Resumo: A produção de notícias falsas, que tem como finalidade a disseminação de informações inverossímeis, constitui-se componente tradicional no jogo político. Nesse sentido, a tentativa deliberada de construir mentiras acerca de assuntos públicos, deturpando a realidade, é levada a cabo por teóricos como Paul Rassinier e Marco Antônio Villa, cujas obras se inscrevem no interior do movimento revisionista. A proposta deste trabalho é formular, em termos políticos, o que se denomina revisionismo e relacioná-lo com os perigos da mentira deliberada, na perspectiva de Hannah Arendt. O revisionismo deve ser compreendido como movimento de fomento e disseminação de mentiras deliberadas, o qual tem o propósito de adulterar o mundo, negando, por exemplo, a existência de fatos históricos como Holocausto e Ditadura Civil-Militar Brasileira. Mostrar-se-á, neste artigo, que um dos antídotos capazes de mitigar os efeitos da mentira deliberada é a verdade factual, que, por ser construída pelo testemunho plural, tem uma natureza política. Ela assegura que o mundo não seja ameaçado em suas estruturas constitutivas, isto é, que as ações que nele ocorrem não sejam alteradas e as memórias dessas ações não sejam corrompidas.
Palavras-chave: Revisionismo. Mentira Deliberada. Verdade Factual. Mundo. Hannah Arendt.
Jamais je n’oblierai cette nuit, la première nuit de campo que a fait de ma vie une nuit longue et sept fois verroullée.
Jamais je n’obliereai cette fumée.
Jamais je n’oublierai les petits visages des enfats dont j’avais vu les corps se transformer en volutes sous un azur muet.
Jamais je n’oublierai les ces flammes qui consumérent pour toujours ma Foi.
Jamais je n’oublierai ce silence nocturne qui m’a privé pour l’éternité du désir de vivre.
Jamais je n’oublierai ces instants qui assassinèrent mon Dieu et mon âme, et mes rêves qui prirent le visagem du désert,
Jamais je n’oublierai cela, meme si j’étais condamné à vivre aussi longtemps que Dieu lui-même. Jamais.
(Elie Wiesel. La Nuit)
INTRODUÇÃO
As reflexões do presente texto sustentam-se sobre a hipótese de que há, na contemporaneidade, a edificação de “políticas de esquecimento”, que são uma ameaça contundente à formação do espaço público e à constituição da memória coletiva. Para realizar a distinção entre memória individual e memória coletiva, devemos nos voltar para as reflexões de Paul Ricœur acerca dessa temática, as quais se encontram, fundamentalmente, em sua obra Memory, History, Forgetting. Na perspectiva de Ricœur, há a construção de uma polarização entre memória individual e memória coletiva, em que, em um dos polos, se encontra a fenomenologia da memória, ou seja, a tradição filosófica do “olhar interior”, a qual principia com as Confissões de Santo Agostinho e alcança o seu apogeu com Husserl; no outro, encontra-se a sociologia da história. Para mitigar essa polarização, deve-se entrar no campo da história, em sua tríplice atribuição: a si, aos próximos e aos outros. Essa hipótese ricoueriana é explicitada nos seguintes termos:
Não existe, entre os dois pólos da memória individual e da memória coletiva, um plano intermediário de referência no qual se operam concretamente as trocas entre a memória viva das pessoas individuais e a memória pública das comunidades às quais pertencemos? Esse plano é o da relação com os próximos, a quem temos o direito de atribuir uma memória de um tipo distinto. Os próximos, essas pessoas que contam para nós e para as quais contamos, estão situados numa faixa de variação das distâncias na relação entre o si e os outros. (RICŒUR, 2007, p. 141).
As “políticas de esquecimento” apresentam-se com diversas roupagens: pela imposição da amnésia coletiva, por meio de leis de anistia,[2] pela tentativa de modificar a verdade factual, como fazem os movimentos revisionistas, os quais tomaremos como um dos vetores da presente reflexão.
A investida revisionista, ou seja, o movimento que procura reconstruir fenômenos históricos, de acordo com interesses particulares, ameaça várias camadas do tecido público, inclusive aquele responsável pela construção da memória coletiva: relicário dos tesouros que abastecem a faculdade do pensamento. Essa investida contra a memória leva ao risco de desmantelamento da atividade do pensar, quer dizer, há o perigo de deterioração da “matéria-prima” que a faculdade do pensamento utiliza, em sua ativação. Tal deterioração se fomenta da seguinte maneira: para que haja a ativação da faculdade do pensamento, é necessário, prioritariamente, que os objetos dos sentidos passem por um processo de dessensorialização, quer dizer, é preciso que a imaginação, a experiência mais elementar do pensamento, inverta as relações habituais, transformando os objetos sensíveis em imagens, capazes de ser manipuladas pela atividade de pensar. Essas imagens, os invisíveis, aquilo que Arendt denomina coisas-pensamento, constituem a “matéria-prima” da atividade de pensar. Essa “matéria-prima”, antes de fazer-se presente no espírito para alimentar a atividade crítica-reflexiva do pensar, é retida na memória – que é guardada pela deusa Mnemosyne (Memória), mãe das “Musas”, a qual cuida da lembrança. Isso implica que o pensar pode ser considerado, sem danos conceituais, um “repensar”:[3] o trazer à presença do espírito o ausente, transformado pela imaginação reprodutiva em metáfora.[4]
Ao contrário, a imaginação produtiva maneja ao seu bel-prazer as imagens fomentadas pela imaginação reprodutiva, promovendo a seleção das imagens que serão postas diante do pensar, para que ele possa atribuir-lhes sentido, significá-las. Bethânia Assy compreende que há um preparo, uma transformação de um objeto em coisas-pensamento, sem os quais a faculdade do pensamento ficaria mergulhado em um vazio e, assim, inativo. De forma sucinta, esse preparo pode ser descrito nos seguintes termos:
A diferença entre a mera apreensão de uma imagem e o ato deliberativo de lembrar por meio da atividade de pensar remete, por analogia, a reconsiderar a distinção entre percepção passiva e ativa. Assim, A capacidade de “de-sensorializar” (de-sense) um objeto sensorial (sense-object), ele mesmo nunca aparente ao espírito, transforma o objeto, aparente aos sentidos, em uma imagem que pertence à imaginação. Essa operação, executada pelo que Arendt denomina de “imaginação reprodutiva”, remete-nos a ideia de que o entreposto da memória reflete uma percepção passiva, ou seja, a “habilidade ainda mais elementar de de-sensorializar e de ter presente diante (e não apenas em) do seu espírito o que está fisicamente ausente”. Por outro lado, apesar de diretamente dependente da imaginação reprodutiva, Arendt nomeia uma “imaginação produtiva”, que promove a seleção deliberativa, a relocação e a atribuição de sentido a uma imagem. (ASSY, 2015, p. 62-63).
Contudo, é importante salientar que a investida revisionista contra a “matéria-prima” da faculdade do pensamento principia na ameaça à preservação do mundo comum, uma vez que o esforço para alterar os fatos significa um esforço para alterar o que se diz sobre o mundo, alteração essa que poderá edificar um mundo fictício, como fizeram as ideologias totalitárias.[5] A realidade ficcional fomentada por essas ideologias, as quais propagam a existência de uma raça pura ou de uma classe social superior, adultera o campo a partir do qual emanam os objetos que serão manipulados pela faculdade do pensamento. Esses objetos são as experiências dos afazeres humanos ocorridas no mundo comum, pois, caso o pensar se alimentasse da realidade forjada pelas ideologias, teríamos, ao findar momentâneo de sua ativação, não a construção de significados, mas a ausência de compreensão do que é o mundo.
Nessa perspectiva, “dizer o que é” significa pronunciar uma verdade do tipo factual, visto que está se falando sobre um fato, um evento ocorrido na esfera pública,[6] fazendo com que haja uma promoção da sobrevivência do mundo comum, porque, para que a significação do mundo seja efetivada, é necessário que se troquem experiências sobre ele e se falem sobre essas experiências, já que, do contrário, o mundo perde sua “realidade”, ou seja, deixa de ser experienciado como uma morada imortal de seres mortais. Assinala Arendt:
Se alguém quiser ver e conhecer o mundo tal como ele é “realmente”, só poderá fazê-lo se entender o mundo como algo comum a muitos, que está entre eles, separando-os e unindo-os, que se mostra para cada um de maneira diferente e, por conseguinte, só se torna compreensível na medida em que muitos falam sobre ele e trocam suas opiniões, suas perspectivas uns com os outros e uns contra os outros. Só na liberdade do falar um com o outro nasce o mundo sobre o qual se fala, em sua objetividade visível de todos os lados. (ARENDT, 2006, p. 60).
O mundo, que, na perspectiva arendtiana deve ser compreendido como um artifício humano que reúne e separa a pluralidade de homens – manifesta em seu seio através de palavras e de ações –, só ganha os seus verdadeiros contornos se for um objeto de discurso. Nesse sentido, o mundo é ameaçado a partir do momento em que se procura, deliberadamente, alterar os fatos, ocasionando o emudecimento o qual impede que se troquem opiniões e perspectivas sobre a morada imortal de seres mortais. Essa ameaça se estende à memória e à faculdade do pensamento, uma vez que o pensar se debruça sobre os fatos ocorridos. na busca de significá-los.[7]
Quem é um dos perpetradores dessa ameaça? Jean Pierre Vidal-Naquet, em Assassins of Memory, nomeia-os revisionistas, dos quais Paul Rassinier é um dos maiores expoentes. Antes de adentrarmos às críticas deferidas por Vidal-Naquet aos revisionistas, é mais producente entendermos, brevemente, as características que, em seu conjunto, formam a estrutura sobre a qual se sustentam as suas práticas.
1 A MENTIRA DELIBERADA: O MOVIMENTO REVISIONISTA
A mentira constitui-se em uma clássica ferramenta política, a qual é utilizada para ocultar segredos e dados sobre os quais não se deseja a incidência da forte luz da publicidade. Contudo, a mentira deliberada é de uma outra natureza:[8] ela é um dos artifícios mais eficazes para alterar propositadamente os fatos e construir uma realidade que não seja oriunda dos afazeres humanos, no espaço de aparência, mas dos laboratórios dos movimentos falseadores, a exemplo do revisionismo.
Um dos primeiros movimentos revisionistas, encabeçado por Eduard Bernstein, no final do século XIX, teve como mote principal realizar uma revisão da história do marxismo, a qual é relacionada, com frequência, às visões de Bernstein acerca dos sociais-democratas. Bernstein defendia uma elaboração de uma revisão das teses fundamentais de Marx e Engels, principalmente em relação à dialética, com o objetivo de oferecer os fundamentos teóricos à prática reformista:[9]
As contradições presentes, segundo Bernstein, na teoria marxista seriam a razão para que uma teoria que parte da influência determinante da economia sobre o poder político desembocasse em “uma verdadeira fé milagrosa na virtude criadora do poder político” e na subordinação de todas as pretensões científicas à utopia. Tal ambiguidade teria raízes na incorporação da dialética hegeliana e de suas premissas – notadamente a confluência recíproca dos opostos e a transformação da quantidade em qualidade – ao marxismo. (ANDRANDE, 2006, p. 154).
A partir dos objetivos de um seus pais fundadores, as características constitutivas do revisionismo já se explicitavam, indicando qual seria o seu principal intuito, isto é, desconstruir uma compreensão da história, gerando uma modificação na verdade factual e, consequentemente, na sua interpretação.
É no avanço do movimento revisionista que se inscreve o surgimento do revisionista neonazista e de extrema esquerda, o qual procura negar o III Reich. Um dos principais propagadores dessa negação à existência do III Reich é Paul Rassinier: ativista político de esquerda e escritor francês, que, embora tenha sido um prisioneiro dos campos de concentração, dedicou boa parte da sua vida, transcorrida entre os anos de 1906 a 1967, a contra-argumentar acerca do número de vítimas, durante o governo nazista e, portanto, a desconstruir a ideia de ter havido um holocausto. Assim, Paul Rassinier aparece na obra de Pierre Vidal-Naquet como um dos seus principais adversários teóricos, pois, no entendimento de Vidal-Naquet, Paul Rassinier procura “[...] destruir não a verdade, mas a tomada de consciência da verdade” (VIDAL-NAQUET, 1997, p. 9), ao tocar na matéria factual, na tentativa de modificar a realidade, porque como se poderá tomar consciência da verdade de algo, se esse algo é adulterado?[10]
Diante dessa ofensiva revisionista, Vidal-Naquet alerta-nos de que há um medo do real, medo exemplificado pelo discurso que procura construir um disfarce para a realidade. A partir desse medo do real, revela-se uma distinção entre memória e história, porque o modo de seleção dos fatos históricos que serão narrados funciona de maneira diferente do modo como há uma seleção da memória, pois, no entendimento do autor, existem verdades enganadoras, as quais são propagadas em função de uma “história” eleita como oficial, que faz com que memórias sejam apagadas. É nessa perspectiva que Vidal-Naquet ressalta: “Quando os sobreviventes da deportação [judeus] tiverem desaparecido, talvez os pesquisadores do futuro tenham em mãos papeis hoje escondidos; mas não mais disporão da fonte principal, ou seja, da memória viva das testemunhas.” (VIDAL-NAQUET, 1997, p. 29).[11]
Contudo, mesmo quando os sobreviventes tiverem desaparecido, ainda restará um enorme obstáculo às intenções revisionistas:[12] o fato de estarem diante de crimes perpetrados contra a humanidade, os quais são imprescritíveis – “não esquecíveis” –, ao contrário dos crimes de guerra.[13] Em outras palavras, conquanto, a contragosto daqueles que tentam contar a história do seu ponto de vista – lembrando que um fato não tem um ponto de vista, mas somente a narrativa tem pontos díspares –, crimes cometidos contra a humanidade constituem-se em fatos cristalizados, os quais fazem com que não percamos de vista a certeza de que, embora as testemunhas oculares, ou melhor dizendo, as “vítimas oculares”, não mais existam, a memória dos delitos cometidos contra elas continuará a ser um forte indício de que houve um crime contra a humanidade, o qual ficou marcado em seus corpos e em suas mentes.
Como desdobramento do que foi exposto acima, Vidal-Naquet enfatiza que a verdade histórica é puro produto de uma “verdade superior”: a verdade político-econômica. E de que maneira podemos vislumbrar o fomento de “verdades superiores”? Essas vêm à luz por meio das práticas daqueles que estão em uma posição estratégica, tanto na perspectiva econômica quanto comunicacional e, assim, utilizam essas pujantes ferramentas para construir uma visão de mundo que seja pertinente aos seus interesses. Os fomentadores das “verdades superiores” não precisam constituir maioria em uma dada sociedade; basta que eles tenham ao seu dispor as ferramentas necessárias para parir uma compreensão de mundo que lhes seja útil. Essas “verdades superiores”, uma vez gestadas, precisam ser disseminadas e infiltradas na malha social e, para isso, é imprescindível que haja competentes propagadores, pessoas renomadas em suas áreas de atuação, que nós, usando os arcabouços argumentativos de Vidal-Naquet, denominamos revisionistas.
Nessa perspectiva, algumas das teorias fomentadas pelos revisionistas apontam para o “não fato” de que, em 1933, os judeus declararam guerra contra Hitler, caracterizando-se como uma investida contra a verdade factual, similar ao que comumente acontece no Brasil, onde ainda há aqueles que “opinam”, sustentando que não houve uma ditadura civil militar, entre os anos de 1964 a 1988.[14] Esses tipos de narrativas, propagadas na Europa e em solo brasileiro, são construídas por autores revisionistas, como Paul Rassinier e Marco Antônio Villa, este último que, em sua obra Ditadura à brasileira, procura desconstruir os fatos acerca das atrocidades cometidas durante o período ditatorial.
Assim, em nosso solo, o revisionismo ganha pujança a partir de obras como a de Marco Antônio Villa. O propósito desse historiador, em Ditadura à brasileira, é refutar versões falaciosas acerca dos governos militares que presidiram o Brasil entre os anos de 1964 a 1985. Villa, nessa obra, apresenta um quadro da situação política e social do Brasil, nos anos 60. No entendimento dele, o Brasil constituía-se como um país politicamente dividido, com problemas econômicos que desembocavam em movimentos grevistas e, portanto, a ameaça de tomada do poder pelos militares era iminente. “Em meio ao clima de golpismo, o regime democrático sobrevivia com dificuldades, pois era atacado tanto pela esquerda ‘golpista/revolucionária’ quanto pela direita”; e continua o autor na construção do cenário histórico brasileira: “Diante deste cenário, a Democracia acabaria sendo destruída, abrindo as portas para duas décadas de arbítrios e violências.” (VILLA, 2014, p. 07, grifos nossos).
As frases que destacamos explicitam que a própria escrita de Marco Antônio Villa o trai em seus objetivos, pois, se o Brasil viveu uma ditadura à sua moda, ou seja, uma não ditadura ou uma ditadura encetada somente após a promulgação do AI-5, por que estávamos em meio a um clima de golpismo que desembocaria em duas décadas de arbítrio e violências? O AI-5 não perdurou por duas décadas; ele foi promulgado em 1968 e revogado em 1978, ou seja, vigorou durante uma década. Assim, a tese de que a Ditadura Civil-Militar Brasileira somente foi instaurada a partir da promulgação desse ato é desmentida palas próprias palavras do autor, as quais não têm pujança suficiente para alterar a verdade factual. Embora os argumentos do autor sejam cambaleantes, é inegável que esse tipo de formulação se propaga e ameaça deturpar esse fato histórico que ainda reverbera em nossa realidade política e social.
Diante do exposto, percebemos que é inegável que os movimentos revisionistas influenciaram o modo de compreender determinados eventos históricos. Essa influência é asseverada, quando nós nos voltamos mais uma vez para as duas empreitadas revisionistas acima abordadas. Em uma das frentes, há a tentativa de reconstruir a história entre os anos de 1933 a 1945, sem as estrelas amarelas, sem os guetos, sem os transportes em massa de seres humanos em situações degradantes, sem as valas comuns para mortos em série, sem as câmaras de gás, sem o desaparecimento do corpo físico e da memória de mais de seis milhões de judeus, nos campos de concentração... enfim, sem o Holocausto; em outra frente, há a tentativa de reconstruir a história entre os anos de 1964 a 1988, sem a destituição de um presidente eleito de maneira democrática, sem as perseguições políticas, sem as censuras, sem os exílios, sem os porões do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), sem as torturas, sem as mortes... Essas duas frentes revisionistas esvaziam o espaço público, visto que é à memória coletiva que cabe o papel de revitalizar constantemente a esfera pública, e é essa esfera, lócus de aparência e de manifestação da pluralidade humana em ações e palavras, que possibilita haver um lugar apropriado para que o passado seja rememorado e revivido coletivamente.
Para sustentar a nossa hipótese de haver influência revisionista na compreensão de fatos históricos, devemos trazer à luz da presente reflexão algumas outras narrativas revisionistas, como aquela que se volta contra a compreensão do modo como foi levada a cabo a escravidão de grande parcela de povos africanos, durante o período colonial. Jacob Gorender, em A escravidão reabilitada, rechaça a recente ofensiva neoliberal, a qual reabilitou a antiga compreensão revisionista com raiz em Gilberto Freyre, que procurou construir a ideia de haver um suposto escravismo brasileiro patriarcal e benigno, no intuito de justificar a existência de perpétuos dominadores. O que Jacob Gorender procura é apontar para a falta de vigor argumentativo e teórico que há nessas análises revisionistas que buscam suavizar o escravismo brasileiro, afinal, escravidão e suavização não são termos correlatos, mas excludentes.
Outro exemplo é a negação do Massacre de Nanquim – antiga capital da República da China –, transcorrido durante seis semanas, entre o final de 1937 e o início de 1938, no período da Segunda Guerra Sino-Japonesa (1937-1945). Durante a ocupação de Nanquim, o exército japonês cometeu inúmeras atrocidades, como estupros, saques e incêndios criminosos, levando à morte centenas de milhares de pessoas, entre civis e prisioneiros de guerra. A investida revisionista nesse episódio histórico está na tentativa de diminuir o número de vítimas – há estimativas que apontam ter acontecido mais de trezentas mil mortes –, bem como na de reduzir o tempo de duração desse massacre. A fim de corroborar a ofensiva revisionista contra o Massacre de Nanquim, esse acontecimento não é ensinado nas escolas públicas, por determinação do governo do Japão. Essa negação do massacre beneficiou a família imperial japonesa, principalmente o imperador Michinomiya Hirohito, que não foi punido.[15]
Essas investidas revisionistas colidem com as verdades factuais, as quais, embora devam ser compreendidas como um eficaz antídoto na tentativa de mitigar os efeitos danosos dos movimentos revisionistas, precisam ser tomadas com cautela. A exigência de cautela no tratamento das verdades factuais é justamente porque elas não são autoevidentes, não podendo, portanto, ser subsumidas às verdades do tipo racional, correndo o risco de serem modificadas pela mentira deliberada. Arendt realiza a distinção entre verdade factual (ou verdade de fato) e verdade racional nos seguintes termos:
A época moderna, que acredita que a verdade não é dada nem revelada mas produzida pela mente humana, designou, desde Leibniz, as verdades matemática, científica e filosófica como espécies da verdade racional, distintas da verdade factual. Usarei esta distinção por conveniência, sem discutir sua legitimidade intrínseca. (ARENDT, 1961, p. 231).
De acordo com Arendt, a verdade factual, para se sustentar, não pode lançar mão unicamente do seu conteúdo, pois, ao contrário da verdade racional, não é transcendente aos assuntos humanos, mas depende do testemunho acerca de algo que ocorreu. Assim, a verdade racional ilumina o entendimento humano e a verdade factual informa opiniões e mitiga os perigos da mentira deliberada.
2 A VERDADE FACTUAL: UM ANTÍDOTO CONTRA A MENTIRA DELIBERADA
Falar sobre um fato ocorrido, além de estimular o desenvolvimento daquilo que Arendt denomina de verdade factual, promove a sobrevivência do mundo, como foi já apontado. Diante de tal assertiva, podemos dizer que a construção da verdade do tipo factual se concretiza em duas frentes que, ao final, se cruzam. Primeiro, fatos devem ser compreendidos como o resultado daquilo que os homens realizam de maneira conjunta, constituindo a verdadeira tessitura do domínio público. Segundo, verdades factuais necessitam da comprovação de outras pessoas, uma vez que essas verdades são oriundas de eventos circunstanciais, nos quais muitos atores e espectadores estão envolvidos. Conforme Arendt, esses eventos, para se tornarem verdades, precisam ser sustentados pela comprovação de testemunhas oculares, registros e documentos, ou seja, há a necessidade de que se construa um argumento sobre eles, que se fale sobre o que ocorreu.
Em outras palavras, as ações dos homens em conjunto constituem aquilo que Arendt denomina fatos e eventos, os quais, para serem galgados ao patamar de verdade factual, precisam que muitos falem sobre esses eventos e, assim, deem o seu testemunho verificativo.[16] Nesse sentido, assinala Arendt:
A verdade factual [...] está sempre relacionada com outra pessoa: ela concerne aos eventos e circunstâncias nas quais muitos estão envolvidos; ela é estabelecida a partir de testemunhas e depende de testemunhos; ela existe apenas na medida em que dela se fala, mesmo se ocorre no domínio privado. Ela é política por natureza. (ARENDT, 1961, p. 238).
É importante reiterar que há limitações da verdade factual em seus elementos constitutivos, as quais possibilitam que a empreitada revisionista seja possível. Essas limitações podem ser descritas de seguinte maneira: fatos constituem o solo a partir do qual se consolidam as verdades factuais, que são mais frágeis e vulneráveis do que os axiomas descobertos pelas teorias científicas, pois elas nascem no campo das ocupações humanas, ou seja, um campo instável e imprevisível. Se as verdades factuais nascem desse solo instável, é possível dizer que um fato ou um evento ocorrido poderia ter transcorrido com outro viés, ou mesmo não ter acontecido.
É sobre esse solo de instabilidade que o revisionista finca seus pés e procura alterar os fatos, alteração que, na perspectiva arendtiana, poderia ser tomada como uma tentativa deliberada de mentir, pois “[...] ele diz o que não é, porque deseja que as coisas sejam diferentes daquilo que são, isto é, ele deseja transformar o mundo.” (ARENDT, 1961, p. 250, tradução nossa). Podemos asseverar, a partir do exposto, que um fato esquecido ou deliberadamente modificado pela mentira cabal dificilmente é restabelecido ao seu verdadeiro matiz. Os mentirosos são verdadeiros atores, os quais têm a intenção de alterar o mundo, à medida que pretendem transformar a verdade factual em uma opinião, apagando a diferença que há entre esses dois fenômenos da vida pública. A “[...] verdade factual não é mais autoevidente do que a opinião, e essa pode ser uma das razões pelas quais os que sustentam opiniões acham relativamente fácil desacreditar a verdade factual como simplesmente uma outra opinião.” (ARENDT, 1961, p. 243, tradução nossa).
Embora os elementos que dão existência à verdade factual confiram a ela um caráter limitador, é importante asseverar que investir contra a verdade factual não se constitui em tarefa fácil, porque ela nasce de eventos ocorridos de uma determinada forma que não se pode emitir uma opinião contrária à natureza desse evento. “[...] como se o fato do apoio da Alemanha a Hitler, ou o colapso da França ante as forças alemãs, em 1940, ou a política do Vaticano durante a Segunda Guerra Mundial não fossem questão de registro histórico e sim uma questão de opinião.” (ARENDT, 1961, p. 236, tradução nossa).[17]
É legítimo que uma geração futura, que não se constitui em testemunha ocular de um fato ocorrido, tenha o direito de escrever sua própria história e lançar luz sobre um evento ocorrido a partir do seu ponto de vista. Contudo, não é legítimo que essa mesma geração procure modificar os fatos de acordo com seus interesses, ou seja, ela não tem “[...] o direito de tocar na própria matéria factual.” (ARENDT, 1961, p. 239, tradução nossa). Em outras palavras, cada geração pode interpretar e emitir uma opinião sobre um fato ocorrido, mas não pode modificar a natureza desse fato. É essa característica da verdade factual que aparece como um empecilho às pretensões revisionistas, pois o testemunho de vários homens ou a existência documental mitiga as tentativas de alterar a natureza dos eventos ocorridos.
Ao percorrermos o encadeamento reflexivo posto em marcha, foi possível perceber o fundamento teórico que permite a Arendt sustentar que o contrário de uma verdade factual não é o erro nem a ilusão, tampouco a opinião, mas a falsidade deliberada e a mentira cabal. Compreendemos, então, que o outro lado da moeda da verdade factual não é uma opinião que se lança sobre ela, porém, uma mentira deliberadamente orquestrada, que tem por mote fazer com que as coisas pareçam ser diversas daquelas que realmente são. “Como todas as coisas que ocorrem efetivamente no âmbito dos assuntos humanos poderiam ter sido igualmente de outro modo, as possibilidades da mentira são ilimitadas […]” (ARENDT, 1961, p. 258, tradução nossa).
É em face dessa dupla de opostos – verdade factual/mentira deliberada – que aqueles que dizem a verdade aparecem como sujeitos comprometidos com os negócios políticos, uma vez que eles, com o seu testemunho verdadeiro, contribuem para a preservação e o cuidado do mundo, em um movimento de neutralização da violência, pois a mentira procura sempre destruir aquilo que ela se propôs negar. Aquele que conta a verdade está preservando a possibilidade de haver a formação de opiniões, as quais se constroem a partir de um dato fato ou evento. É nessa perspectiva que Arendt nos adverte: “Fatos informam opiniões, e as opiniões, inspiradas por diferentes interesses e paixões, podem diferir amplamente e ainda serem legítimas, no que respeita a sua verdade factual.” (ARENDT, 1961, p. 238, tradução nossa). Arendt procura realçar que a verdade de maior relevância para o terreno da política é do tipo factual, pois é sobre o solo dos eventos e fatos ocorridos que podemos emitir nossa opinião, ou seja, nossa perspectiva em relação ao mundo.
É a preservação da natureza de um fato ou evento que manterá a sobrevivência do mundo e, consequentemente, da “matéria-prima” que alimenta a memória e a faculdade do pensamento, porque, caso as investidas dos revisionistas sejam eficazes, os “tesouros do palácio da memória”[18] passarão por um processo de corrupção, fazendo com que os homens, quando ativarem o pensar, se debrucem sobre um material manipulado, fomentando uma significação do mundo a partir de uma mentira deliberadamente forjada, isto é, significaremos mentirosamente sobre o mundo.[19]
Diante do exposto, podemos afirmar que a memória tem uma natureza frágil, suscitando riscos iminentes de haver distorções e modificações, porque os fatos e os eventos que são o alicerce de sua sustentação podem ser intencionalmente modificados, em função de uma investida de um mentiroso, levando a um movimento de esquecimento generalizado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os movimentos reflexivos que realizamos, no presente artigo, gravitaram em torno de dois eixos de categorias políticas: em um dos eixos, agrupamos as categorias “verdade factual”, “mundo” e “memória”, enquanto, no outro, “mentira deliberada” e “revisionismo”. Procuramos apontar para o fato de haver riscos, quando o segundo eixo invade o espaço do primeiro e investe contra ele, riscos que podem alterar a identidade de uma nação em tempos vindouros.
Nessa franja argumentativa, compreendemos que as sociedades modernas sofrem de uma espécie de amnésia coletiva, a qual determina que tipo de esfera pública será erigida, bem como que tipo de “cidadão” manifestará, na esfera pública, como o mundo lhe aparece. É no espaço público que emergem ações em consenso, as quais serão rememoradas por futuras gerações, que, ao contarem o fato ocorrido, falarão e trocarão experiências sobre o que o mundo é, contribuindo para a preservação de um espaço comum sobre o qual outras ações em consenso venham a ser realizadas e mais um “tesouro” seja agregado ao “palácio da memória”. É nesse sentido que a ausência de memória leva à desertificação do espaço público, ao passo que a desertificação do espaço público ocasiona uma amnésia coletiva:
Para que se tornem coisas mundanas, isto é, feitos, fatos, eventos e modelos de pensamentos ou ideias, devem [ação e discurso] primeiro ser vistos, ouvidos e lembrados, e então transformados em coisas, reificados, por assim, dizer – em recital de poesia, na página escrita ou no livro impresso, em pintura ou escultura, em algum tipo de registro, documento ou monumento. Todo o mundo factual dos assuntos humanos depende, para sua realidade e existência contínua, em primeiro lugar, da presença de outros que tenham visto e ouvido e que se lembram; e, em segundo lugar, da transformação do intangível na tangibilidade das coisas. Sem a lembrança e sem a reificação de que a lembrança necessita para sua realização – e que realmente a torna, como afirmavam os gregos, a mãe de todas as artes –, as atividades vivas da ação, do discurso e do pensamento perderiam sua realidade, ao fim de cada processo, e desapareceriam como se nunca houvessem existido. (ARENDT, 1958, p. 95, tradução nossa).[20]
Arendt é enfática, ao sublinhar que os fatos precisam ser vistos e ouvidos para que, a posteriori, sejam lembrados e passem pelo processo de reificação, sem o qual eles se perderão no tempo, como fumaça que se dissipa no ar. Devemos salientar que não somente os fatos devem passar pelo processo de serem vistos e ouvidos, no intuito de não perderem a sua realidade, sobretudo para guardarem em si a pujança que os torna resistentes aos ataques revisionistas. Caso o revisionismo consiga deliberadamente alterar os fatos, o que será lembrado e reificado é uma visão de mundo forjada por um grupo de pessoas cuja palavra não revela, mas encobre interesses de dominação, de controle e perpetuação de um status quo.
A tentativa de perversão da realidade, a qual é implementada pelos movimentos revisionistas, aparece como um dos mais iminentes perigos à preservação do mundo comum, que, como destacamos acima, para que seja visto como ele realmente é, ou seja, uma morada imortal de seres morais, que estabiliza suas existências, necessita de que homens no plural falem uns com os outros e uns contra os outros sobre os fatos ocorridos em seu seio. A mentira deliberada altera o que se diz sobre o mundo e, consequentemente, o que será lembrado sobre esse mesmo mundo. Se há uma necessidade de manter intactos alguns espaços físicos onde ocorreram atentados violentos contra a dignidade da pessoa humana, como o campo de concentração de Auschwitz ou os porões de tortura do DOPS, é para que esses fatos hediondos sejam constantemente lembrados, no intuito de que nunca mais venham a acontecer. Se os fatos que, em seu conjunto, constituem momentos históricos como o Holocausto e a Ditadura Civil-Militar Brasileira forem alterados, haverá um risco pujante que esses horrores sejam novamente perpetrados, pois as novas gerações não terão uma dimensão da gravidade do que ocorreu e, até mesmo, poderão levantar bandeiras em defesa dos regimes que tornaram possíveis essas barbáries.
REVISIONISM AND THE DANGERS OF DELIBERATE LIES
FROM HANNAH ARENDT'S PERSPECTIVE
Abstract: The production of fake news, which aims to disseminate untraceable information, is a standard component in the political game. In this sense, the deliberate attempt to construct lies about public affairs, as a form of misrepresenting reality, is carried out by theorists such as Paul Rassinier and Marco Antônio Villa, whose works are inscribed within the revisionist movement. Our proposal here is to formulate, in political terms, what is called revisionism and show how it is related to the dangers of deliberate lying from Hannah Arendt's perspective. Revisionism should be understood as a movement for the promotion and dissemination of deliberate lies, which has the purpose of adulterating the world, denying, for example, the existence of historical facts such as the Holocaust and the Brazilian Civil-Military Dictatorship. We will show in this article that one of the antidotes capable of mitigating the effects of deliberate lying is factual truth, which, because it is constructed by plural testimony, has a political nature. It ensures that the world is not threatened in its constitutive structures, that is, that we should not alter the actions that had occur in it and the memories of these actions should not be corrupted.
Keywords: Revisionism. Deliberate Lie. Factual Truth. World. Hannah Arendt.
REFERÊNCIAS
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Recebido: 21/7/2020
Aceito: 22/9/2020
[1] Professor do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Piauí (UFPI), Teresina, PI – Brasil. Orcid: https://orcid.org/0000-0002-7339-6689. E-mail: fabiopassos@ufpi.edu.br
[2] “Do the abuses of memory placed under the heading of obligated, commanded memory find their parallel and complement in the abuses of forgetting? Yes, in the institutionalized forms of forgetting, which are a short step across the boundary from amnesia: this mainly concerns amnesty and, in a more marginal sense, pardoning, also called amnestying pardon. The boundary between forgetting and forgiving is crossed surreptitiously, to the extent that these two dispositions have to do with judicial proceedings and with handing down a sentence. The question of forgiving arises where there has been an indictment, a finding of guilt, and sentencing; the laws dealing with amnesty thus consider it as a sort of pardon.” (RICŒUR, 2004, p. 452-453).
[3] “[...] there is no determination of the meaning of thinking in general before the experience of thinking in particular, nor then a general determination of what thinking is separate from particular interpretation of things already worked out in thought. Moreover, ‘thinking always implies remembrance, [and] every thought is strictly speaking an afterthought’ (Arendt 1978: 78). The thinking about thinking is thus the remembrance of remembrance, always already implicated in what one has already thought and the sense one has already made of things. There is for thought then no neutral encounter with the world as if, in thinking, one merely ‘sees’. Nor then is there a neutral account of thinking itself, free form the interpretation one has already made of things.” (BURCH, 2011, p. 12).
[4] “The metaphor achieves the ‘carrying over’ – metapherein – of a genuine and seemingly impossible metabasis eis alio genos, the transition from one existential state, that of thinking, to another, that of being an appearance among appearances, and this can be done only by analogies. (Kant gives as an example of a successful metaphor the description of the despotic state as a ‘mere machine (like a hand mill)’ because it is ‘governed by an individual absolute will… For between a despotic state and a hand mill there is, to be sure, no similarity; but there is a similarity in the rules according to which we reflect upon these two things and their causality.” (ARENDT, 1978, p. 103).
[5] Em suas análises, quando Hannah Arendt define a ideologia como “the logic of an idea” (ARENDT, 1962, p. 469), a autora a caracteriza como uma ferramenta lógica que procura fomentar uma visão unitária e homogênea de mundo, rechaçando, assim, a possibilidade de que qualquer tipo de imprevisibilidade possa macular uma cadeia de pensamento pautado em premissas lógicas, porque um silogismo, para que seja inequívoco, não pode conter em seus princípios a incerteza do “ou/ou”, pois não chegaríamos a uma conclusão indubitável, mas a uma opinião provisória. O que a ideologia pretende é fazer com que a realidade, nessa perspectiva, esteja condicionada a um processo no interior do qual o que quer que aconteça ocorra segundo a lógica de uma ideia, porque as supostas contradições advindas dos fatos concretos são estágios de um movimento coerente. Em outras palavras, essa visão de mundo deve ser entendida à maneira de um silogismo, o qual, pela aplicação de uma ideia na história, revela um processo coeso, o qual não necessita da realidade factual para confirmá-lo, tampouco para negá-lo. Portanto, a ideologia, no âmbito dos regimes totalitários, procura realizar uma demonstração cujo objetivo é o de arrumar os fatos, a partir da dedução das premissas de um silogismo infalível. Este faz com que a realidade, na esfera dos assuntos humanos, ganhe uma coerência que não existe. Essa coerência se torna possível de ser alcançada, visto que o movimento do pensar lógico não emana da experiência, porém, gera a si mesmo, fazendo com que a premissa seja o único elemento crível.
[6] “During the twenties, so a story goes, Clemenceau, shortly before his death, found himself engaged in a friendly talk with a representative of the Weimar Republic on the question of guilt for the outbreak of the First World War. ‘What, in your opinion,’ Clemenceau was asked, ‘will future historians think of this troublesome and controversial issue?’ He replied, ‘This I don't know. But I know for certain that they will not say Belgium invaded Germany’. We are concerned here with brutally elementary data of this kind, whose indestructibility has been taken for granted even by the most extreme and most sophisticated believers in historicism. It is true, considerably more than the whims of historians would be needed to eliminate from the record the fact that on the night of August 4, 1914, German troops crossed the frontier of Belgium; it would require no less than a power monopoly over the entire civilized world.” (ARENDT, 1961, p. 239).
[7] Sobre isso, afirma Celso Lafer: “Com Heidegger, Hannah Arendt aprendeu a distinguir ‘entre um objeto de erudição e uma coisa pensada’. Em outras palavras, pensar não é pensar sobre alguma coisa, mas pensar alguma coisa.” (LAFER, 1988, p. 21).
[8] É importante salientar que Arendt, em “Verdade e Política”, no tomo IV, se aproxima do que havia sugerido Jacques Derrida, em sua obra História da Mentira: Prolegômenos, ou seja, construir uma pequena “história da mentira”. Isso se torna evidente, se nos voltamos para as palavras de Arendt, quando ela assevera: “We must now tum our attention to the relatively recent phenomenon of mass manipulation of fact and opinion as it has become evident in the rewriting of history, in image-making, and in actual government policy. The traditional political lie, so prominent in the history of diplomacy and statecraft, used to concern either true secrets – data that had never been made public – or intentions, which anyhow do not possess the same degree of reliability as accomplished facts; like everything that goes on merely inside ourselves, intentions are only potentialities, and what was intended to be a lie can always tum out to be true in the end. In contrast, the modem political lies deal efficiently with things that are not secrets at all but are known to practically everybody. This is obvious in the case of rewriting contemporary history under the eyes of those who witnessed it, but it is equally true in image-making of all sorts, in which, again, every known and established fact can be denied or neglected if it is likely to hurt the image [...]” (ARENDT, 1961, p. 252).
[9] “Os primeiros esforços do autor no sentido de realizar uma ampla revisão da teoria marxista foram efetuados por intermédio de uma série de artigos intitulados ‘Problemas do Socialismo’ publicados na Neue Zeit entre 1896 e 1898 e desenvolvidos, a pedido de Karl Kautsky e Viktor Adler, no livro ‘Os Pressupostos do Socialismo e as Tarefas da Socialdemocracia’, em 1899. Nestes escritos, Bernstein dedica-se a compor os princípios basilares do revisionismo, aos quais manteve-se fiel até o final de sua vida. Seu objetivo primordial consistia na refutação da teoria do colapso, propagada, ainda que de modo paradoxal, pelos líderes da social-democracia alemã e firmada na parte teórica do Programa de Erfurt. Estes aliavam à prática imediatista de luta por reformas políticas e econômicas uma confiança inabalável na iminente derrocada final do capitalismo resultante do agravamento das crises econômicas, conforme Marx e Engels haviam propugnado.” (ANDRANDE, 2006, p. 155).
[10] Segundo Vidal-Naquet, os revisionistas perceberam que era preciso mudar de inimigo: “No espírito da extremíssima-esquerda é preciso diminuir a importância dos crimes nazistas e, em compensação, aumentar a culpabilidade do mundo ocidental e do mundo comunista de forma a fazer com que a opressão comum apareça.” (VIDAL-NAQUET, 1997, p. 140).
[11] “[...] tudo o que a geração dos sobreviventes guardou com supremo esforço na memória para transmitir aos que a seguem ameaça cair no esquecimento e em breve Auschwitz poderá se repetir com outro nome. Como se pode eliminar o perigo do esquecimento ligado a toda a troca de geração?” (WEINRICH, 2001, p. 257).
[12] Nesse ponto, é fecundo realizarmos uma demarcação entre uma tipologia de revisionismo, que reinterpreta dados e fatos, e um revisionismo que os deturpa, o qual é objeto de estudo do presente artigo. Assim, há o revisionismo no interior da física relativista, ou seja, da física newtoniana ou da química quântica relativística, o qual aplica seus métodos em estudos de cinética química; duas matrizes científicas que, ao realizarem esses movimentos investigativos, não procuram ocultar tampouco negligenciar fatos e dados, mas, ao contrário, buscam reinterpretar alguns dados à luz de novas propostas teóricas. O tipo de revisionismo que é tencionado por nós é de matriz política, que constrói de maneira deliberada uma mentira que vai de encontro com dados factuais, os quais, em seu conjunto, edificam fenômenos históricos como o Holocausto, os totalitarismos nazista e stalinista e a ditadura civil-militar brasileira.
[13] “Ora, o que é um crime contra a humanidade? Trata-se, segundo o estatuto do tribunal militar de Nuremberg, artigo 6c, de ‘atrocidades e delitos que incluem, mas não se limitam ao assassinato, ao extermínio, à captação de escravos, à deportação, à prisão, à tortura, à violação ou outros atos desumanos cometidos contra a população civil, ou as perseguições por motivos políticos, raciais ou religiosos, com ou sem a violação das leis internas do país onde essas ações foram perpetradas’.” (VIDAL-NAQUET, 1997, p. 204).
[14] Para Daniel Aarão Reis, observar como e quando ocorreu o fim da Ditadura Militar Brasileira, que, segundo ele, aconteceu pela promulgação da Constituição de 1988, não é tarefa fácil, pois alguns pensadores veem no processo de abertura política o fim da ditadura. Nesse sentido, aparece como uma questão das mais difíceis precisar como se “[...] foi extinguindo a ditadura, redefinindo-se, transformando-se, transitando lentamente para o regime democrático, mudando de pele como um camaleão muda de cores, numa lenta metamorfose que até hoje suscita polêmicas a respeito de quando, efetivamente, terminou.” (REIS, 2014, p. 15).
[15] A esse respeito, ver a obra de Ryuho Okawa, The Truth of Nanking and Comfort Women Issues: A Spiritual Reading into World War II by Edgar Cayce (Spiritual Interview Series).
[16] Segundo Primo Levi, “[t]odos os problemas levantados pelos historiadores revisionistas, todas as objeções relativas ao Lager [Campo] perdem a sua substância e tornam-se impossíveis de defender quando confrontados com testemunhos que constituem provas históricas – a examinar, certamente, como qualquer documento – mas que existem e não podem ser postas de lado.” (LEVI, 2005, p. 10).
[17] Podemos acrescentar, como uma verdade factual, o envolvimento do Ditador Ernesto Geisel e do General Figueiredo em práticas de tortura, durante os anos transcorridos de seu governo, como atesta o documento: “Foreign Relations of The United States, 1969–1976, Volume E–11, Part 2, Documents on South America, 1973–1976: “General Milton, who did most of the talking, outlined the work of the CIE against the internal subversive target during the administration of former President Emilio Garrastazu Médici. He emphasized that Brazil cannot ignore the subversive and terrorist threat, and he said that extra-legal methods should continue to be employed against dangerous subversives. In this regard, General Milton said that about 104 persons in this category had been summarily executed by the CIE during the past year or so. Figueiredo supported this policy and urged its continuance. The President, who commented on the seriousness and potentially prejudicial aspects of this policy, said that he wanted to ponder the matter during the weekend before arriving at any decision on [Page 279]whether it should continue. On 1 April, President Geisel told General Figueiredo that the policy should continue, but that great care should be taken to make certain that only dangerous subversives were executed. The President and General Figueiredo agreed that when the CIE apprehends a person who might fall into this category, the CIE chief will consult with General Figueiredo, whose approval must be given before the person is executed. The President and General Figueiredo also agreed that the CIE is to devote almost its entire effort to internal subversion, and that the overall CIE effort is to be coordinated by General Figueiredo. […]” (DEPARTMENT OF STATE - UNITED STATES OF AMERICA. Disponível em: https://history.state.gov/historicaldocuments/frus1969-76ve11p2/d99?platform=hootsuite#fn:1.5.4.4.12.61.8.6. Acesso em: 26 mar. 2020).
[18] Nesse sentido, frisa Agostinho, que tanta influência exerceu sobre as análises arendtianas: “And I come to the fields and spacious palaces of my memory, where are the treasures of innumerable images, brought into it from things of all sorts perceived by the senses. [...] When I enter there, I require what I will to be brought forth, and something instantly comes [...] All these doth that great harbour of the memory receive in her numberless secret and inexpressible windings, to be forthcoming, and brought out at need; each entering in by his own gate, and there laid up. Nor yet do the things themselves enter in; only the images of the things perceived are there in readiness, for thought to recall.” (AUGOSTINE, 2018, Book X).
[19] “La lien entre la pensée et la mémoire tient en ce que toute pensée consiste proprement à réfléchir-à-une-chose. Dans la mesue où la vérité est un événement, la vérité serait ainsi l’origine (et non pas lae ‘but’) de la pensée.” (ARENDT, 2005, p. 680).
[20] “I argue that this ‘reification of remembrance’ is mediated through two areas of collective life: the viewpoint of the storyteller, who crafts a narrative that can be passed on to others; and the political community, which preserves these stories over time and provides a space in which they can continue to be told.” (VEROVŠEK, 2014, p. 394).