, a condição humana é tal que nossa apreensão da realidade é apenas parcial?

A ficção científica consiste na exploração máxima dos experimentos de pensamento. Nela, temos longos e minuciosos processos de imersão em possibilidades alternativas. 2001, de Arthur Clarke, examina brilhantemente design inteligente e inteligência artificial. Robôs podem ser inteligentes? Eles devem ter direitos? Inteligência artificial tão sofisticada é sequer possível? Após a leitura de A Máquina do Tempo, de H. G. Wells, possivelmente todos se questionam: viagem no tempo é possível? Qual é a natureza exata do tempo e do espaço? Nós agimos livremente ou está tudo determinado, como em Minority Report, o conto de Phillip K. Dick? Em Matrix, das irmãs Wachowski, vemos traços da alegoria da caverna; filosofia e ficção científica convergindo em um conjunto de temas e reflexões. De fato, não parece haver um fim na lista de tópicos de ficção científica que instigam a reflexão filosófica. O século XVII viu alguns dos mais brilhantes praticantes dos experimentos de pensamento em figuras com Galileu, Descartes, Newton e Leibniz, todos buscando um projeto de filosofia natural. A criação da mecânica quântica e relatividade são quase impensáveis, sem uma função crucial exercida por experimentos de pensamento, como já vimos. Além disso, muito da ética, filosofia da linguagem e filosofia da mente é baseado nos resultados de experimentos de pensamento de uma forma que parece bastante similar àqueles utilizados pela ciência; por exemplo, o quarto chinês de Searle, a terra gêmea de Putnam, Mary a cientista das cores de Frank Jackson. A filosofia seria bem menos do que ela é sem os experimentos de pensamento.

 

Referências

Brown, J. R.; Fehige, Y. Thought Experiments. The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2019 Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL: https://plato.stanford.edu/archives/. Acesso em 25 abr. 2020.

Frappier, M. et al. Thoughts Experiments in Philosophy, Science and the Arts. London: Routledge, 2013

Goodman, N. Fact, Fiction and Forecast. Harvard University Press. 1983

Hacking, I. Representing and Intervening. Cambridge. Cambridge University Press. 1983

Hempel, C. Philosophy of Natural Science. Englewood Cliffs: Prentice-Hall. 1966.

Kuhn, T. S. A Function for Thought Experiments. In Kuhn, T. S. The Essential Tension, Chicago: University of Chicago Press, 1977, 240–265.

Jackson, F. Perception: A Representative Theory. Cambridge: Cambridge University Press. 1977.

Popper, K. R. The Logic of Scientific Discovery. London: Routledge, 2002.

Rescher, N. Imagining Irreality. Chicago; La Salle: Open Court. 2003

Rescher, N. What If? Thought Experimentation in Philosophy, New Brunswick, NJ: Transaction Publishers. 2005.

Scheneider, S. Science Fiction and Philosophy – From Time Travel to Superintelligence. Blackwell. 2015

Sorensen, R. Thought Experiments. Oxford University Press. 1998.

Van Fraassen, B. C. The Scientific Image. Oxford: Oxford University Press.1980.

 



[1] Universidade Estadual de Maringá – UEM. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5741-1746. E-mail: pricladnitzky@gmail.com

[2] O quão literal devemos compreender esses dois tipos de observação é um tema de um grande debate sobre a natureza da percepção (Jackson, 1977).

[3] Thoughts Experiments in Philosophy, Science and the Arts.