EXTERNALIZANDO A REFLEXÃO

 

Ernesto Perini-Santos[1]

 

Resumo: A principal crítica do internismo a teorias externistas é que elas parecem fazer o conhecimento o resultado de processos que permanecem inacessíveis ao sujeito. Epistemologias externistas buscaram acomodar esta exigência, como é o caso da epistemologia de Sosa. A incorporação das exigências internistas não se faz sem tensões – no caso de Sosa, os mecanismos reflexivos podem ser inacessíveis ao sujeito. Na medida em que buscamos compreender como podemos conhecer e refletir sobre nossas próprias crenças, encontramos mecanismos externos ao sujeito que não podem ser internalizados: a dinâmica conversacional e o conhecimento científico dos mecanismos de funcionamento da cognição. A externalização do saber se estende para o conhecimento cientifico de maneira muito ampla. Uma pessoa que só tomasse como verdadeiro aquilo que pode provar (ou mesmo que pode compreender) seria alguém que recusaria boa parte do saber humano. Para todo leigo – isto é, para todo mundo, num ou noutro domínio –, assumir o que é produzido pela cultura é tomar como verdadeiras crenças cujo conteúdo resta opaco. Como exige um internista, o funcionamento interacional da razão não envolve mecanismos cegos à perspectiva do sujeito e não conceitualizados, mas, ao contrário, leva precisamente à articulação e à tomada de consciência das teses apresentadas. Este conhecimento não pode, contudo, ser internalizado. A externalização do conhecimento é um traço profundo do conhecimento e, mais geralmente, da cultura humana. No contexto de uma teoria evolutiva da cultura, muitos autores defendem, de diferentes modos, que a cultura humana é essencialmente social. O que talvez não seja tão usual seja conectar teorias mais gerais da evolução da cultura com preocupações tradicionais da epistemologia. Espero mostrar que este é um caminho frutífero.

 

Palavras chave: Externismo. Reflexão. Racionalidade. Evolução cultural.

 

INTRODUÇÃO

Uma das maneiras de se dividir as disputas teóricas na epistemologia é a separação entre teorias externistas e teorias internistas. De maneira muito esquemática, a primeira família de teorias defende que o conhecimento resulta de um mecanismo de produção de crenças que rastreia estados do mundo, isto é, as crenças devem ser produzidas por um mecanismo fiável, na versão mais usual do externismo. Para teorias deste segundo tipo, a justificação deve estar baseada em elementos puramente internos, tipicamente, elementos a que o sujeito tem o acesso consciente. Críticas internistas buscam mostrar que a fiabilidade de um mecanismo de produção de crenças não é nem uma condição necessária, nem uma condição suficiente para o sujeito estar justificado em tomar algo como verdadeiro.

O novo problema do gênio maligno procura mostrar que a fiabilidade não é uma condição necessária para a justificação (Lehrer e Cohen, 1983; Cohen, 1984). Imagine um mundo no qual a experiência perceptual é manipulada por um gênio maligno, de maneira que ela leva, em geral, a crenças falsas. Se o sujeito não souber que está sendo manipulado – o que todo gênio maligno digno deste nome deve ser capaz de fazer –, ele pensará que sua experiência perceptual é um modo confiável de obtenção de crenças. Numa situação deste tipo, por tudo que o sujeito sabe, ele está justificado em suas crenças perceptuais. Se tivermos a intuição que, nesta situação, o sujeito está justificado – como diz Sosa, que há um sentido em que o sujeito está subjetivamente justificado –,[2] a fiabilidade não é uma condição necessária para a justificação.

A fiabilidade do processo de produção de crenças não parece ser tampouco suficiente para a justificação. BonJour propõe uma série de casos estranhos nos quais videntes acreditam corretamente que o presidente dos Estados Unidos está em Nova York (BonJour, 1980). Numa das situações propostas, Norman é um vidente que não tem razões a favor ou contra sua clarividência. No entanto, as crenças que obtém deste modo são em geral verdadeiras. Um dia, sem razões para tal, ele acredita que o presidente dos Estados Unidos está em Nova York. Segundo o fiabilismo, ele está justificado em ter tal crença, mesmo se não tem razão alguma para acreditar naquilo que seu poder de clarividência o leva a acreditar. Como Normam poderia estar justificado, se não tem razão alguma para julgar esta capacidade epistêmica confiável? Um processo confiável do qual o sujeito não tem consciência não pode ser, para este sujeito, o que justifica sua crença.[3]

Estas duas críticas são especulares: enquanto o novo problema do gênio maligno mostra como crenças internamente justificadas podem ser externamente injustificadas, a crítica de BonJour explora situações nas quais crenças externamente justificadas não são internamente justificadas. O segundo desafio levanta um problema de metaincoerência (SOSA, 1991, p. 132). A incoerência aqui diz respeito à relação entre o funcionamento de um determinado mecanismo cognitivo num dado contexto e a apreensão do desempenho deste mecanismo neste contexto por parte do sujeito. O prefixo meta- caracteriza esta dimensão metacognitiva. Como veremos, esta é uma caracterização parcial ao desafio a que pretende responder Sosa, mas é um ponto de partida.

Na seção 2, eu apresentarei a solução proposta por Sosa ao desafio da metaincoerência, através da distinção entre conhecimento animal e conhecimento reflexivo, os limites desta resposta. Em seguida, explorarei a tese que a epistemologia de Sosa pode ser lida como uma versão da teoria dual da racionalidade. Esta solução também tem seus problemas – o resultado desta seção será a externalização da condição reflexiva. Na seção 4, a externalização do conhecimento será estendida a outras dimensões do nosso conhecimento sobre nossos próprios estados cognitivos, como um efeito mais geral de nosso conhecimento do mundo. Esta extensão está longe de ser estranha ao projeto de Sosa; ao contrário, ela é a resposta a uma descrição mais ampla do que constitui um conhecimento pleno. Na seção 5, eu procuro mostrar que o conhecimento externamente produzido não pode ser internalizado pelo sujeito. O aprendizado de conteúdos opacos é essencial ao desenvolvimento da cultura humana.

 

1 A RESPOSTA DE SOSA E SEUS LIMITES

A solução proposta por Sosa para o problema da metaincoerência é a inclusão da perspectiva do sujeito acerca dos mecanismos de produção de crenças numa imagem fiabilista do conhecimento. Ele o faz através da distinção entre conhecimento animal e conhecimento reflexivo:

Uma pessoa tem um conhecimento animal sobre o seu ambiente, seu passado e sua própria experiência se seus julgamentos e crenças sobre estes temas são respostas diretas ao impacto de seu ambiente, seu passado e sua experiência – e.g., através da percepção ou da memória –, com pouco ou nenhum benefício da reflexão ou da compreensão. Uma pessoa tem um conhecimento reflexivo se seu julgamento ou crença manifesta não apenas uma resposta direta ao fato conhecido, mas também a compreensão do seu lugar num todo mais amplo que inclui sua própria crença e o conhecimento de como ela foi produzida. (SOSA, 1991, p. 240).

 

O conhecimento animal é uma crença cuja verdade é explicada pelo exercício das habilidades cognitivas do sujeito, na terminologia de Sosa, uma crença apta. O conhecimento reflexivo é uma crença endossada pelo sujeito de maneira apta, i.e., uma crença apta acerca do modo como outra crença é endossada, isto é, uma crença de segunda ordem. Esta distinção é colocada no quadro mais amplo do conhecimento pleno [knowing full well]:

O conhecimento animal é a crença apta de primeira ordem. O conhecimento reflexivo é o conhecimento animal endossado pelo sujeito de maneira apta. Podemos ver agora que o conhecimento pleno de algo requer o conhecimento animal e o conhecimento reflexivo, mas também o conhecimento com plena aptidão [with full aptness]. Isto é, a correção da crença de primeira ordem deve manifestar não apenas as competências animais, de primeira ordem, que produzem crenças corretas de maneira suficientemente confiável. As crenças de primeira ordem não atingem o conhecimento pleno se não forem guiadas, de maneira apropriada, pela metacompetência relevante. (SOSA, 2011, p. 11-12).[4]

 

O conhecimento reflexivo não exige que o sujeito conheça os próprios mecanismos cognitivos. O papel da competência metacognitiva como guia do conhecimento de primeira ordem reside na apreensão, pelo sujeito, da fiabilidade dos mecanismos de produção de crenças e sua eventual variação em diferentes contextos, o que o leva a tomar algo como verdadeiro ou, ao contrário, suspender o julgamento (SOSA, 2011, p 12). O que está em jogo é a sensibilidade ao contexto de exercício das capacidades cognitivas, que é formulada por dois condicionais subjuntivos:

Segurança: a crença de S que p é segura se, e apenas se, se S acreditasse em p, provavelmente p seria verdadeiro.

Sensibilidade: a crença de S que p é sensível se, e apenas se, se p fosse falso, S provavelmente não acreditaria em p. (SOSA, 2013a, p. 35).

 

Estes condicionais exigem que sujeito responda a indicadores da fiabilidade de suas crenças na situação em que se encontra, não que ele conheça os mecanismos que garantem esta fiabilidade. Como diz Nozick, que está na origem desta formulação, uma pessoa pode chegar a suas crenças de um modo que satisfaça a estes condicionais sem ter consciência do modo como o faz (Nozick, 1981, p. 184).[5]

Esta solução pode parecer insuficiente: o que justifica as crenças metacognitivas? A busca pela justificação interna do mecanismo reflexivo levanta a ameaça de uma regressão ao infinito e das alternativas igualmente ameaçadoras da circularidade e do fim arbitrário da cadeia de justificação, como ensina o trilema de Münchausen. A solução de Sosa consiste em bloquear a regressão aceitando o que, do ponto de vista do trilema, parece um término arbitrário na cadeia de justificações. A reflexão não sobe de maneira indefinida na busca por uma justificativa – num determinado ponto, a sensibilidade metacognitiva reflete uma capacidade não conceitualizada e não consciente: [...] a meta-consciência diretriz [guiding meta-awareness] necessária para a plena aptidão da performance não precisa ser consciente, nem temporalmente anterior à performance ela mesma. (SOSA, 2016, p. 135 - 136). [6]

De fato, mecanismos subpessoais parecem ser a melhor explicação para pelo menos um tipo de sensibilidade à variação da fiabilidade dos mecanismos de produção de crenças. Considere a seguinte descrição da razão como “parceira silenciosa” dos sentidos:

Um ser dotado de razão monitora automaticamente sua informação de fundo e suas entradas sensoriais indicando evidências contrárias e escolhe automaticamente a hipótese mais coerente, mesmo quando responde da maneira mais direta aos estímulos sensoriais. (SOSA, 1991, p. 240).[7]

 

Este monitoramento é uma maneira do sujeito não responder cegamente ao que lhe traz sua percepção, o que era o ponto, ou um ponto da crítica internista. No entanto, mecanismos subpessoais não satisfazem às demandas internistas por duas razões. Inicialmente, eles não perfazem um sistema coerente e compreensivo do conhecimento, porque não são informacionalmente abertos. Além disto, eles não podem ser associados à perspectiva subjetiva que o sujeito tem sobre a situação, já que eles não são acessíveis do ponto de vista da primeira pessoa.[8]

Parece então que voltamos ao ponto de partida, pelo menos no que diz respeito ao que um internista espera da epistemologia. Mesmo na formulação deflacionada do internismo proposta por Wedgwood, deve “fazer sentido” para um sujeito seguir uma determinada norma epistêmica, o que parece exigir não apenas o acesso consciente a regras epistêmicas de revisão de crenças, mas também sua conceitualização (Wedgwood, 2002, p. 349-369).[9] Ora, mecanismos subpessoais não fazem sentido para o sujeito (Wedgwood, 2002, p. 368, n. 26). As exigências da racionalidade não são espelhadas em mecanismos subpessoais.

Interpretar este tipo de consideração como uma capitulação às críticas internistas é apenas uma maneira de compreender a resposta de Sosa: o que tem mais força na crítica internista, isto é, o que carrega menos exigências teóricas, não é que o sujeito tenha acesso pela reflexão ao que responde às exigências incorporados nas condições de segurança e sensibilidade, mas que seja sensível, em geral, a diferentes tipos de variação que podem afetar a fiabilidade de um mecanismo de produção de crenças. Ora, agentes podem ser sensíveis a estas variações de maneiras diferentes.

Que nem toda resposta metacognitiva seja conceitual aparece tanto na filogenia quanto na ontogenia. Inicialmente, a sensibilidade a variações da confiabilidade de mecanismos cognitivos não é exclusiva à espécie humana (Couchman et al. 2012). Além disto, esta capacidade aparece cedo na espécie humana, de respostas implícitas e não metarepresentacionais, desde os 4 meses, à compreensão explícita da distinção entre conhecimento e ignorância, entre 3 e 4 anos (Sodian et al. 2012). Finalmente, esta distinção permanece com a aquisição de capacidades metarepresentacionais conceituais. É isto que visa a distinção entre metacognição conceitual e metacognição procedural, proposta por Proust (2012). Enquanto a primeira requer a representação conceitual dos próprios estados cognitivos, a segunda não requer a comparação conceitual do peso atribuído a diferentes alternativas. No caso da metacognição procedural,

[...] um julgamento de confiança não é formado pela re-representação do conteúdo particular de uma decisão, ou pesando diretamente a importância do resultado. Ele não requer, tampouco, que a atitude particular examinada seja conceitualmente identificada (e.g., como uma crença). A confiança é avaliada diretamente a partir das propriedades de ativação dos neurônios, monitoradas e guardadas, respectivamente, nos acumuladores sensoriais e de controle. (Proust, 2012, p. 244).

 

Considere o exemplo do campeão de tênis, caro a Sosa, que não apenas tem a capacidade de execução dos golpes, de maneira que o sucesso de suas ações se deve ao exercício de uma habilidade, mas também tem a competência de segundo nível de saber escolher quando se engajar numa ação determinada (SOSA, 2011, p. 10). A performance de um atleta de alto nível é inversamente proporcional ao grau de auto-consciência de seus gestos (Rochat, 2003, p. 729).[10] O monitoramento das condições de exercício de suas capacidades não é conceitual, mas procedural.

Pelo menos em alguns contextos, a metacognição procedural satisfaz às condições de segurança e sensibilidade sem ceder às exigências internistas. O resultado não é que a avaliação das próprias crenças seja sempre procedural, mas que ela pode ser apenas procedural; esta parece ser uma explicação plausível, por exemplo, da sensibilidade metacognitiva do conhecimento perceptual e da memória (Dokic, 2012). É perfeitamente possível que a avaliação metacognitiva recorra, em determinados contextos, à representação dos próprios estados – nos termos de Proust, que seja um exercício de metacognição conceitual –, mas esta não é uma condição para a justificação. Este resultado negativo é suficiente para a epistemologia externista.

Mesmo se esta resposta em dois níveis parece ser uma abordagem mais adequada do problema metacognitivo, ela não dá uma resposta suficiente aos desafios internistas. A proposta de Sosa para a razão como parceira silenciosa dos sentidos responde ao que parece ser uma exigência da crítica internista – a sensibilidade à variação de contextos de exercício de mecanismos cognitivos –, mas não a outras exigências – o aumento da coerência e o ponto de vista de primeira pessoa sobre os próprios estados cognitivos. Além disto, ela funciona apenas para certos tipos de caso. Nem toda situação que envolve uma decisão metacognitiva é implícita e automática. A composição destes dois problemas leva a um resultado desconfortável para o fiabilista. Será que a sensibilidade a diferentes contextos de exercícios de nossos mecanismos cognitivos resulta apenas de um monitoramento não articulado de sua própria fiabilidade?

 

3 EXTERNALIZANDO A REFLEXÃO

Nenhuma das duas soluções que se apresentam de maneira mais óbvia são satisfatórias. Por um lado, não parece razoável pensar que todos os nossos processos cognitivos sejam inferencialmente insulados e que sua sensibilidade epistêmica seja sempre implícita. Esta é precisamente a origem da insatisfação internista, ou pelo menos de uma das insatisfações internistas. Mas a solução internista não é tampouco boa, ao postular que tudo o que é relevante para a justificação de uma crença deva ser objeto de uma representação conceitual por parte do sujeito, ou mesmo, em suas versões deflacionadas, que sejam estados internos do sujeito. Esta não é uma boa saída: condições externas constitutivas do conhecimento, em particular a sensibilidade à verdade, não podem ser substituídas por suas contrapartes internalizadas.

O sutil equilíbrio da epistemologia de Sosa parece trazer uma solução, ao criar o espaço para diferentes níveis de conhecimento. Turri argumenta que a epistemologia de Sosa deve ser lida como uma epistemologia em dois níveis, segundo a teoria dual da razão proposta por Kahneman e Tversky:

Sosa supõe dois níveis ou modos do pensamento humano, um nível não reflexivo e, em larga medida, automático, e outro reflexivo e aliado à agência deliberativa. O nível não reflexivo “é amplamente dependente de módulos cognitivos e suas entregas”, e é bom que sejamos constituídos de modo a detectar, de maneira confiável e em grande medida automática, verdades importantes. O nível reflexivo monitora a operação adequada dos módulos de primeira ordem e das influências do ambiente, e estabelece um equilíbrio quando as entregas modulares entram em conflito ou contrariam as expectativas. (Turri, 2013, p. 158).

 

Nesta leitura, o nível não reflexivo é o sistema 1, ao passo que o nível reflexivo é o sistema 2 de Kahneman e Tversky, como Turri diz logo após a passagem citada. Esta leitura pode ainda ser refinada, pela distinção, dentro do segundo nível, entre a capacidade algorítmica e a capacidade reflexiva (Stanovich, 2011).

Não é certo que esta solução esteja disponível para a epistemologia de Sosa, que estende a noção de reflexão a mecanismos subpessoais (e.g., Sosa, 2011, p. 13n; 2015, p. 187-188). Mesmo se se pode discutir o sentido do termo ‘reflexão’, esta saída é insuficiente do ponto de vista internista, já que ela não recupera o ponto de vista da primeira pessoa, nem leva a mecanismos inferencialmente abertos.

Existe, contudo, um outro tipo de solução para a revisão de crenças, que reside nas trocas comunicacionais com outras pessoas. A avaliação de crenças se segue da dinâmica conversacional ela mesma. Como diz Brandom, ao fazer uma asserção, falantes fazem duas coisas: eles autorizam outras asserções que se seguem do que foi dito e assumem a responsabilidade pelo que disseram,

[...] a saber, a responsabilidade de mostrar que eles têm o direito ao comprometimento expresso por suas asserções, se este direito vier a ser posto em dúvida. Esta é a responsabilidade de fazer algo, e pode ser satisfeita, por exemplo, através de outras asserções que justificam a asserção original. (Brandom, 1994, p. 173).

 

É bem possível que, para um bom número de casos, o falante esteja justificado em dizer o que diz sem de fato se engajar em mais justificações, isto é, talvez existam “direitos epistêmicos (de se acreditar em algo) sem os deveres ou obrigações correspondentes (de se justificar as crenças)”, segundo a feliz imagem de Dretske (2000: 591). Esta é mesmo uma tese central no fiabilismo: existem direitos epistêmicos sem deveres correspondentes, o que não quer dizer que todos os direitos epistêmicos sejam assim constituídos – note-se, mais uma vez, que a tese negativa é suficiente para o externismo. Aquele que coloca em dúvida uma crença de seu interlocutor deve ele mesmo ter razões para a dúvida, é preciso “uma razão concreta” para a dúvida (Austin, 1979, p. 97; Brandom, 1994, p. 176-178). O dever epistêmico de justificação será cobrado por um interlocutor, que, por sua vez, deverá fazer jus a suas dúvidas. O resultado desta dinâmica dialógica é que a sensibilidade a contextos de exercício de mecanismos cognitivos se encontra parcialmente nos interlocutores.

Esta tese filosófica é compatível com resultados empíricos. A teoria dual da racionalidade é construída, em boa medida, como uma explicação dos padrões de respostas a diferentes tarefas que evidenciam nossos vieses de raciocínio. Se estes vieses levam, em geral, a respostas incorretas, o desempenho dos sujeitos melhora muito quando eles discutem a solução de problemas em grupo. Na conhecida tarefa de Wason, por exemplo, quando os sujeitos devem responder isoladamente, apenas 10% o fazem corretamente. No entanto, se eles puderem discutir o problema, o desempenho aumenta muito – 70% de respostas corretas para os grupos e 80% para a resposta individual depois da discussão em grupo.[11] Este tipo de resultado, que parece evitar os vieses de raciocínio, é explicado pelo funcionamento interacional da razão:

As pessoas têm vieses para encontrar razões que sustentem seus pontos de vista porque é deste modo que podem justificar suas ações e convencer os outros de suas crenças. Você não pode justificar para si mesmo apresentando razões que minam sua justificação. [...] E as pessoas raciocinam de maneira preguiçosa porque, em interações típicas, este é o procedimento mais eficiente. Ao invés de trabalhar duro para antecipar contra-argumentos, é em geral mais eficiente esperar que seus interlocutores os forneçam (caso eles o façam). (Mercier & Sperber, 2017, p. 331).

 

A avaliação das opiniões e argumentos de outras pessoas é sempre muito mais rigorosa do que avaliação das próprias posições. A reflexão não é a maneira mais eficaz, nem a mais usual de se evitar os erros recorrentes devidos aos vieses de raciocínio e não é, portanto, o melhor modelo de avaliação das próprias crenças.

Voltemos ao argumento de Norman: seria possível repetir o argumento de BonJour com o funcionamento interacional da razão? As pessoas acabariam por dizer a Normam que ele acerta quase sempre e ele poderia então adquirir uma perspectiva sobre sua própria situação epistêmica. O argumento só é estável para um sujeito que permanecesse isolado, o que não é uma condição normal para um ser humano. Mas isto não é tudo: talvez as pessoas se perguntassem por que ele acerta suas previsões. Na medida em que não houvesse explicações, talvez a posição epistêmica de Norman se tornasse mais instável – note-se, não cega, mas instável. A estranheza do caso de BonJour viria então à tona; o que causaria a instabilidade da posição de Norman simplesmente não ocorre no nosso mundo e não é algo que deva nos preocupar muito.

É possível dar uma descrição mais geral do que ocorre aqui. Mercier e Sperber argumentam contra o modelo dual. Nossas inferências são sempre intuitivas e não funcionam pela instanciação regras gerais, mas pela exploração oportunista de informações contextuais. A auto-avaliação de crenças também é o resultado de inferências intuitivas que tomam como objeto as próprias crenças, mas que são, mais uma vez, também passíveis dos mesmos tipos de vieses que afetam crenças de primeira ordem. A saída deste círculo está no funcionamento interacional da razão.

Esta teoria vai contra o que parece ser um desideratum da teoria de Sosa, a saber, a identificação de um nível reflexivo de monitoramento dos próprios estados cognitivos, mas responde a um problema da primeira resposta fiabilista – a interação dialógica é explícita e conceitual. Mas será que a resposta interacional responde às exigências internistas? Para responder esta pergunta, vou dar um passo atrás e considerar, de maneira mais ampla, a externalização do nosso conhecimento.

 

3 ESTENDENDO A EXTERNALIZAÇÃO

Na primeira descrição do desafio internista, o problema central parecia ser a sensibilidade do sujeito à variabilidade da fiabilidade de seus mecanismos cognitivos em diferentes contextos. Este certamente é um problema importante e é, em todo caso, o que é visado pelos bizarros casos à la BonJour. Mas não é esta a única maneira de se compreender o problema mais geral colocado pela busca da coerência entre respostas cognitivas de primeiro nível e a apreensão do próprio funcionamento cognitivo. Existe um aumento progressivo do conhecimento de nossos mecanismos cognitivos que vai além da resposta aos desafios como aqueles propostos por BonJour. A partir de respostas subpessoais com “pouca sustentação racional” da infância, nós nos tornamos, gradualmente,

[...] seres racionalmente mais completos [...] na medida em que ganhamos em alcance e racionalidade na coerência. Faculdades assim cada vez mais coerentes têm um estatuto epistêmico maior e estão sob um maior controle racional. (SOSA, 2011, p. 152).

 

Assim, a partir da experiência de ver algo vermelho, eu ganho progressivamente em coerência ao passar da apreensão da fiabilidade da experiência visual à compreensão científica que a visão de cores de humanos é, em geral, confiável, e dos contextos em que este não é o caso. Esta progressão é mesmo parte do que constitui o conhecimento humano:

Em primeiro lugar, defina o conhecimento humano como crença plenamente apta [fully apt belief] [...] Um tal conhecimento humano sempre requer algum grau de meta-aptidão. Um tal conhecimento humano, reflexivo, vem assim em graus, e os graus superiores, envolvendo o rico conhecimento de nossa situação epistêmica, constituem o conhecimento reflexivo de um grau superior, o conhecimento reflexivo propriamente dito, que é digno deste nome. Este conhecimento reflexivo pode, claro, envolver perspectivas científicas e até filosóficas, que permitem a defesa da aptidão das próprias crenças de primeira ordem. (SOSA, 2011, p. 92-93).

 

Este aumento no conhecimento reflexivo é um aumento no conhecimento socialmente distribuído. Com efeito, a compreensão científica, por exemplo, dos diferentes mecanismos perceptuais, demanda uma competência especializada que apenas algumas pessoas numa dada sociedade possuem. Para todo mundo que não é um cientista trabalhando sobre os mecanismos perceptuais, o conhecimento sobre nossos sentidos resulta da deferência a especialistas – divisão do trabalho cognitivo que, de resto, ocorre também entre especialistas, que dependem uns dos outros na produção mesma do conhecimento.[12]

O mesmo ocorre para a metacognição. Considere o seguinte modelo explicativo do modo como agentes avaliam sua própria incerteza:

A dinâmica da ativação de certas populações neuronais pode, de fato, prever – muito antes e de maneira muito mais confiável do que o comportamento manifesto – a probabilidade de sucesso de uma dada decisão cognitiva. Os mecanismos envolvidos na meta-percepção (i.e., no controle e no monitoramento da própria percepção) [...] foram chamados de módulos acumuladores adaptativos (MAA). Um adaptador acumulativo é um comparador dinâmico, no qual os valores comparados são as taxas de acumulação de evidências relativas a um limiar pré-estabelecido. A função deste módulo é tomar uma decisão baseada em evidências. Numa tarefa perceptual, por exemplo, de categorizar um alvo como X ou Y, as evidências para as duas alternativas são acumuladas em paralelo, até que sua diferença ultrapasse um determinado limiar, que desencadeia a decisão perceptual. (Proust, 2012, p. 242).

 

Este é um modelo parcial relativo ao modo como avaliamos nossas entradas sensoriais. Mesmo se a primeira impressão é que esta teoria não justifica a ideia da razão como “parceira silenciosa” – mais uma vez, mecanismos subpessoais não espelham processos racionais –, a avaliação do que ocorre aqui não é tão direta. Inicialmente, é bem provável que este modelo cubra pelo menos parte dos fenômenos visados por Sosa ao tratar do monitoramento das entradas sensoriais. Além disto, não se deve tomar como fixo o que conta ou não como racional – voltarei a este ponto logo abaixo.

Três observações podem levar a minimizar, senão a recusar inteiramente a relevância deste tipo de teoria. Inicialmente, pode-se dizer que estes modelos podem estar errados – o que é o caso, provavelmente, de qualquer teoria com alguma base empírica. No entanto, o que está em jogo aqui não é a certeza ou não da teoria proposta, critério que, de qualquer modo, é sem importância: o estado psicológico da certeza é irrelevante para o estatuto epistêmico de uma teoria. O que é crucial são as evidências com as quais aqueles que constroem este tipo de teoria devem lidar. É claro que é possível recusar o modelo descrito acima, ou ainda defender que há uma ruptura entre os processos metacognitivos de seres humanos e o que se encontra em outras espécies. Mas, nos dois casos, é preciso lidar com as evidências para cada tese, e as evidências elas mesmas já apresentam uma exigência de conhecimento especializado que torna a avaliação dos resultados obtidos opaca para mais ou menos qualquer um que não seja um especialista.

Duas outras dúvidas são mais pertinentes. Podemos perguntar qual a relevância deste tipo de consideração para o projeto de Sosa: por que uma teoria fundada sobre a organização de nossas intuições epistêmicas em diferentes contextos deveria ser afetada por considerações empíricas? Devemos nos perguntar, no entanto, como poderíamos expandir nosso conhecimento sobre nossos mecanismos cognitivos e nos tornar “seres racionalmente mais completos” sem resultados empíricos.

Note-se que, ao propor que a epistemologia de Sosa seja vista como uma versão da teoria dual da racionalidade, Turri (e quem quer que aceite sua sugestão) já aceita a um tipo de teoria que cujo desenvolvimento exige um conhecimento especializado. Mesmo se se pode ter a impressão que seu vocabulário está mais próximo do modo como ordinariamente falamos do conhecimento – impressão que bem pode, em muitos casos, ser ilusória –, as evidências para uma tal teoria não são parte da experiência ordinária.

Ainda é possível a recusar da sugestão de Turri a partir da avaliação por Sosa ele mesmo de pelo menos alguns dos resultados que levaram à teoria dual da racionalidade. Segundo uma certa interpretação de resultados como os do teste de Wason, o ser humano é irracional. Esta conclusão, argumentam Sosa e Galloway (2000), reflete uma compreensão falha do conceito mesmo de racionalidade: não existe um padrão absoluto definido, por exemplo, por regras abstratamente definidas, contra o qual um comportamento pode ser qualificado como racional ou não. Esta avaliação é sempre relativa a nossas práticas – trata-se de um conceito indexical, segundo Sosa e Galloway (2000). Ora, as práticas que estabelecem o padrão a partir do qual a racionalidade de um comportamento pode ser avaliada não podem ser ditas, elas mesmas, irracionais (SOSA & Galloway, 2000).

Como é usualmente o caso, o argumento de Sosa é sutil e bem construído. Ele tem, no entanto, um escopo reduzido: ele mostra os limites da avaliação de algo como racional ou não a partir das falhas constatadas empiricamente. Uma avaliação normativa assim direta (e sem muitas nuances) não é, contudo, o único efeito de resultados empíricos sobre nossa auto-compreensão. Uma vez que admitimos que diferentes áreas de conhecimento podem ter um impacto sobre o modo como compreendermos nossas faculdades cognitivas, do modo que Sosa descreve a expansão do conhecimento humano envolvendo perspectivas científicas, não há como se limitar de antemão a extensão da revisão de crenças resultante.

A alternativa é a de dizer que não há efeito algum e insular o domínio filosófico do contato com qualquer outro tipo de teoria. Ora, não apenas esta não parece ser a posição de Sosa, ou em todo caso não é posição do texto citado acima, como, sobretudo, não é uma posição razoável. Não se trata de uma resposta redutivista, mas de constatar que um novo equilíbrio conceitual deve ser, a cada vez, encontrado – incluindo o que significa ‘racional’. (Perini-Santos, 2018b). Esta é, de resto, a contribuição de Sosa e Galloway, a busca da acomodação filosófica de resultados empíricos.

O efeito desta reacomodação é que, para muitos conceitos pertinentes para a compreensão de nossos processos cognitivos, um não especialista (isto é, todo mundo, para um domínio ou outro) conta com um saber que se encontra em outra pessoa. Nosso saber já é, em geral, externalizado. Mas será que cada um não deve passar cada crença obtida pelo crivo da própria avaliação?

 

4 PODEMOS INTERNALIZAR NOVAMENTE O SABER EXTERNALIZADO?

De um ponto de vista internista, o problema central de teorias externistas é a exclusão do ponto de vista do sujeito. Como podemos conhecer o mundo por mecanismos que nos são opacos? A primeira resposta externista é a de dizer que os mecanismos cognitivos de um sujeito podem ser sensíveis a variações de estados do mundo sem que ele saiba como isto ocorre. A metacognição procedural explica esta sensibilidade em muitos casos, através de mecanismos não conceituais e não acessíveis à consciência. Isto não significa que toda metacognição seja implícita. Por um lado, a revisão de nossas crenças resulta da interação dialógica; por outro lado, é possível conhecer nossos mecanismos cognitivos, por exemplo, através das ciências cognitivas. Nenhum destes dois processos é implícito ou não conceitual, mas não é certo tampouco que eles respondam ao que um internista parece esperar da teoria do conhecimento – afinal de contas, o saber reflexivo em questão continua a ter uma fonte externa. Para examinar este ponto, farei um breve desvio por um problema paralelo, a relação entre o crédito pelo conhecimento e a justificação do testemunho, para o qual Sosa propõe uma resposta.

Na epistemologia contemporânea, um dos principais, senão o principal terreno de discussão acerca do conhecimento que tem como fonte outras pessoas é a epistemologia do testemunho – terreno que, como argumentarei, vicia a discussão numa determinada direção. Existe uma tensão numa epistemologia que atribui importância ao crédito que o sujeito tem por suas próprias crenças, como é o caso da teoria de Sosa, e a justificação do testemunho. Esta tensão é apresentada por Lackey na forma de um dilema: ou bem a exigência de crédito pelas próprias crenças é forte o bastante para evitar a atribuição de conhecimento em casos em que o sucesso cognitivo do sujeito parece desconectado de suas habilidades, mas, neste caso, não é certo que seja possível aceitar o conhecimento por testemunho, ou bem esta exigência é enfraquecida de maneira a incluir o conhecimento por testemunho, com o risco da desconexão entre o conhecimento e o crédito suas próprias crenças (Lackey 2013; ver também Meyer-Seitz et al. 2016).

Como resposta a este desafio, Sosa diz que quando um leigo aceita crenças científicas, ele manifesta sua competência e, portanto, merece algum crédito por toma-las como verdadeiras. O crédito do não especialista reside, inicialmente, em capacidades muito básicas, como a atenção ao ler ou escutar o testemunho de um especialista (SOSA, 2011, p. 90). Sua contribuição pode, contudo, ter uma dimensão mais propriamente epistêmica, quando sua crença é

[...] suficientemente guiada também pela meta-competência relevante que opera através da [sua] sensibilidade a potenciais falsificadores [defeaters], na ausência dos quais [ele é] guiado a aceitar o testemunho de um manual ou de uma enciclopédia. (SOSA, 2016, p. 138).

 

Esta resposta parece responder à demanda de internalização do saber externalizado: mesmo se o crédito pelas crenças científicas é sobretudo do cientista, o leigo tem o crédito de avaliar o que pode falsificar ou não o que ele encontra num texto de divulgação científica. Um crédito mínimo, como diz Sosa, mas crucial na decisão de aceitar ou não uma dada tese.

Mas como um leigo pode ser sensível a falsificadores de uma tese científica? Considere a descrição dos processos metacognitivos propostos por Proust: como um não especialista pode reconhecer falsificadores potenciais para a explicação proposta? Como ele poderá avaliar, por exemplo, a tese segundo a qual decisões perceptuais dependem de um limiar pré-estabelecido de diferença de ativação de diferentes populações neuronais? Ou mesmo reconhecer os falsificadores das diferentes explicações propostas para os vieses cognitivos, entre o modelo dual de Kahneman e Tversky, a divisão do sistema 2 de Stanovich, ou ainda a explicação modularista de Sperber e Mercier? Esta lista, claro, está longe de esgotar as teorias da racionalidade propostas hoje.

Este fenômeno se estende a todos os domínios: a base evidencial de diferentes teorias está muito distante do que um não especialista é capaz de avaliar, desde da física de partículas (por exemplo, as informações obtidas por colisão de prótons no LHC do CERN) até a história da ocupação das Américas pelo homem (por exemplo, a datação de amostras indicando a presença do homem e que se trata, de fato, de um indicador de presença humana). A ideia que, em cada um destes casos, o sujeito aceita uma determinada teoria porque é capaz de avaliar seus potenciais falsificadores é inteiramente ilusória. Se esta discussão parece um tanto abstrata – talvez nem todo mundo tenha crenças sobre, ou tenha qualquer tipo de interesse no modelo padrão da física de partículas ou sobre quando e como o homo sapiens chegou nas Américas –, a pandemia de COVID-19 ilustra a importância da distribuição social do conhecimento, ou, colocado de outro modo, mostra os perigos do não reconhecimento da assimetria epistêmica. Pode um não especialista reconhecer os falsificadores potenciais da eficácia de cloroquina ou de qualquer outro medicamento para o tratamento da COVID-19? Como um não especialista pode avaliar o grau de transmissibilidade do coronavírus, ou examinar as explicações para sua origem? A resposta, para cada um destes casos, é que um não especialista está muito longe de ter a capacidade de fazer estas avaliações e, portanto, de reconhecer falsificadores potenciais para cada explicação proposta. Note-se, de resto, que estas perguntas são respondidas por grupos diferentes de especialistas, cujas competências são apenas parcialmente coincidentes. Mais uma vez, a dependência epistêmica ocorre também entre diferentes grupos de especialistas.

Isto não significa, contudo, que não tenhamos opiniões sobre estes tópicos. Mas, na medida em que ligamos nossa opinião à internalização do saber externalizado, mesmo na forma mínima do eventual reconhecimento de falsificadores, perdemos o rastro do saber socialmente produzido. Talvez estas observações sejam óbvias – em todo caso, eu as tomo como óbvias. E, claro, não pretendo de modo algum sugerir que a epistomologia do Sosa forneça algum tipo de suporte para o negacionismo científico. O que ocorreu então?

Talvez o foco no testemunho como chave para se compreender o saber que se recebe dos outros seja enganador: o testemunho de um indivíduo sobre um evento que ele presenciou, por exemplo, não tem uma demanda evidencial que vá além do que cada um é capaz de avaliar por si mesmo. Talvez a noção de testemunho não deva ser lida de maneira tão literal. No entanto, ao explicar o testemunho a partir da presunção de verdade do falante, Sosa não é sensível à assimetria de conhecimento dos casos de conhecimento científico. Observe-se assim que sua proposta não é realmente distinta da máxima griceana de qualidade, que não é, nem pretende ser parte de uma teoria do conhecimento (SOSA, 2006; 2011, p. 128-139).

Uma outra observação de Sosa me parece muito mais adequada neste ponto:

[...] há um importante elemento externo [a large external element] no conhecimento dos membros de uma civilização avançada, que são o bastante para explorarmos o testemunho de maneira tão extensiva como o fazemos. Nosso conhecimento dependerá de maneira profunda e extensa de fatores além do escopo da capacidade reflexiva de qualquer um. (SOSA, 2006, p. 116).

 

O conhecimento externalizado que está além da capacidade reflexiva também está além da capacidade de reconhecimento de falsificadores. Num primeiro momento, podemos pensar que, ao abrir mão desta condição epistêmica, o sujeito perde qualquer crédito pelo conhecimento externalizado. No entanto, o negacionismo científico, que parece crescente em nossas sociedades avançadas, mostra que existe um crédito importante na aceitação de teorias científicas. Ele não se situa, contudo, na capacidade de cada sujeito avaliar criticamente as teorias recebidas – note-se, de resto, que a demanda pela avaliação, por cada um, de toda e qualquer tese está antes do lado do negacionismo científico (‘tire suas próprias conclusões!’), mesmo que seja como um componente retórico.[13]

A externalização do saber vai além da dimensão dialógica da razão. A compreensão interacional da razão se aplica muito bem ao funcionamento da ciência (Mercier & Sperber 2017, p. 315 - 327). A interação que constitui a ciência envolve, contudo, outros cientistas e não leigos, ela não elimina a assimetria epistêmica. Como um leigo pode tomar como verdadeiro o resultado destas descobertas das quais não participa e que, muitas vezes, sequer compreende? Sperber, mais uma vez, nos traz uma resposta. Ao representar uma outra representação, cada um pode tomar como verdadeiras proposições apenas parcialmente compreendidas. Um aluno que escuta pela primeira vez do seu professor dizer ‘existem milhões de sóis no universo’, pode adquirir esta crença porque confia no professor, sem, contudo, saber como este pode ser o caso (‘sol’, afinal de contas, parece ser um nome próprio). O aluno terá uma crença metarepresentacional, que envolve a representação do professor ter utilizado determinados termos, e é aceita porque se encontra num contexto validador [validating context] (por exemplo, ‘o professor disse que...’).

O processo de aprendizagem envolve a aceitação de conteúdos opacos, que podem, ao longo do tempo, se tornar transparentes, ou mais transparentes para o sujeito. Estes conteúdos, claro, podem permanecer opacos, o que permite que o conhecimento produzido por especialistas num dado domínio seja difundido numa população. Trata-se de um fenômeno central na cultura humana. Crenças metarepresentacionais ou reflexivas, terminologia de Sperber (1997, p. 83),

[...] têm um papel crucial no desenvolvimento e na transmissão de representações culturais, permitindo a estabilização, numa população humana, de conceitos e ideias que são apenas parcialmente compreendidos, ou que são bem compreendidos apenas no contexto de teorias explícitas, e a expansão do escopo de pensamentos que podem ser tidos muito além do que seria possível numa base estritamente intuitiva.

 

A expansão do conhecimento numa dada cultura não pode ser internalizada por cada um de seus membros. Ao contrário, pertencer a uma cultura humana envolve a aceitação de conteúdos opacos – este é o resultado da divisão do trabalho cognitivo numa sociedade.[14]

 

CONCLUSÃO: AUMENTANDO O ALCANCE DE TEORIAS DO CONHECIMENTO

A principal crítica do internismo a teorias externistas é que elas parecem fazer o conhecimento o resultado de processos que permanecem inacessíveis ao sujeito. De fato, mecanismos cegos não fornecem uma teoria adequada do conhecimento humano. Epistemologias externistas buscaram acomodar esta exigência, como é o caso da epistemologia de Sosa. A incorporação das exigências internistas não se faz sem tensões. A tensão mais visível reside no fato dos mecanismos que respondem pela sensibilidade aos contextos de exercícios de capacidades cognitivas poderem ser subpessoais e, portanto, inacessíveis ao sujeito. Mas, na medida em que buscamos compreender como podemos conhecer e refletir sobre nossas próprias crenças, encontramos mecanismos externos ao sujeito que não podem ser internalizados. Isto vale tanto para a dinâmica conversacional, que é a maneira mais usual e eficaz de se detectar as diferentes falhas às estamos todos sujeitos – o que é um objetivo do conhecimento reflexivo –, quanto para o conhecimento dos mecanismos de funcionamento da cognição, que é um outro sentido do conhecimento reflexivo.

A externalização do saber se estende para o conhecimento científico de maneira muito ampla. Tornar-se um ser “racionalmente mais completo”, segundo a expressão de Sosa, envolve assumir um conhecimento que permanece, em muitas dimensões, opaco. Uma vez que estendemos esta exigência a todas as áreas do conhecimento – da história das Américas à física de partículas, da teoria da evolução à epidemiologia, e assim por diante –, um sujeito que só tomasse como verdadeiro aquilo que pode provar (ou mesmo que pode compreender) seria um sujeito que recusaria boa parte do saber humano, já que ninguém tem um conhecimento especializado em todas as áreas do conhecimento. Dificilmente poderíamos contar este sujeito como “racionalmente mais completo”.

Como exige um internista, o funcionamento interacional da razão não envolve mecanismos cegos à perspectiva do sujeito e não conceitualizados, mas, ao contrário, leva precisamente à articulação e à tomada de consciência das teses apresentadas. Se o internismo exige que nosso conhecimento seja justificado por fatores que fazem parte da vida mental do indivíduo, esta resposta dirá que a vida mental está no mundo externo. Mas este funcionamento permanece externo. Será que esta solução basta às exigências internistas? A exigência que resta ao internista é a internalização do que é externamente produzido. Mas esta demanda parece levar a uma expectativa de internalização de tudo o que uma cultura produz, o que não é uma demanda razoável. (Eu gostaria de dizer que esta demanda é impossível, ou talvez que é naturalmente impossível, como mostra a história da evolução da cultura humana – mas não tenho certeza como estender este argumento a mundos metafisicamente possíveis, guardo portanto o julgamento mais fraco de que a internalização de toda uma cultura não é uma demanda razoável).

A externalização do conhecimento é um traço profundo do conhecimento e, mais geralmente, da cultura humana. Se, num contexto mais restrito, Sosa define o conhecimento humano como uma crença plenamente apta, que envolve a apreensão dos próprios mecanismos cognitivos, na medida em que buscamos compreender o mais amplamente como o que é conhecer os próprios mecanismos cognitivos, vemos que o traço essencial do conhecimento humano é sua dimensão social. Não há nada de novo aqui. No contexto de uma teoria evolutiva da cultura, muitos autores defendem, de diferentes modos, que a cultura humana é essencialmente social.[15] O que talvez não seja tão usual seja conectar teorias mais gerais da evolução da cultura com preocupações tradicionais da epistemologia. Espero que este artigo tenha mostrado que este é um caminho frutífero.

 

Externalizing reflexivity

 

Abstract: The main problem for externalism in epistemology is to avoid making knowledge the result of processes of which the subject herself is unaware. Sosa accommodates this demand in his theories, but some tensions remain. As we try to understand how we think about our own beliefs, we find mechanisms that are external to the subject and cannot be internalized. The externalization of knowledge has a very large scope. A person who accepts only what she can prove is someone who refuses a large body of human knowledge. For a layperson – that is, for everyone, in some domain or other –, to assume what is the product of culture is to accept contents that remain opaque. The externalization of knowledge is a deep feature of human culture. It is maybe less usual to connect the evolution of culture with traditional concerns in epistemology.

 

Keywords: Externalism. Reflexivity. Rationality. Cultural evolution

 

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Recebido: 04/9/2020

 

Aprovado: 05/3/2021

 



[1] Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Departamento de Filosofia, Belo Horizonte, MG – Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-5805-5985. E-mail: eperinisantos@gmail.com.

[2] Sosa (1991, p. 140). Ver, contudo, Sosa (2019, p. 485), para uma outra avaliação deste tipo de argumento.

[3] “Como pode o fato de uma crença ser produzida de maneira fiável (ou qualquer outro tipo de fato que faz com que uma crença tenha muitas chances de ser verdadeira) tornar minha aceitação desta crença racional e responsável, quando este fato é ele mesmo inteiramente inacessível para mim?” Bonjour, In BonJour e Sosa (2003, p. 27). Para uma apresentação geral do fiabilismo e das críticas internistas, ver Perini-Santos (2018a).

[4] Ver também Sosa (2009, p. 199; 2019a, p. 481).

[5] Ver também Sosa (2011 p. 13n).

[6] Trata-se de uma resposta a Buhr et al. (2016).

[7] Para uma leitura naturalista desta passagem, ver Perini-Santos (2018b, p. 186-189).

[8] Estes são os traços que distinguem mecanismos subpessoais e mecanismos pessoais, ou, de maneira talvez mais adequada aqui, entre estados subdoxásticos e estados doxásticos. Esta última distinção foi proposta por Stich (1978). Para uma comparação entre as distinções pessoal/subpessoal e doxástico/subdoxástico, ver Drayson (2014). Neste artigo, tratarei estes pares conceituais como equivalentes.

[9] Talvez esta caracterização não cubra todo o espectro de teses internistas; para uma visão geral de epistemologias internistas, ver Madison (2010); Pryor (2001, p. 103-109). Deve-se notar, contudo, que a classificação mesma de uma teoria epistemológica como internista deixa de ser clara (ou deixa de ser claramente um tipo de teoria internista) na medida em que se abandona toda exigência de acesso a justificadores.

[10] Sosa (2016, p. 136-137) parece ter este fenômeno em mente.

[11] Na tarefa de Wason, o sujeito deve escolher as situações que falsificam uma implicação material (p Þ q). Diante de quatro alternativas (p, q, Øp e Øq), a resposta correta (p e Øq), pelo menos nas versões iniciais da tarefa, é escolhida por apenas 10% dos sujeitos. Moshman e Geil (1998, p. 235); ver Mercier e Sperber (2017, p. 262-274).

[12] Sobre a dependência epistêmica, ver Hardwig (1985).

[13] Fuller (2018) exemplifica a conexão entre este tipo de individualismo epistêmico (uma “ciência customizada”) e o negacionismo científico. Eu trato destes temas em Perini-Santos (2020).

[14] Sobre a importância da difusão de conteúdos opacos na cultura humana, ver Csibra e Gergely (2011).

[15] Para diferentes teorias da cultura humana que mostram sua dimensão social, ver, entre outros, Boyd (2018); Heyes (2018); Tomasello (2014).