A ETNOMATEMÁTICA ENTRE O CONHECIMENTO SUBALTERNO E O EPISTEMICÍDIO: O CASO DE MOÇAMBIQUE

 

Laura António Nhaueleque[1]

 

Resumo: A pesquisa aqui apresentada resulta de uma reflexão sobre as epistemologias subalternas, sobretudo de matrizes africanas, tomando como exemplo a etnomatemática. O discurso filosófico sobre o “epistemicídio” dos saberes locais e tradicionais, por parte do paradigma científico dominante, pode ser aplicado a vários âmbitos disciplinares, entre os quais a matemática, nas suas duas vertentes principais, a aritmética e a geometria, que representa um caso paradigmático e significativo. Teorizada pela primeira vez pelo brasileiro D’Ambrosio e o holandês-moçambicano Paulus Gerdes, a etnomatemática vive hoje uma contradição: ela foi aceite em termos epistemológicos, mas, especialmente em África, teve muitos problemas em se afirmar, entrando com dificuldades nos curricula oficiais. A pesquisa mostra como se deu tal processo, em Moçambique, um país símbolo do caminho da etnomatemática africana, em consideração da contribuição de Gerdes e da educação progressiva na primeira fase da sua independência.

 

Palavras-chave: Epistemologias. Saberes locais. África. Curricula escolares.

 

INTRODUÇÃO

A pesquisa aqui apresentada visa a refletir sobre as perspetivas abertas com as análises de vários autores contemporâneos em volta do “epistemicídio” levado a cabo pelo paradigma científico dominante, em detrimento de outras visões da ciência e do saber, de tipo local ou tradicional.

“Epistemicídio” é um conceito cunhado por Sousa Santos e Meneses (2009), que – sem negar a importância da ciência moderna, tal como se desenvolveu, ao longo dos dois últimos séculos – enfatiza a necessidade de sair do monopólio epistemológico desta em relação a outras formas de saber. Estas, as quais foram “canibalizadas” por parte do modelo de saber ocidental, assentam em três eixos fundamentais de um mundo moderno cristão, no colonialismo (político, econômico e cultural) e no capitalismo, sobretudo na sua forma de neoliberalismo (SANTOS; MENESES, 2009). Tal abordagem eliminou, ao longo do tempo, visões do mundo, conhecimentos, teorias típicas da “outra parte do mundo” que se opunham ao modelo dominante. Em consequência, mesmo nos curricula escolares e académicos, se deu igualmente esse epistemicídio, principalmente nos países do hemisfério Sul, os quais tiveram de transmitir, nas suas instituições de ensino, o modelo ocidental, negando os saberes locais (PARASKEVA, 2016). O domínio da matemática faz parte – como se verá mais abaixo – das disciplinas e das teorias “alternativas” excluídas, quer do debate epistemológico geral, quer do ensino escolar e universitário.

Segundo Asante e boa parte dos afrocentristas, por exemplo, a matemática teve as suas origens no Egito antigo, mas o pensamento ocidental resolveu estabelecer o seu nascimento na cultura grega, negligenciando por completo as suas supostas bases africanas (ASANTE, 2000). Na altura do colonialismo – e depois, do neocolonialismo, no século XX –, o paradigma científico acompanhou a expansão territorial e política dos países ocidentais e, portanto, se impôs a todos os outros em nome da sua força acima de tudo militar, assim como tecnológica e industrial.

Foi assim que muitos saberes foram esquecidos, absorvidos ou eliminados pelo paradigma dominante, pelo qual a racionalidade “pura” e a lógica aristotélica e cartesiana triunfaram, em detrimento de outras modalidades de ver e ler o mundo. Esse processo ocorreu primeiro dentro do próprio Ocidente, eliminando os saberes concorrentes ao de tipo utilitarista e “técnico”, que se impôs com a revolução industrial, e, depois, a partir da experiência colonial, em relação às civilizações não ocidentais, sobretudo a africana (IGBOIN, 2011; SIBANI, 2018).

No próprio Ocidente, principalmente a partir dos anos 70 do século passado, começou-se a refletir sobre a validade absoluta e universal desse paradigma dominante. Assim, começaram a emergir posicionamentos capazes de propor novas e diferentes epistemologias, as quais visam, por um lado, denunciar o epistemicídio e, por outro, descobrir as chamadas “epistemologias do Sul” (SANTOS; MENESES, 2010).

Tais epistemologias resultam de um longo processo de afunilamento e parcialização do saber, iniciado com a institucionalização aristotélica do pensamento filosófico e científico e culminado com o processo de racionalização utilitarista imposto pelo capitalismo, no decorrer dos séculos XVIII-XIX (SANTOS, 2008).

Foi nesse contexto de recuperação epistemológica dos saberes esquecidos, locais e tradicionais que alguns autores, tais como a americana Marcia Ascher e o brasileiro Ubiratan D’Ambrosio, começaram a formular uma nova abordagem teórico-prática à matemática: a etnomatemática (D’AMBROSIO, 2009).

Marcia Ascher, por exemplo, iniciou a ter dúvidas sobre o “absolutismo” das leis matemáticas, ao estudar a cultura dos Incas, juntamente com o marido antropólogo (ASCHER; ASCHER, 1997), formulando – como desenvolvimento dessa sua reflexão – um curriculum específico de etnomatemática, num college americano, e, por fim, mostrando que os conceitos que se achavam universais e incontestáveis, tais como o de número, gráficos, jogos matemáticos etc., carregavam consigo uma influência cultural assinalável, a qual foi omitida ou mal-entendida durante séculos (ASCHER, 2010).

Porém, quem mais influenciou o espaço lusófono, inclusive o africano, foi D’Ambrosio, objeto específico deste estudo, que levou vários anos para ver aceite a sua nova abordagem sobre a etnomatemática. Até que, finalmente, nos anos oitenta, o paradigma por ele proposto foi cientificamente reconhecido e validado pela comunidade internacional, passando a ser um dos ramos importantes do estudo da matemática.

A etnomatemática, quer na versão de Ascher, quer na de D’Ambrosio, tem como elemento fulcral a visão de que a matemática resulta influenciada por fatores culturais, os quais determinam a sua diferenciação epistemológica, teórica e prática em relação à matemática de matriz ocidental.

Segundo Ascher, a etnomatemática tem de se identificar com as concepções matemáticas dos “povos tradicionais” (ASCHER, 2010), ao passo que D’Ambrosio a define como a identificação de “[...] técnicas ou mesmo habilidades e práticas utilizadas por distintos grupos culturais na sua busca de explicar, de conhecer, de entender, o mundo que os cerca, a realidades a eles sensível e de manejar essa realidade em seu benefício e no benefício de seu grupo.” (D'AMBROSIO, 1998, p. 6). Eles, assim como outros autores que foram pioneiros da etnomatemática, deixam claro que essa abordagem nada tem a ver com a etnociência formulada nos Estados Unidos, nos anos de 1960, por Stutervant, que visava a classificar os elementos da natureza com base na sua proveniência étnica (FERREIRA THOMAS, s.d.).

Neste trabalho, pretende-se mostrar como a etnomatemática de D’Ambrosio e dos seus seguidores representa um dos pontos fulcrais para desconstruir o paradigma “clássico” da ciência (nomeadamente da matemática), propondo uma nova e mais aberta epistemologia, nesse âmbito disciplinar aparentemente fechado, devido a seu suposto universalismo (e, portanto, impermeável às influências culturais e sociais).

Para fazer isso, o trabalho está subdividido em quatro partes, mais as conclusões: na primeira, procura-se fornecer um breve enquadramento geral relativamente às bases da ciência moderna, assim como ela se formou, principalmente ao longo do século XVII. Na segunda, apresenta-se uma série de críticas a esse paradigma, com base em autores tais quais Boaventura de Sousa Santos, Escobar, Spivak, Bebiano, entre outros. Na terceira parte, faz-se um enquadramento geral sobre a etnomatemática, suas origens e bases essenciais. E, na última, analisa-se o caso da aplicação da etnomatemática num país africano, especificamente Moçambique, terminando com as conclusões e as respetivas referências bibliográficas.

 

1 BREVE ENQUADRAMENTO GERAL DAS BASES DA CIÊNCIA MODERNA

O paradigma moderno da ciência, alvo de inúmeras críticas a partir aproximadamente dos anos sessenta do século passado, teve o seu período de gestação no século XVII, dito “das revoluções científicas”. Como tem sido afirmado, “[t]he new science that took form during the seventeenth century may be distinguished by both external and internal criteria from the science and the philosophical study or contemplation of nature of the antecedent periods.” (COHEN, 1980, p. 4).[2] Externamente, formou-se, nessa altura, uma comunidade de cientistas com aproximadamente os mesmos interesses e metodologias de conhecimento, finalizados a uma leitura matemática das leis da natureza, controladas e confirmadas (ou desmentidas) mediante a experiência e a observação.

A circulação e a partilha das ideias foi um dos aspetos centrais dessa vertente “externa” da revolução científica: como instrumento privilegiado, escolheu-se a revista científica. A Royal Society de Londres, assim como outras organizações, em Leipzig, resolveram fundar periódicos de renome internacional para favorecer a troca de experiências e o mútuo conhecimento (COHEN, 1980). Internamente, os novos cientistas-filósofos, tais como Bacon e Descartes, concordaram em identificar o objetivo da ciência num fim prático. A ciência devia encontrar uma aplicação concreta na agricultura, navegação, medicina, transportes, desenvolvendo primeiro aqueles conhecimentos teóricos e, a seguir, aplicados, a fim de que o homem pudesse ter um domínio sobre a natureza cada vez mais completo e total (MONTUSCHI, 2010).

Tal conceção desaguou numa dicotomia epistemológica, a qual acabou penalizando todas aquelas conceções que, pelo contrário, visavam a manter uma visão holística do homem, do mundo e da natureza. Corpo-alma, saúde-doença, objetivo/subjetivo, racional-emotivo são apenas algumas dessas configurações dicotômicas causadas pelo sucesso da ciência moderna, cujos marcos fundamentais foram atomismo, mecanicismo e reducionismo (DAHLBERG, 2013). Tal reducionismo acabou impondo uma seleção da atividade de pesquisa a um restrito âmbito de fenômenos, segmentando o saber em disciplinas separadas que deviam explicá-los (LETI, 2000).

Mas o que provavelmente caracteriza mais a revolução científica é o método. Bacon, Galilei, Newton e outros introduziram um método de conhecimento novo, experimental e baseado na indução. Ele era quantitativo e matemático: todas as ciências aplicadas, a partir da física e astronomia, as quais foram as primeiras a serem estudadas com o novo método, deviam basear-se na medição quantitativa da natureza, que apenas a matemática podia garantir. Assim, qualquer pessoa capaz de controlar os procedimentos e as regras dessa ciência podia levar a cabo experiências e realizar novos descobrimentos, uma vez que o método é universal e responde a uma lógica própria, interna e rigorosa, a qual nada tem a ver com os mistérios religiosos ou típicos de seitas de iniciados.

Quais foram as novas regras que o método indutivo e matemático da revolução do século XVII trouxeram? Em extrema síntese, é possível recordar as seguintes:

- a ideia de que as relações entre os fatos do mundo físico estejam determinadas por nexos de causa-efeito e que essas relações possam ser expressadas em termos matemáticos. Essa foi a diferença principal com as quatro causas teorizadas por Aristóteles (BELO, 2015), que escondiam um conceito qualitativo da natureza, ao passo que os modernos demonstraram que as diferenciações as quais atravessam o mundo natural são de tipo quantitativo e mensuráveis;

- a matematização do mundo físico e o conceito de lei, unido à valência intersubjetiva da linguagem matemática. Daqui a “democratização” do saber científico, devido ao código universal típico da matemática;

- o papel da experiência e do método experimental. A esse propósito, vale a pena recordar como Galilei, graças às suas experiências empíricas, passou da ideia – errada – de que, no movimento uniformemente acelerado, as velocidades fossem proporcionais aos espaços, à de que elas se relacionam com os tempos (BUSSOTTI, 2014, p. 6).

Apesar das grandes dificuldades na afirmação desse novo paradigma, principalmente quanto aos dogmas religiosos, ele fortificou-se e se tornou a principal modalidade de conhecimento científico, suplantando todas as outras. Quando, entre o final do século XVIII e o início do século XIX, um grupo de filósofos começou a refletir sobre as possibilidades de conhecimento científico do social, as bases epistemológicas foram buscadas no paradigma causalista, organicista e quantitativo de tipo físico-matemático e biológico, positivo. O positivismo, com os vários pensadores, como Comte, Spencer, Durkheim e outros, configurou o primeiro conhecimento do social como “física social” (BENOIT, 2011), inserindo a nova ciência do social como sexta disciplina das ciências da natureza, conforme fez Comte na sua obra fundamental, escrita em 1830 (COMTE, 1978).

A despeito das imensas dificuldades e das evidentes contradições que tiveram de enfrentar, os positivistas não recuaram, mas apenas refinaram esse modelo epistemológico, acompanhado por uma metodologia quantitativa. Foram sobretudo filósofos e sociólogos alemães, tais como Dilthey, Weber, Simmel, que tentaram criticar tal abordagem do social, especialmete propondo uma ciência “compreensiva” (Verstehen), a qual ultrapassasse as contradições positivistas, voltando a considerar a complexidade do social e seus limites intrínsecos de conhecimento (WEBER, 2000).

Entretanto, as ciências sociais continuaram a configurar-se como disciplinas causalistas e quantitativas, graças inclusive ao contributo, nesse sentido, da escola sociológica americana. Aqui, os primeiros sociólogos eram também biólogos (Giddings e Sumner, por exemplo). Eles defendiam a ideia de que “[...] sociology could be a science in the same sense as the natural sciences”[3], enfatizando a teoria da evolução e aplicando-a ao progresso social (CALHOUN, 2007, p. 6). A proximidade, típica da sociologia americana com os estudos psicológicos serviu para ultrapassar a clássica subdivisão proposta, a esse propósito, por Durkheim. Tal opção facilitou a afirmação de certas disciplinas, tais como a criminologia, inclusive nas suas versões degeneradas, como a craniologia ou a frenologia.

Tudo começou a ser classificado, tipificado e a fazer parte de uma linha evolutiva linear e comum a todas as sociedades humanas. Foi assim que as culturas extraeuropeias principiaram a merecer o desprezo dos ocidentais, com pretensões de tipo científico. O paradigma dominante “canibalizou” todas as outras formas de saber. O estudo dos povos considerados “primitivos” foi delegado à incipiente antropologia, como elucidado por vários autores, entre os quais Tönnies, na sua clássica subdivisão entre sociedade e comunidade (TÖNNIES, 1944). Fazer dos “outros” objeto de ciência representava a última fronteira do processo de racionalização iniciado com a revolução científica do século XVII. Nesse sentido, a antropologia se transformou na ciência do “outro” por excelência, merecendo, de recente, uma verdadeira crítica à forma de razão que ela expressa (ÁLVARES, 2018). Tal abordagem favoreceu a hierarquização dos saberes, colocando os povos extraeuropeus num patamar de inferioridade e até negligenciando-os por completo, segundo a melhor tradição hegeliana.

A partir aproximadamente dos anos sessenta do século XX, esse processo sofreu várias críticas. Mais ou menos ao mesmo tempo, os afroamericanos, nos Estados Unidos, e os estudantes universitários, na Europa (o “maio francês” de 1968), contestaram duramente o saber e os costumes tradicionais. Ao mesmo tempo, foram feitas críticas do ponto de vista anticolonialista, conforme demonstram autores quais Fanon (1952, 1961), Cabral (COMITINI, 1980) e a corrente da negritude (CÉSAIRE,1955).

Desses movimentos surgiu uma boa parte das críticas ao paradigma dominante: o ambientalismo, o feminismo, uma diferente ideia das liberdades individuais e sexuais; mas, sobretudo, no plano epistemológico, a ideia de que nem todo o saber vinha da cultura ocidental, facto que impulsionou pesquisas direcionadas à recuperação das culturas locais, indígenas.

A etnomatemática situa-se na esteira desses movimentos de contestação, não exclusivamente de tipo social ou político, mas epistemológico. O ponto a seguir proporciona um enquadramento geral dessas críticas, ao passo que, no ponto sucessivo, se abordarão com mais pormenores as características epistemológicas da etnomatemática e dos desafios que ela comporta.

 

2 ALGUMAS CRÍTICAS EPISTEMOLÓGICAS AO PARADIGMA DA CIÊNCIA MODERNA

Desde os anos sessenta, o paradigma da modernidade começou a ser seriamente criticado e posto em discussão por várias correntes e pensadores. Essas correntes tinham, como admite Escobar, objetivos políticos, além de meramente epistemológicos (ESCOBAR, 1995). Elas tinham quais precursores, filósofos como Rousseau, com a sua dura crítica ao sistema capitalista, ou o próprio Marx, contra o modelo liberal de Smith e Hume. Entretanto, mantendo a discussão na linha epistemológica, os princípios básicos da ciência moderna “canonizada” e englobante também as ciências sociais, ou seja, causalismo e determinismo, já tinham entrado em crise por mão de uma “segunda revolução”, assente principalmente em novos descobrimentos no âmbito da física e da termodinâmica, com a formulação do segundo princípio, por Clausius e Thomson, nos finais do século XIX, o qual demonstra a irreversibilidade de um processo natural (a transição espontânea do calor dum corpo frio a um quente é impossível) (WANG, 2017).

Pouco depois, a física quântica – como defende Heisenberg – reverteu por completo as bases do princípio de causa-efeito, uma vez que resulta falsa a afirmação segundo a qual, se conhecemos o presente, podemos prever o futuro. O problema está, não na segunda, mas na primeira parte dessa afirmação, pois é impossível conhecer toda a complexidade do presente, portanto, não é possível prever o futuro. A mecânica quântica estabelece a não validade do princípio de causa-efeito. Isso significa que o mundo não podia ser pensado e ordenado de acordo com aquela determinística categoria. A lei da relatividade de Einstein constituirá outro decisivo golpe às conceções positivistas da ciência moderna (LEITE, 2012).

No âmbito matemático, Bolyaj e Lobacevskij formulam conceções geométricas diferentes da euclidiana, por exemplo, mediante a geometria hiperbólica, que confirma os primeiros quatro postulados de Euclides e as suas 28 proposições, reformulando o quinto, através da mudança das referências espaciais. A partir daqui, outras geometrias diferentes da de Euclides foram teorizadas. Por exemplo, Riemann invalida, além do quinto, o segundo postulado de Euclides, colocando as retas num plano esférico (geometria elíptica) (JACOBS, 1992).

Essas críticas, embora limitadas aos ambientes académicos ocidentais, constituíram um primeiro ponto de reflexão para começar a perceber que, mesmo as supostas certezas derivantes da mais lógica e universal das ciências, a matemática, deviam ser revistas e repensadas. Iniciou-se a compreender que o contexto sociocultural e a história têm uma influência decisiva, no que diz respeito às ideias e, no geral, às epistemologias de tipo matemático. Se é verdade que foi o brasileiro D'Ambrosio a idealizar, de forma sistemática, os princípios da etnomatemática, também é verdade que é preciso realçar que o seu trabalho se insere num contexto mais amplo, que tornou possível a sua (demorada) aceitação no seio da comunidade académica.

A crise do paradigma científico moderno, fortalecido pelos positivistas e neopositivistas, sofre diversas críticas, a partir dos anos sessenta. Aqui será possível mencionar apenas algumas delas, todas com a mesma característica: trata-se de críticas do “Sul”, que almejam edificar uma verdadeira nova epistemologia, com base no contexto social, cultural e histórico das diferentes realidades, além da ocidental.

O pressuposto fundamental dessas novas abordagens assenta numa ideia central: que a disputa sobre a ciência tem implicações políticas e econômicas relevantes e diretas. Santos defende que, do século XVII, confrontaram-se duas diferentes perspetivas epistemológicas. Na primeira, deu-se uma “[...] forma de conhecimento que se traduzia facilmente em desenvolvimento tecnológico”, a serviço das potências e dos projetos coloniais; na segunda, visava-se à “[...] busca do bem e da felicidade”, sem cesuras entre sujeito e objeto, natural e cultura, homem e mulher (SANTOS, 2010, p. 1).

Até o século XIX, o processo de “destruição criadora” (SANTOS, 2010, p. 6) das outras culturas por parte da ocidental estava já finalizado, com dois processos paralelos: a conceção a-histórica do conhecimento e da ciência e o epistemicídio e a subalternização dos grupos que defendiam os conhecimentos “alternativos”, fora do paradigma oficial de matriz positivista. Em termos epistemológicos, o processo de inferiorização desses saberes foi total e completo, mas também, em nível político, todos os grupos que se opunham a esse processo de homogeneização foram classificados de “Outros” e ficaram como os derrotados da história.

Uma primeira rebelião a esse estado de coisas deu-se na altura das lutas pelas independências dos países afro-asiáticos; entretanto, uma vez alcançado o objetivo, na maioria deles, adotou-se a ideia da transferência tecnológica e da corrida rumo ao desenvolvimento, de fato tentando emular o paradigma ocidental (SANTOS, 2010, p. 11). O fracasso dessas políticas levou a outras nefastas consequências epistemológicas. Com a forçada adoção, nos anos oitenta, das políticas de ajustamento estrutural, nenhum espaço foi aberto para os conhecimentos “indígenas” ou “locais”. Paralelamente à vitória política e econômica, o Ocidente conseguiu um ulterior triunfo, no âmbito da ciência. Como recorda Santos, criaram-se e se solidificaram antíteses epistemológicas entre conhecimento tradicional/moderno, ciência do concreto/ciência pura, conhecimento indígena/ocidental. Com uma constante: que o primeiro dos dois termos do binómio era sempre caracterizado pela negativa, o segundo, pela positiva.

No entanto, desenvolveram-se resistências: dentro da “ecologia dos saberes” que visa a democratizar da ciência, os movimentos feminista, ecologista, indígena constituíram os eixos duma nova ideia de ciência. Cada conceito devia ser contextualizado de maneira cultural e historicamente. Gayatri Spivak, por exemplo, insistiu muito na tarefa de redefinir o conhecimento, destacando a necessidade de ultrapassar um dos produtos da ciência ocidental, a especialização (BEBIANO, 2014). De acordo com a sua perspetiva, deve-se adotar uma ótica desconstrucionista, mutuada por Derrida. A ênfase é posta nas possibilidades de conhecimento da realidade que a literatura traz, além dos cânones da ciência. Assim, as humanidades, expressões de sentimentos e das culturas locais, tornam-se centrais no cenário do conhecimento. O caso do grupo dos Subaltern Studies Collective, com o estudo das sociedades pós-imperiais, representa um dos melhores exemplos duma escola que objetiva desconstruir o paradigma da ciência moderna.

Em paralelo, na América Latina, o grupo de investigação sobre Modernidade e Colonialidade tem a perspetiva de valorizar o conhecimento indígena, a partir da rotura do binómio modernidade-colonialismo (ESCOBAR, 1995). A diferenciação colonial representa, portanto, um espaço tanto político quanto epistemológico, de sorte a descentralizar os processos globais, valorizando os saberes periféricos. Um “pensamento de fronteira”, como diria Mignolo, iria estimular a superação do eurocentrismo.

É nesse contexto de protesto e de crítica ao paradigma moderno da ciência, com evidentes interligações com um preciso desenho político democrático, desmentindo, por conseguinte, a ideia dominante duma ciência “neutra”, que se insere a tentativa de fundar uma matemática de tipo “étnico”, local, atenta aos saberes descentralizados, ao invés do conhecimento global uniformizante. Será este o assunto a ser abordado no próximo ponto.

 

3 BREVE ENQUADRAMENTO HISTÓRICO E CONCEITUAL DA ETNOMATEMÁTICA

Numa altura em que ainda se faziam sentir as vozes para alcançar um desenvolvimento diferente, quer em África, quer, sobretudo, na América Latina (ou seja, nos anos 1970), em âmbito académico, começou a se fazer espaço a ideia de que os povos “subalternos” traziam modelos epistemológicos e práticos diferentes do paradigma dominante, e mais agarrados às realidades locais.

A etnomatemática constitui uma parte significativa de tais visões epistemológicas alternativas, as quais perfazem uma etnociência diferente. Uma tal abordagem andou fortalecendo-se ao longo dos anos setenta e oitenta do século XX, colocando-se no meio entre disciplinas sociais e exatas e procurando valorizar o contexto cultural em que se produz um certo conhecimento (ANDRADE COSTA, 2008).

A ideia básica seria a de que qualquer ciência, mesmo a mais aparentemente exata e universal, como a matemática, se arraiga na sociedade, nos hábitos, nas culturas, nas crenças locais. Tempo e espaço, longe de serem aquelas intuições a priori universais de que Kant tinha falado, no século XVIII, devem estar posicionadas nas culturas que as produzem, tendo cada uma delas uma sua “lógica interna” (D’AMBROSIO, 2005).

Portanto, a etnomatemática é uma “proposta de teoria de conhecimento” (D’AMBROSIO, 2005: 102), que não pretende excluir a matemática ocidental, mas propor um ponto de vista diferente, mais relacionado com o meio cultural onde tal conhecimento é produzido. Seu programa tem várias vertentes e desafios. Em primeiro lugar, como, do ponto de vista epistemológico, se pode passar das práticas diárias a generalizações cientificamente válidas? Em segundo lugar, do ponto de vista político, como se pode ultrapassar a hegemonia ocidental sobre a ciência? Finalmente, do ponto de vista educacional, como aproximar o aluno ao seu meio social e cultural, para ele perceber melhor as regras e os raciocínios matemáticos, por meio da ponte epistemológica prática-teoria?

Simbolicamente, o ano de fundação dessa disciplina deve ser considerado 1976, quando se realizou o III Congresso Internacional de Educação Matemática, em Karlsruhe, na Alemanha, onde Ubiratan D’Ambrosio, “[...] o pai intelectual do programa de etnomatemática” (GERDES, 1996a, p. 3), pela primeira vez trouxe à tona o relacionamento entre cultura local e conhecimentos matemáticos, originando uma matemática contextualizada. No entanto, não foi nesse congresso que o termo foi aceite. Só em 1984, numa conferência em Adelaide, a comunidade científica aceitou o termo e o conceito. Desde então, este passou a ser mundialmente conhecido como forma de conhecimento válido, fiável e científico.

Em termos epistemológicos, a etnomatemática, além de estar ancorada aos conhecimentos locais, é “[...] holística, procura compatibilizar cognição, história e sociologia do conhecimento e epistemologia social, num enfoque multicultural.” (D’AMBROSIO, 2005, p. 103). Ela adquire plena dignidade epistemológica, de acordo com D’Ambrosio, a partir dos objetivos que se propõe: “[...] comparar, classificar, quantificar, medir, organizar e de inferir e de concluir.” (D’AMBROSIO, 2008, p. 164). Tais objetivos caracterizam qualquer ser humano e qualquer cultura, e surgem de forma espontânea. O artesão e a costureira desenvolvem essa forma de conhecimento, assim como o cirurgião ou o arquiteto. E se trata de formas de conhecimento que estão num pé de igualdade com o conhecimento oficial de matriz ocidental, procurando libertar indivíduos e culturas “subalternos” dessa condição histórica e culturalmente definida.

D’Ambrosio defende a ideia de que a subordinação epistemológica que engloba mesmo os conhecimentos matemáticos deve deixar espaço a um mútuo respeito entre diferentes modalidades gnosiológicas. Daqui o relativismo que ele propõe, já que a própria matemática ocidental surgiu num determinado contexto social e cultural e daí assumiu a pretensão de tornar-se universal.

Em termos didáticos, isso significa o seguinte: “[...] tentar valorizar as raízes culturais do aluno sem eliminá-las em favor do conhecimento ocidental” (D’AMBROSIO, 2005, p. 115), juntamente com o enaltecimento das práticas cotidianas que visam a resolver problemas específicos, especialmente no âmbito profissional, artístico ou até contabilístico. Essa abordagem de tipo educacional é relevante e típica da etnomatemática, pois está longe do abstratismo da matemática ocidental (OREY; ROSA, 2014).

Nas últimas quatro décadas, os princípios que D’Ambrosio formulou em volta da etnomatemática encontraram tantas oposições quantas aplicações, no âmbito educativo e escolar de vários países, tais como Brasil, Canada, Tanzânia, Indonésia (SUDARMIN et al., 2017) e Moçambique (BUSSOTTI; BUSSOTTI, 2017), embora – como se verá no ponto a seguir – no contexto africano, e nomeadamente moçambicano, o seu diálogo com o sistema formal de educação tenha sido muito difícil e, por vezes, até quase impossível.

As críticas à etnomatemática foram feitas em duas vertentes principais, quer do ponto de vista epistemológico, quer pedagógico. No primeiro âmbito, a etnomatemática teria assumido um posicionamento supostamente ambíguo para com o saber matemático mais geral, negando seus princípios fundamentais e universais; e, no segundo, tornando demasiado simples o uso prático das ferramentas locais a serem utilizadas como primeira abordagem de conhecimento das noções de tipo matemático (PAIS, 2011). Críticas parecidas foram levantadas de um caso específico, a partir da África do Sul (VITHAL; SKOVSMOSE, 1997), mas provavelmente o posicionamento mais radical e sistemático foi apresentado por Arda Cimen, contrapondo a teoria da “Culturally Independence Thesis” à da “Cultural Relativity Thesis” (ARDA CIMEN, 2014, p. 525). Segundo esse autor, kantianamente, a matemática não pode ser caraterizada como sendo eurocêntrica, pois as categorias nas quais ela se baseia seriam universais, por conseguinte, sem condicionalismos culturais ou sociais.

Em paralelo, porém, aplicações práticas da etnomatemática foram adotadas em vários países. No contexto africano, por exemplo, Moçambique – de que se trata especificamente, no ponto a seguir – sofreu muitos condicionalismos de matriz ainda colonial e neocolonial, que, apesar das tentativas de Paulus Gerdes, na década de 1980, foram reproduzidas pelas instituições locais, fazendo naufragar uma experiência que, naquela época, era de vanguarda em nível pelo menos continental (BUSSOTTI; BUSSOTTI, 2017).

Em outros casos africanos, tais como na África do Sul, a etnomatemática entrou no curriculum escolar de forma satisfatória, ajudando gerações de estudantes a perceber melhor uma disciplina geralmente identificada como abstrata e, portanto, de difícil compreensão (NYONI, 2014).

Entretanto, no continente africano, o sucesso da etnomatemática foi bastante limitado, e não sem contradições, por vezes desaguando em posicionamentos demasiado relativistas, ou em outros essencialistas, como é o caso do afrocentrismo, na versão de Anta Diop, Asante e outros (BUSSOTTI; NHAUELEQUE, 2018). Se, por um lado, sobretudo Gerdes demonstrou à comunidade científica internacional as provas de que muitos povos daquele continente tinham desenvolvido conhecimentos profundos de aritmética e geometria, mediante as culturas locais (GERDES, 1996a), por outro, a inserção do método da etnomatemática nos curricula oficiais foi extremamente limitada.

No ponto a seguir, será desenvolvida uma breve reflexão de como num país como Moçambique, que tinha a melhor escola de etnomatemática de toda a África, graças à obra de Gerdes, a abordagem cultural ao estudo da matemática acabou quase desaparecendo da discussão académica local, assim como dos curricula escolares oficiais.

 

4 A ETNOMATEMÁTICA EM ÁFRICA: O CASO DE MOÇAMBIQUE

A experiência histórica da educação em Moçambique passa por vários momentos, relacionados com a evolução política do país. Numa primeira fase, ainda na altura da luta anticolonial contra Portugal, o movimento de libertação que levou a cabo o conflito e que até hoje governa o país, a Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique), conseguiu constituir algumas zonas ditas “libertadas”, concentradas nalgumas regiões nortenhas, tais como Cabo Delgado e Niassa, onde se iniciaram experiências comunitárias e educacionais muito avançadas, envolvendo a comunidade camponesa, mulheres e jovens, quase todos não alfabetizados. O próprio primeiro presidente da Frelimo, Eduardo Mondlane, explica, na sua obra mais importante, como o ensino nas zonas libertadas, embora rudimentar em termos de competências formais transmitidas por falta de recursos humanos adequados, assentava numa constante integração entre ensino formal e ensino prático, com a alternância entre aulas presenciais de certas disciplinas, tais como língua portuguesa ou história, e trabalho no meio rural ou doméstico (MONDLANE, 1975). Tratava-se de um ensino altamente participativo e orientado ideologicamente para a formação daquele homem novo que devia constituir o emblema da independência política e cultural do novo Moçambique, em relação à experiência colonial e à exploração capitalista (GOMES, 1999).

Tal legado passou para um processo de institucionalização, ao longo dos primeiros anos de independência, em que Samora Machel assumiu a presidência, logo em 1975, até a sua morte, em 1986. A tentativa foi, embora dentro de um regime monopartidário e, por isso, com formas limitadas de democracia, continuar com as experiências das zonas libertadas, valorizando o elemento da participação. Nas escolas, o objetivo era de “[...] o povo tomar o poder” (GOMES, 1999, p. 240), passando, portanto, por um processo educacional no qual desenvolver relacionamentos democráticos que contribuíssem a difundir um projeto sociopolítico em que as massas se tornassem protagonistas da vida pública do país (DOMINGOS, 2015).

A matemática não ficou fora de tal processo politicamente orientado de edificação da escola revolucionária. Samora Machel pretendia incluir essa disciplina no interior do projeto geral de sociedade nova de inspiração socialista, usando a disponibilidade e as ideias de Paulus Gerdes. A matemática contextualizada, ou etnomatemática, constituiu a base da obra de Gerdes, partindo das experiências diretas que estudantes e docentes tinham dos objetivos de uso comum (BUSSOTTI; BUSSOTTI, 2017).

Todavia, essa primeira vaga de entusiasmo não demorou a recuar. Do ponto de vista interno, Moçambique foi assolado por uma guerra civil terrível, que fez com que os planos de uma matemática coerente com o desenho socialista e popular de Samora Machel encontrasse obstáculos objetivos (as infraestruturas escolares foram quase que completamente destruídas, ainda mais no meio rural, onde a etnomatemática devia encontrar uma aplicação maior), assim como subjetivos (o aparelho do novo Estado não estava muito disponível em implementar inovações pouco compreensíveis e que só traziam mais trabalho e nenhum benefício direto). Assim, quando, em 1983, o parlamento moçambicano aprovou a institucionalização do Sistema Nacional de Educação, com a L. 4/83, a etnomatemática não foi incluída nos programas curriculares, ficando apenas como mera enunciação de princípio.

O contexto africano também jogou um papel decisivo na derrota da etnomatemática no país, onde esta devia e podia ser mais bem implementada: se, na década de 1960, graças a projetos de cooperação financiados com Reino Unido, Estados Unidos e França, a ideia da “Nova Matemática” africana foi aventada (ver o New Mathematics Aproach, lançado em Entebbe, em 1962) e aprofundada, como no caso do Primeiro Congresso Pan-Africano de Matemática de Rabat (1976), porém, nos anos seguintes, essa unidade de intenções veio a cair (BUSSOTTI; BUSSOTTI, 2017). Com efeito, outros países, como Nigéria (1977) e Quénia (1982), desistiram do programa, provocando o naufrágio da perspetiva “culturalista” da matemática e do seu ensino. No próprio contexto africano, a ideia de que a matemática tinha bases universais, não relacionadas com os elementos culturais de cada povo, voltou a aparecer de forma clara.

Foram essas as razões que fizeram com que a matemática moçambicana iniciasse a rumar para caminhos mais tradicionais, sobretudo quando, em 1986, Samora Machel morreu num acidente de aviação, e Paulus Gerdes começou a ser considerado um ícone da ciência moçambicana, mais passível de honras do que de ver concretamente aplicados os seus ensinamentos.

A partir desse momento, ou seja, da viragem liberal dos finais dos anos 1980, Moçambique entrou a pleno título nos programas de ajustamento estrutural e nos milionários projetos de cooperação internacional, em que os dados quantitativos sempre deviam anteceder, hierarquicamente, os elementos qualitativos. Os Objetivos do Desenvolvimento do Milénio representam um dos últimos exemplos de tal tendência, aplicada rigorosamente também ao mundo escolar. Dessa forma, a importância da matemática foi cada vez mais reduzida, e o espaço da etnomatemática praticamente cancelado, pelo menos no contexto da educação formal.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O trabalho apresentado procurou refletir sobre como, no campo matemático, uma conceção científica baseada em aspetos culturais e sociais tenha constituído uma alternativa válida e, em larga medida, validada por parte da comunidade académica internacional. Tal processo foi muito demorado e complexo, tornando-se possível só graças à contribuição de vários estudiosos, os quais, desde o interior da cultura ocidental, colocaram em crise certezas epistemológicas que pareciam absolutas, tais como a geometria euclídea ou os princípios clássicos da termodinâmica.

Foi nesse contexto que certos investigadores, como D’Ambrosio e Gerdes, se fizeram de abre-pistas de perspetivas culturalistas da ciência que se achava a mais universal de todas, a matemática, nas suas duas vertentes da geometria e da aritmética. Entretanto, apesar da vasta e rica produção científica desses dois, assim como de outros autores da mesma tendência, principalmente no contexto africano, as aplicações e penetrações da etnomatemática no seio do ensino oficial da disciplina foram relativamente modestas. Tal cenário se deu também em Moçambique, a segunda pátria de Gerdes, onde o projeto revolucionário teve uma vida muito curta, e a etnomatemática acabou constituindo um enredo teórico muito mais do que uma abordagem aplicável ao sistema de ensino oficial do país, sempre mais burocratizado e respondente aos critérios de avaliação dos financiadores internacionais.

As conclusões da breve história da etnomatemática africana remetem, portanto, a uma inquietação de cunho mais geral, a qual tem a ver com o espaço que o neocolonialismo epistemológico tem ganhado, em muitos países desse continente, numa altura em que, em linha de princípio, devia já olhar para perspetivas mais pós-coloniais e libertárias.

 

ETHNOMATHEMATICS BETWEEN SUBORDINATED KNOWLEDGE AND EPISTEMICIDE. THE CASE OF MOZAMBIQUE

 

Abstract: This work aims at carrying out a reflection on the subaltern epistemologies, considering as an example the Ethnomathematics. The philosophical discourse on the “epistemicide of local and traditional knowledge by the dominant scientific paradigm can be aplied to various disciplinary fields. Among them it is possible to find Mathematics, in its two main branches, arithmetic and geometry. Mathematics represents a paradigmatic and meaningful case. It has been theorized for the first time by the Brazilian D’Ambrosio and the Dutch-Mozambican Paulus Gerdes, ethnomathematics is living today a contradiction: it was accepted in epistemological terms, but, especially in Africa, it registered many problems in assert itself, showing difficulties in being accepted in official curricula. The research shows how this process occurred in Mozambique, a symbolic country for African ethnomathematics, both in consideration of Gerdes’ contribution and of the progressive education during the first phase of its independence.

 

Keywords: Epistemologies. Local Knowledge. Africa. School Curricula.

 

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Recebido: 05/8/2020

Aceito: 22/12/2020


 

 



[1] Investigadora do Centro de Estudos das Migrações e das Relações Interculturais (CEMRI) da Universidade Aberta de Lisboa, Lisboa – Portugal. Professora do curso de mestrado em Direitos Humanos da Universidade Técnica de Moçambique (UDM), Maputo – Moçambique. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2123-0636. E-mail: lauramacua@gmail.com.

[2] A nova ciência que ganhou forma durante o décimo sétimo século pode ser distinta, quer por critérios internos, quer externos, em relação à ciência e aos estudos filosóficos ou à contemplação da natureza dos períodos anteriores (tradução da autora).

[3] A sociologia poderia ser uma ciência do social do mesmo sentido das ciências naturais. (Tradução livre da autora).