O INFINITO E A VIDA EM HEGEL: apontamentos a partir do terceiro capítulo da Fenomenologia do Espírito

 

Vinícius dos Santos[1]

 

Resumo: Um dos maiores percalços para a compreensão da lógica dialética de Hegel encontra-se na relação peculiar que ela estabelece entre finito e infinito. Mais precisamente, na tese da imanência dinâmica do finito no infinito, que permite ao pensamento hegeliano sustentar e compreender as contradições inerentes ao real, sem dissolvê-las ou fixá-las, por exemplo, ao modo kantiano. Tal problemática aparece de modo mais explícito, por exemplo, ao final do terceiro capítulo da Fenomenologia do Espírito, e demarca uma das inflexões mais importantes da obra, justamente no momento em que a consciência se depara com a infinitude e, por conseguinte, com a Vida enquanto movimento do próprio Espírito. É esse agenciamento, que auxilia a desvendar algumas das linhas de força da dialética de Hegel, que se irá reconstruir neste artigo.

Palavras-chave: Dialética. Infinito. Vida.

 

INTRODUÇÃO

A relação peculiar que a lógica dialética estabelece entre finito e infinito representa um desafio evidente à compreensão da profundidade do pensamento de Hegel. No entanto, sua importância é notável. Com efeito, é a tese da imanência dinâmica do finito no infinito, o índice que permite ao pensamento hegeliano sustentar e compreender as contradições inerentes ao real, sem dissolvê-las ou fixá-las nos limites do entendimento (Verstand). Isto é, assegurando a legitimidade da especulação própria à Razão (Vernunft) e que se encontraria rebaixada, por exemplo, pela crítica kantiana.

Um dos lances decisivos dessa abordagem ocorre no final do terceiro capítulo da Fenomenologia do Espírito, demarcando uma das inflexões mais importantes daquela obra. Muito brevemente, trata-se do momento em que a consciência, visando a apreender o “universal incondicionado” (Unbedingt-Allgemeine) das coisas – objeto que se revelou inadequado aos limites da percepção –, ganha a forma do entendimento (Verstand). Diante de si, põe-se a realidade como um “jogo de forças” (Spiel der Kräfte). O objeto (Gegenstand) da consciência revela-se, então, como mundo suprassensível, constituído pelas leis naturais de causalidade, as quais, conforme estabelecido pela física newtoniana, regeriam os fenômenos observáveis, ou seja, tudo aquilo que se revela à consciência imediatamente. Ao tentar adequar seu saber ao objeto com que agora se defronta, porém, a consciência, lançada em uma espiral de inversões dialéticas provocadas por essa nova experiência, se depara com a aparentemente inatingível noção de infinito, em estreita correlação à de vida enquanto sua figura concreta – vida que será também, mas não apenas biológica, porquanto a natureza é exteriorização finita de uma vida em sentido mais elevado, infinito, a vida do Espírito.

Em suma, no momento em que a consciência leva ao limite a forma do entendimento, emerge a infinitude da vida do Espírito, cujo desvelar aponta para a consciência-de-si e, na sequência, para a racionalidade dialética do real, a qual autoriza Hegel a definir o Absoluto como vir-a-ser, mediação (HEGEL, 2007, p. 36; §21). É esse movimento primordial, capaz de revelar algumas das nervuras da dialética de Hegel, que iremos reconstruir, na sequência.

 

I

Em linhas gerais, a passagem pela percepção revelou à consciência fenomenológica que o universal que ela perseguia era, ele mesmo, multiplicidade de diferentes universais, subsistência das múltiplas “matérias” independentes que passam à unidade da coisa, ao mesmo tempo que dela se desdobram. Agora, a consciência fará a experiência desse movimento de unidade e diferença através de uma nova forma, o entendimento, o qual, capaz de elevar-se (ainda que parcialmente, como veremos) além dos dados sensíveis e de suas aporias, terá como objeto privilegiado aquilo que Hegel (2007, p. 110, §136) denomina força (Kraft).

Embora possa ser mais diretamente ligada à concepção de Newton, a figura da força ilustra outros princípios de conexão causal aventados ao longo da tradição filosófica, desde a enteléquia aristotélica até, sobretudo, a noção de lei em Leibniz (NEUSER, 2017, p. 226ss). Com a noção de força, Hegel intenta explicar como uma coisa pode exercer influência à distância (ou de modo não imediatamente sensível) sobre outra, resolvendo, assim, a ilusão do “e também” (auch) que caracteriza a unidade do múltiplo que era objeto na percepção.

Como novo polo essencial da verdade da consciência, ou seja, em seu conceito, a força é nada mais é que seu desdobrar-se – sua exteriorização (Entäusserung) e seu recalque (Zurückgedrängte). De fato, não há força apartada de sua aparição, de sua fenomenalização. Para que esse movimento aconteça, porém, a força reclama um ser-outro no qual possa se exercer, isto é, ela precisa que algo “solicite” sua manifestação. Instar uma força é o mesmo que exercê-la em sentido contrário. Ocorre que esse solicitante, para poder atuar sobre o solicitado, tem de compartilhar com ele as mesmas características. Numa palavra, também tem de ser uma força. “Resulta daí que o conceito de força se torna efetivo através da duplicação em duas forças.” (HEGEL, 2007, p. 114, §141).

Encontramo-nos, assim, diante de um jogo de forças (Spiel der Kräfte), uma interação de conexões essenciais, no qual cada uma das forças só é pela outra, só se define por sua antagonista e vice-versa. Cada força é em-si, mas existe apenas pelo contato ou toque com a outra, quer dizer, em sua manifestação mediada pelo ser-outro. Não é possível, de fato, determinar onde termina o exercício de uma força e se inicia o de sua antagonista. Para a consciência, essa indistinção, essa fluidez, mostra que “[...] a verdade da força se reduz ao pensamento dessa força, a seu conceito; porque a força só é mesmo efetiva em sua exteriorização, que coincide com sua suprassunção: quando se ‘realiza’ deixa de ser ‘real’.” (MENESES, 2011, p. 57).

Por conseguinte, o objeto da consciência não é a força real, mas, em verdade, o pensamento ou o entendimento (Vestand) que ela tem desse jogo:

Este objeto é a unidade deste jogo, unidade tal, porém, que na realidade não existe, porque na realidade este jogo é apenas um fluxo instável de momentos indistintos, um cambaleio no qual substância e movimento se confundem e se dissolvem um no outro. A unidade, a essência desse jogo, então, existe apenas no próprio entendimento. Ela é pensamento, ela existe enquanto conceito. (UTZ, 2014, p. 94).

 

                O conceito, então, é a essência (Wesen) da exteriorização das forças, ou de sua manifestação fenomênica. Se classificamos tal manifestação como aparência (Schein), ou como o que se mostra imediatamente à consciência, como Erscheinung, o conceito é a essência da aparência, o interior, ou o “[...] fundo verdadeiro das coisas” (HEGEL, 2007, p. 115, §142-143).

            Em outras palavras, a essência das coisas não é mais algo material, sensível – era esse o limite da percepção –, mas surge como objeto puramente conceitual. Embora mediada pela aparência sensível (a exteriorização do jogo das forças), a consciência descobre nelas um “além”, um “mundo suprassensível”, no qual agora deposita a verdade da realidade objetiva: “Nesse Verdadeiro Interior, como no Absoluto-Universal – que expurgado da oposição entre universal e singular veio-a-ser para o entendimento – agora, pela primeira vez, descerra-se sobre o mundo sensível como o mundo aparente, um mundo suprassensível [übersinnlichen Welt] como o verdadeiro.” (HEGEL, 2007, p. 116, §144).

Inicialmente, esse interior é um enigmático vazio (leer), “identidade abstrata”, “apenas o nada do fenômeno” (HEGEL, 2007, p. 117, §146). Nesse sentido, importa assinalar que a filosofia hegeliana, desde o início, se volta contra um conceito de presença do objeto (do Gegenstand, estar-diante) como plenitude, como o visível que se oferece à representação “[...] destituída de determinidade objetiva” (HEGEL, 2011, p. 44), tal como em Kant. Assim, o fenômeno é revelador da essência – o ser é aparência (Schein), o fenômeno não “esconde” algo atrás de si que não possa aparecer (HEGEL, 2017, p. 37ss) – mas tampouco a esgota – o esse não é percipi, todavia, é reflexão dentro de si mesmo, devir.

Logo, indica Hegel, porque o suprassensível “[...] é o sensível e o percebido postos tais como são em verdade”, e “[...] a verdade do sensível e do percebido é serem fenômeno”, resta que o suprassensível é “o fenômeno do fenômeno”, ou o mundo sensível “[...] como suprassumido ou posto em verdade como interior” (HEGEL, 2007, p. 118, §147). Destarte, o esvaziamento inicial do suprassensível é a duplicação do esvaziamento (como ausência de determinação objetiva, isto é, fora da representação) do sensível, do qual o primeiro é a essência.

Nesse momento, porém, para provar a verdade de sua nova condição, a consciência segue adiante, resguardando a “[...] diferença como universal (allgemeiner Unterschied), ou como uma diferença tal que as múltiplas oposições ficaram a ela reduzidas.” (HEGEL, 2007, p. 119, §148). Com isso, Hegel quer mostrar que a consciência busca um “simples” no próprio jogo das forças, um elemento que acolha as diferenças (as diferentes forças do mundo físico/natural) em uma unidade que não se confunde com elas. Em suma, a consciência visa à lei (Gesetzt) do mundo suprassensível.

A fim de salvaguardar a unidade da força como medida da sua verdade, o intelecto está disposto a arcar com o peso deste movimento: a força permanece uma em si e “a diferença está, portanto, apenas no pensamento”. Mas ao pensamento cumpre recompor a unidade de algum modo, a partir das diferenças que se manifestaram na exteriorização da força, e é então que ele chega à formulação da lei. Se na sua exteriorização a força elétrica se mostrou dividida em eletricidade positiva e negativa, o intelecto unifica esta diferença de novo na lei; se a força da gravidade se torna patente na sua exteriorização cindindo-se no espaço percorrido pelo grave e no tempo gasto a percorrê-lo, o intelecto reunifica espaço e tempo fazendo-os conter-se reciprocamente no âmbito da lei como a raiz e o quadrado. (CHIEREGHIN, 1994, p. 77-78).

 

De fato, a lei, enquanto essência da força, apresenta-se como elemento indispensável na ciência moderna. Em contraste com a antiga acepção da atividade científica, a nova ciência busca explicar o real, a partir de princípios capazes de subsumir a variedade do empírico em conceituações cada vez mais universais e abstratas, isto é, por “[...] uma multiplicidade de leis empíricas mediante as quais visa tornar inteligível o devir do mundo fenomênico.” (CHIEREGHIN, 1994, p. 78). Ou, para tomar de empréstimo as palavras de Paulo Meneses, a ciência agora trabalha com “[...] imagens puras e inteligíveis, não condicionadas pelas condições sensíveis, já que define noções por outras noções, e estabelece relações suscetíveis de formulação matemática.” (MENESES, 2006, p. 135).

 

II

Agora, a lei é o universal do fenômeno, é o lado em-si. E, na medida em que o fenômeno, por ser particular, contém nele mesmo a diferença que o distingue de outro fenômeno, a negação está na lei como “diferença universal”, conforme apontado anteriormente. Tal diferença, assinala Hegel, exprime-se na lei “[...] como imagem constante do fenômeno instável. O mundo suprassensível é, portanto, um tranquilo reino das leis.” (HEGEL, 2007, p. 119, §149).

Estamos diante do reino do entendimento propriamente dito, aquele que Kant estabeleceu como terreno da verdade e da ciência possível para todo ser racional. A consciência na forma de entendimento descobriu a existência de leis que presidem à aparição sensível dos objetos do mundo e, agora, ensaia reuni-las em uma lei fundamental (HEGEL, 2007, p. 120, §150).

O movimento dialético, no entanto, não pode se deter nesse ponto. Ocorre que, embora lei e fenômeno recebam a mesma denominação (como no caso da “lei da gravitação universal” e do fenômeno da “gravitação universal”), a princípio, eles seriam distintos. Contudo, se o entendimento transforma tal diferença em “diferença absoluta”, diferença de conteúdo, a própria lei é repelida pela coisa da qual é lei, isto é, pelo fenômeno enquanto exteriorização da força explicada pela lei.

Dito de outro modo, o entendimento explica ou esclarece (versteht) seu objeto, através da lei. Ao explicar, com efeito, a lei diz como os fenômenos observáveis (as forças exteriorizadas, seu movimento) ocorrem, mas, porque pressupõe o fato que pretende descrever, não é capaz de indicar seu porquê último – não, ao menos, sem recair em uma tautologia vazia, na qual os resultados da análise já estão contidos na própria lei. Assim, por exemplo, a física atesta que partículas de carga elétrica oposta se atraem, porque a lei do eletromagnetismo prescreve que partículas com cargas contrapostas se atraem. Entretanto, por exemplo, por que elas se atraem quando são avessas e não o contrário? E por que há apenas duas e não três ou mais forças?

De fato, Hegel atesta que a ciência moderna não se ocupa mais com a compreensão conceitual dos fenômenos que analisa, todavia, como se evidenciaria mais tarde, com a física de partículas, limita-se no máximo a postular interpretações sobre seus resultados:[2]

Nesse movimento tautológico, o entendimento, como resulta, persiste na unidade tranquila de seu objeto, e o movimento só recai no entendimento, não no objeto: é um explicar que não somente nada explica, como também é tão claro que ao fazer tenção de dizer algo diferente do que já foi dito, antes nada diz, mas apenas repete o mesmo. Nada de novo resulta na Coisa mesma através desse movimento que, aliás, só vem à consideração como movimento do entendimento. (HEGEL, 2007, p. 124, §155).

 

Essa tautologia demarca exatamente o alcance, logo, a limitação do entendimento, sua incapacidade “[...] em compreender com base na própria medida da verdade (a unidade abstrata), o que deveria constituir seu objeto privilegiado, ou seja, o movimento, constituinte essencial da força.” (CHIEREGHIN, 1994, p. 80). Por exemplo, ao tentar exprimir o movimento, o entendimento divide-o em espaço e tempo, representando um como independente ou indiferente ao outro (ao menos, no âmbito da física newtoniana). Desse modo, o movimento é explicado pela reunificação desses momentos, cuja necessidade, no entanto, jamais é justificada.

Essa limitação, porém, não obstante desague na supracitada tautologia, não resulta em pura nulidade. “O conteúdo é nulo, mas resta o próprio movimento do entendimento. E este produz a ‘novidade’ que falta no lado objetivo do explicar: a ‘mudança/troca absoluta’.” (UTZ, 2014, p. 101). A troca entre força e lei, a relação entre fundamento e fundamentado, entre unidade e diferença aparece como resultado da ação do próprio entendimento, posto que, na coisa, ambos são idênticos. Percebe-se aqui que o dilema inicial do jogo de forças reaparece. Antes, a diferença entre a força solicitante e a solicitada – que, afinal, não eram diferentes e, consequentemente, se suprassumiam. Agora, “[...] as mudanças e permutas que antes estavam fora do interior – só no fenômeno – penetraram no próprio suprassensível.” (HEGEL, 2007, p. 124, §155).

O que desponta, portanto, é que o processo de distinguir e suprimir a distinção (que, de fato, não existe) resulta em uma inversão (Verkehrung):

A lei era em geral o-que-permanece-igual consigo, assim como suas diferenças. Agora o que é posto, é que lei e diferenças são, ambas, o contrário delas mesmas: o igual a si, antes se repele de si; e o desigual a si, antes se põe como igual a si. De fato, só com essa determinação a diferença é interior, ou diferença em-si-mesma, enquanto o igual é desigual a si, e o desigual é igual a si. Esse segundo mundo suprassensível é dessa maneira um mundo invertido; e na verdade, enquanto um lado já estava presente no primeiro mundo suprassensível, é o inverso desse primeiro. Com isso, o interior está completo como fenômeno. (HEGEL, 2007, p. 125-126, §157).

 

Nesse “novo mundo”, os valores ganhariam sinal contrário, as qualidades se transmudariam em seu inverso: o que era doce no mundo fenomênico viraria amargo, o positivo viraria negativo, o crime poderia ter uma boa intenção interna, e a pena, que no fenômeno representa prejuízo ao réu, no mundo invertido seria sua redenção.

No entanto, não estamos diante de duas realidades hipostasiadas, em que uma é fenômeno da outra. O amargo na boca (fenômeno) não é doce na realidade da coisa, nem o crime externo é internamente provido de boa intenção. Dizer isso seria duplicar o mundo da percepção sensível, tornando ainda um deles apenas acessível à imaginação. Na verdade, essa duplicação ocorre no mesmo mundo percebido. A diferença de que se trata, por conseguinte, não é uma diferença externa, uma oposição (Gegensatz), mas interior (innerer): “[...] o repelir-se fora de si mesmo do homônimo, e o ser-igual do desigual enquanto desigual. Há que se pensar a mudança pura, ou a oposição em si mesma: a contradição [Widerspruch].” (HEGEL, 2007, p. 128, §160).

Na diferença interior, esclarece Hegel – este é o cerne da contradição que mobiliza a dialética –, o oposto não é apenas um dos lados, não é um essente, “[...] mas sim o oposto de um oposto, ou seja, nele está contido imediatamente o Outro.” (HEGEL, 2007, p. 128, §160). Quer dizer, o mundo suprassensível, mundo invertido, conserva em si mesmo o outro mundo ultrapassado, tendo-o dentro de si: “[...] é para si o invertido, isto é, o invertido de si mesmo; é ele mesmo e seu oposto numa unidade, só assim ele é a diferença como interior, ou como diferença em si mesmo, ou como infinitude [Unendlichkeit].” (HEGEL, 2007, p. 128, §160) O infinito, afinal, é o local onde algo pode ser, ao mesmo tempo, o contrário de si mesmo – a máxima contradição do pensamento científico, restrito ao entendimento, mas locus privilegiado da especulação racional, isto é, da própria dialética enquanto movimento da Razão.

 

III

Chegamos aqui ao momento capital. Como decorreu do agenciamento acima, o entendimento é a faculdade por meio da qual a consciência pode abstrair o sensível – este é seu valor preponderante, na pedagogia da experiência fenomenológica –, mas sua própria constituição aponta para além de si mesmo. Ao deparar-se com a noção de Infinito, o entendimento atinge seu limite.

Como já destacado, Hegel entende que, no infinito, uma realidade pode ser o contrário de si mesma, ter em si o Outro dela mesma. “O Infinito é igual a si mesmo, já que suas diferenças são tautológicas: portanto, pode referir-se a si mesmo. Porém, este relacionar-se a si mesmo é já uma cisão: a diferença consigo mesmo é imanente e constitutiva do Infinito.” (MENESES, 2011, p. 63-64).

Ocorre que, para a consciência presa às determinações do entendimento (basta lembrar as antinomias kantianas), esse movimento de cisão e reconciliação imanentes é inapreensível. Nesse ponto, restam duas opções: ou estacionamos nessa fronteira, declarando todo gesto de sublevação da mesma uma temeridade vazia; ou apostamos no fato de que essa fronteira é demarcada na experiência que a Razão dela faz e, portanto, se trataria de uma demarcação fluida. Ao passo que Hegel se encaminha nessa última direção, a Fenomenologia indicará como a forma do entendimento – e a própria tese de uma separação definitiva entre sujeito e objeto – será suprassumida (aufgehoben) em um estágio dialético qualitativamente superior, lá para onde a crítica kantiana, e seu incontornável “temor de errar” (HEGEL, 2007, p. 72, §74), não se atrevia a avançar: a consciência-de-si e, na sequência, o Espírito:

A infinitude, ou essa inquietação absoluta do puro mover-se-a-si-mesmo, [faz] que tudo o que é determinado de qualquer modo – por exemplo, como ser – seja antes o contrário dessa determinidade. A infinitude já era, sem dúvida, a alma de tudo o que houve até aqui; mas foi no interior que primeiro ela mesma brotou livremente. O fenômeno – ou o jogo de forças - já a apresentava; mas foi só no explicar que surgiu, livre, pela primeira vez. Quando a infinitude – como aquilo que ela é – finalmente é o objeto para a consciência, então a consciência é consciência-de-si. (HEGEL, 2007, p. 130, §163).

 

Com efeito, ao tentar explicar seu objeto, o entendimento é impelido para além de si. Ele divide, analisa e a seguir reunifica seu objeto, mas não é capaz de compreender a necessidade desse movimento – necessidade que é sua mesma, interna, pois ele mesmo é esse movimento de dividir para reunificar:

Ao cabo de todas as tentativas de agarrar o objeto, a consciência apercebe-se assim não ter lidado mais do que consigo mesma: o objeto sobre o qual queria fixar o olhar reenvia-lhe agora, como num espelho, unicamente a sua imagem. Ela experimenta, assim, que naquilo que ela punha como o além incognoscível, de fato “não há nada que ver, a não ser que nós mesmos nos dirijamos lá atrás”. (CHIEREGHIN, 1994, p. 83-84).

 

Em suma, na saga fenomenológica, a descoberta do infinito não representa uma barreira, mas permite à consciência superar o plano do entendimento e, definitivamente, abandonar a tese da independência de um objeto plenamente presente à representação, adentrando “no dia espiritual da presença”, o novo patamar dialético da autoconsciência, no qual ela se descobrirá como Espírito – Espírito vivo, Razão Absoluta, “Eu que é Nós, Nós que é Eu” (HEGEL, 2007, p. 142, §177).

Contudo, nesse momento, uma óbvia questão se impõe: se a apreensão do infinito ultrapassa a capacidade analítica, explicativa, do próprio entendimento, ou da consciência que até aqui protagonizou a Fenomenologia, como é possível tratar do infinito sem cair nas aporias que, por exemplo, a Crítica kantiana já tão bem denunciara, ou das quais mesmo o idealismo subjetivo da Doutrina-da-ciência fichtiana não conseguiria se desvencilhar (LÉBRUN, 2006, p. 309ss)? Dito de outro modo: como superar as oposições reais com as quais o entendimento se depara (a incompatível contemporaneidade entre ser e não ser) e nele parece encontrar seu obstáculo derradeiro?

Para responder a essa dificuldade, é necessário estabelecer uma precisão conceitua, a qual, embora operante no âmbito da Fenomenologia, só será devidamente explicitada mais tarde, na Ciência da lógica e na Enciclopédia. Trata-se da ideia de um infinito afirmativo, positivo (Affirmative-Unendliche), próprio à Razão e sua lógica, que se contrapõe ao “mau infinito” (Schlechte-Unendliche) do entendimento puro.

 

IV

Em grande medida, dar cabo desse dilema é o que perfaz o programa geral do idealismo alemão, Hegel em particular. É possível dar conta das oposições reais, fixadas pelo entendimento, cuja nervura finalmente se resolve na aparente incompatibilidade de finito e infinito? Ou seja: é possível a apreensão do Absoluto?

De fato, na demarcação imposta ao conhecimento pelo entendimento, finito e infinito se põem como termos imediatamente antagônicos, externamente relacionados. Nesse âmbito, o infinito é a imediata negação do finito: “Algo se torna um Outro, mas o Outro é, ele mesmo, um Algo; portanto torna-se igualmente um Outro, e assim por diante, até ao infinito” (HEGEL, 2012, p. 189, §93), afirmará Hegel, na Enciclopédia. A lógica empregada aqui é relativamente simples, porquanto o infinito aparece apenas como o dever-ser (sollen) do finito, seu limite exterior, o “ir além abstrato” da coisa finita. Nesse caso, Hegel sustenta que, a despeito de sua determinação recíproca, finito e infinito são tomados como extremos autossubsistentes, mutuamente limitantes – o limite do finito é o infinito e vice-versa, ou seja, como absolutamente opostos. Eis o que se trata de rejeitar:

Para Hegel, todo o destino do idealismo se joga em torno desta interpretação da oposição real: a oposição real é óbvia ou, ao contrário, repousa em um preconceito até aqui despercebido? Tal “abstração pela qual a Reflexão isola seus opostos” não constituía um problema nem na Critique de la raison pure [Crítica da razão pura] nem na Doctrine de la science [Doutrina da ciência] . E é por isso que Kant tomava a idealidade transcendental como a única solução possível das Antinomias: se o mundo fosse dado como uma coisa-em-si, o Finito e o Infinito, determinações fixas, seriam incompatíveis, de modo que seria preciso escolher que o mundo fosse um ou outro... Não haveria, pensa Hegel, uma solução menos custosa que consistiria apenas em não mais pressupor a imutabilidade dessas próprias determinações, afinal de contas, finitas? (LÉBRUN, 2006, p. 3214).

 

Na verdade, seguindo a concepção kantiana, tal como a interpreta Hegel, nós nos veríamos forçados a invocar a esdrúxula tese de que o finito restringiria o infinito, ou que o próprio infinito seria finitizado, como uma coisa que se opõe rigidamente ao finito. Eis o que seria, para o filósofo de Jena, o dilema do kantismo, e mesmo de Fichte: o atolamento na lógica da finitude, a absolutização do finito. “[Que] o entendimento seja o absoluto do espírito humano, disso parece que Kant nunca teve a menor dúvida. Porém o entendimento é a finitude insuperável absolutamente fixada da razão humana.” (HEGEL, 2011, p. 47).[3]

Assim, a prosseguir por essa via, cairíamos no que Hegel classifica como o falso dilema do progresso infinito: falso porque, nele, a contradição não é refletida, suprassumida em seu próprio movimento, “[...] mas sempre é enunciada apenas como presente.” (HEGEL, 2016, p. 146).

Ou seja, aqui, o infinito é apenas o outro do finito, enquanto este é apenas o que não é infinito. Aparece, então, uma “tediosa alternância”, eterna repetição do “assim por diante...”

Um limite é posto, [e] é ultrapassado: depois outra vez um limite, e assim por diante, até o infinito. Assim, aqui não temos outra coisa que uma alternância superficial, que sempre permanece no finito. Quando se acredita livrar-se do finito através do caminhar para essa infinitude, essa libertação é de fato libertação da fuga. Mas quem foge ainda não está livre, pois no fugir está ainda condicionado por aquilo de que foge. Diz-se, além disso, que o infinito não se pode atingir; o que é totalmente correto, mas só pelo motivo de que nele se põe a determinação de ser algo abstratamente negativo. (HEGEL, 2012, p. 190, §94).

 

A esse “mau infinito” do entendimento, Hegel contrapõe a infinitude afirmativa, concreta (mediada), que é o próprio movimento de autocompreensão da Razão sobre si mesma, devir, Espírito refletido para-si:

Como, portanto, o infinito, de fato, está presente, [ele] é, [por um lado], ser o processo em que ele se rebaixa, ser apenas uma de suas determinações, ser contraposto ao finito e, com isso, ser ele mesmo, apenas um dos finitos e, [por outro lado], ele é suprassumir essa sua diferença de si mesmo em direção à afirmação de si e ele é ser, através dessa mediação, como infinito verdadeiro [wahrhaft Unendliches]. (HEGEL, 2016, p. 153-154).

 

O “suprassumir sua diferença interna em direção a si” é negação, mas negação determinada, negatividade que esvanece a plenitude opaca do mundo da representação e, por consequência, do próprio ser. Este é o cerne da dinâmica própria da dialética de Hegel (HEGEL, 2007, p. 76, §79), da Razão. A negação determinada é negação-que-conserva-superando, ou que supera-conservando, negação que não aniquila o outro, mas o suprassume em outro patamar, que perfaz uma espiral, na qual cada termo é outro-do-outro. Conforme Lébrun, negação determinada “[...] quer dizer que a coisa não cedeu simplesmente o lugar a uma outra – o que a tornaria ausente na própria maneira em que, há pouco, ela estava presente e tornaria crível a imagem de uma dança em que se troca de par.” (LÉBRUN, 2006, p. 300).

Destarte, é o trabalho do negativo – o caráter dinâmico, temporal, histórico da Razão – que assegura o processo infinito de determinação recíproca de finito e infinito, a permanente “passagem” (Übergang) mediada de um no outro, ou a imanência dessa mútua relação, na qual finito e infinito como termos contrapostos (o “mau infinito”) são apenas momentos evanescentes (verschwindende) – isto é, uma oposição que tende à suprassunção (Aufhebung). Em outras palavras, o verdadeiro infinito não é um “ácido unilateral”, o qual apenas dissolve seu oposto, uma exportação que nos obrigaria constantemente a “trocar de par” na dança dos conceitos, um pêndulo terno entre polos opostos e mutuamente excludentes – eis aí, aliás, o resultado do ceticismo encerrado nele mesmo, sublinha Hegel, no antes aludido §79 da Fenomenologia. Se finito e infinito são um tornar-se outro do outro, agora “[...] não se pensa mais o Outro como designando o exterior, o ‘fora’. Tornar-se o seu Outro não é abandonar seu lugar, mas ‘reunir-se consigo mesmo’ (mit sich selbst zusammengehen); perder sua limitação é totalizar-se.” (LÉBRUN, 2006, p. 301).

Assim, cada lado suprassume o outro, na medida em que nega sua própria negação – ou em que é esse mesmo movimento de afirmar-se pela negação e sua suprassunção. É afirmação refletida frente à negação abstrata, é ser que retorna a si. Conforme a célebre imagem que bem ilustra a lógica dialética hegeliana: “A imagem do progresso para o infinito é a linha direta [essa é a imagem kantiana – V.S.[4]] [...]; como infinitude verdadeira, recurvada dentro de si, sua imagem se torna o círculo, a linha que atingiu a si, que está concluída e inteiramente presente, sem ponto de início e sem fim.” (HEGEL, 2016, p. 154).

Numa palavra, o verdadeiro infinito, o infinito da Razão, é o próprio Absoluto enquanto mediação, devir. Nesse sentido, é o próprio objeto da filosofia enquanto desvelamento do dinamismo da própria Razão. Bem entendido, portanto, esse Absoluto não pode ser um “ponto de partida” imediatamente presente à intuição, ao modo de Schelling (no qual se chegaria com um “tiro de pistola”, tal como já denunciado no prefácio da Fenomenologia), mas é a experiência do próprio processo de reflexão da Razão sobre ela mesma e, por conseguinte, de experiência de sua autocompreensão formativa. “No nome infinito, abre-se para o ânimo e para o espírito sua luz, pois, nisso, ele não é apenas abstratamente junto de si, mas se eleva a si mesmo, à luz do seu pensar, da sua universalidade, da sua liberdade.” (HEGEL, 2016, p. 143).

 

V

À luz do exposto precedentemente, pode-se afirmar o seguinte: pensar o infinito como movimento mediador do Espírito sobre si mesmo, no qual ser e ser-outro se intermedeiam em uma unidade que não se esgota na fixidez de sua representação imediata, todavia, aponta para um além que, no entanto, não é transcendente à própria relação dos termos, é definir o infinito como vida (Leben).

De fato, a abertura referida na última citação da seção anterior, isto é, a infinitude afirmativa, não se diferencia da Vida enquanto tal, mas ele próprio, enquanto movimento, é vida. Não vida em seu sentido mais imediato, natureza (esta é uma parte da vida, sua exteriorização ainda não mediada), mas Vida do Espírito, vida consciente de si enquanto infinita.[5]

Embora possa soar eventualmente estranha, tal aproximação não é alheia ao texto hegeliano. Já em sua juventude, em Frankfurt – conquanto em uma visão fortemente influenciada pela pan-teologia de Espinosa, convém lembrar (NUNES, 2007, p. 224-225) –, o filósofo afirmava que “[...] a conexão entre o finito e o infinito naturalmente é um mistério sagrado, pois esta conexão é vida e, portanto, mistério da vida.” (HEGEL, 1978, p. 345, grifos nossos).

No Fragmento de sistema, de 1800, Hegel reforça sua convicção, adiantando algumas linhas de força de seu sistema maduro, mas já sem a roupagem mística anteriormente destacada. Ali, a multiplicidade da vida aparece como uma oposição. Uma parte dela é considerada “[...] apenas enquanto está em relação, como aquilo que tem de ser apenas como unificação”; já a outra parte, também ela uma “multiplicidade infinita”, é considerada “[...] apenas enquanto está em oposição, como aquilo que tem de ser unicamente pela separação daquela outra parte.” (HEGEL, 1978, p. 399). Isso faz com que a primeira parte se determine, também ela, como algo cujo ser devém somente pela separação desta última parte:

A primeira parte se chama organização, indivíduo. Fica claro por isso que esta vida, cuja multiplicidade é considerada apenas como relação, cujo ser é esta relação, pode, por um lado, ser compreendida como [algo] parcialmente diferente em si mesmo, como mera multiplicidade [...]. Por outro lado, essa vida deve ser pensada como algo que tem a possibilidade de entrar em relação com aquilo que ela exclui de si mesma; isto é, a perda da individualidade. (HEGEL, 1978, p. 399).

 

Conforme o jovem Hegel, o conceito de individualidade compreende em si mesmo a oposição diante de uma multiplicidade infinita, tanto quanto a união com a mesma. Um ser humano é uma vida individual

[...] só na medida em que é um com todos os elementos e com toda a infinitude das vidas individuais que existem fora dele, e é apenas na medida em que a totalidade da vida está dividida, sendo ele uma parte e todo resto a outra parte; é apenas na medida em que não é uma parte, que nada há que esteja separado dele. (HEGEL, 1978, p. 399-400).

 

Nesse sentido, a vida se pressupõe como indivisa, sendo os seres viventes exteriorizações da vida (Äusserungen des Lebens), manifestações objetivas da mesma. Logo, a multiplicidade da vida se põe como infinita, precisamente porque suas exteriorizações são postas e recolhidas (suprassumidas) em sua unidade mediada. Com efeito, tais manifestações, quando cristalizadas pela reflexão (do Espírito), se fixam ao modo de pontos estáveis e subsistentes, isto é, ganham a forma de indivíduos.

Portanto, fora de nós, além de nossa experiência limitada, finita, de nosso Erleben[6], a Vida é infinita: infinita multiplicidade, infinita oposição e infinita relação. Frisa Hegel que, “[...] como multiplicidade, [a vida] é uma infinita variedade de organizações de indivíduos; como unidade, [ela é] um todo organizado, separado e unificado: a natureza.” (HEGEL, 1978, p. 400). No pôr da vida, a reflexão nela introduz seu conceito de relação e separação entre o particular e o universal, entre o limitado e o ilimitado. Ambos os extremos dessa relação se encontram dentro da natureza – que, nela mesma, não é vida, mas uma vida fixada pela reflexão, momento evanescente:

Disso decorre que a vida contempla a natureza, a vida pensante, “sente” ainda (para dizer de algum modo) essa contradição, este antagonismo único que segue subsistindo entre si mesma e a vida infinita; ou, em outras palavras, a razão reconhece que ainda é unilateral neste pôr, neste contemplar. Então, essa vida pensante eleva o vivente, aquilo que é livre de corrupção, extraindo-o da configuração, do mortal, do passageiro, daquilo que, em seu infinito antagonismo, combate-se a si mesmo. Não eleva uma unidade, uma relação pensada, mas uma vida infinita, omnivivente e toda poderosa, e a chama Deus. (HEGEL, 1978, p. 400). [7]

 

Prossegue Hegel que a vida infinita pode ser denominada “Espírito” (Geist), em oposição à multiplicidade abstrata, posto que o espírito “[...] é a união concordante, vivente, do múltiplo, em oposição ao múltiplo enquanto a [própria] configuração.” (HEGEL, 1978, p. 401). Ou seja, delineia-se aqui que o Espírito é multiplicidade não separada de si mesma, não oposta a si, é a “[...] essência absoluta real que a si mesma se sustém” (HEGEL, 2007, p. 305, §440), como mais tarde seria definido na Fenomenologia. Ou, parafraseando Daskalaki, é a própria razão enquanto consciência da substância absoluta, de si mesma como infinitude (DASKALAKI, 2012).

Contudo, ao mesmo tempo que a vida é unificação, relação, ela é também oposição a si, que carrega em si seu ser-outro como negação determinada. Com efeito, em todo vivente, a morte se põe também como multiplicidade vivente, que pode pôr-se como um todo. “Este pôr-se como um todo é, ao mesmo tempo, uma parte: isto é, algo para o qual existe o morto e, do mesmo modo, algo morto para outros.” (HEGEL, 1978, p. 402).[8] A morte, aqui, não se opõe à vida genérica como outro irredutível, mas é condição do movimento da própria vida. A negação determinada do vivente individual sustenta a infinitude do viver universal enquanto sentido da própria “passagem de um no outro”.[9]

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Enfim, é nessa linha, como movimento infinito, que a vida surgirá também no âmbito do capítulo derradeiro da seção “consciência” da Fenomenologia:

Esta infinitude simples – ou o conceito absoluto – deve-se chamar a essência simples da vida, a alma do mundo, o sangue universal, que onipresente não é perturbado nem interrompido por nenhuma diferença, mas que antes é todas as diferenças como também seu Ser-suprassumido; assim, pulsa em si sem mover-se, treme em si sem inquietar-se. (HEGEL, 2007, p. 129, §162).

 

Importa sublinhar: Vida, nesse âmbito, não se resume a sua concepção biológica, a seu ser imediato, logo, limitado, incapaz de revelar por si só o movimento de mudança constante que é imanente à vida (DASKALAKI, 2012, p. 53-54). Antes, ela define o caráter ilimitado da própria dinâmica de autorreflexão do Espírito, expressão da infinitude do movimento de suprassunção da “passagem” do finito (o existente particular, o qual aparece determinado, evanescente) no infinito. Ou seja, é apreensão do movimento, da transformação, do vir-a-ser. A vida é a

[...] infinitude, como o Ser-suprassumido de todas as diferenças, [...] a independência mesma em que se dissolvem as diferenças do movimento [...]. Porém, nesse meio simples e universal as diferenças estão também como diferenças; pois essa universal fluidez só possui sua natureza negativa enquanto é um suprassumir das mesmas; mas não pode suprassumir as diferenças se essas não têm um subsistir. [...]. No meio fluido universal, que é um tranquilo desdobrar-se-em-leque das figuras, a vida vem-a-ser, por isso mesmo, o movimento das figuras, isto é, a vida como processo. A fluidez universal simples é o Em-si; a diferença das figuras é o Outro. Porém, devido a tal diferença, essa mesma fluidez vem-a-ser o Outro; pois ela agora é para a diferença, que é em-si-e-para-si-mesma, e portanto o movimento infinito pelo qual aquele meio tranquilo é consumido; isto é, a vida como ser-vivo. Mas, por esse motivo, essa inversão é por sua vez a “inversidadeem si mesma. O que é consumido é a essência; a individualidade, que às custas do universal se mantém e se dá o sentimento de sua unidade consigo mesma, suprassume assim diretamente sua oposição com o outro, por meio da qual é para-si. A unidade consigo mesma, que ela se outorga, é justamente a fluidez das diferenças ou a dissolução universal. (HEGEL, 2007, p. 137-139, §169-171).

 

Por isso, mais uma vez, a morte não é a negação fixa da vida enquanto tal, mas é negação de um vivente determinado, finito e, portanto, recolhe-se à unidade da vida infinita, da vida do Espírito infinito.[10]

Eis aí, portanto, o núcleo, a nervura da dialética de Hegel. Esse núcleo voltará a se manifestar mais tarde, na relação entre indivíduo e gênero, consciência-de-si e Espírito, por exemplo. Afinal, em termos metodológicos, é o conceito de infinito, mais precisamente, a tese específica da imanência do infinito no finito, explicitada na Fenomenologia através da noção de vida, a chave por meio da qual a dialética pode sustentar a perspectiva totalizante da verdade como vir-a-ser do Espírito, isto é, assegurar a legitimidade da ambição da Razão em apreender o real. Em outras palavras, porque é movimento dotado de negatividade e suprassunção, logo, infinito, vivo, o Absoluto, para Hegel, pode ser sujeito, Razão imanente ao real (HEGEL, 2007, p. 36, §20) e seu sentido derradeiro.

 

INFINITE AND LIFE IN HEGEL: notes from the third chapter of the Phenomenology of Spirit

 

Abstract: One of the biggest setbacks for the understanding of Hegel's dialectical logic is the peculiar relationship it establishes between finite and infinite. More precisely, the thesis of the dynamic immanence of the finite in the infinite, which allows Hegelian thought to sustain and understand the inherent of the real, not dissolving nor fixing them, for example, in the Kantian way. This problem appears more explicitly, for instance, at the end of the third chapter of the Phenomenology of the Spirit, and marks one of the most important inflections of the work, precisely at the moment when the conscience is faced with infinity and, therefore, with Life as a movement of the Spirit itself. It is this relationship, which helps to unveil some of the strength lines of Hegel's dialectic, that will be reconstructed in this article.

 

Key-words: Dialectics. Life. Infinite.

 

REFERÊNCIAS

BARBARAS, R. Introduction à une phénoménologie de la vie. Paris: Vrin, 2008.

CHIEREGHIN, F. Introdução à leitura de Fenomenologia do espírito de Hegel. Trad. Abílio Queirós. Lisboa: Edições 70, 1998.

DASKALAKI, M. Vernunft als Bewusstsein der absoluten Substanz – Zur Darstellung des Vernunftbegriffs in Hegels Phänomenologie des Geistes. Berlin: Akademie, 2012.

HEGEL, G. W. F. Escritos de juventud. Edición, introducción y notas José M. Ripalda. Trad. Zoltan Szankay e José M. Ripalda. Mexico D.F.: Fondo de Cultura Económica, 1978 (Werke 1 – Frühe Schriften. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1986).

HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do espírito. Trad. Paulo Meneses, com a colaboração de Karl-Heinz Efken e José Nogueira Machado. 4. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2007a (Werke 3 – Phänomenologie des Geistes. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1989).

HEGEL, G. W. F. Fé e saber. Trad. Oliver Tolle. São Paulo: Hedra, 2007b.

HEGEL, G. W. F. Enciclopédia das ciências filosóficas em compêndio (1830). V. 1 – A ciência da lógica. 3. ed. Trad. Paulo Meneses. São Paulo: Loyola, 2012.

HEGEL, G. W. F. Ciência da lógica – 1. A doutrina do Ser. Trad. Christian Iber et al. Petrópolis: Vozes, 2016 (Werke 5 – Wissenschaft der Logik I. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1986).

HEGEL, G. W. F. Ciência da lógica – 2. A doutrina da Essência. Trad. Christian Iber e Federico Orsini. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2017.

JARCZYK, G. Au confluent de la mort – l’universel et le singulier dans la philosophie de Hegel. Postface de Pierre-Jean Labarrière. Paris: Ellipses, 2002.

KANT, I. Crítica da Razão Pura. Trad. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Introdução e notas Alexandre Fradique Morujão. 5. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.

LÉBRUN, G. A paciência do conceito – ensaio sobre o discurso hegeliano. Trad. Silvio Rosa Filho. São Paulo: Editora Unesp, 2006.

MENESES, P. Abordagens hegelianas. Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2006.

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NEUSER, W. Natur und Begriff – zur Theoriekonstitution und Begriffsgeschichte von Newton bis Hegel. 2. Auf. Wiesbaden, Springer VS, 2017.

NUNES, R. G. Hegel (in)finito: a re (di) ferencialidade da contradição absoluta. In: CHAGAS, E. F.; UTZ, K.; OLIVEIRA, J. W. J. Comemoração aos 200 anos da “Fenomenologia do Espírito” de Hegel. Fortaleza: UFC, 2007. p. 219-240.

ROSENBLUM, B.; KUTTNER, F. O enigma quântico – o encontro da física com a consciência. Trad. George Schlesinger. Rev. Técnica Alexandre Cherman. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.

SAFATLE, V. O amor é mais frio que a morte: negatividade, infinitude e indeterminação na teoria hegeliana do desejo. Kriterion, p. 95-125, 2008.

UTZ, K. Força e entendimento; fenômeno e mundo suprassensível. In: VIEIRA, L. A.; SILVA, M. M. (org.). Interpretações da Fenomenologia do Espírito de Hegel. São Paulo: Loyola, 2014. p. 87-110.

 

Recebido: 30/8/2020

Aceito: 18/11/2020


 

 



[1] Professor adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, BA – Brasil. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0752-8663. E-mail: vsantos1985@gmail.com.

[2] Eis aí, por exemplo, um dos maiores enigmas da física quântica: o emaranhamento das partículas subatômicas e o eventual papel da consciência no colapso da função de onda. Decifrá-los seria passar do estágio da “simples” descrição dos dados que essa disciplina faz, com maestria ímpar, para a interpretação ou compreensão dos mesmos – logo, de uma parcela significativa do “real”. A esse respeito, ver, por exemplo: ROSENBLUM; KUTTNER, 2017.

[3] “Se os opostos podem só se excluir (contraditórios) ou se neutralizar excluindo seus efeitos (oposição real) , é impossível reencontrar o Incondicionado partindo da possibilidade da consciência d e si, visto que esta permanece necessariamente como u m dos opostos. O Absoluto só poderia ser então construído pela eliminação de um dos termos; porém, já que a estrutura da oposição é o motor da gênese, como e com qual direito abandoná-la no meio do caminho? Para que a gênese não permaneça programática, é preciso, portanto, mostrar que há uma jurisdição tal, que o próprio jogo da oposição pode dar lugar a uma síntese. Não uma oposição que possa ser desatada ou reabsorvida – o que ainda seria permanecer em um tipo de solução bastante próxima da imposta pela Antitética kantiana. O idealismo transcendental, segundo Kant, era o único meio de transformar em simples mal-entendido – em ‘oposição dialética’ – o fato de que a Tese e a Antítese pareciam ser ambas, muito corretamente, sustentáveis - a única saída que permitisse evitar esse escândalo da Razão. A idealização hegeliana da oposição responde a uma estratégia inteiramente outra. Ela parte da questão: há verdadeiramente escândalo no fato de que opostos parecem não se excluir? E, no lugar de se esforçar para mostrar, a todo preço, que essa oposição é ilusória, não vale mais a pena reexaminar como funciona a oposição? É necessário que os opostos sejam absolutamente separados e invariáveis a priori? Essa confiança depositada na estabilidade das determinações finitas não seria a verdadeira Aparência?” (LÉBRUN, 2006, p. 315-316).

[4] “De uma linha reta diz-se, justificadamente, que se pode prolongar até ao infinito e aqui será vã subtileza distinguir entre o infinito e o progresso ulterior indeterminável (progressus in indefinitum). Quando se diz: Prolongai uma linha, embora seja mais correto acrescentar in indefinitum do que in infinitum, porque o primeiro significa apenas: prolongai-a até onde quiserdes e o segundo: não devereis nunca terminar o seu prolongamento (o que não é aqui o que se pretende), a primeira expressão está perfeitamente certa se se trata apenas de poder, pois que podereis sempre prolongá-la até ao infinito. E o mesmo se passa em todos os casos em que se fala tão-só da progressão, ou seja, da passagem progressiva da condição para o condicionado; este progresso possível continua até ao infinito na série dos fenômenos.” (KANT, 2001, B539).

[5] Como esclarece Safatle: “[...] a vida é fundamentalmente compreendida a partir da tensão entre a universalidade da substância que define o vivente e a particularidade do indivíduo ou da multiplicidade diferenciadora das formas viventes (espécies). Esta tensão entre unidade e indivíduo produz uma forma de oposição que Hegel havia chamado, em Diferença sobre os sistemas de Fichte e Schelling, de ‘o fator da vida’ (Faktor des Lebens), para descrever o motor de um movimento no interior da vida que visa a superação de tal oposição. Por tender em direção a esta superação, a vida pode aparecer como primeira figura da infinitude.” (SAFATLE, 2008, p. 107).

[6] Valemo-nos aqui da dupla acepção que a língua alemã permite à noção do Viver: em sua intransitividade, leben, e do viver transitivo, erleben, este enquanto experiência particular de uma consciência. É essa dupla acepção, aliás, o ponto de apoio através do qual Renaud propõe uma fenomenologia da vida (BARBARAS, 2008). Indicamos esse fato porque, conquanto em registros distintos, a proposta do filósofo francês, neste ponto, pode ser útil também para compreender a intuição hegeliana. Ademais, seria cabível questionar em que medida o pensamento de Barbaras, sobretudo em suas dimensões ditas cosmológicas e metafísicas, não é tributário do jovem Hegel.

[7] Não por acaso, para Hegel, a consagração dessa elevação da vida finita à vida infinita é a religião. Essa elevação, cumpre sublinhar para nosso propósito, é diferente do que se poderia considerar como uma “elevação do finito ao infinito”, pois esses opostos são “produtos da mera reflexão e, enquanto tais, sua separação é absoluta”. Em termos mais consoantes aos dos escritos maduros, a começar pela Fenomenologia, Hegel já anuncia a tese da limitação do entendimento (reflexão, aqui), que apenas fixaria os opostos e se esgotaria na compreensão do mau infinito, em comparação à atividade do Espírito, a Razão, que atestaria a imanência do infinito no finito enquanto exteriorização do primeiro.

[8] “Essa [condição] do vivente de ser uma parte é superada na religião. Nela, a vida limitada se eleva ao infinito, e apenas por isso, porque o finito em si é vida, carrega consigo a possibilidade de elevar-se à vida infinita. Por isso mesmo, a filosofia tem que terminar com a religião.” (HEGEL, 1978, p. 402).

[9] Infelizmente, não é possível, no escopo deste artigo, explorar os desdobramentos “existenciais” dessa posição de Hegel. Isto é, analisá-la do ponto de vista do indivíduo que suporta em si e sobre si a concentração e o transbordamento da vida. A esse respeito, sugerimos JARCZYK, 2002.

[10] “A morte – se assim quisermos chamar essa inefetividade – é a coisa mais terrível; e suster o que está morto requer a força máxima. A beleza sem-força detesta o entendimento porque lhe cobra o que não tem condições de cumprir. Porém não é a vida que se atemoriza ante a morte e se conserva intacta da devastação, mas é a vida que suporta a morte e nela se conserva, que é a vida do espírito. O espírito só alcança sua verdade à medida que se encontra a si mesmo no dilaceramento absoluto. Ele não é essa potência como o positivo que se afasta do negativo – como ao dizer de alguma coisa que é nula ou falsa, liquidamos com ela e passamos a outro assunto. Ao contrário, o espírito só é essa potência enquanto encara diretamente o negativo e se demora junto dele. Esse demorar-se é o poder mágico que converte o negativo em ser.” (HEGEL, 2007, p. 44, §32).