ENTREVISTA

 

O PERTENCIMENTO: NOVOS RUMOS[1]

 

Renaud Barbaras[2]

Paulo César Rodrigues[3]

Fabrício Rodrigues Pizelli[4]

Gabriel Gurae Guedes Paes[5]

 

Apresentação

Paulo César Rodrigues

 

            Em março de 2020, pouco antes do início da quarentena, ocasionada pela evolução da pandemia de COVID-19, Fabrício Rodrigues Pizelli, aluno do curso de Filosofia da UNESP-Marília, em estágio de pesquisa na França, juntamente com Gabriel Gurae Guedes Paes, ex-aluno do curso de Filosofia da UNESP e doutorando na UFSCar, ambos em Paris, realizaram uma entrevista com um dos principais nomes da fenomenologia contemporânea: Renaud Barbaras.

            Renaud Barbaras, professor de Filosofia na Sorbonne e autor de mais de dez livros sobre fenomenologia (inclusive estudos sobre Husserl, Merleau-Ponty e Jan Patočka), comenta aqui, entre outros assuntos, as ideias desenvolvidas em seu mais recente trabalho, L'appartenance: vers une cosmologie phénoménologique (2019), obra na qual avança teses cosmológicas a partir da fenomenologia, rompendo, em alguma medida, com os autores aos quais esteve profundamente ligado (Husserl, Merleau-Ponty e Patočka).

            Por falar perfeitamente a língua portuguesa – a propósito, ele é o tradutor da tese de Bento Prado Jr., Presença e campo transcendental, , e do livro Erro, ilusão, loucura, para o francês –, o Prof. Barbaras concedeu esta entrevista em nosso idioma, apresentando sua compreensão crítica da tradição fenomenológica, assim como suas próprias formulações filosóficas, ou seja, sua “fenomenologia a-subjetiva radicalizada”, sempre numa linguagem clara e elegante, cuja fluência, característica do discurso oral, tentamos preservar.

            Resta, portanto, agradecer imensamente ao Prof. Barbaras, pela gentileza em nos atender e por nos autorizar a publicar este material, partilhando seus conhecimentos com o público brasileiro.

 

Entrevista

 

Renaud Barbaras

Fabrício Rodrigues Pizelli

Gabriel Gurae Guedes Paes

 

F/G – Sua obra, além de interpretar autores como Husserl, Merleau-Ponty e Patočka, destaca-se também como um momento importante do movimento fenomenológico, uma vez que apresenta uma novidade, isto é, a “fenomenologia da vida”. Em que medida o senhor julga que a fenomenologia da vida avança em relação à fenomenologia tradicional?

RB É uma pergunta muito ampla e difícil, tanto mais que a fenomenologia da vida é para mim um trabalho antigo. Não estou querendo dizer que abri mão dela, mas não definiria a minha abordagem atual como uma fenomenologia da vida, mesmo que a vida fique no centro de minha perspectiva. De certa forma, fico na esteira de uma tradição fenomenológica, que, começando com Husserl e passando principalmente por Merleau-Ponty, tem o intuito de pensar como o sujeito pode, ao mesmo tempo, fazer parte do mundo e, por outro lado, ser a condição de possibilidade da fenomenalidade. É essa situação complicada do sujeito que, desde o início, tento pensar. Aliás, o próprio Husserl, na Crise das ciências europeias, fala do paradoxo do sujeito que é, ao mesmo tempo, parte do mundo e condição do mundo. Para mim, a vida foi uma maneira, não de resolver, mas de definir o problema, tanto que me apoiei em uma ambiguidade do francês que não se encontra em outras línguas e que diz respeito ao verbo “viver” (vivre). Em francês, “viver” significa ao mesmo tempo “estar vivo”, ou seja, a vida no sentido biológico, intransitivo, e também, no sentido transitivo, “fazer a experiência”, algo como “vivenciar”, em português. Em francês, utilizamos vivre (viver) para os dois sentidos. É uma diferença semântica, mas a semântica é sempre o sintoma de outra coisa. Eu entendo a vida justamente como o lugar onde se identificam, onde se encontram o pertencimento ao mundo e o fazer aparecer o mundo. Desse ponto de vista, a fenomenologia da vida, uma fenomenologia que põe a vida no centro do pensamento, era a única maneira de enfrentar e assumir esse paradoxo aparente, evidenciado por Husserl, desde o início. Penso que há uma sinonímia entre fenomenologia e fenomenologia da vida, na medida em que o intuito era o de pensar o sujeito do fenômeno que faz parte do mundo. A única maneira de caracterizar essa situação é falar em vida. Além disso, podemos reparar que, em Husserl, desde o início, o transcendental é definido como vida: ele fala em vida do sujeito transcendental. Já que esse sujeito transcendental é o resultado de uma épochè fenomenológica, é obvio que essa vida transcendental não pode se identificar com a vida empírica, no sentido biológico. É preciso achar um sentido da vida mais radical do que a diferença entre vida empírica e vida transcendental, o que nos dá mais um motivo para falar da vida, que pode ser compreendida em várias entradas e abordagens. Além disso, se você simplesmente aceitar o fato de que o sujeito da percepção é um corpo – e aí está a perspectiva merleau-pontyana –, é óbvio que a única maneira de definir o sentido de ser do corpo é falar em vida, isto é, em corpo vivo. Ou seja, se quisermos definir o modo de ser do corpo, temos que definir e pensar o que significa viver. Então, são várias abordagens que convergem para a necessidade de trabalhar sobre a vida. É nesse sentido que falei em fenomenologia da vida.

Agora, há uma outra fenomenologia da vida assumida, que é a de Michel Henry. Publiquei vários artigos sobre a fenomenologia de Michel Henry e me arrisco a dizer que minha fenomenologia da vida fica nos antípodas de Michel Henry. Definida como “autoafeição pura”, essa vida não tem nada a ver com o mundo, não pode lhe pertencer. Michel Henry define dois modos radicalmente diferentes de fenomenalização: o que remete para o sentido originário da fenomenalidade, enquanto “autoafeição pura”, e o sentido tradicional, que significa aparição ekstática, na distância. A vida fica do lado do sentido originário. Nesse sentido, a vida, para Michel Henry, é mais próxima da vida de Deus do que da vida do ser vivo. De fato, o que pode significar uma vida que não envolve uma relação com a exterioridade, uma ação no mundo? Essa é só uma observação de passagem, para dizer que não é essa fenomenologia da vida que eu defendo.

 

F/G – Seu pensamento parte igualmente do “a priori universal da correlação”, porém, sem pré-definir o que é o sujeito/consciência e o que é o “ente intramundano”. Ao que parece, sua ambição foi a de descrever a correlação de modo neutro, sem pressupostos. Nesse sentido, como o senhor chegou à noção de “vida” e, ao mesmo tempo, sem recuperar a atitude natural, sem cair num “biologismo”?

RB Não sei se é relevante manter a diferença radical entre atitude natural e atitude transcendental. De certa forma, há uma mistura entre as duas atitudes. É o que o Merleau-Ponty mostra, por exemplo, em um artigo sobre Husserl, “Le philosophe et son ombre” (em Signes). Esse é o primeiro ponto: não sei se essa distinção é muito relevante. É claro que a vida que eu abordo não tem nada a ver com a vida dos biologistas, pois eles não falam da vida. Eles falam das condições físico-químicas da vida, mas a vida enquanto tal (o que Merleau-Ponty mostrou muito bem) só existe como uma forma de sentido para um sujeito vivo. Então, só há vida para um ser vivo e como sendo percebida por um ser vivo. Quando passamos para o plano do que vocês chamam de “biologismo”, o plano da ciência biológica, você sai da vida, você fala das condições materiais da vida. Por isso, penso que a única maneira de falar da vida é do jeito fenomenológico. Desse modo, desde que falemos da vida mesma, nós saímos da atitude natural, no sentido naturalista. Não tenho nada contra a atitude natural. O que eu critico é a atitude naturalista, o que não é exatamente a mesma coisa. Mais uma vez, a não ser que você passe para o plano de um subjetivismo transcendental, não há diferença radical entre as duas atitudes. Isso tem a ver com o que disse inicialmente: se mantemos a necessidade do pertencimento do sujeito ao mundo, não saímos totalmente da atitude natural. Ou seja, não podemos alcançar um sujeito transcendental extramundano, como é o caso de Husserl. Desse modo, se levarmos em conta o pertencimento, não podemos ultrapassar a atitude natural. No entanto, o meu ponto de partida sempre foi a correlação, porque, a meu ver, é a única maneira de definir a fenomenologia. O que é fenomenologia? É uma filosofia cujo ponto de partida é o “a priori da correlação”. Contudo, penso que, na maior parte dos casos, os fenomenólogos não conseguem pensar a correlação enquanto correlação, porque eles tomam como ponto de partida os polos da correlação, uma concepção pré-definida do sujeito e do objeto, entre os quais, posteriormente, tentam estabelecer uma relação. Acredito que devemos tomar como ponto de partida a própria correlação e definir os polos da correlação a partir da correlação. Daí o aprofundamento do conceito de consciência para a vida e também o ultrapassamento do conceito de objeto, em proveito do conceito de profundidade; isto é, se você pensar o conceito de correlação enquanto tal, você ultrapassa a correlação consciência/objeto, em proveito dessa correlação que eu descrevi: vida (ou desejo) e profundidade.

 

F/G – O embate entre realismo e idealismo está presente na filosofia francesa desde Bergson, e continuou a ser abordado pelos fenomenólogo franceses, como Sartre e Merleau-Ponty. Desse modo, tendo em vista a relação íntima entre sujeito e mundo, a qual faz emergir sua noção de “hiperpertencimento”, como o senhor situa a sua proposta filosófica no embate entre realismo e idealismo?

RB Olha, darei uma resposta muito simples. Acredito que a crítica que foi feita à fenomenologia, segundo a qual ela seria uma forma de idealismo, é totalmente errada. Penso que a fenomenologia é um realismo, não um realismo ingênuo, mas um realismo no sentido metafísico (e isso tem a ver com o “a priori da correlação”), simplesmente porque a proposta da fenomenologia é mostrar que a consciência é definida pela possibilidade de abrir para a realidade enquanto tal. O passo dado por Husserl permite mostrar que o em-si, no sentido kantiano, também procede da consciência. Isto é, a abertura da consciência atinge o em-si, de modo que a consciência se ultrapassa em proveito da realidade enquanto realidade. Portanto, o objeto da consciência é a própria realidade. Pensar rigorosamente a “intencionalidade” é dar conta do fato de que a subjetividade encontra o real. Estou respondendo de uma maneira muito simples, mas daria para estabelecer de uma maneira mais técnica essa necessidade de um realismo fenomenológico. Ou seja, não sobra nada para além daquilo que é para a consciência, daquilo do que a consciência é consciente. Não tem nada além disso, não há em-si além do fenômeno. Ou seja, o em-si coincide com o fenômeno, mas o fenômeno é sinônimo de realidade, no sentido pleno da palavra. A condição disso, é claro, é acabar com qualquer interiorização, o que é muito sartriano: entender que a consciência é a sua própria abertura, que ela é a saída de si mesma. Se você assume essa posição, você chega à conclusão de que o fenômeno é igual ao real. Então, esse debate entre realismo e idealismo não faz muito sentido. Aliás, em Sartre, você tem essa posição, pois há, ao mesmo tempo, um idealismo e um realismo: um idealismo da consciência, do Nada, e um realismo do em-si. Não há alternativa.

 

F/G – Em seu último livro, L'appartenance: vers une cosmologie phénoménologique, publicado recentemente, vemos uma tríade de conceitos fundamentais que nos mostram que o “pertencimento” pode ser compreendido em três sentidos, três momentos estruturais de um mesmo pertencimento: “être dans le monde”, “être du monde” e “être au monde”, os quais correspondem, respectivamente, ao site, ao sol e ao lieu. O primeiro sentido, o de site, marca a individuação do ente que se encontra situado no mundo em uma posição específica: “esta posição aqui e não outra”. Já o sol diferencia-se do site, por caracterizar o pertencer, não em sentido ôntico, de uma situação individual, mas como a própria “textura ontológica” de todo e qualquer ente como sendo do mundo. Por último, o lieu expressa o pertencimento em sentido dinâmico e ativo. Essa atividade faz com que o mundo exista, na medida em que nele nos engajamos. Temos aqui uma correlação em que o mundo se abre, se “fenomenaliza” por esse engajamento ativo. Por outro lado, para que o mundo se “fenomenalize” na forma de um lieu, é preciso já estar nele inscrito em um solo ontológico. Enquanto Husserl, através da redução transcendental, opera uma “desmundanização” para evitar a reificação da região da consciência, o senhor enraíza o fenômeno no mundo, de maneira inseparável. Em seu livro, lemos que a fenomenalização é nomeada restritamente pela fenomenologia como intencionalidade. Assim, para iniciarmos as questões sobre o seu último trabalho, podemos dizer que o pertencimento ao mundo é para a fenomenologia um problema mais fundamental que aquele da intencionalidade e, em última análise, mais fundamental até mesmo que o problema da consciência?

RB Eu gostaria de abrir um parêntese, pois há uma questão de tradução. Eu estive conversando com vários brasileiros sobre isso, pois não há palavra para site, em português. Desse modo, penso que a melhor solução é a seguinte: site deve ser traduzido por “local”, sol traduz-se por “solo” e lieu por “lugar”. Não é perfeito, mas já que devemos fazer uma diferença entre site e lieu, em português, a melhor opção é local. Mas site não é local, é a posição topológica, posição que ainda não é ocupação de um espaço. É uma mera posição ôntica, comparável com o ponto de vista da mônada em Leibniz, ou seja, aquela posição ligada à diferença do ente enquanto tal ente. Então, trata-se apenas de um ponto metafísico. Uma segunda observação importante que gostaria de fazer é que o ponto de partida desse livro é uma insatisfação em relação à questão do corpo, que esteve me preocupando desde o início, mas que deixei um pouco de lado e não tratei de uma maneira satisfatória, nos livros anteriores. Eu não conseguia dar lugar ao corpo, no dispositivo que eu tinha construído, pois ele ficava dos dois lados da fenomenalização: ao mesmo tempo, parte do mundo, como qualquer corpo (Körper), e vida fenomenalizante (Leib). Enfim, isso tudo para dizer que foi decisivo entender que o corpo não é uma questão, mas uma resposta implícita à questão do pertencimento. Ou seja, não é porque tenho um corpo que pertenço ao mundo, mas é por pertencer ao mundo que tenho um corpo. Isso significa que qualquer ente, na medida em que pertence ao mundo, tem um corpo ou, antes, existe como corpo. O que não o impede de ter uma relação de fenomenalização com o mundo.

Agora, chegando à pergunta: vocês têm toda razão, um dos intuitos do meu trabalho é justamente mostrar que a própria intencionalidade, ou seja, a própria fenomenalização deve depender de uma situação mais radical, que é o pertencimento. Tentei mostrar que o movimento intencional é uma topofania, emergência de um lugar, de um mundo. Vocês apresentaram minha abordagem muito bem, mas é necessário abrir um parêntese e fazer uma diferença entre mundo e solo (sol): o mundo é aquilo que nasce, que aparece a partir do movimento de fenomenalização, ou seja, o terceiro sentido do pertencimento. É o solo (sol) que vira mundo, graças ao avanço do ente situado. Então, o intuito do livro foi subordinar a intencionalidade a um pertencimento mais radical, mostrando que qualquer ente podia ser definido pela tentativa de coincidir com o solo (sol), com a sua própria textura ontológica. Já que há uma distância, uma diferença entre o local (site) e o solo (sol), diferença ligada simplesmente à existência do ente enquanto ente, pode-se dizer que qualquer ente tenta reconciliar-se com ele mesmo, ou seja, voltar ao próprio solo (sol) e coincidir com ele. Nesse sentido, esse movimento é, de fato, um movimento de desejo. É claro que o mais importante no meu trabalho é mostrar que, contrariamente ao que diz Husserl e toda a tradição transcendental, a potência de fenomenalização não está ligada ao fato de ser estranho ao mundo. Pelo contrário, tento mostrar, até contra Merleau-Ponty, que a potência de fenomenalização, ou seja, de abertura de um mundo, é proporcional à profundidade do enraizamento, do pertencimento. Ou seja, quanto mais profundamente você pertencer ao mundo, mais o fenomenaliza. Então, não há alternativa entre proximidade (pertencimento ontológico) e distância (poder de fenomenalização). Desse modo, a pedra não tem mundo, ou tem um mundo muito reduzido porque, contrariamente ao que se pensa, ela não pertence muito profundamente ao mundo, fica na superfície dele, enquanto que nós pertencemos ao mundo de maneira muito profunda e, por isso, somos os seres que somos, capazes de abrir o mundo, de perceber, no sentido pleno da palavra.

 

F/G – Nesse movimento que enraíza o fenômeno no mundo, há ainda um papel para a redução fenomenológica?

RB É uma boa pergunta. De certa forma, não. Primeiramente, eu faria uma diferença entre “redução fenomenológica” e épochè. Em Husserl, a épochè, a neutralização da tese natural, é o primeiro passo para a redução. Redução, em latim reducere, significa re-condução, recondução para a consciência, ou seja, conversão para o transcendental. É nesse sentido que Husserl podia definir a fenomenologia como “eidética da região consciência”. Mas é possível, como Patočka, defender a ideia de uma époché sem redução, já que, quando passamos da épochè para a redução, nós necessariamente passamos para a consciência. Portanto, se quisermos fazer uma crítica à filosofia da consciência, temos que abrir mão da redução e mostrar que podemos ter uma épochè sem redução. Desse modo, eu diria que, em meu trabalho, não há redução, porque não há consciência, pelo menos no sentido clássico, porque a ideia é acabar com essa diferença fundamental entre consciência e objeto. Só há entes, corpos, modos de pertencimento, portanto, modos de fenomenalização. Assim, há uma forma de épochè que consiste precisamente nessa diferenciação entre vários modos de pertencimento. Ela consiste em acabar com uma ideia simples do pertencimento, enquanto ocupação de um lugar determinado. Eu não havia pensado nisso, mas é uma pergunta muito relevante: a única épochè que há nesse trabalho [L'appartenance: vers une cosmologie phénoménologique] é a epoché da atitude natural, no sentido de uma concepção ingênua do espaço, do espaço geométrico como aquilo em que os corpos ocupam um lugar delimitado (uma place, em francês). É isso mesmo que tentei neutralizar, em proveito de um pensamento do pertencimento.

 

F/G – Em que medida essa fenomenologia do pertencimento rompe ou se aproxima da fenomenologia husserliana?

RB Cabe dizer que se trata de uma ruptura radical, pois o sujeito da fenomenalização não é mais consciência, nem qualquer sujeito, mas o próprio mundo. Acredito que, nesse sentido, estou nas antípodas de Husserl. Também, eu coloco o corpo em um lugar muito importante, ao passo que, em Husserl, o corpo é constituído pela subjetividade transcendental, ele provém da mundanização da subjetividade transcendental. É claro que minha posição é radicalmente oposta. Husserl sem idealismo e sem subjetivismo não é mais Husserl.

 

F/G – O movimento fenomenalizante que caracteriza o lieu se dá na tensão entre duas imobilidades que são a do sol e do site. Há uma diferença entre ente e mundo, uma lacuna entre o site e o sol que deve ser superada. O movimento que busca suprir uma lacuna não é outro senão o do desejo, desejo que nunca preenche de fato a lacuna que o coloca em marcha: o desejo se exacerba, à medida que se satisfaz, e cada objeto alcançado abre um novo horizonte de insatisfação. Qual o papel do desejo na unificação dos momentos do pertencimento? Qual a relação entre desejo, fenomenalização e espacialização? De que modo sua concepção de desejo, apresentada em seu último livro, se diferencia, por exemplo, daquela de Sartre, na qual o desejo de ser em-si-para-si possui uma negatividade, uma falta de si que também busca se preencher, em um movimento perpétuo de impossível identificação com a alteridade?

RB A resposta fica na pergunta: o desejo é aquilo que unifica os três momentos do pertencimento, ou seja, o desejo é a tentativa de reconciliar o solo (sol) e o local (site), e essa tentativa desemboca na constituição de um lugar. Mas, o que é difícil de entender é que a verdade do local (site) fica no solo (sol), pois o solo (sol) é o solo ontológico, a fonte ontológica. Assim, todos os entes têm o mesmo solo (sol). Então, por um lado, há uma proximidade ontológica e, por outro, há de fato uma diferença irredutível. Por isso, o desejo não é necessidade, pois o ente nunca pode coincidir com o solo (sol), a não ser que ele desapareça como aquele ente que ele é, como ente individuado. Então, temos essa tensão, que chamo de desejo, entre uma necessidade de reconciliação e a impossibilidade dessa reconciliação. Necessidade ontológica da reconciliação e impossibilidade factual dessa reconciliação: o desejo é essa tensão.

Agora, sobre a relação entre desejo, fenomenalização e espacialização, é importante ressaltar que fenomenalização é sinônimo de espacialização, pois a consequência dessa abordagem pelo pertencimento é compreender que o lugar, no sentido mais indeterminado da palavra, faz parte do ser de qualquer ente. Ou seja, estar significa necessariamente estar aí ou aqui; por isso, falei de “ontologia geográfica”, para dizer que o lugar faz parte do sentido de ser do ser. Então, se nós aceitarmos isso, temos que tirar a consequência de que a fenomenalização significa necessariamente espacialização. A fenomenalização sempre é a abertura de um espaço, e o desejo é justamente a mola desse “princípio de localização”. Em outras palavras, a intencionalidade é essencialmente movimento, e o movimento exige um espaço em que ele se desdobra. Nesse sentido, há uma articulação essencial entre desejo, movimento e fenomenalização.  

Ademais, essa questão sobre Sartre trata de uma pergunta clássica à qual respondi, em um dos meus livros [Dynamique de la manifestation]. Também publiquei um artigo a respeito. Em resumo, no que diz respeito a Sartre, tentei mostrar que, de um lado, concordo com ele, pois ele dá ao desejo esse papel de busca constante, mas, por outro lado, o problema é, como vocês recordaram, que o desejo almeja a coincidência impossível do em-si e do para-si. Como essa coincidência é logicamente impossível, penso que o desejo de um impossível é, de fato, um desejo impossível: assim, Sartre, a meu ver, impossibilita o desejo. Nesse aspecto, penso que Sartre perde a abordagem fenomenológica, ao tratar o desejo desse jeito. Em outras palavras, na perspectiva dele, há um abismo irredutível entre em-si e para-si, enquanto que, na minha perspectiva, esse abismo não ocorre, essa diferença não faz sentido, porque falo em corpo, isto é, em pertencimento, no qual essa diferença se encontra ultrapassada. Há uma diferença, mas uma diferença dentro do solo (sol), pois temos que compreender que, no local (site), não há uma exterioridade em relação ao solo (sol), pois é uma distância dentro do solo (sol). O solo (sol) abrange qualquer ente, de modo que nós não saímos dele. Desse ponto de vista, por conseguinte, eu fico muito longe de Sartre, pois recuso essa dualidade radical entre para-si e em-si, em proveito de um plano unívoco que é o do mundo.

 

F/G – Como esse quadro dinâmico da passagem do site ao lieu, que origina a fenomenalização, se insere em uma cosmologia? O senhor poderia, dentro dos limites desta entrevista, dizer o que é a “cosmologia fenomenológica”, indicada no subtítulo de seu livro? Que autores o influenciaram, para pensar essa relação entre fenomenologia e cosmologia?

RB Trata-se de uma pergunta muito ampla e complicada, tanto que o intuito dos meus próximos seminários vai justamente versar sobre a questão da relação entre cosmologia e fenomenologia. É algo a ser pensado e retomado. Enfim, há alguns autores que trataram disso, mas eu destacaria Eugen Fink e Patočka, dois fenomenólogos que enfrentaram a questão da cosmologia e, em certa medida, Mikel Dufrenne, em L’inventaire des “a priori”, onde há uma filosofia da natureza. Agora, cosmologia significa um pensamento do mundo, do mundo enquanto solo (sol) e, ao mesmo tempo, no sentido estrito daquilo que é produzido pelo avanço dinâmico de qualquer ente. Desse modo, a abordagem cosmológica significa que a fonte da fenomenalização não é mais um ente ou uma consciência, mas o próprio mundo, mundo que, por assim dizer, se autofenomenaliza. O importante é passar de uma perspectiva estática para uma perspectiva dinâmica. Nesse livro [L'appartenance: vers une cosmologie phénoménologique], a cosmologia começa quando eu mostro que o mundo deve ser definido não apenas como solo (sol), mas como processo dinâmico, como uma fonte e, portanto, uma potência e, até, uma sobrepotência. O movimento que me levou a isso foi a determinação do modo de ser do ente como testemunha ontológica: esse modo de ser, na medida em que tem um solo (sol), funciona como testemunha do sentido de ser daquilo a que ele pertence. Já que o ente existe como movimento, cabe concluir que o solo ao qual ele pertence também deve ter uma determinação processual. Por isso, é preciso sair de uma abordagem estática, em proveito de uma perspectiva dinâmica. O solo (sol) não é apenas um quadro ou um alicerce: ele é um processo dinâmico de produção radical dos entes. Nesse ponto começa a cosmologia. Eu diria, em resumo, que a cosmologia aborda o mundo como uma physis, no sentido grego da palavra, a saber, como um processo de produção, de individuação por diferenciação.

 

F/G – Por mais que não esteja referenciada no texto, a maneira pela qual o senhor estabelece a filosofia do pertencimento não estaria se encaminhando para um espinozismo? Por que o senhor fala de monismo fenomenológico, modos etc.? Enfim, qual é o papel de Espinoza, nessa nova abordagem?

RB É uma pergunta muito relevante e, para mim, embaraçosa. Eu dei uma entrevista para uma rádio, há pouco tempo, e Camille Riquier, que participava da entrevista, fez a mesma pergunta. Vocês têm toda a razão, Espinoza vem em mente. No entanto, caberia estabelecer algumas diferenças, o que não posso fazer agora, de uma maneira completa. Em ambos os casos, trata-se de um monismo e poderia se dizer que a relação entre solo (sol) e local (site) é comparável à relação entre a substância e os modos. Mas, no que diz respeito aos atributos, não sei muito bem onde colocá-los. Segundo ponto, que é muito importante: em Espinoza, os modos pertencem totalmente à natureza, não há separação, são modalidades, enquanto que, na minha perspectiva, o modo, ou seja, o local (site) nasce de uma ruptura, de uma diferença radical, mesmo que seja dentro do solo (sol) diferença que corresponde, afinal de contas, à diferença entre ser e ente. Poderiam dizer que, em Espinoza, é a mesma coisa, mas, na minha perspectiva, essa diferença é tamanha que, justamente, ela acarreta aquele movimento de desejo e aproximação que, a meu ver, não tem em Espinoza. O modo não difere tanto da substância e, por isso, não há esse movimento para a substância: o movimento do modo se confunde com o movimento da substância. Enfim, na minha perspectiva, o absoluto só existe sob a forma de um evento dando lugar à multiplicidade dos entes, que chamei de “deflagração”, de modo que, de certa forma, a “substância” não se distingue dos modos, enquanto que, em Espinoza, todo o peso ontológico dos modos repousa na substância. Agradeço pela pergunta. De fato, eu teria que pensar mais profundamente nisso, pois essa comparação é realmente justificada.

 

F/G – Que papel o corpo e a carne exercem, na fenomenologia do pertencimento e na cosmologia fenomenológica? Na contracapa de L’appartenance: vers une cosmologie phénomenologique, lemos que “[...] a fenomenologia fracassa diante da questão do corpo porque este é abordado como uma questão, sendo que se trata de uma resposta, resposta a uma questão que permanece implícita que é aquela do pertencimento. Não é porque temos um corpo que pertencemos ao mundo, mas porque pertencemos ao mundo que temos um corpo”. De que modo o corpo é uma resposta para a questão do pertencimento e como essa inversão do problema constitui uma crítica ao conceito de “carne”, em Merleau-Ponty?

RB De certa forma, o intuito desse livro é acabar com a questão do corpo enquanto problema. O problema é que corpo, como já mencionei, significa ao mesmo tempo Körper, em alemão, ou seja, um fragmento de matéria, como qualquer corpo material, e Leib, isto é, o corpo vivo, subjetivo ou fenomenal, como diz Merleau-Ponty. Desse modo, o problema é conciliar essas duas vertentes do corpo. De fato, acabamos voltando a um dualismo em Merleau-Ponty, dualismo entre a consciência, que é a única maneira de dar conta do Leib enquanto Leib, e o corpo objetivo, como outra dimensão, oposta à primeira. Com efeito, Merleau-Ponty, através de seu conceito de “carne do mundo”, tentou conciliar essas duas dimensões, ao mostrar que minha carne, meu Leib, meu corpo vivo, se insere em uma carne do mundo, em um corpo mais amplo que seria a verdade do primeiro e que daria o sentido de ser do primeiro. No entanto, ele não consegue dar conta da univocidade radical da carne enquanto envolvendo, ao mesmo tempo, a minha carne e a do mundo. Merleau-Ponty acaba dizendo que a carne do mundo não é como a minha carne, pois se sente, ao passo que a do mundo não se sente. De repente, no final de O visível e o invisível, das notas inéditas, nós vemos que ele acaba voltando a uma posição dualista entre um corpo que se sente e um corpo que é sentido, uma equivocidade entre uma carne minha e uma carne do mundo: ou seja, a diferença clássica volta dentro da “carne”. Minha tentativa foi justamente a de tentar escapar dessa dificuldade e dar conta de um sentido unívoco e universal da carne, incluindo a diferença da minha própria carne, de modo que minha carne, enquanto minha, possa realmente fazer parte da carne do mundo. Foi exatamente essa a meta do meu trabalho. Não sei se consegui, mas, em todo caso, é nesse ponto de vista que me opus à perspectiva de Merleau-Ponty, que foi meu ponto de partida e, também, meu adversário. Agora, a resposta consiste em dizer que ter um corpo significa pertencer. Segue-se daí que qualquer ente tem um corpo e, nesse sentido, proponho uma ontologia universal dos corpos. Porém, há uma diferença entre um corpo como uma pedra, por exemplo, e meu corpo vivo, mas essa diferença é derivada em relação ao solo e só pode ser medida pela profundidade do pertencimento. Dessa profundidade nós podemos derivar a amplitude de sua fenomenalização: tanto mundo ou profundidade quanto fenomenalização.

 

F/G – Em 2013, com Dynamique de la manifestation, o senhor afirma “permanecer resolutamente husserliano”, porém, com a ambição de uma cosmologia fenomenológica e com a publicação, em 2019, de L'appartenance: vers une cosmologie phénoménologique, o senhor continua husserliano? O que as suas novas investigações contrapõem à fenomenologia da vida de seus livros mais antigos?

RB Aqui temos um ponto importante. Em 2013, quando afirmei isso, eu pensava no “a priori universal da correlação”, que define para mim o âmbito da fenomenologia. Então, é nesse sentido que eu reivindicava esse husserlianismo. É verdade que esse último livro, de 2019, é uma certa ruptura em relação aos livros anteriores, pois abri mão da questão do corpo e comecei pela perspectiva do pertencimento. De certa forma, há uma ruptura com Husserl, não porque abandonei o a priori da correlação, mas porque multipliquei as correlações. A correlação, mesmo quando aprofundada em termos de vida, continua a se situar no âmbito de uma filosofia da consciência. É claro que o sentido da consciência é aprofundado, mas permanecemos no cara-a-cara da consciência e do seu mundo. Já com esse último livro, ultrapassei essa perspectiva, abandonei a ruptura fundamental que eu tinha mantido até agora entre consciência e não-consciência, vivo e não-vivo. Em Dynamique de la manifestation, ficava essa diferença entre seres vivos e não-vivos. Quis acabar com isso e cheguei a uma continuidade radical entre todos os entes. Se reivindicamos uma continuidade radical entre todos os entes, abrimos mão da consciência, da fenomenologia da consciência e, portanto, de uma única correlação. Por isso, não abandonei a correlação, mas a multipliquei: há tantas correlações quantos entes fenomenalizantes. Desse ponto de vista, é verdade que me afastei muito de Husserl.

 

F/G – Ao caracterizar o aspecto dinâmico do terceiro sentido do pertencimento, que instaura o lieu como um movimento, o senhor cita Jan Patočka e utiliza a expressão “force voyante”, para caracterizar o movimento fenomenalizante como um avanço que faz aparecer aquilo sobre o que ele avança. Em outro momento, Patočka é citado, para se referir a uma fenomenologia a-subjetiva, a qual se inscreve no quadro cosmológico que o senhor estabelece. Em que medida Patočka inspira seu último trabalho e qual o papel do filósofo tcheco, na renovação da fenomenologia?

RB Patočka teve um papel fundamental no meu trabalho, sobretudo no que diz respeito aos livros anteriores, Dynamique de la manifestation e Métaphysique du sentiment, os quais são rupturas com Patočka. Eu concordava com Patočka, mas percebi logo que havia um ponto de ruptura. A publicação de L'ouverture du monde, meu segundo livro sobre Patočka, foi uma maneira de romper com ele e de, sobretudo, perceber qual era o lugar da cisão. Sem dúvida, o pensamento de Patočka foi muito importante para mim, até os últimos livros. Mas, em L'appartenance, o afastamento é maior. Patočka, por mais que faça uma filosofia a-subjetiva, fica no âmbito da correlação e da diferença do homem e dos seres vivos, enquanto que minha abordagem poderia ser definida como uma fenomenologia a-subjetiva radicalizada. A fenomenologia a-subjetiva remete a uma crítica ao subjetivismo husserliano, o que não impede Patočka de manter uma teoria do sujeito, uma diferença radical entre os sujeitos e os outros entes. O projeto dele é caracterizar o sentido de ser da consciência, mas saindo de vários pressupostos husserlianos, entre os quais a reificação da consciência. Assim, Patočka mostra que o sujeito deve ser definido como um certo movimento, que não é um mero deslocamento, mas um movimento que ilumina seu próprio caminho, uma “força vidente”. Desse modo, ele permanece no âmbito de uma fenomenologia da consciência, enquanto que eu radicalizo essa filosofia a-subjetiva para mostrar que, de certa forma, não há diferença entre entes conscientes e não-conscientes ou entre entes vivos e entes não-vivos. Há uma continuidade radical, que é justamente a do pertencimento, de modo que a única diferença é a que diz respeito à fenomenalização. Posso dizer que qualquer ente é um sujeito, até mesmo a pedra, mas que nenhum ente chega a ser uma consciência. Ou seja, todos os entes estão em movimento, pois todos desejam, todos tentam se aproximar da própria origem. Desse modo, o papel de Patočka foi muito importante para os livros anteriores, mas muito menos para o último: L'appartenance. No entanto, preciso acrescentar que essa influência, pois é assim que trabalho, não foi apenas uma influência positiva, mas uma estimulação negativa: o fato de eu me dar conta de qual era o meu ponto de ruptura com Patočka me permitiu progredir. É ao entender qual é o problema em um pensador que você consegue avançar, é sempre assim. Para mim, o problema em Patočka era justamente a impossibilidade de pensar a continuidade entre todos os entes, não-vivos, vivos ou conscientes. Agora, Patočka, na minha opinião, é um grande fenomenólogo, em todo caso, o pensador de quem eu me sinto mais próximo.

 

F/G – Dissemos que os termos “engajamento” e “participação” são utilizados para descrever o sentido do pertencimento como “être au monde”. É preciso habitar, ocupar ativamente o mundo para fazê-lo existir. Apesar de estarmos já em um sol, a lacuna entre o sol e o site nos obriga a agir continuamente para constituir um lieu. Seria possível tirar consequências éticas da teoria do pertencimento e pensá-la nesse contexto político de ascensão da extrema direita, que procura delimitar os espaços de pertencimento?

RB Obrigado por essa pergunta, mas não vou responder, vou reagir. Acho que é uma pergunta excelente, mas ainda não pensei na possibilidade de usar esse conceito de pertencimento no contexto político, o que eu acho muito interessante. Aliás, a Fernanda Alt tentou fazer alguma coisa em relação ao problema do feminismo, utilizando termos como “pertencimento” e “localização”, mostrando que os jogos de poder e as relações de forças políticas podem ser caracterizadas em termos espaciais. Nesse sentido, há uma perspectiva de pesquisa muito interessante. Inclusive, orientei a tese de uma italiana sobre a ideia de espaço político, num sentido que não seja metafórico. Esse trabalho tentou mostrar que a questão política é sempre uma questão de espaço e de pertencimento. Essa perspectiva, sobre a qual ainda não trabalhei, é muito frutífera. Espero que pesquisadores avancem sobre essa questão. Ademais, só queria ressaltar dois pontos. O primeiro é o seguinte: não acho que a fenomenologia deva, necessariamente, desembocar em uma perspectiva política ou em uma ética. Talvez seja necessário assumir uma ausência de continuidade entre um pensamento político e uma fenomenologia. Aquilo que tento explicitar se situa aquém do modo de ser humano, ou seja, falo de uma dimensão muito mais profunda, muito mais radical, que é a da fenomenalização, das condições de possibilidade da fenomenalidade. O sujeito de que eu falo é um sujeito que ainda não é homem ou mulher, brasileiro ou francês, de direita ou de esquerda. Trata-se de uma camada anônima e não intersubjetiva, uma camada que diz respeito ao sujeito da manifestação. A segunda e última observação é a seguinte: eu apoiei o Melenchon, nas últimas eleições presidenciais, digamos, oficialmente. Aí, as pessoas me perguntam: “Qual é a relação entre sua fenomenologia e o apoio a uma posição muito à esquerda?” Eu respondo que não é necessário fazer essa relação, basta ser atingido e emocionado pela situação social das pessoas, pela exploração, pelos danos do capitalismo, para se engajar do lado das pessoas que têm uma consciência social e tentam lutar. Não é preciso uma metafísica para defender isso. Então, pode haver uma cisão entre a minha posição como metafísico e minha posição política. Tudo bem: se houvesse uma continuidade, seria ótimo, mas não acho evidente e nem sei se é possível estabelecer esse vínculo. Agora, Patočka é o único pensador, na tradição fenomenológica, que se engajou de verdade. Nenhum deles, fora Patočka, foi muito brilhante em seus engajamentos políticos. Sobre Heidegger, todo mundo já sabe. Merleau-Ponty, durante a guerra, ficou em Paris, fazendo a tese, não entrou na Resistência e só foi conversar nos cafés. Sartre não lutou contra os alemães que ocuparam Paris e continuou a publicar os seus trabalhos. O único que verdadeiramente se engajou foi Patočka – e morreu por causa disso. Ele foi o único que tentou estabelecer uma continuidade entre uma fenomenologia e uma ética (e isso é maravilhoso!), através da teoria dos três movimentos da existência. Patočka é um pensador pelo qual tenho muita admiração. Finalizando, não é uma resposta, mas uma observação: cabe a vocês e a outras pessoas tentarem desenvolver essa perspectiva que acho extremamente interessante.

 

ReferÊncias

BARBARAS, Renaud. Dynamique de la manifestation. Paris: Vrin, 2013.

BARBARAS, Renaud. L’appartenance: vers une cosmologie phénomenologique. Leuven: Peeters, 2019.


 



[1] Agradecemos o apoio da FAPESP - Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo e da CAPES - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.

[2] Professor de Filosofia Contemporânea na Universidade de Paris 1 Panthéon - Sorbonne.

[3] Professor de História da Filosofia Contemporânea na UNESP - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”.

[4] Aluno do curso de Filosofia da UNESP - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, tendo realizado estágio de pesquisa na França (BEPE), financiado pela FAPESP, processo 2019/25007-4, sob a supervisão de Renaud Barbaras.

[5] Doutorando em Filosofia na UFSCar - Universidade Federal de São Carlos, em período sanduíche na França, com bolsa CAPES.