VALORES ESTÉTICOS, ACERVOS IMAGÉTICOS E PROCEDIMENTOS ESTRUTURADOS: ampliando e descolonizando a reflexão filosófica sobre a tecnologia

 

Cristiano Cordeiro Cruz[1]

 

RESUMO. Desde os anos 1980, reconhecem-se como partes constitutivas da tecnologia e do seu desenvolvimento o conhecimento técnico-científico e os valores instrumentais e cognitivos que balizam tal conhecimento, bem como valores ético-políticos. No entanto, segue grandemente negligenciada ou desconhecida uma quarta categoria de elementos que incidem no projeto: acervos imagéticos, valores estéticos e procedimentos estruturados. A desconsideração desses elementos impõe limites ao desenvolvimento técnico possível. Neste artigo, serão apresentados essa quarta categoria de elementos, o impacto dela sobre a prática projetiva e as soluções sociotécnicas construídas, e uma forma de pluralizar seus conteúdos. Será exposto também um esboço de duas das abordagens mais exitosas para a democratização do desenvolvimento técnico. A partir disso, serão discutidos: alguns limites e potencialidades da democratização da tecnologia; uma atualização de parte da compreensão simondoniana de desenvolvimento técnico; a necessidade teórica e prática de se descolonizar (ou seguir descolonizando) a filosofia da tecnologia.

 

Palavras-chave: Valores estéticos. Acervos imagéticos. Procedimentos estruturados. Democratização. Descolonização.

 

INTRODUÇÃO

            Desde a década de 1980, estudos sociológicos, históricos e filosóficos vêm revelando a tecnologia, em sua forma material ou imaterial, como construção para a qual são insuficientes valores instrumentais (como eficiência, eficácia, robustez, durabilidade etc.) e cognitivos (como precisão, capacidade preditiva, coerência, consistência etc.). Com efeito, considerando-se apenas tais valores, seria impossível proceder-se à escolha da solução técnica final, dentre as múltiplas opções disponíveis ou passíveis de serem desenvolvidas para ela. Essa multiplicidade é chamada de subdeterminação da solução pelo problema e pelos dados iniciais. Ela só pode ser superada, e uma solução escolhida, por meio da intervenção, no desenvolvimento tecnológico, de valores ético-políticos (como controle/dominação, empoderamento, lucro, bem comum, hierarquização etc.). É esse mesmo tipo de intervenção ou conformação que explicará, igualmente, muito do desenvolvimento e das modificações por que um produto técnico passará, depois de criado (WINNER, 2017 [1986]; PINCH; BIJKER, 1989; FEENBERG, 2019a [2010]).

            Porque incorpora valores ético-políticos em sua constituição e porque, uma vez que essa tecnologia é colocada em uso, tais valores são reforçados ou emulados socialmente, entende-se: 1) que sociedade e tecnologia se conformam mutuamente, constituindo partes inseparáveis de uma realidade sociotécnica una (DAGNINO et al., 2004, p. 22-23); 2) que a tecnologia legisla sobre o mundo da vida, sendo, por vezes, mais rigorosa e eficaz na conformação do nosso comportamento e do funcionamento da sociedade, do que as leis que o Legislativo cria (LATOUR, 1992).

            O que a compreensão mais recente sobre a tecnologia nos revela, assim, é que o seu desenvolvimento não é regido por uma racionalidade instrumental (HORKHEIMER; ADORNO, 2002 [1944]) ou tecnológica (MARCUSE, 2002 [1964]) puras, nem é tocado de forma autônoma e autorreferenciada (ELLUL, 2008 [1954], 2012 [1977]). Tampouco, a tecnologia nos aprisionaria ontologicamente em uma dispensação singular do Ser, reduzindo-nos a uma existência inautêntica (HEIDEGGER, 1977 [1955], 1998 [1962]). Presidiria, ao contrário, ao seu desenvolvimento, uma racionalidade sociotécnica (FEENBERG, 2019b [2017]), de sorte que tal processo se constituiria, pela própria natureza da tecnologia, em uma agora, em um espaço público de luta em torno ao ideário ético-político que democraticamente pudéssemos querer como conformador da tecnologia e, nisso, da nossa vida em comum.

Não obstante, embora esse entendimento seja bastante defensável e conte, inclusive, com inúmeros exemplos empíricos a corroborá-lo, tal descrição do fenômeno sociotécnico ainda é imprecisa. Essa imprecisão, associada com um apartamento por vezes excessivo – e superável – entre a reflexão filosófica sobre a tecnologia e a manifestação empírica desta, traz limites, por um lado, para algumas reflexões relativas à democratização do desenvolvimento tecnológico, relativos, aqui, às condições para, e aos limites efetivos de, um tal processo. Por outro lado, essa situação demanda também que compreensões filosóficas poderosas sobre a tecnologia, como as do pensador francês Gilbert Simondon, sejam matizadas, de modo que não sejam tomadas como fundamentos para reflexões ou argumentos já superados.

            Nesse sentido, naquilo que se segue, buscar-se-á apresentar não apenas práticas correntemente bem avançadas de democratização do desenvolvimento tecnológico – já bem conhecidas e documentadas – (parte 2), sobretudo em relação a trabalhos desenvolvidos em algumas engenharias, quanto a amplamente desconsiderada dimensão poiético-criativa do projeto técnico, na qual uma quarta categoria de elementos, os quais não são instrumentais, cognitivos ou ético-políticos, desempenha papel central (parte 3).

            Com isso, ao lado de se prover uma caracterização empiricamente mais acurada de parte daquilo que constitui o fenômeno tecnológico, procurar-se-á apresentar ponderações concernentes à democratização do desenvolvimento tecnológico e ao aparente “purismo axiológico” do desenvolvimento técnico autêntico de Simondon (parte 4). Por fim, nas considerações finais, será apontado um possível caminho para lidarmos não somente com as questões trabalhadas na parte 4, mas com o alargamento da reflexão filosófica da tecnologia em geral, o da descolonização.

 

1 PROJETOS EMANCIPADORES

Democratizar o desenvolvimento tecnológico significa, em uma primeira aproximação, incorporar ou considerar, no/ao projeto técnico,[2] os valores ético-políticos de futuros usuários, consumidores e demais atores direta ou indiretamente afetados pela solução que se irá construir. Historicamente, tal coisa tem lugar pela primeira vez, de forma mais sistemática, consciente e consistente, com as iniciativas de informatização dos espaços de trabalho na Escandinávia fortemente sindicalizada da década de 1970 (ROBERTSON; SIMONSEN, 2013). Desde esse período, a assim chamada prática de projetos participativos diversificou-se e se consolidou grandemente, contando com metodologias e procedimentos bem desenvolvidos, com aplicação nos mais variados espaços sociais (para além do laboral) e em diversas áreas técnicas, e com usos tanto socialmente emancipadores quanto mais mercadologicamente orientados (VAN DER VELDEN; MÖRTBERG, 2015; BANNON; EHN, 2013; ROBERTSON; SIMONSEN, 2013; VAN DE POEL, 2015).

O maior potencial democratizante, de todo modo, é alcançado pelos projetos participativos de vertente emancipadora.[3] Isso se deve ao fato de, apenas neles, futuros usuários e demais atores concernidos – os coprojetistas – poderem tomar parte em todas as etapas do projeto[4] (excetuando-se, via de regra, a etapa de implementação da solução conceitual escolhida) (IVERSEN et al., 2012; VAN DER VELDEN; MÖRTBERG, 2015). Tal coisa assegura aos coprojetistas espaço não só para terem suas demandas e seus valores apreendidos pelos projetistas (i.e., equipe técnica) e incorporados à solução técnica que se irá construir, como também para antever eventuais efeitos colaterais não desejáveis dela e, também a partir disso, alterar o projeto e a ordem sociotécnica que tal solução em projeto tenderá a construir ou reforçar.

Na América Latina, abordagens técnicas emancipadoras ganham força sobretudo a partir da década de 1990, com o surgimento da tecnologia social (TS). Uma genealogia da TS, porém, não encontrará as suas raízes nos projetos participativos escandinavos, mas no encontro do movimento da tecnologia apropriada com práticas e ideários libertadores do continente (THOMAS, 2009). É nesse sentido que a TS abandonará a perspectiva acrítica, de mero barateamento de tecnologias consolidadas nos países centrais e conformadora de um ordenamento sociotécnico muito afinado com a ordem capitalista hegemônica da tecnologia apropriada, substituindo-a por projetos tecnológicos que buscam incorporar os saberes dos grupos locais e ser mediação para a emancipação desses grupos (THOMAS, 2009). Dessa maneira, tais soluções se pretendem também espaço para se sonharem outros mundos possíveis e, a partir disso, coconstruí-los.

Uma das formas como os projetos de TS são atualmente construídos, no Brasil, é a engenharia popular (EP). Ela começa a se constituir a partir de meados da década de 2000, caracterizando-se por diferentes metodologias que lançam mão, via de regra, de pesquisa-ação, educação popular e ferramentais outros, como a ergonomia da atividade (CRUZ, 2020). A EP é, além disso, fortemente tributária dos ideais da economia solidária, sendo majoritariamente praticada a partir da extensão universitária (FRAGA et al. 2020).

Tomados comparativamente, os projetos participativos emancipadores e a EP partilham de um mesmo ideário comum, o qual é o do empoderamento dos coprojetistas e o da construção de outra ordem sociotécnica possível, que seja menos opressora, menos injusta e mais sustentável ecologicamente. Os referenciais teóricos e as metodologias desenvolvidas em cada caso, por outro lado, podem variar em maior ou menor grau. Além disso, por conta dos grupos com os quais tende a trabalhar mais frequentemente e à filiação à tradição crítica latino-americana, a EP dá especial atenção aos saberes desses grupos e às suas cosmovisões. Ela busca, com isso, escutar e trabalhar tais elementos, por meio da educação popular, incorporando-os às soluções sociotécnicas construídas e ao seu próprio modo de atuar. Nesse sentido, a EP se pretende também uma prática de projeto tecnológico que é coconstruída, em parte ao menos, com grupos populares com os quais ela atua.

 

2 ACERVOS IMAGÉTICOS, VALORES ESTÉTICOS E PROCEDIMENTOS ESTRUTURADOS

Se a incidência de valores ético-políticos nos projetos técnicos é já bem conhecida, assim como são bem documentadas as abordagens democratizantes desse processo, pouco ou nada existe de forma mais sistematizada sobre a incidência de um quarto tipo de elementos no projeto, os quais não são instrumentais, cognitivos ou ético-políticos: valores estéticos, acervos imagéticos e procedimentos estruturados. E, por essa razão, metodologias para a pluralização deles no projeto técnico são praticamente inexistentes ou não têm esse potencial de pluralização identificado ou valorizado como tal.

A incidência dessa quarta categoria de elementos não costuma se dar nas mesmas etapas em que os valores ético-políticos impactam e conformam o projeto. Assumindo-se, como o sustenta Van de Poel (2009, p. 985), que os projetos técnicos tenham cinco estágios principais (que são percorridos de maneira usualmente iterativa e não linear, afetando-se e interpenetrando-se reciprocamente), tais estágios ou etapas podem ser assim definidos:[5]

1.      Análise e formulação do problema, incluindo a formulação dos requisitos do projeto e o plano do projeto e do desenvolvimento do produto, sistema ou serviço;

2.      Projeto conceitual, englobando a criação de soluções conceituais alternativas para o problema do projeto, bem como uma possível reformulação do problema;

3.      Escolha, dentro do conjunto das soluções conceituais desenvolvidas, daquela que será implementada;

4.      Desenvolvimento da solução escolhida em termos estruturais, materiais e/ou procedimentais;

5.      Projeto detalhado, isto é, redação de todas as informações e orientações necessárias para que a solução possa ser produzida ou implementada comercialmente (em massa).

Assim, não é difícil perceber que os valores ético-políticos têm particular relevância nos estágios um e três (VAN DE POEL, 2009, p. 986). De sua parte, como se depreenderá do que se desenvolverá nas próximas páginas, valores estéticos, procedimentos estruturados e acervos imagéticos atuam, sobretudo, ainda que não exclusivamente, nas etapas dois e quatro.

A conjugação dos valores estéticos com o acervo imagético (válido, como se verá, principalmente para soluções técnicas materiais) caracteriza uma dimensão inevitável da prática projetiva, dimensão que, nos termos de Eugene Ferguson (1992), constitui a arte da engenharia. A conjugação desses dois elementos com procedimentos estruturados leva à constituição de estilos de projeto, os quais, em uma mesma área técnica, poderão se prestar melhor, cada qual, a classes específicas de soluções, funcionalidades e/ou valores ético-políticos.

Com isso, ao não se considerar e tratar de forma apropriada essa quarta categoria de elementos que incidem no projeto, não somente possíveis novas funcionalidades ou aprimoramentos em funcionalidades existentes podem ficar bloqueados, como também implementações eventualmente interessantes para articulações de valores ético-políticos que se estejam procurando avançar sociotecnicamente podem permanecer não concebíveis ou implementáveis.

Nas próximas páginas, será desenvolvida a reflexão sobre o impacto desses elementos no projeto técnico do modo mais completo possível para o espaço que temos aqui disponível. Seguiremos, para tanto, em diálogo com Eugene Ferguson e Walter Vincenti, complementado por contribuições mais pontuais de outros autores. Na sequência, será apresentado um caminho metodológico possível, para se alcançar essa pluralização de estilos aqui defendida.

 

2.1 INSTRUMENTALIDADES DO PROJECTO E PLURALIZAÇÃO

Acervos imagéticos, valores estéticos e procedimentos estruturados constituem parte do conteúdo de três tipos de conhecimento que Vincenti (1990) identifica como demandados nos projetos de engenharia, os quais ele agrupa em uma categoria a que chama de instrumentalidades do projeto. Trata-se de modos de pensar, habilidades avaliativas e procedimentos estruturados.

Com vistas a construir um projeto, a equipe técnica sempre lança mão de procedimentos estruturados bem conhecidos. É o caso da divisão de um projeto geral (p.e., avião) em suas subpartes (p.e., estrutura, motor e hélice) e destas em suas componentes etc. (VINCENTI, 1990, p. 220). Também é o que acontece quando, diante de funcionalidade(s) e requisitos definidos (estágio um), procede-se aos possíveis projetos conceituais da solução perseguida (estágio dois) e, daí, para a construção material e/ou procedimental dela (estágio quatro) e o detalhamento desse processo de construção (estágio cinco).

Nesse processo, pode-se lançar mão de procedimentos que conduzem: 1) do abstrato (funcionalidade(s) e requisitos) para o detalhe (processo de construção detalhado), seguindo os estágios dois, quatro e cinco descendentemente; 2) do detalhe (solução/ões já existente(s) no mercado) para o detalhe (adaptação dessas soluções para se obter aquilo que se está perseguindo), saltando-se do estágio um para o quatro e, daí, o cinco; ou 3) do detalhe (solução/ões existentes no mercado) para o abstrato (possíveis projetos conceituais inspirados nessas soluções) e deste para o detalhe (processo de construção detalhado da solução obtida), ou seja, tomam-se soluções já existentes como inspiração para o projeto conceitual (estágio dois), seguindo-se descendentemente do estágio quatro para o cinco, a partir daí (SPITAS, 2011a, p. 430-431, 2011b, p. 450-453).

Entre os procedimentos estruturados e as habilidades avaliativas, bem menos estruturadas, isto é, menos explícitas ou formalizadas (ou mais tácitas), encontram-se os modos de pensar. Eles se referem, por exemplo, aos modos comuns, partilhados pelos engenheiros, de apreender a operação do dispositivo e imaginar o efeito que alterações em seu projeto poderiam provocar. Outro caso de modo de pensar comum nos projetos de engenharia é, por analogia, partir-se de um tipo particular de pensamento para encontrar conceitos que se adequem à situação em análise (como, por exemplo, tomar os sistemas hidráulicos como análogos aos elétricos que se quer conhecer melhor). Um terceiro modo de pensar é o visual, no sentido daquilo que Ferguson (1992) afirma que todo projetista extraordinário é invariavelmente um extraordinário pensador visual (VINCENTI, 1990, p. 220-2). É este último que nos interessa, de maneira particular aqui.

Por fim, dentre as instrumentalidades do projeto, temos as habilidades avaliativas, que estão associadas, por exemplo, à percepção e busca por uma solução que seja, de acordo com os valores assumidos, bela, elegante, adequada e/ou etc. “Tais habilidades, do mesmo modo que no pensamento visual, requerem inspiração, imaginação e intuição, assim como um senso de elegância e de estética no projeto técnico.” (VINCENTI, 1990, p. 222).[6] Por isso, elas são mais tácitas e menos “objetivamente aprendíveis”, demandando, para serem internalizadas, vivência, imersão e abertura da parte dos engenheiros (VINCENTI, 1990, p. 222).

PENSAMENTO IMAGÉTICO. No que concerne à importância das imagens e do pensamento imagético no projeto de soluções técnicas materiais (estágios dois e quatro do projeto), já existe uma ampla bibliografia a fundamentar e ilustrar esse entendimento. De uma forma ou de outra, tende-se a convergir, nesse domínio de pesquisa, para a conclusão de que as imagens (mentais e desenhos) são cruciais para o desenvolvimento de novos artefatos e de parte do conhecimento associado a tais projetos (AMMON, 2017). Com efeito, elas operam tanto como disparador da criatividade e como léxico por meio do qual os projetistas conseguem imaginar, articular e comunicar suas ideias (FERGUSON, 1992; AMMON; CAPDEVILA-WERNING, 2017; GOLDSCHMIDT, 2017) quanto como instrumentos para a reflexão e para descobertas relativas ao projeto (AMMON, 2017; GOLDSCHMIDT, 2017; SUWA et al., 2000; CURRIE, 2003).

Nesse sentido, as imagens constituem um acervo sem o qual o projeto não tem como acontecer, e um acervo que, quanto mais extenso, maior plasticidade e criatividade parece facultar ao projetista (FERGUSON, 1992, p. 115-130). De igual modo, quanto mais plural é a estimulação imagética externa a que o projetista se encontra submetido, tanto maior tende a ser a sua possibilidade de conceber uma solução criativa. Tais imagens, com efeito, possibilitam a uma mente treinada obter inspiração para se guiar, no projeto com o qual está envolvida, em meio às escolhas aleatórias que esse processo projetivo (i.e., estágios dois e quatro) traz inevitavelmente consigo (GOLDSCHMIDT, 2017).

HABILIDADES AVALIATIVAS. Ao contrário do que somos levados a acreditar por uma certa compreensão sobre os estágios dois e quatro do projeto técnico, há, mesmo neles, mais julgamento – calcado em valores que não são nem instrumentais nem cognitivos – do que verdades/ soluções autoevidentes ou a que se pode chegar, através apenas do conhecimento técnico-científico disponível e/ou dos valores instrumentais e cognitivos que os balizam (FERGUSON, 1992, p. 22). Isso pode ser dito ao menos com respeito ao projeto de uma solução inédita (FERGUSON, 1992, p. 173, 194).

As habilidades avaliativas de Vincenti lidam precisamente com esse tipo de julgamento. Por sua natureza, os valores que as balizam não são cognitivos, instrumentais ou ético-políticos. Schummer e seus coatores (2009) chamam-nos de valores estéticos, termo que manteremos. Exemplos desse tipo de valor, ao modo como ele se materializa em práticas projetivas da arquitetura, síntese química e engenharia de software, mas que parecem igualmente aplicáveis às outras áreas técnicas, vão desde a simetria e a simplicidade (ou o rebuscamento) até padrões ou ideais de beleza e harmonia específicos (SCHUMMER et al., 2009, p. 1032, 1045).

A questão particularmente interessante, com respeito aos valores estéticos a balizarem a prática projetiva, é que, ao mesmo tempo que eles podem ser úteis ou profícuos na concepção e construção de determinados arranjos e funcionalidades, eles podem igualmente interditar outros arranjos ou funcionalidades que poderiam ser acessíveis, caso outros valores estéticos estivessem sendo considerados no projeto (SCHUMMER et al., 2009, p. 1044-54).

Disso decorre que, assim como no caso do acervo imagético, a pluralização, em uma mesma área técnica, de valores estéticos a conformarem os estágios dois e quatro do projeto, pode implicar a possibilidade de concepção e viabilização de soluções até então inconcebíveis ou inviáveis. E soluções que podem ser de particular importância ético-política (ou econômica).

PROCEDIMENTOS ESTRUTURADOS. Ainda que, como se disse antes, procedimentos estruturados sejam a mais estruturada das três instrumentalidades, isto é, a mais explícita e formalizada (ou a menos tácita), procedimentos distintos para uma mesma atividade ou resultado pretendido podem conduzir a soluções, em alguma medida não desprezível, diferentes. No exemplo apresentado anteriormente, dos tipos de procedimentos possíveis para se caminhar do estágio um (funcionalidade(s) e requisitos) ao cinco (detalhamento do processo de produção da solução final) do projeto, Spitas (2011a; 2011b) não somente inventariou, de forma não exaustiva, seis procedimentos diferentes para esses três modos de proceder a tal tradução, como identificou no modo “do detalhe para o detalhe” uma impossibilidade quase total de produzir uma solução em alguma medida inédita, ao passo que os outros dois modos tenderiam a favorecê-la, em alguma medida.

Diversidade equivalente de procedimentos, mas com impacto possível não apenas no grau de ineditismo da solução final construída, como também na estruturação da atividade projetiva, é atestada no domínio da engenharia de software, no âmbito das comunidades de projetistas-usuários que se constroem em torno a programas, sistemas e aplicações de código aberto (RIEDER; SCHÄFER, 2008). Dentre outras coisas, tais estruturações (ou procedimentos estruturados) evidenciam que “extensões às metodologias clássicas, rotas alternativas, abordagens colaborativas e formas auto-organizadas de fluxo de trabalho são tanto possíveis quanto efetivas.” (RIEDER; SCHÄFER, 2008, p. 170).

Ao lado disso, a pluralização de procedimentos estruturados tem papel também relevante na constituição de estilos de projeto diferentes em uma área técnica (SCHUMMER et al., 2009, p. 1051). Com efeito, é apenas a adequada construção ou apropriação de procedimentos estruturados e, quando o caso, também de acervos imagéticos, em resposta ao, ou em sintonia com o valor (ou valores) estético(s) assumido(s), que pode garantir a formação de um estilo efetivamente profícuo ou interessante.[7]

Para ilustrar isso, tome-se o exemplo, analisado por Schummer e seus coautores (2009), da constituição do estilo de síntese química que acabou por possibilitar a nanotecnologia. Ele emerge no contexto do desenvolvimento de técnicas de representação visual da estrutura molecular das substâncias, assim como de artefatos e procedimentos que possibilitaram enxergar tais estruturas. A partir disso, surgirá, em vários pesquisadores, o fascínio por estruturas moleculares cujas representações eram iguais a (ou muito parecidas com) objetos macroscópicos. Perseguida inicialmente por si mesma, a construção dessas estruturas obrigará aqueles que se dedicavam a ela a desenvolverem ou aprimorarem instrumentais e procedimentos que possibilitassem tal construção. Será somente a partir desse esforço – e do êxito nele –, então, que emergirá ou se tornará possível/viável, a nanotecnologia (SCHUMMER et al., 2009, p. 1048-1049).

Nesse sentido, a constituição de novos procedimentos estruturados, seja para se obterem resultados em alguma medida similares aos que já são alcançáveis por outros meios (como nos procedimentos de tradução de funcionalidade(s) e requisitos em detalhamento do processo de produção da solução final), seja para se conseguir realizar o que ainda não se consegue (como nos procedimentos para se conseguir copiar o mundo macroscópico em dimensão molecular), pode trazer impacto não desprezível com respeito àquilo que passamos a ser capazes de projetar e/ou construir a partir daí.

 

2.2 INSERÇÃO, DIÁLOGO DE SABERES E CUIDADO

Até onde se conseguiu ir na revisão bibliográfica que fundamenta esta pesquisa, não existe sequer um procedimento sistematizado e que tenha como objetivo explícito a pluralização do conteúdo das instrumentalidades do projeto. Isso parece ser o caso, ao menos em parte, porque o caráter em alguma medida contingente de tais conteúdos (i.e., acervos imagéticos, valores estéticos e procedimentos estruturados) e o impacto da diversificação deles na prática projetiva seguem grandemente negligenciados ou desconhecidos.

Há, não obstante, modos de proceder a projetos emancipadores que parecem bastante promissores também para tal fim. Nesta segunda seção, apresentaremos um deles, que foi codesenvolvido e aplicado pela etnógrafa colombiana Tania Pérez-Bustos, em uma iniciativa de produção tecnológica junto a um grupo de bordadeiras de Cartago, Colômbia. Trata-se aqui da construção de um projeto participativo e que teve como resultado algo que pode ser entendido como uma tecnologia social. São igualmente promissores quanto à diversificação de acervos imagéticos, valores estéticos e procedimentos estruturados certas abordagens de engenharia popular e de projetos em arquitetura (Techné).

A equipe de Tania era composta por Laura Cortés-Rico, a engenheira que implementará o artefato, além de outros dois engenheiros e uma segunda etnógrafa (RIVERA et al., 2016). O trabalho que essa equipe se propôs desenvolver tinha explicitamente como um de seus pressupostos o reconhecimento e a valorização dos saberes das bordadeiras. De sorte a se assegurar tal coisa, assim como a escuta em profundidade das reais demandas e dos valores e ideais dessas mulheres, o trabalho das etnógrafas foi fundamental. Ele possibilitou, ao fim e ao cabo, que Laura incorporasse à confecção do hardware (i.e., elementos tangíveis condutores que permitiam a construção de padrões do bordado na tela touch de um tablet) e do software (i.e., reconhecimento dos padrões do bordado pressionados sobre a tela) saberes que as bordadeiras detinham relativamente à produção do calado (o tipo de bordado que o grupo produzia), assim como saberes a que ela teve acesso no convívio com essas mulheres e nas lições de bordado que tomara com elas (RIVERA et al., 2016; PÉREZ-BUSTOS; MÁRQUEZ, 2016; CORTÉS-RICO; PIEDRAHITA-SOLÓRZANO, 2015).

Com efeito, nas palavras de Laura,

o hardware foi literalmente bordado com linhas condutoras e o software demandou uma contínua rememoração do ofício [craft] [executado] com as nossas próprias mãos, de modo a projetar representações computacionais dos pontos do calado. (RIVERA et al., 2016, p. 61).

E

Configurar o projeto para dar responsabilidade aos usuários foi importante para garantir que a tecnologia projetada tivesse um impacto real e conduzisse a novos modos de conceber tanto as práticas de bordar quanto as de projetar tecnologia. (CORTÉS-RICO; PIEDRAHITA-SOLÓRZANO, 2015, p. 520).

 

Ou seja, o procedimento adotado pretendia ir além da identificação das urgências próprias, no caso, do grupo de bordadeiras; dos requisitos que estas poderiam querer ver satisfeitos, na solução técnica que se viesse a encontrar para tais urgências; e da conformação ético-política desse artefato. Pretendia-se, adicionalmente, “modificar a estrutura dos processos de engenharia” (PÉREZ-BUSTOS, 2017, p. k), inspirando-se, para tanto, em saberes práticos das bordadeiras (PÉREZ-BUSTOS, 2017, p. h).

Nas duas falas de Laura citadas acima, contudo, parece que o procedimento adotado contribuiu não apenas com a fertilização da prática projetiva dela por procedimentos estruturados das bordadeiras, como, em alguma medida, com valores estéticos dessas mulheres – valores que a desafiaram ou encorajaram a conceber novos modos de projetar. Com efeito, como o vimos antes, estilos de projeto diferentes – que é o que novos modos de projetar parece querer indicar aqui – distinguem-se, via de regra, não apenas pelos procedimentos que adotam, mas pelos valores estéticos que, por fim, esses mesmos procedimentos buscam promover.

Além disso, parece pouco provável que parte do acervo imagético das bordadeiras, tão carregado com os padrões do bordado que elas produzem e com muito do acervo comum daquelas pessoas que trabalham (com) o tecido, não tenha fertilizado o de Laura, que somente foi apresentada a essa prática e introduzida aos seus rudimentos nos tempos de imersão junto a essas trabalhadoras. Nos textos de Tania e em falas de Laura, por exemplo, o imagético do bordado é utilizado com não pouca frequência (PÉREZ-BUSTOS, 2017).

Mas qual é o distintivo do procedimento proposto e coconstruído por Tania, que o torna potencializador de tais fertilizações? A resposta aqui parece estar em parte dos métodos empregados e no modo como o processo todo foi conduzido.

Em termos metodológicos, o processo consistiu basicamente de períodos de inserção junto às bordadeiras; de um ativo encorajamento da fala dessas mulheres, do diálogo de Laura com elas e do diálogo entre engenheiros e etnógrafas; da construção de coisas; e, como parte desta última, do aprendizado, por Laura e pelas etnógrafas, dos rudimentos do calado, a partir de aulas tomadas junto a essas bordadeiras (PÉREZ-BUSTOS, 2017).

Como, porém, assegurar o contato, fundamentalmente de Laura, com os conhecimentos das bordadeiras e, a partir disso, encorajar um diálogo de saberes – isto é, uma fertilização recíproca de acervos imagéticos, valores estéticos e procedimentos estruturados entre ela e as bordadeiras? Para isso, Laura teve não apenas que viver alguns períodos de imersão junto ao grupo de trabalhadoras e aprender os rudimentos de prática laboral delas, como revestir-se, nesse processo, de uma postura profundamente cuidadosa (PÉREZ-BUSTOS, 2017).

É sobretudo pela imersão e pelo aprendizado do calado que Laura pode ter algum acesso aos valores estéticos, acervos imagéticos e procedimentos estruturados das bordadeiras (PÉREZ-BUSTOS; MÁRQUES, 2016, p. 162-163). É, acima de tudo, pelo cuidado que esse conhecimento não é desprezado e que as condições para que o encontro, diálogo e troca de saberes se dê não são solapadas (PÉREZ-BUSTOS; MÁRQUES, 2016, p. 158-160).

 

3 PROBLEMATIZAÇÕES

Com as duas partes anteriores, buscou-se fornecer um panorama empiricamente lastreado de parte do fenômeno tecnológico, ou do modo de ser da tecnologia produzida hoje. A segunda parte do artigo sumariza uma reflexão já bem estabelecida e desenvolvida. A terceira, por outro lado, sistematiza uma dimensão que parece grandemente desconhecida ou negligenciada, seja por quem constrói a tecnologia, seja por quem reflete sobre ela. Nesta quarta parte, serão apontadas fragilidades na reflexão filosófica sobre a tecnologia ou em certos usos dessas reflexões, em dois âmbitos específicos: no de alguns desafios nem sempre considerados para se proceder à democratização da tecnologia, como esta é pensada pelo construtivismo crítico de Andrew Feenberg (2019a, 2019b); no de um suposto purismo axiológico do desenvolvimento autêntico dos objetos técnicos, à maneira como isso é encontrado na filosofia de Gilbert Simondon.

 

3.1 LIMITES DA DEMOCRATIZAÇÃO

No que se refere à democratização do desenvolvimento tecnológico, tem-se, por um lado, a corroboração empírica da viabilidade disso, assim como metodologias amplamente testadas e bastante aprimoradas para subsidiar tal coisa (parte 2). Por outro lado, contudo, esses mesmos dados apontam gargalos ou limites de tal processo democratizante ou emancipador. São gargalos ou limites nem sempre considerados em reflexões sobre a tecnologia ou defesas da democratização dela mais engajadas, em termos políticos.

No âmbito das atuações locais, como a do projeto com as bordadeiras colombianas, os limites ou desafios à democratização-emancipação são metodológicos. Eles se referem, de forma preponderante, à escuta e à incorporação efetivas e em igualdade de condições dos coprojetistas – com seus valores ético-políticos, mas também com suas cosmovisões, saberes e valores estéticos – ao projeto. Quando se trata de grupos socioeconomicamente marginais, tal desafio pode ser ainda maior. O trabalho com as bordadeiras colombianas (PÉREZ-BUSTOS, 2017) ilustra bem isso: mesmo bem intencionados e convictos da perspectiva empoderadora de projeto que buscam desenvolver, os projetistas, não raro, impõem seus valores e compreensões de mundo, assumindo uma postura paternalista e construindo, em alguma medida, soluções técnicas para, em lugar de com, os coprojetistas.

O êxito desse projeto colombiano indica que a incorporação do cuidado, ao lado da imersão na realidade e, no caso, na atividade laboral do grupo de coprojetistas, parecem ser aspectos fundamentais para que uma abordagem projetiva emancipadora possa ser potencializada. Algo em linha semelhante parece ser confirmado por abordagens em engenharia popular (NEPOMUCENO et al., 2019; Techné) e no projeto de arquitetura (GUIZZO, 2019; Techné). Neste segundo caso, a metodologia adotada, ao se calcar na estimulação sensorial dos coprojetistas e na busca por se acessar o inconsciente deles, aponta uma segunda dimensão usualmente negligenciada em projetos técnicos (mesmo emancipadores) e na reflexão sobre eles, para além da perspectiva do cuidado e da imersão na realidade do grupo apoiado, que é a da corporeidade e do inconsciente dos coprojetistas, a qual pode ter impacto significativo no projeto técnico e na emancipação do grupo.

Outro desafio concernente à democratização do desenvolvimento tecnológico é o da sua escalabilidade. Se é inegável que existem metodologias que, aplicadas segundo o imperativo adicional do cuidado, podem produzir ao menos parte da emancipação buscada, também é verdade que elas tendem a ser mais exitosas, quanto mais local for a solução almejada, isto é, quanto menos plural for o âmbito de seus usos possíveis e menos numeroso e diverso for o grupo de coprojetistas.

Para se haver com esse segundo limitante, práticas de technology assessment poderiam ser interessantes, em suas três vertentes: assessoramento de políticas públicas, promoção de debate público e conformação da tecnologia (GRUNWALD, 2015). Tais práticas, adotadas no domínio macro das demandas de uma sociedade (ou um conjunto plural e diverso de grupos e atores sociais), poderiam ser, nesses termos, complementares à atuação micro dos projetos emancipadores.

Não obstante, de uma parte, permaneceriam questões metodológicas atinentes, por exemplo, a como se promover o debate, o cuidado e um autêntico diálogo de saberes e, por meio disso, alcançar-se algo próximo a um consenso entre atores tão numerosos e com valores, cosmovisões e interesses distintos e, frequentemente, conflitantes. De outra parte, e porque se abandona o lugar marginal de experiências pontuais e que pouco afetam o status quo tecnocrático e capitalista, iniciativas mais amplas ou menos locais tenderão a encontrar resistência ou oposição crescentes da parte de atores sociais altamente poderosos. Além disso, e de forma mais radical, pode-se mesmo questionar o imperativo da escalabilidade: em outros mundos possíveis, que não sejam regidos pelas urgências do consumo, do controle e do lucro, toda solução sociotécnica – ou mesmo a maior parte delas – precisa de fato ser escalável, ou seja, replicável? A reaplicação da tecnologia social (DAGNINO et al., 2004) não poderia ser uma alternativa mais interessante?

Por fim, e naquilo que mais diretamente concerne à principal reflexão desenvolvida neste artigo, um quarto desafio à democratização relaciona-se à viabilidade de se produzirem as soluções mais adequadas para os desafios sociotécnicos em questão. Aqui, como se buscou evidenciar ao longo da terceira parte deste trabalho, se não cuidarmos da pluralização de procedimentos estruturados, valores estéticos e acervos imagéticos, poderemos seguir marcando passo em desenvolvimento, que, não obstante, pode ser alcançável, desde que se assegurem as condições de possibilidade para tanto, ou seja, essa pluralização.

 

3.2 O LASTRO SOCIOCULTURAL DA INVENÇÃO

Quanto à matização de Simondon (1989 [1958], 2008 [1965-1966], 2009 [1968]), ela parece ser necessária para atualizar a compreensão do autor, incorporando a esta entendimentos sobre a tecnologia que foram se impondo apenas a partir da última década de sua vida.

Como analisado em outra parte (CRUZ, 2017, p. 72-82), a perspectiva simondoniana do desenvolvimento autêntico do indivíduo técnico, embora pretenda subordinar tal processo aos mecanismos de individuação do objeto técnico, na relação que aquele inevitavelmente estabelece com o meio que lhe é associado, dissociando tal coisa de pressões sociais ilegítimas, resguarda inadvertidamente um espaço para que o viés social se imiscua mesmo no desenvolvimento autêntico.

Isso se materializa na condição psicológica, a qual, para Simondon, preside à invenção (de um novo objeto técnico ou de uma variedade melhor de algum já existente): uma tensão que o inventor experimenta entre aquilo que o autor chama de ordem da realidade – isto é, o tecnicamente dado e já passível de ser obtido na cultura técnica a que o inventor pertence – e a ordem do resultado – aquilo que ainda não é tecnicamente possível, mas que se apresenta ao inventor como desejável de sê-lo (SIMONDON, 2008, p. 139-44).

Está nisso do “mostrar-se desejável” ao inventor a porta deixada aberta, por Simondon, para que interesses ou lastros sociais assumam papel não desprezível no desenvolvimento tecnológico (autêntico). E isso não é propriamente um paradoxo com respeito à compreensão geral do autor, segundo a qual, ainda que tenha sua própria normatividade e que seja digna em si mesma, a técnica opera fundamentalmente como mediadora e harmonizadora entre o ser humano e o mundo natural, mundo que habitamos com ela (SIMONDON, 1989, p. 88, 126-128, 164; 2009, p. 107, 110, 116, 127; 2008, p. 186).

Ora, se aquilo que damos conta de inventar, precisamos ser capazes, antes, de vislumbrar, e de vislumbrar como desejável, então, inventores pertencentes a grupos sociais distintos, com suas urgências, com seus ideais e valores ético-sociais, com seus acervos imagéticos, valores estéticos e procedimentos estruturados próprios, tenderão a enxergar – e a identificar como desejáveis – soluções diferentes. Adicionalmente, e em sentido negativo, inventores com cidadanias ético-social e estético-cultural diferentes poderiam ser incapazes tanto de identificar urgências de grupo que não o seu quanto de conceber soluções para elas que fossem legítimas (ou o mais legítimo possível) para o referido grupo.

De uma parte, nisso que Simondon identifica como a condição psicológica para a invenção, certo conjunto ou léxico de imagens, certos valores estéticos e/ou certos procedimentos estruturados podem ser fundamentais para possibilitar enxergar materializações possíveis do que se mostra como tecnicamente desejado, e que, em algum momento, se torna também tecnologicamente alcançável.[8] No caso da nanotecnologia, analisado anteriormente, por exemplo, não fossem a representação imagética das estruturas moleculares, o fascínio pela construção de moléculas com representações similares a objetos macroscópicos e procedimentos que foram sendo desenvolvidos para realizar a esta, todo esse campo técnico não teria sido viabilizado.

De outra parte, os avanços ou invenções requerem, para serem percebidos como possíveis, ou reconhecidos como dignos de atenção e de trabalho, para serem materializados, o fato de serem desejados ou de se mostrarem desejáveis. Ou seja, apenas quando o inventor já nutre o desejo, mesmo que não de todo consciente, por certa possibilidade técnica, ou quando, em face dela, reconhece seu valor (que pode ser o de obtenção de lucro com ela), é que ela poderá de fato vir à luz.

Assim, seja para a identificação de novas possibilidades técnicas em um artefato já existente, seja para a concepção de novos artefatos ou funcionalidades, os acervos imagéticos, valores estéticos e procedimentos estruturados a conformarem a prática projetiva do inventor ou equipe técnica desempenham papel não desprezível.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo deste artigo, buscou-se mostrar que a tecnologia e o seu desenvolvimento são um fenômeno lastreado socialmente em ao menos uma dimensão adicional àquela já reconhecida pela literatura da área, relativa a valores ético-políticos. Com efeito, valores estéticos, acervos imagéticos e procedimentos estruturados desempenham, como se explicitou, significativo papel conformador da prática projetiva. A pluralização deles, nesse sentido, pode tornar passível de serem implementadas ou mesmo concebidas soluções sociotécnicas que, sem tal pluralização, seriam impossíveis.

Dar-se conta dessa dimensão tem relevância tanto teórica, no sentido de nos permitir conhecer o fenômeno (socio)técnico de forma mais precisa, quanto prática, já que a democratização da tecnologia e do seu desenvolvimento (ou mesmo o desenvolvimento de invenções ou aprimoramentos na tecnologia convencional/capitalista) pressupõe (ou pode pressupor) tal pluralização.

Ainda que nem sempre impacte a prática de projetistas que estão ligados às iniciativas mais radicalmente democratizantes (em parte, por seguir ainda muito fechada em si e dialogando consigo mesma), a filosofia da tecnologia pode ter um papel importante em esclarecer e subsidiar técnicos e outras pessoas comprometidas com a coconstrução de outras ordens sociotécnicas possíveis. Para tanto, um primeiro passo fundamental é que os filósofos se acerquem mais da tecnologia, à maneira como ela se manifesta – ou pode se manifestar – e é produzida no mundo. A virada empírica nessa área de estudo, que produziu como principais correntes o construtivismo crítico e a pós-fenomenologia (FRANSSENN et al., 2016), tem precisamente essa intenção. Contudo, passos adicionais ainda precisam ser dados.

Há algo em comum entre as três abordagens ao projeto técnico mencionadas no início da parte 4 (a colombiana, a engenharia popular e a da arquitetura), que pode ser uma pista relevante quanto a tais passos adicionais. Essas abordagens se filiam a perspectivas teórico-práticas, as quais, de um modo ou de outro, são parte ou estabelecem profícuo diálogo com a reflexão descolonial, do tipo daquela proposta por Anzaldúa (2002), Mignolo (2011) e Escobar (2018). A descolonização que essas abordagens produzem não tem apenas a ver com a superação do epistemicídio (SANTOS, 2016), abrindo-se para um diálogo com saberes, valores e cosmovisões não ocidentais-colonizadores, mas também, e como consequência dessa abertura e desse diálogo, com o resgate, no projeto técnico, de dimensões como a do cuidado, do corpo e do inconsciente.

Talvez, nessa perspectiva descolonial, fazer filosofia da tecnologia signifique fazer uma filosofia das tecnologias possíveis, algo que parece requerer a desessencialização de aspectos contingentes do fenômeno tecnológico, mas que são (ou parecem ser) fundamentais para a tecnologia ocidental (capitalista/convencional), e que podem ter sido tomados, inadvertidamente, como necessários até agora.

Por outro lado, se outros mundos são possíveis, isso parece requerer também outras tecnologias, outros modos de construí-las e outros saberes que suportem esse processo. É nessa direção que apontam as três práticas projetivas mencionadas. Tal coisa não significa necessariamente a negação da tecnologia, engenharia e ciência ocidentais, mas pressupõe, ao menos, o alargamento delas, por meio do diálogo com saberes, valores e cosmovisões que foram proscritos, desmerecidos ou “assassinados” (SANTOS, 2016), sob a pretensão universalista, desterritorializada e descorporificada inclusive, e eventualmente, sobretudo, do conhecimento filosófico ocidental (DUSSEL, 2008; ESCOBAR, 2018).

Pode-se dizer que as problematizações desenvolvidas na parte 4 deste artigo são um exemplo dessa descolonização da filosofia da tecnologia, materializado no reconhecimento de uma engenharia menos científica – e mais artística –; em práticas projetivas “técnico-sociais” e que têm muito a ganhar, se são coconstruídas pelos coprojetistas e em profundo diálogo com seus saberes, valores e cosmovisões; em soluções sociotécnicas reaplicáveis (mas não replicáveis), cujo processo projetivo é libertador e cujo impacto social é descolonizador, de emulação de outro mundo possível, no geral mais solidário, socialmente justo e ecologicamente sustentável.

Seguir a trilha da descolonização da filosofia da tecnologia parece não apenas promissor, como necessário. Contudo, para corroborar ou refutar tal hipótese, ou para saber a dimensão desse eventual impacto descolonizador, mais estudos precisam ser desenvolvidos.

 

AESTHETIC VALUES, IMAGE COLLECTIONS, AND STRUCTURED PROCEDURES: Widening and Decolonizing the Philosophical Reflection on Technology

 

ABSTRACT: Since the 1980s, technical-scientific knowledge, instrumental and cognitive values as well as ethical-political values are acknowledged as constitutive parts of technology and its development. However, a fourth category of elements that shapes design continues to be largely neglected or unknown: image collections, aesthetical values, and structured procedures. Disregarding such elements impose limits on the technical development. In this manuscript, I present this fourth category elements, its impact on the designing practice, and a way of pluralizing its contents. I also sketch two of the most successful approaches for democratizing the technical development. Then, I discuss: some limits and potentialities of democratizing technology; an actualization of part of Simondon's understanding of technical development; the theoretical and practical necessity of decolonizing (or continuing the decolonization of) the philosophy of technology.

 

Keywords: Aesthetic Values. Image Collections. Structured Procedures. Democratization. Decolonization.

 

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Recebido: 08/01/2021

Aceito: 08/3/2021


RESUMO: Neste artigo, o autor debruça-se sobre o estatuto do sujeito e da identidade pessoal no contexto do digital. Na primeira secção do texto, ele desenvolve a sua abordagem geral dos meios e tecnologias digitais, a qual designa de “hermenêutica digital”. Destaca nela três perspectivas, nomeadamente a desconstrutiva, a epistemológica e a abordagem ontológica. Na segunda parte do texto, o autor debruça a sua atenção sobre a hermenêutica digital enquanto hermenêutica do sujeito. Compara aí a identidade narrativa de Paul Ricoeur com o habitus de Pierre Bourdieu. A sua primeira tese defende que o habitus pode ser compreendido como um conceito subjectivador que negligencia uma parte importante do sujeito. Nesse sentido, a identidade narrativa oferece uma solução para tal negligência. A sua segunda tese defende que os meios e tecnologias digitais dos dias de hoje se encontram mais próximos do habitus bourdieusiano que da identidade narrativa ricoeuriana. Por outras palavras, as máquinas e tecnologias digitais são “máquinas geradoras de habitus”, tanto na sua estrutura como nos seus efeitos.

Palavras-chave: Hermenêutica Digital. Sujeito. Emaginação. Habitus. Identidade Narrativa.

 

INTRODUÇÃO

Neste artigo, ocupar-me-ei com o estatuto do sujeito e da identidade pessoal no contexto digital. A perspectiva que irei desenvolver não será, porém, aquela que caracteriza o trabalho de um académico das Ciências Sociais ou das Ciências da Comunicação. Nessas disciplinas, poderia, por exemplo, fazer referência às publicações de certos autores, como Cardon (2008) e Georges (2009), pois, muito embora as suas publicações se encontrem, hoje, desactualizadas, elas continuam ainda a fornecer importantes instrumentos para a análise empírica dos efeitos que os meios e tecnologias digitais, nomeadamente as plataformas de social media, exercem sobre nós e sobre as nossas identidades. Neste texto, irei, contudo, privilegiar considerações teoréticas à análise de um conjunto de estudos de caso. Vou sobretudo defender que, apesar das suas diversas nuances, os meios e as tecnologias digitais possuem, hoje, algo em comum, tanto na sua estrutura como nas consequências que acarretam para nós.

O artigo será desenvolvido por duas secções. Na primeira, vou apresentar a minha abordagem aos meios e tecnologias digitais, a qual denominei “hermenêutica digital" (2020). Irei distinguir três perspectivas diferentes, sob as quais se desenvolve a hermenêutica digital: (1) desconstrutiva, (2) epistemológica e (3) ontológica. No entanto, tal não significa que a hermenêutica digital não tenha outras potenciais perspectivas que se encontram ainda por explorar. De entre elas, uma será precisamente a da compreensão da hermenêutica digital enquanto hermenêutica do sujeito.

Na segunda secção, vou reflectir sobre as questões da identidade pessoal e da subjectivação. Irei comparar o conceito de “identidade narrativa” de Paul Ricoeur com o conceito de habitus de Pierre Bourdieu. A minha tese defenderá que o habitus pode ser compreendido como um processo de subjectivação que acaba por negligenciar uma parte importante do sujeito, e que a “identidade narrativa” fornece, para tal, uma solução. Ainda nessa secção, irei também sustentar que as tecnologias e os meios digitais se encontram hoje mais próximos da concepção bourdieusiana de habitus que da identidade narrativa ricoeuriana. Por outras palavras, irei defender que as máquinas e as tecnologias digitais são elas mesmas “máquinas criadoras de habitus”, tanto na sua estrutura como nas suas repercussões. Na conclusão, irei dar conta de três possíveis respostas ao problema da nossa habituação online.

 

1 HERMENÊUTICA DIGITAL

A expressão “hermenêutica digital” existe já há algum tempo. Explicita Capurro (2010, s/n):

A Hermenêutica confronta-se hoje com o desafio que é lançado pelas tecnologias digitais, transformando-se naquilo que eu designo de hermenêutica digital […] O desafio que a internet representa para a hermenêutica manifesta-se sobretudo na sua relevância social para a criação, comunicação, e interpretação do conhecimento.

 

Capurro (2010, s/n) desenvolve, com particular interesse, “os dois lados de um mesmo processo de enfraquecimento da tecnologia moderna.” Por um lado, dá-se um enfraquecimento do papel do intérprete, na medida em que este se embrenha numa cada vez mais complexa rede de humanos e não humanos, e que apenas consegue controlar parcialmente. Por outro lado, afirma (2010, s/n) que “as tecnologias da informação são tecnologias frágeis, uma vez que lidam com as ‘conversações humanas’.” Ao longo deste trabalho, vou sustentar que a primeira afirmação é hoje ainda válida, mas que a segunda perdeu, entretanto, o seu momentum. De facto, as “conversações humanas” e, de uma forma geral, todas as formas de produção de conteúdos e de representação online do sujeito, encontram na prática de “alimentar o monstro” a sua única função, no prover as máquinas algorítmicas com a infinidade de dados de que necessitam para melhorar a sua performance, em termos de análise e previsão. Nesse sentido, os discursos humanos não fragilizam as tecnologias digitais, fortalecendo-as, antes, no que diz respeito à habituação que criam em nós.

Nas minhas mais recentes investigações (ROMELE, 2019), fiz uso da expressão “hermenêutica digital” para, a partir dela, destacar três significados distintos:

(1) Em primeiro lugar, porque o termo possui um sentido desconstrutivo ou até mesmo destrutivo. De entre as diversas mediações que podem ser criadas entre a humanidade e o mundo, a hermenêutica tem tido apenas em conta a linguagem. De acordo com Latour (1993, p. 63), a grandiosidade das filosofias e das teorias da linguagem do século XX, tal como é o caso da hermenêutica, manifesta-se na forma como dignificam devidamente as mediações, uma vez que deixaram de as considerar como veículos puros através dos quais um orador atribuí significado ao mundo, ou vice-versa. Contudo, a sua fraqueza mostra-se na forma como privilegiaram a linguagem como o único mediador ou, no mínimo, como o paradigma de todas as mediações possíveis.

A hermenêutica de Paul Ricoeur configura-se, nesse sentido, como um caso paradigmático. Por um lado, e enquanto representante da tradição ontológica da hermenêutica, Ricoeur é certamente o autor que mais interesse demonstrou na externalização e materialização da linguagem: sinais, metáforas, narrativas, textos, e a escrita em geral. É também por essa via que se manifesta a preferência de Ricoeur pela “via longa” da hermenêutica, por oposição à “via curta” de Martin Heidegger. Por outro lado, Ricoeur nunca lidou realmente com a dimensão material dos suportes de transmissão de significado, tendo acabado por universalizar materializações e externalizações específicas, para poder assim compreender todas as outras.

Considere-se, por exemplo, a noção ricoeuriana de identidade narrativa, a qual se caracteriza tanto pela sua monolinearidade como pela sua monomediatização. O conceito é monolinear, porque se baseia sob um modelo aristotélico (tal como apresentado na Poética) e sob um modelo bíblico, de acordo com os quais todas as narrativas têm que se compor a partir de um enredo (mise en intrigue) que organiza os elementos heterogéneos de uma situação sob uma ordem específica, isto é, devidamente fechados entre um princípio e um fim. A monomediatização, por seu turno, fundamenta-se no facto de a identidade narrativa se construir a partir do modelo do texto impresso. De acordo com De Mul (2010), enquanto a leitura do texto impresso tende a ser unívoca, o texto digital revela-se potencialmente diferente a cada leitura que dele se faz. Para De Mul, a Web é uma base de dados de um número indefinido de histórias potenciais. Para além disso, no digital, a escrita é apenas um de entre os vários meios e possibilidades de expressão.

Por consequência, torna-se também importante distinguir entre a dimensão descritiva e a dimensão prescritiva da identidade narrativa, em Ricoeur. Acredito que a monolinearidade e a monomediatização podem ser criticadas sem se perder, muito embora adaptando, a sua dimensão descritiva, sendo esta a razão pela qual irei ainda recorrer de tal noção, na segunda secção deste artigo. Contudo, as tecnologias digitais acabam por destacar a natureza problemática da dimensão prescritiva. De facto, a multilinearidade e a multimediatização são paradigmas que acarretam menos frustração na compreensão e julgamento das identidades pós-modernas.

(2) A hermenêutica acabou também por desempenhar um papel positivo na minha compreensão dos meios e das tecnologias digitais, uma vez que o “idealismo materialista” não constitui um limite intrínseco da hermenêutica. De acordo com Ihde (1990), os textos são uma de muitas tecnologias hermenêuticas, as quais se caracterizam por criar representações do mundo que devem ser interpretadas para poder aceder a esse mesmo mundo. Tal é o caso, por exemplo, do cockpit de uma aeronave, sobretudo quando um piloto se vê confrontado com condições meteorológicas adversas. Outros possíveis exemplos serão os termómetros, microscópios electrónicos e telescópios, e todos os meios e tecnologias digitais que transformam os sinais e os dados em algo que pode ser por nós interpretado e manipulado.

Os meios e as tecnologias digitais são também eles hermenêuticos, porque lidam sobretudo com sinais. Contudo, o simbolismo digital é muito específico, pois se baseia numa (1) dupla suspensão do significado e da referência que permite (2) uma manipulação formal e mecânica dos sinais (BACHIMONT, 2011). É aqui onde radica a sua força, visto que se tornam assim capazes de lidar com qualquer tipo de entidade no mundo. Poder-se-á por isso dizer que a hermenêutica digital se apresenta, nesse sentido, como verdadeiramente universal. Porém, é também aqui onde reside a sua fragilidade, já que os sinais digitais acabam por negligenciar todos os contextos da sua produção e recepção ou, noutras palavras, a lacuna que existe entre “mapa” e “território”.

Hoje em dia, existe uma tendência sociológica em acreditar que os meios e tecnologias digitais podem concretizar e conhecer tudo, porque são capazes de tudo manipular. A hermenêutica, sobretudo no que diz respeito à sua formulação ricoueriana, convida-nos antes a praticar a arte do distanciamento. Enquanto as pessoas se demonstram normalmente entusiasmadas com as capacidades das impressoras 3D, uma atitude hermenêutica evidencia as diversas dificuldades e limitações, tanto em termos de hardware como de software, que a impressão 3D ainda enfrenta, nos dias que correm.

Enquanto os sociólogos do digital usam os dados e os métodos digitais na sua abordagem à realidade social, a hermenêutica digital faz por destacar as várias limitações de uma tal abordagem — os dados digitais, especialmente aqueles que advêm das redes sociais, como é o caso do Twitter, não são representativos de uma população inteira; o uso de métodos digitais específicos é influenciado pelas competências técnicas, recursos financeiros, enquadramentos teoréticos, entre outros elementos possíveis. Em Romele, Severo e Furia (2020), analisámos o uso dos dados digitais, nomeadamente tweets, para estudar a opinião política. Recorremos, em particular, do modelo ricouriano da tríplice mimesis, para descrever a circularidade hermenêutica entre os dados, os métodos e o fundo conceptual:

 

Figura 1: A tríplice mimesis e o uso de tweets para estudo da opinião política

Abordagem

Prefiguração (dados)

Configuração (método)

Refiguração (forma conceptual)

(1) Preferência

Tweet como unidade (volume de tweets)

Estatística

Análise da disposição afectiva base (léxico)

Opinião das massas

(2) Disposição afectiva

Tweet como conteúdo (palavras e imagens dentro do tweet)

Análise da disposição afectiva avançada

(aprendizagem supervisionada e não supervisionada)

Opinião latente

(3) Interacção

Tweet como interacção (contexto dos tweets)

Análise de rede

Opinião activada

Fonte: Romele, Severo e Furia (2020, p. 83).

A noção de rasto digital desempenha um papel central na minha investigação. Para determinados autores, como Levinas ou Derrida, o conceito de rasto diz respeito a uma espécie de epistemologia paradoxal, ou até mesmo impossível; para Ricoeur, o uso do termo é feito como forma de escape a uma alternativa danosa. O primeiro refere-se à compreensão do rasto como marca e efeito de uma causa. O segundo defende que o rasto é significação pura, um símbolo do outro, que é, na sua essência, inacessível. Quando discute Levinas, Ricoeur declara que partilha com ele a ideia de que o rasto se distingue de todos os sinais que se organizam em sistemas, uma vez que perturba a sua ordem. No entanto, dá preferência à ideia de um outro relativo à de um outro histórico (RICOEUR, 1988, p. 125). Conforme Ricoeur, o rasto é, por isso, a matriz de uma epistemologia difícil, no entanto, ainda possível.

Quanto aos rastos digitais, seria ainda possível argumentar que esse conceito pode ser mobilizado de modo a evitar duas posições extremas. Por um lado, daqueles que acreditam que o rasto digital permite, finalmente, o preenchimento da lacuna que existe entre as Ciências Sociais e as Ciências Exactas. Por outro, daqueles que defendem cegamente a impossibilidade absoluta de reduzir o humano às suas manifestações digitais. A noção de rasto digital traz consigo o evidenciável (no sentido do “paradigma indiciário (indiciaire)” de Ginzburg) e, por isso, o carácter incerto das epistemologias digitais.[9]

(3) Ao longo das minhas investigações, propus também um empreendimento da hermenêutica digital por uma espécie de “viragem ontológica”. Por ser ontológica na sua orientação, a hermenêutica digital ocupa-se com o papel que as tecnologias digitais desempenham hoje, na nossa constituição enquanto “animais interpretativos”. A hermenêutica digital questiona também, e em que medida, nos encontramos hoje, e cada vez mais, a lidar com máquinas interpretativas. Essa foi a razão pela qual acabei por introduzir o conceito de Emaginação (emagination) no meu trabalho.

Derrida cunhou o termo différance, um erro deliberado de ortografia na palavra différence, que se pronuncia, contudo, da mesma forma. A sua intenção procurava denunciar o fonologocentrismo, isto é, a predilecção pelo discurso oral em detrimento do escrito, e também subverter essa tendência. Do mesmo modo, Emaginação procura mostrar-se como uma crítica das crenças mais comuns, segundo as quais a imaginação se encontra “nas nossas cabeças”, e de que existe uma lacuna ontológica entre os humanos e as máquinas, que se manifesta nas capacidades humanas da imaginação e da criatividade.

Tenho, em primeiro lugar, argumentado que o esquematismo não pode ser considerado “uma arte que radica nas profundezas da alma humana”. A síntese entre a receptividade e a espontaneidade acontece “fora das nossas cabeças”: nas expressões linguísticas e nas formas escritas, mas também nas técnicas incorporadas e nas tecnologias. Por outras palavras, defendo que a imaginação humana se encontra sempre disposta no exterior — e, por consequência, na matéria, na sociedade, na história e na técnica.

Em segundo lugar, tenho vindo a afirmar que a nossa imaginação produtiva se corresponde pouco com a de um “engenheiro” e muito mais com a de um “artesão”, uma vez que lida sempre com o que quer que seja “que se encontra à mão”. Poder-se-á mesmo dizer que o engenheiro-imaginativo já não é um mito. Hoje em dia, as tecnologias digitais, especialmente aquelas que se aplicam às humanidades, estão precisamente a desmitologizar as reivindicações humanas no que concerne à novidade, criatividade e à autenticidade. Considere-se o trabalho em literatura quantitativa de Franco Moretti, em analítica cultural por Lev Manovitch, e outras recentes publicações que permitem, por exemplo, quantificar a reputação e o sucesso na arte (FRAIBERGER et al., 2018).

Esses exemplos demonstram como a imaginação humana e a digital se encontram cada vez mais próximas uma da outra, o que, por sua vez, não implica que elas sejam iguais uma à outra — mais do que ontologicamente, as suas diferenças deverão ser compreendidas nos termos do grau e da emergência das suas propriedades. Recorri, mais particularmente, da distinção proposta por Hans Lenk (1995), que estipula seis níveis diferentes da interpretação para indicar que, para cada um desses níveis, se torna necessário estabelecer quais deles são, ou podem ser, implementados em tecnologias digitais, e quais deles continuam sob a prerrogativa humana. A hermenêutica digital deverá também investigar as formas emergentes de interpretação digital que pouco têm em comum com as formas com as quais o ser humano lida com o mundo.

As minhas investigações anteriores em hermenêutica digital não esgotam esse campo, e muitas outras perspectivas poderão ainda ser desenvolvidas. Nos dois últimos anos, interessei-me particularmente sobre os “imaginários tecnológicos”, que dizem respeito ao conjunto de discursos, representações visuais e crenças nas quais as tecnologias se encontram já sempre embutidas. Flichy (2007, p. 8-12) se valeu da articulação entre ideologia e utopia de Ricoeur para compreender o papel do “imaginário” na acção tecnológica. De acordo com Flichy, o “imaginário” não se opõe ao processo de inovação tecnológica. Ele suporta-o, de acordo com um esquema que vai da utopia à ideologia:

 


 

O papél do imaginário na acção técnica.02.001.jpeg

Figura 2: O papel do “imaginário” na acção técnica.

Fonte: FLICHY, 2007, p.10.[10]

 

A noção dos “imaginários” tecnológicos demonstra como as tecnologias são sempre mais que a soma total dos seus componentes materiais. Naquilo que diz especificamente respeito às tecnologias digitais, como é o caso dos algoritmos de aprendizagem maquinal e de inteligência artificial, poder-se-á dizer que a sua eficiência depende apenas em parte da sua performance. Um papel fundamental é, de facto, desempenhado pelas narrativas, pelos medos e entusiasmos que nelas se incorporam e que elas enquadram, sob uma nova perspectiva.

 

3 HERMENÊUTICA DIGITAL DO SUJEITO

O que resta deste artigo dedica-se a uma outra questão, nomeadamente à “hermenêutica digital do sujeito”. Essa perspectiva consiste fundamentalmente numa análise do impacto que as tecnologias e meios digitais possuem sobre os processos de subjectivação. Claramente, um trabalho empírico sobre esse tema iria destacar um número indefinido de variações. Contudo, tenho a impressão de que existe uma tendência comum na forma como as tecnologias e os meios digitais, como se encontram hoje configurados, operam sobre nós.

A “hermenêutica do sujeito” é uma expressão que Foucault utilizou nos seus cursos mais tardios no Collège de France, nos quais desenvolveu o seu interesse pela forma como o sujeito se subjectiviza a si mesmo. Numa entrevista que concedeu, em 1984, Foucault acaba por concordar com os seus entrevistadores, quando lhe indicam que “se manifesta agora [no seu trabalho] uma espécie de viragem: estes jogos de verdade já não se encontram preocupados com as práticas coercivas, mas antes com as práticas de auto-formação do sujeito.” (FORNET-BETANCOURT et al., 1987, p. 113). Contudo, e é isto o que torna a perspectiva de Foucault particularmente interessante, ele também sublinha que

[…] estas práticas [do sujeito] não são, porém, algo que o indivíduo inventa por si próprio. Elas assentam sobre os padrões que o sujeito encontra na sua cultura, e que são propostas, sugeridas, e impostas sobre ele pela sua cultura, a sua sociedade e o seu grupo social. (FOUCAULT apud FORNET-BETANCOURT et al., 1987, p. 122).

 

Por outras palavras, qualquer autoconstrução do sujeito é sempre já uma heteroconstrução, sendo precisamente essa articulação entre passividade e actividade o que me interessa nesse contexto e que também encontro na perspectiva de Ricoeur, mais particularmente na sua noção de identidade narrativa.[11]

De forma a desenvolver a minha posição por inteiro, proponho confrontar a identidade narrativa de Ricoeur com o habitus de Bourdieu. Irei sustentar que, mesmo tendo em conta a retórica do potencial de empoderamento da Web 2.0 que, no passado, dominou a literatura sobre esse tópico, os efeitos da subjectivação dos meios e tecnologias digitais se encontram hoje mais próximos do habitus de Bourdieu que da identidade narrativa ricoeuriana.

Ricoeur começou por desenvolver o seu conceito de identidade narrativa no final do terceiro volume de Tempo e Narrativa, lançado, no francês original, em 1985. Ricoeur (1988, p. 246) identifica a identidade narrativa enquanto ipse: “A diferença entre idem e ipse nada mais é que a diferença entre identidade substancial ou formal, e a identidade narrativa.” Em O Si Mesmo como Outro, publicado em francês cinco anos mais tarde, Ricoeur vai além de tal alternativa e apresenta a identidade narrativa como a articulação entre idem (mesmidade) e ipse (ipseidade) — no sexto estudo do livro, acaba por descrever a identidade narrativa como uma função mediadora que gera e tolera variações imaginativas (RICOEUR, 1992, p. 148).

No geral, a identidade narrativa faz referência ao facto de as nossas identidades se constituírem narrativamente. Tal quer dizer que existe uma permanência das nossas identidades, apesar de todas as mudanças que se dão, ao longo do tempo; de facto, a história é uma “concordância de discordâncias”, a qual permite manter unidos vários elementos heterogéneos, através da frágil dinâmica do enredo que opera a síntese do heterogéneo. Para além disso, a noção sugere ainda que as nossas identidades se constituem a partir das histórias que contamos e que também ouvimos, lemos ou vemos, e que eventualmente se transformam em exemplos de existência individual ou social.

Esse exemplo encontra-se fundamentalmente relacionado com a passividade que em nós reside, na presença do outro em nós mesmos, uma vez que, (1) para contar uma história, é sempre necessário torná-la potencialmente disponível para outrem, posto que (2) não possuímos qualquer tipo de monopólio sobre as nossas histórias. O outro poderá sempre contar sobre nós histórias pertinentes ou impertinentes; com efeito, o outro não é apenas o outro próximo (prochain), isto é, as pessoas que nos são chegadas, mas também o outro distante (lointain), a sociedade e a tradição (literária) na qual nos encontramos imersos. De acordo com Ricoeur (1988, p. 247), a identidade narrativa confirma que

[…] o sujeito do auto-conhecimento não é o ego egoista e narcisista […] [mas] o fruto de uma vida examinada […]. E uma vida examinada é, em grande medida, uma que foi purgada, que foi clarificada pelos efeitos catárticos das narrativas, sejam elas históricas ou ficcionais, que foram sendo convencionadas pela nossa cultura.

 

Tal como já referi, em O Si Mesmo como Outro, Ricoeur apresenta a identidade narrativa como uma mediação entre a mesmidade e a ipseidade. De modo a descrever esses dois polos, faz recurso a duas expressões “que são, simultaneamente, descritivas e emblemáticas”: o carácter e a capacidade de manter a palavra. O carácter é um conjunto de marcas distintivas que permitem a reidentificação de um indivíduo humano como sendo o mesmo. A “capacidade de manter a palavra”, diz-nos Ricoeur (1992, p. 124), parece mostrar-se como um desafio contra o tempo, uma negação da mudança, mesmo que mude de opinião ou de inclinação, “irei manter-me firme”. Coloco, por isso, como hipótese, que a mesmidade, tal como descrita por Ricoeur, se apresenta bastante próxima do modo como Bourdieu compreende o habitus. Para Ricoeur, o carácter é um conjunto de disposições duráveis que atribuímos a uma pessoa. O habitus bourdieusiano é, igualmente, um sistema de disposições duráveis e transponíveis.

Poderá, como é claro, defender-se que o carácter ricoeuriano continua pessoal, enquanto o habitus bourdieusiano se compreende como social. No entanto, não nos podemos esquecer que o habitus bourdieusiano, embora social, é também apropriado e personalizado. Por outras palavras, cada indivíduo, enquanto membro de um grupo social ou de uma classe, possui o seu estilo. Para além disso, enquanto o carácter ricoeuriano é personalizado, não deixa de ser o resultado de um processo de habituação social e contextual.

De facto, a distinção entre mesmidade e ipseidade poderá ser lida, em termos hermenêuticos, a partir da diferença que se estabelece entre interpretações “neutras” ou “mortas” e as interpretações “vivas”. As interpretações neutras ou mortas são aquelas formas de lidar com o mundo que foram reiteradas tantas vezes que acabaram por se tornar parte do nosso aparato cognitivo, cultural e gestual — no entanto, não nos podemos esquecer de que, no início, tivemos que as aprender, tal como o é o caso da aprendizagem da fala, da condução, na capacidade de preparar café ou de amar sem ser possessivo. As interpretações vivas são, pelo contrário, causadas pelo encontro com algo inesperado ou, por alguma razão, problemático, pois os nossos esquemas (ou habitus) não podem ser sobre elas aplicados. A nossa existência enquanto animais interpretativos é construída a partir da articulação entre essas duas dimensões: na maioria das vezes, mantemo-nos dentro dos limites dos nossos hábitos, das nossas interpretações neutras ou mortas; mas, de quando em vez, pelo menos enquanto horizonte de possibilidade, conseguimos levar a cabo interpretações vivas, sempre e quando nos confrontamos com uma situação problemática que não se encaixa nos nossos esquemas, porém, com a qual podemos e queremos envolver-nos.

Conforme Bourdieu, o habitus é aquilo que faz com que um grupo social ou uma classe se constituam como o grupo social ou a classe que são; isto é, aquilo que faz com que as decisões individuais e as ações que cada membro de um grupo social ou de uma classe tomam, perante algumas situações e objectos específicos, se assemelhem entre si. Nas palavras do sociólogo francês, o habitus é “uma orquestração não guiada que fornece regularidade, unidade, e sistematicidade às práticas de um determinado grupo ou classe, mesmo na ausência de qualquer organização imposta espontânea ou externamente sobre os projectos individuais.” (BOURDIEU, 1977, p. 80). É de sublinhar que, para Bourdieu, o habitus não forja apenas acções e reacções, mas também os desejos e as aspirações mais autênticas dos indivíduos.

Para Ricoeur, a mesmidade é apenas uma parte das nossas identidades — ou, em termos hermenêuticos, das nossas práticas interpretativas. De acordo com Bourdieu, a ipseidade não é mais que uma ilusão. Ele fala, por exemplo, de uma “ilusão biográfica” (1986). Segundo Bourdieu, os actores sociais nunca são capazes de dizer a verdade acerca de si mesmos, porque todas as histórias que criam e contam sobre si não são mais que uma “criação artificial de significado”. Apenas um sociólogo se mostra capaz de revelar as acções dos actores sociais, uma vez que se encontra na posse dos métodos e das práticas que são necessárias para cultivar a distância entre os actores sociais e as situações nas quais se encontram imersos.[12]

Na crítica que lança à ilusão biográfica, Bourdieu não toma Ricoeur como o seu alvo, mas, antes, a tentativa de alguns sociólogos em dar voz às intenções e às histórias dos actores sociais. Truc (2011, p. 151) refere-se à existência de uma “viragem narrativa” na sociologia francesa, mais particularmente entre os representantes da sociologia pragmática, tais como Boltanski e Thévénot[13], em grande medida influenciados pelo trabalho de Ricoeur. A sua viragem epistemológica consistiu sobretudo na recuperação dos métodos biográficos. Na sua origem, encontra-se uma certa insatisfação com a noção bourdieusiana de habitus e a abordagem à identidade pessoal que ela implica. Por exemplo, no decorrer de uma mesa redonda dedicada ao “Efeito Ricoeur sobre as ciências humanas” (L’effet Ricoeur dans ler sciences humaines), Thévénot (2006, s/n) salientou que

[…] a concepção da pessoa e da sua identidade é subdesenvolvida nas ciências sociais em favor da mesmidade. A estabilidade da identidade que os sociólogos concebem nos termos de um habitus colectivo […] impede uma consideração de um outro pólo de identidade, de ipseidade, que Ricoeur ligou com a promessa.

 

Para resumir, poder-se-á dizer que a sociologia contemporânea seguiu o caminho que vai de Bourdieu para Ricoeur e fez um esforço em articular a mesmidade com a ipseidade. Isto, como é claro, não se corresponde com a exaltação ingénua do sujeito e da sua autonomia. De facto, e tal como já referi, de uma perspectiva ricoeuriana, dar voz aos actores e às suas histórias não quer dizer que esses actores tenham o monopólio destas e outras histórias que se constroem acerca deles.

A minha hipótese, que é também a hipótese central deste artigo, sustenta que os meios e as tecnologias digitais têm, antes, seguido o sentido contrário, da ipseidade para a mesmidade. A literatura em torno do digital, nos anos 1980 e 1990, principalmente aquela que é dedicada à Web, insiste sobre o potencial de empoderamento dos indivíduos e das suas identidades. No decorrer dos anos 2000, emergiu a Web 2.0, ou a social web. Com a sua emergência, os académicos concentraram-se sobretudo nas relações entre utilizadores, a par com as consequências positivas e negativas que delas advêm. Ao longo da última década, a literatura e as metodologias de análise têm sido dominadas pelas questões levantadas pelo big data e, mais recentemente, também pelos algoritmos. A minha tese defende que os meios e tecnologias digitais se transformaram, entretanto, em “máquinas criadoras de habitus”.

 May (2019) assinalou recentemente que as imagens digitais nem sequer podem ser consideradas imagens. De um ponto de vista ontológico, as imagens digitais são muito diferentes, tanto das fotografias como dos próprios desenhos. De acordo com May (2019, p. 50),

[…] ao contrário das fotografias, nas quais a luz cénica se torna visível durante a exposição química, toda a imagética [digital] constitui-se como um processo de detecção da energia que é emitida por um ambiente, moldando-a como um conjunto de cargas eléctricas designadas de sinais, que são armazenados, calculados, geridos, e também manipulados de acordo com vários métodos estatísticos.

 

Pela minha parte, creio que essa ideia pode aplicar-se aos meios e tecnologias digitais em geral. Se a fenomenologia se mostra como a disciplina que lida com as aparências, a minha abordagem aos meios e às tecnologias digitais poderá ser designada como uma antifenomenologia. De facto, acredito que a aparência do digital, especialmente nas suas manifestações enquanto social web, não nos diz muito acerca da sua ontologia, assim como não o faz acerca dos efeitos de subjectivação que sobre nós exerce. A minha ideia sugere que, por detrás de todas as formas de apresentação online do sujeito, detrás de todas as interacções sociais, não se encontra nada mais para além das bases de dados e dos algoritmos. No digital, tal como hoje está delimitado, o que se encontra na sua superfície conta apenas na medida em que pode ser subsumido a sinais, quantificações e classificações.

Penso que existe aqui uma espécie de paradoxo que, noutro texto, designei de “personalização sem personalidade” (ROMELE; RODIGHIERO, 2020). Por um lado, os serviços online são cada vez mais personalizados. Por outro, essa personalização acaba também por eliminar as nossas personalidades. O termo “personalidade” é aqui compreendido à luz de Simondon. O filósofo francês distingue entre individuação, individualização e personalidade. Individuação e individualização são duas formas de diferenciação que são levadas a cabo pelos seres, para se distinguirem do seu meio-ambiente. A primeira diz respeito a todos os seres, enquanto a segunda concerne somente aos seres humanos. A personalidade é aquilo que dá a cada individualização uma coerência específica, um estilo, uma orientação. O big data e os algoritmos desmembram as personalidades em tendências, gostos etc. e reagrupam-nos em aglomerados. Os meios e tecnologias digitais são indiferentes às nossas acções, ou contam apenas na medida em que podem ser utilizadas para prever acções futuras, assim como aquelas de pessoas que, por alguma razão, podem ser consideradas semelhantes a nós.

Tudo isso começou numa data muito específica, 13 de abril de 2007, quando a Google adquiriu a DoubleClick, uma empresa de publicidade direccionada, por 3,1 biliões de dólares. A partir desse momento, os dados transformaram-se em negócio, na principal comodidade do capital digital, tendo assim também começado aquilo que Cheney-Lippold (2017) designou de “Guerra dos Dados” (Data Wars).

As classificações digitais são, certamente, mais complexas e meticulosas do que as classificações bourdieusianas das classes sociais. Cheney-Lippold alude oportunamente a “identidades interseccionais” e a uma “perspectiva protocategorial”. Contudo, acredito que essa versão mais suave de organizar as coisas e as pessoas não deve ser confundida como uma maior liberdade na expressão do sujeito. Em primeiro lugar, porque maximiza a indiferença mediante a forma como os indivíduos se responsabilizam por si mesmos. Em segundo lugar, porque se torna muito mais adaptativa, com o decorrer do tempo. A sua principal consequência mostra-se com a submissão dos indivíduos aos seus comportamentos presentes mais previsíveis.

De entre os vários exemplos que tenho em mente, considere-se o Tinder. Até muito recentemente, o Rating Elo desempenhou um papel importante nesta app de encontros. No mundo do xadrez, o termo é utilizado para avaliar os jogadores de acordo com o seu nível de competências. Um sistema de avaliação, designado de “pontuação de Elo”, por internos da empresa, analisava os utilizadores do Tinder, de modo facilitar correspondências mais adequadas entre os utilizadores, com uma pontuação de desejabilidade similar. Tal como caracterizado no habitus social de Bourdieu, o habitus digital do Tinder faz com que o utilizador deseje apenas o que (ou, neste caso, quem), de acordo com o seu estatuto, poderá ter acesso. De facto, o Tinder não apresenta os mesmos perfis, pela mesma ordem, às pessoas que se encontram na mesma área geográfica no mesmo momento. Os utilizadores são distribuídos de acordo com categorias e níveis, baseando-se no número de pessoas que “deslizaram para a direita” em perfis desejáveis. Este não é, contudo, o único parâmetro: os utilizadores são, por exemplo, categorizados em um nível fotográfico e provavelmente também com base na educação e na informação que é voluntariamente fornecida no perfil, com base nos conteúdos das mensagens trocadas, entre outros.[14]

 

CONCLUSÃO

Há três tipos possíveis de resposta que podem ser dadas ao problema da nossa habituação online. Em vez de desenvolver o modo como se opõem, proponho-me aqui articulá-las. A primeira consiste em dizer que tal tipo de habituação não constitui um problema. Os seres humanos criam constantemente hábitos, na sua interacção com as várias instâncias sociais e culturais onde se inserem, e os meios e tecnologias digitais são apenas extensões desses hábitos sociais e culturais, embora criados por outras vias. Poder-se-á mesmo dizer que os meios e tecnologias digitais são, nesse sentido, terapêuticos. Os seres humanos iludiram-se com eles a pensar que são “autênticos”, “atenciosos”, “criativos” e até “responsivos”. Contudo, quando um algoritmo consegue criar arte que é apreciada (e vendida) no mundo da arte, quando um outro se revela capaz de prever o sucesso de um jovem artista, não estaremos antes a descobrir que somos criaturas de hábitos, mesmo nas nossas mais originais formas de expressão?

Proponho que se compreenda esta primeira resposta à luz da suposição ricoeuriana, segundo a qual explicar mais significa compreender melhor. Por outras palavras, defendo que, de facto, os meios e tecnologias digitais fornecem, hoje, não só uma melhor oportunidade de compreender os nossos hábitos e determinações, mas também, e por consequência, a criação de uma separação mais precisa entre a mesmidade e a ipseidade ou, na terminologia hermenêutica, entre interpretações neutras e interpretações vivas.

O segundo tipo de resposta consiste em levar a cabo uma série de acções individuais ou comunitárias, desvios ou tácticas. Refiro-me aqui a práticas como a abstinência digital, hacking, entre outras. Tenho também em mente a possibilidade de um incremento da literatura em ética das virtudes da tecnologia (VALLOR, 2016). Antes do fenómeno da aceleração tecnológica — e, com toda a certeza, poder-se-á dizer que os meios e as tecnologias digitais se encontram no seu núcleo —, Rosa referiu-se à questão da “ressonância”. Se a alienação é a impossibilidade de criar uma relação com os outros, a ressonância é o seu oposto, nomeadamente o cultivo da reciprocidade e da mútua transformação que se dá entre um sujeito e o seu mundo (LIJSTER; CELIKATES; ROSA, 2019). Poderemos nós habituar-nos a um uso ressonante dos meios e tecnologias digitais?

Na minha opinião, a limitação desse segundo tipo de crítica manifesta-se no risco de criação de um elitismo. Não é por acaso que é nos segmentos mais cultos da população que o desdém pela alta tecnologia se apresenta com mais veemência. Na introdução inglesa de A Dominação Masculina, de 1998, Bourdieu (1998, p. viii, grifos meus) fala de uma “[…] mobilização estritamente política, que iria abrir para as mulheres a possibilidade de uma acção colectiva de resistência orientada para um conjunto de reformas legais e políticas.” Tal mobilização, indica logo a seguir (1998, p. vii):

[c]ontrasta tanto com a resignação que é encorajada por todas as visões essencialistas (biológicas ou psicanalíticas) da diferença entre os sexos como com uma resistência que se vê reduzida a actos individuais ou aos intermináveis “acontecimentos” discursivos que são recomendados por algumas teóricas do feminismo — estas heróicas rupturas na rotina diária, tais como as “performances paródicas” recomendadas por Judith Butler, esperam, provavelmente, demasiado dos resultados escassos e incertos que obtêm.

 

Em vez de opor, tal como Bourdieu o fez, as críticas individuais às colectivas, proponho aqui a sua articulação a partir da definição ricoeuriana da ética como uma “vida boa, com e para os outros, dentro das minhas próprias instituições.” Na minha interpretação, o cultivo de uma ética das virtudes da tecnologia não pode ser constituída como um fim em si mesma. Cada acção virtuosa deverá, por assim dizer, aspirar a tornar-se uma acção exemplar para os outros. E cada acção exemplar deverá aspirar a ser vista e apropriada pelas instituições públicas.

No contexto da Teoria Crítica, o termo “instituição” encontra-se, muitas vezes, de mão dada com os termos “ideologia”, “coerção” ou “ilusão”. Mas a história mais recente do digital, na Europa, acabou também por se caracterizar pela capacidade e pela vontade de algumas instituições em adoptar iniciativas exemplares. Tenhamos em mente, por exemplo, as iniciativas legais levadas a cabo por Costeja Gonzáles e Max Schrems, os quais trouxeram até nós a Regra do Direito ao Esquecimento, do mesmo modo que a declaração pelo Tribunal de Justiça da União Europeia pela invalidação da Estrutura Safe Harbor. Estou ciente de que a ideia de instituições justas, tanto no contexto digital como na sua perspectiva geral, merece uma discussão mais aprofundada. Aqui, a título de conclusão, limito-me a dizer que o objectivo de um tal tipo de justiça consiste numa melhoria das condições de possibilidade legais, sociais e tecnológicas, para a prática de um ethos de distanciamento dos nossos habitus digitais.

 

DIGITAL HERMENEUTICS AS HERMENEUTICS OF THE SELF

 

ABSTRACT: In this article, the author deals with the status of the self and personal identity in the digital milieu. In the first section, he presents his general approach to digital media and technologies, which he has called “digital hermeneutics.” He distinguishes between three perspectives in digital hermeneutics, namely the deconstructive, epistemological, and ontological approaches. In the second part, he focuses on digital hermeneutics as hermeneutics of the self. He compares Paul Ricoeur’s narrative identity to Pierre Bourdieu’s habitus. His first thesis is that the habitus can be seen as a concept of subjectivation that neglects an important part of the subject. Narrative identity offers, in this sense, a remedy to such negligence. His second thesis is that today’s digital media and technologies are closer to the Bourdieusian habitus than to the Ricoeurian narrative identity. In other words, digital machines and technologies are “habitus machines” both in their structure and in their effects.

 

Keywords: Digital Hermeneutics. Self. Emagination. Habitus. Narrative Identity.

 

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Recebido: 08/01/2021

Aceito: 12/3/2021

 



[1] Pós-doutorado no Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), São José dos Campos, SP – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2844-3439. E-mail: cristianoccruz@yahoo.com.br.

[2] Manteremos “projeto”, em lugar de “design”, por conta de ser essa a preferência majoritária para a tradução do termo nos manuais de engenharia (Pahl et al. (2005); Dym e Little (2010)). Como se está procurando refletir a tecnologia aqui também em diálogo com a engenharia, não parece razoável adotar uma terminologia que, além de anglicista, não encontra referente efetivo na prática que almeja analisar.

[3] A rigor, a democratização defendida por Feenberg (1999) é um processo que pressupõe e que implica, da parte de quem luta por ela, aumento de conscientização, empoderamento ou emancipação, na maneira como esses termos são entendidos por Paulo Freire (1987 [1970]; FREIRE; SHOR, 1986). Freire (1983 [1969]), aliás, defende que a assistência técnica seja oportunidade de se praticar educação popular (ainda que sua compreensão de tecnologia pareça aproximar-se, como não poderia ser muito diferente nessa época, de uma perspectiva instrumental).

[4] Como se apresentará com mais detalhes na terceira parte deste artigo, o projeto técnico é constituído por várias etapas que costumam ser seguidas de forma iterativa e não linear: análise e formulação do problema; projeto conceitual; escolha da solução conceitual que será implementada; implementação dessa solução; projeto detalhado para se construir essa solução.

[5] A rigor, segundo o modo que se busca ou se assume como ideal na engenharia, atualmente, ao longo dessas etapas, devem ser consideradas, adicionalmente, questões relativas também à fabricação da solução construída (quando se trata de algo a ser produzido em massa), à manutenção desta e, no caso de objetos materiais, à destinação adequada tanto dos rejeitos do processo projetivo/produtivo quanto do artefato produzido, quando do descarte deste pelo usuário/consumidor (PAHL et al., 2005; DYM; LITTLE, 2010).

[6] Aqui e em todas as demais citações apresentadas ao longo do texto, as traduções são de nossa autoria.

[7] Que, na constituição de um novo estilo de projeto, os valores estéticos desempenhem um papel estruturante, isso é o que é ilustrado por estudos empíricos como os de Ball (2005) e Schummer et al. (2009).

[8] Feenberg (2019b, cap. 3) aproxima-se dessa mesma compreensão, ao tomar o exemplo da invenção do FAX e da calculadora, pelos japoneses, vinculando-os ao valor ou ideal de miniaturização presente na cultura nipônica. Contudo, ele não avança ou sistematiza essa reflexão, parecendo não ter notado ou dado importância a tal achado.

 

[9] Para Ginzburg (assim como para Ricoeur), o paradigma indiciário é característico das Ciências Sociais e das Ciências Humanas. O uso abundante dos rastos digitais nas ciências duras mostra como o paradigma indiciário vai, hoje, muito para além dos limites das Ciências Sociais e Humanas. Quanto às ciências centradas sobre os dados, veja-se, em particular, LEONELLI (2016).

[10] A descrição que Flichy fornece para o seu esquema é a seguinte: “A função subversiva da utopia, aquela que permite o alcance do seu espectro total de possibilidades a ser exploradas, poderá ser introduzida no início do processo […] Os projectos aqui concebidos são bastantes diversos, muitas vezes opostos, e algumas vezes simplesmente justapostos […] Na segunda fase, uma alternativa realista aos objectos técnicos já existentes é construída à medida que os modelos que são lapidados na fase precedente se transformam em projectos completos. […] No final desta fase, a reflexão utópica pode ser desenvolvida em dois sentidos. Ou é incorporada num projecto experimental, ou se transforma em fantasia pura. […] Quando os utopistas se transformam em experimentalistas são confrontados não apenas com a técnica mas também com outros actores sociais que dela possuem uma visão diferente. […] Necessitam, neste sentido, de construir um objecto limítrofe, um compromisso que pode ser utilizado de modo a associar múltiplos parceiros, de forma suficientemente folgada, para que todos possam beneficiar, mas também o suficientemente sólida para que o dispositivo funcione. […] A fase experimental não diz apenas respeito ao período tempo que é necessário para desenvolver a técnica e os seus usos, mas também à fase na qual o discurso utópico é reconstruído de forma a fundamentar as suas reivindicações a partir dos exemplos dados pelas experiências que foram realizadas. […] A viragem operada pelo mito irá, eventualmente, transformar a utopia numa ideologia. Nesta nova fase, vários aspectos da realidade serão prontamente ocultados de modo a promover a nova técnica. Refiro-me, neste caso, à ideologia mascarada. A ideologia técnica irá permitir a possibilidade de legitimar o novo sistema técnico. À medida que ganha rigidez, as alternativas serão postas de parte, resultando naquilo que os economistas designam de encerramento tecnológico. Neste estádio, introduzo o termo legitimação da ideologia. Por fim, e tendo em conta que a função positiva da ideologia consiste em mobilizar os actores que estão aqui envolvidos — tanto os produtores da tecnologia como os seus utilizadores —, designo o estádio final como uma mobilização da ideologia.” (FLICHY, 2007, p. 10).

[11] Por razões de extensão, não me é possível desenvolver esse ponto integralmente, no entanto, defendo que as noções de subjectividade de Ricoeur e Foucault necessitam uma da outra. A perspectiva de Ricoeur necessita da de Foucault, na medida em que lhe oferece uma percepção — histórica e socialmente, mas também técnica e tecnologicamente — mais bem situada da constituição do sujeito. No sentido inverso, defendo que a perspectiva de Foucault necessita da de Ricoeur, na medida em que a antropologia filosófica do segundo sugere que deveremos continuar à procura de uma certa autonomia no sujeito, para além de todas as suas heterodeterminações — sobre as similaridades entre Ricoeur e Foucault, veja-se Barthélémy (2010) e Leibovici (2014). Para uma leitura foucaultiana da antropologia filosófica de Ricoeur, isto é, uma leitura nos termos de um “renovado interesse sobre o cuidado com o sujeito”, veja-se Michel (2014, p. 101-122).

[12] No último curso que leccionou no Collège de France, Bourdieu reconhece, contudo, que no campo sociológico, o distanciamento não é fácil. Por essa razão, acaba por defender uma prática muito específica de “reflexividade”.

[13] Sobre Bourdieu e Ricoeur, veja-se ainda Michel (2014, p. 1-29) e Corcuff (2005).

[14] Um outro exemplo muito interessante (e também muito eficaz) é o do algoritmo do Spotify. Curiosamente, o Spotify lançou recentemente uma taste breakers playlist, cujo propósito consiste em criar um “alargamento dos horizontes” do seu utilizador. Poder-se-á afirmar que essa playlist representa já por si uma tentativa de domesticar até aquilo que é inesperado.