ENTREVISTA COM JOÃO CRUZ COSTA[1]

JOÃO CRUZ COSTA - Juntamente com Lívio Teixeira, o professor Cruz Costa foi o principal responsável pela criação do Departamento de Filosofi a da FFCL da Universidade de São Paulo. A presença entre nós de fi guras tais como Gilles-Gaston Granger, Claude Lefort, Martial Gueroult, Michel Debrun, Gerard Lebrun, Jules Vuillemin, se deveu ao trabalho pioneiro desses dois professores. Cruz Costa tornou-se catedrático em Filosofi a pela FFCL/USP no ano de 1951, deixando suas atividades docentes em 1965. Doutor honoris causa pela Universidade de Rennes (França) foi professor convidado da École de Hautes Études de Paris durante o ano de 1964. Autor de alguns ensaios: A Filosofi a no Brasil, O pensamento brasileiro, O desenvolvimento da fi losofi a no Brasil no século XX e a evolução histórica nacional, Augusto Comte e as origens do positivismo e Contribuição à história das idéias no Brasil. Embora modestamente não se defi na como um fi lósofo, mas como “um fi losofante, preocupado com a História”, nós o temos como uma das inteligências mais lúcidas e críticas da formação cultural brasileira. Pensador e cultivador das irônias, ao nos enviar carta autorizando a publicação de sua entrevista, assim nos ensinou: “(...) quando tiverem 72 anos como eu, não confi em em microfones. Entrevista, só ali, no duro, na caneta-tinteiro”.

Quais foram os principais momentos de seu trabalho teórico? Houve um projeto que o orientou?

Meu projeto teórico? Não sei, não: creio que nunca o tive! Vocês sabem que comecei estudando Medicina, revelando assim um interesse pratico pelo homem, se não por ele, por sua saúde... Eu fi zera aqui uns vagos estudos de fi losofi a com o meu saudoso amigo, Prof. Henrique Geenen, para satisfazer as exigências dos preparatórios. Para ingressar na Faculdade de Medicina éramos obrigados a prestar exame de psicologia e lógica, que o meu amigo e professor da Faculdade de Medicina, o Prof. Guilherme Bastos Milward chamava de psicologia ilógica.

Fui depois para a França em 1923 e entrei no curso preparatório a Faculdade de Medicina de Paris. Um dia, num grupo de brasileiros, encontrei o Prof. Georges Dumas, que era grande amigo do Brasil, que me perguntou qual a especialização que eu iria fazer na Medicina. A minha resposta foi: a psiquiatria. O velho Dumas, que era médico e agrégé de fi losofi a, aconselhou-me então que fi zesse estudos de fi losofi a e convidou-me para assistir as suas divertidas (?) aulas aos domingos, no Asyle de St’Anne. Inscrevi-me como ouvinte nos cursos da Sorbonne, assistindo as aulas dos Profs. Brunschvicg, Lalande, assim como as de Pierre Janet no Colégio de França. Como percebem, não houve, pois, nada de especulativo nos meus desígnios. Ao contrário: as minhas intenções eram práticas.

Vocês me perguntaram também pelos momentos de meu trabalho. Bern, nesse momento (eu tinha de 18 para 19 anos) tive um encontro com dois autores que muito me impressionaram e, ambos, muito preocupados com o destino (digamos assim) do homem: Freud e Marx.

Q ue projeto orientou a criação da Universidade de São Paulo?

Parece que esse era um velho sonho, muitas vezes frustrado. Houve um projeto na Colônia; outro no Império e, na República, parece sério só esse de 1934, no governo de Armando de Salles Oliveira, promovido por Júlio de Mesquita Filho, Fernando de Azevedo e outros de cujos nomes não me lembro agora e que é fácil verifi car nos documentos históricos da Universidade.

Qual o projeto? Levy-Strauss, nos Tristes Tropiques diz que a principal pega criada quando da fundação da Universidade em 1934, — a Faculdade de Filosofi a, Ciências e Letras — deveria servir de cobertura ideológica ao status quo político e social da época. Em parte talvez tenha sido essa a intenção dos que sonharam com a Universidade, homens cultos, todos eles pertencentes às classes privilegiadas. Mas sejamos justos com essa elite: não foi apenas isto que os moveu. O Brasil já necessitava de arejar e melhorar várias áreas de suas elites, de ampliá-las, dividindo o trabalho intelectual.

Como se constituiu o curso de Filosofia?

O curso de fi losofi a foi entregue a um professor francês! O que iniciou o curso foi o Prof. Etienne Borne, ex-aluno da École Normale Supérieure de Paris, que aqui esteve no primeiro ano letivo. Em 1935 veio nova missão francesa e dela fazia parte o meu amigo Jean Maugüé, também da E.N.S. de Paris e fi gura brilhante de professor. Teve profunda infl uência nos jovens que entrariam na Faculdade. Basta relembrar o que dele diz Antônio Cândido na entrevista que lhes deu para o n.° 1 de Trans/form/ação.

O Prof. Maugüê nos dava aulas de Psicologia, de Lógica, de História da Filosofi a — fez um notável curso sobre Spinosa — e de Ética.

Depois da partida do Prof. Maugüé, o curso de Filosofi a foi dividido entre os seus dois assistentes: Lívio Teixeira com a História da Filosofi a e eu, com a Filosofi a (Psicologia, Lógica e Ética). Mais tarde D. Gilda de Mello e Souza fi cou encarregada das aulas de Estética. Foi então criado o Departamento de Filosofia.

Desde muito cedo a minha principal preocupação foi a de chamar a atenção dos moços para a aplicação da refl exão à realidade brasileira, como assinalou Antônio Cândido na entrevista já referida. Era, como ele diz, a minha mania. Não me foi difícil o caminho, pois a Semana de Arte Moderna já o preparara em grande parte. Desse modo, o meu trabalho nada teve de especulativo. Nunca fui um fi lósofo, mas apenas um fi losofante, preocupado com a História. O que escrevi fi ca a cavaleiro entre a Filosofi a e a História.

Qual era o projeto do Departamento?

A nossa preocupação em desenvolver o Departamento de Filosofi a consistiu em apelar para a colaboração de professores estrangeiros, cuja formação era mais completa que a nossa. Vieram vários professores, entre os quais Gilles-Gaston Granger, especialista em Lógica e hoje uma das autoridades no assunto; Martial Gueroult, eminente historiador da Filosofi a; Claude Lefort, especialista em ciência politica; Michel Debrun, para a disciplina de Ética (e que continua a estudar problemas brasileiros); Gerard Lebrun, para a Filosofi a Geral, que ainda há pouco continuava no Departamento. Vieram também Jules Vuillemin, do Colégio de França, para a Lógica e outros mestres que, de passagem, proferiram conferências na Faculdade, como o simpático e vivo Etienne Gilson.

Com estes professores colaboradores, o nosso Departamento foi se diferenciando e produzindo novos especialistas nos diversos ramos da Filosofi a. Começou, assim, a tomar uma feição mais especulativa. Entre os novos elementos do Departamento destacaram-se José Arthur Giannotti, Bento Prado, Oswaldo Porchat, João Paulo Monteiro, Maria Helena Chauí que foram os que eu conheci até deixar, em 1965, a Faculdade.

De que maneira a formação cultural brasileira marcou o seu trabalho? Como se situava na cultura brasileira das décadas de 20 e 30?

Em 1920 eu ainda não me situava. Sofria a infl uencia do que lia. Creio que a maioria dos da minha geração estava no mesmo caso. Li todo o Eça de Queiroz, todo o Anatole France, muita coisa de Balzac, de Camilo, de Fialho, de Machado de Assis. Foi a viagem à Europa que me abriu os olhos para outras realidades... 1930, seja lá como for, foi uma encruzilhada para a cultura brasileira e eu me encontrava, com muitos outros de minha geração, nessa encruzilhada. Uns seguiram pela direita, outros pela esquerda. Mas tudo isso de modo confuso para uns e outros... O espírito crítico que o estudo da Filosofi a propicia, ou melhora, ainda não era então dos mais acurados naqueles jovens... Daí as confusões, as falácias, os desenganos, as desilusões. Não creio que a Filosofi a, como disciplina acadêmica, ensine muito. Todavia, como escrevia o dominicano Maydieu, embora a “aquisição do fi lósofo pareça pobre, ela, no entanto, permite coordenar muitas riquezas”. Eu achei que valia a pena dar atenção a riqueza da nossa realidade. Daí o meu trabalho desde então.

Considero, porém, a minha posição uma posição envelhecida, superada. Hoje há uma visão mais universal dos problemas humanos. Felizmente, Mario de Andrade dizia, em carta a Manuel Bandeira, que nós nos abrasileiramos na medida em que nos universalizamos. Se a fi losofi a especulativa e a prática nos conduzirem a isso, elas prestarão os serviços que podemos esperar delas.

O que houve de mais característico na cultura paulistana dos anos 30?

Não sei bem, talvez ainda a retórica, o fi loneísmo e o elitismo do fi m do século passado. Mas houve a Semana de Arte Moderna que foi o escândalo da década dos 20. Em 1930 já havia muita coisa nova.

Como viu as mudanças nesta tradição cultural dos anos 40 e 50?

Já então as transformações que se processaram desde a l.a Guerra e que se acentuariam com a segunda, se faziam sentir no Brasil. Mas apenas numa faixa muito estreita. De 1937 é o Estado Novo. Em 1945 ele termina; o Brasil, porém, não sentiu bem as repercussões desses dois movimentos. Às vezes eu penso que a partir de 45 — sobretudo depois de 1954 — o Brasil retornou, de certo modo, ao que fora antes de 1930. Culturalmente, é verdade, se encontrava, já então, mais bem apetrechado. Mas que faixas de povo atinge a cultura em nossa terra? É o que pergunto. O povo parece-me, ainda não entrou em nossa história...

Que projeto orientou o Departamento nos anos 50?

Já respondi também a esta pergunta. Mas, já que vocês falam tanto em projeto — no sentido sartriano, com certeza — tenho a dizer que, nem o saudoso Lívio Teixeira nem eu, éramos muito projetistas. Nós, sob certo aspecto, éramos um pouco como o Getúlio, que dizia: “Deixa como está para ver como fi ca”. O Departamento ia se diferenciando natural e lentamente, tendo em conta o pessoal docente de que dispúnhamos e o heterogêneo pessoal discente que afl uía à Faculdade.

Além de possibilitar o surgimento de intelectuais como Antônio Cândido, Sérgio Buarque de Hollanda, de que maneira a Universidade incidiu sobre o processo político, ideológico e cultural do país?

Em primeiro lugar é preciso dizer que Sérgio Buarque de Hollanda nada deve à Universidade. A Universidade é que lhe deve muito. Sérgio é o fruto da época que antecede a criação da USP. Antônio Cândido, esse sim, talvez seja, em parte, fruto da Universidade. Mas fez muito mais do que lhe deu a Universidade. Ele e Sérgio, que admiro e estimo, se me afi guram das mais altas inteligências que o país hoje possui.

Por certo, a Universidade alguma coisa fez, com relativo pouco proveito, convenhamos, pelo processo político brasileiro. Paira, no entanto uma atmosfera de desconfi ança a seu respeito, principalmente em relação às seções de Filosofi a e Sociologia.

Culturalmente, já o disse, a Universidade muito fez. Pena que não tenha podido fazer mais...

Como vê hoje os resultados destes 30 anos de trabalho do Departamento de Filosofi a? Que resultados gerou e que acha mais importante?

Tenho a impressão que estes 30 anos geraram muita coisa. O fato mesmo de vocês estarem aqui. A Faculdade de Filosofi a de Assis e, como outras, o resultado do crescimento da Faculdade de Filosofi a de S. Paulo. Aí estiveram Antônio Cândido; o meu saudoso amigo Vitor Ramos, que levaram para o interior um espírito novo.

Mais importante? Mas tudo é importante, desde que se lance a semente da livre critica. E essas sementes estão lançadas, e germinarão a seu tempo. É mister que a terra lhes dê seiva. Essa é a minha esperança.

Em que medida as condições institucionais (a Universidade) integraram, limitaram ou neutralizaram o seu trabalho?

De 1934 a 1937, nada houve que limitasse ou neutralizasse o nosso trabalho. Não sei em que medida as condições institucionais permitiram integrar o nosso trabalho acadêmico. De 1937 a 1945 tentamos o famoso DIP que, é evidente, limitava o nosso trabalho. Depois houve novo período de inteira liberdade.

A Universidade tal como ela era, tal como funcionava, era o lugar ideal para se trabalhar?

Era. Devo dizer que vivi muito feliz durante os anos que lá trabalhei, até sofrer uma decepção no entardecer de minha vida profi ssional, um pouco antes de minha aposentadoria. Isso revelou-me que, afi nal, eu não havia compreendido a tal realidade que fora objeto de meu estudo...

Seus cursos faziam sempre referência a uma sucessão de “modas” fi losófi cas. Quais foram as modas fi losófi cas principais e de que maneira tiveram um papel formador da inteligência no Brasil?

Vocês ainda lembram do que eu dizia em aula!... A Filosofi a no Brasil sempre foi um produto de importação. Eu procurei mostrar isso em meu livro. Na Colônia, a escolástica importada de Coimbra; no Império, o ecletismo; a seguir o positivismo e o evolucionismo, que chegaram até a República. Depois, o neo-kantismo, um pouco de bergsonismo, muito ralo; o marxismo, o existencialismo e até Husserl, Hartmann e Heidegger! Ouvi dizer que vão traduzir Heidegger! Será um trabalho de Hércules. Mais recentemente, o estruturalismo. Até a fundação da Faculdade de Filosofi a, o fi loneísmo dominou nossa cultura. Era importante haver lido a obra mais recentemente publicada e, de preferência, no original. Mas não se indagava muito se o leitor assimilava o que lera. Assim, a Filosofi a, como muito mais, era privilégio de raríssimas pessoas. Com o advento dos cursos regulares de Filosofi a, a situação modifi cou-se em parte. Começamos então a nos vestir mais simplesmente, mais moderadamente, tendo em conta, por certo, a moda, mas sem os atavios e falsos luxos fi loneístas. Fugir a moda não é fácil, mas vestir-se com exagero é ridículo. Foi por isso que terminei o meu livro citando Macunaíma, que se farta de todas as comezaimas, de todas as frutas. Fala de indumentária, mas veste-se pouco. Canta todas as canções e dança todas as músicas. É o herdeiro latino, mas ignorante de todas as culturas...

Como é que vê hoje seus trabalhos?

Os meus trabalhos... São muito poucos e hoje já tão velhos quanto eu. O meu propósito, já o disse, era trazer a refl exão fi losófi ca ou crítica — e não as fi losofi as — para o desenrolar da vida brasileira da qual eu acreditava — e ainda às vezes acredito — há de emergir uma cultura que nos seja própria, que caracterize o que somos no todo da cultura humana.

As suas preocupações sempre foram com uma filosofia da cultura e, particularmente, com a fi losofi a política?

Sim. E por isso — estranhamente — incorri em pecados que nunca julguei estar cometendo. Evidentemente, a fi losofi a conduz a política. Esta me parece o seu natural desembocadouro.

Essas preocupações com a história brasileira, com a reescrita da nossa tradição cultural, foram inspiradas por alguma opção filosófica?

A reescrita de nossa tradição cultural vem sendo feita pelos historiadores, desde que Sérgio Buarque de Hollanda escreveu o seu Raízes do Brasil e que Gilberto Freyre escreveu Casa Grande e Senzala. Os moços estão ampliando essa nova escrita, às vezes com uma dose um pouco forte de sociologismo, mas, ainda assim, isso é de proveito, aparados os exageros.

Quando preparou a “Contribuição”?

Creio que a vim preparando desde que me tornei mais consciente dos problemas brasileiros, isto é, desde 1928. Escrevi-a entre 1947 e 1949 e ampliei-a, a pedido da Editora José Olympio, em 1955.

Qual foi o seu interesse pelo positivismo?

Como vocês sabem, não sou positivista. Mas atraiu-me o “fenômeno” positivista no Brasil que, por sinal, deve ser ainda melhor estudado. É algo de estranho o aparecimento do positivismo no Brasil. Creio que as razões que dei, e que outros deram, não são sufi cientes. Espero que alguém estude melhor o caso.

Qual o signifi cado que atribui à ironia em seu trabalho filosófico?

O mesmo que Sócrates atribuía. Ironia e maiêutica, fontes da crítica, são consubstanciais ao trabalho filosófico.

Tem o nacionalismo alguma infl uência em seu trabalho? De que maneira via a produção isebiana?

Não, o nacionalismo não teve infl uência em meu trabalho. Quanto à produção isebiana, em parte, ela foi muito proveitosa.

São irreconciliáveis filosofi a politica e fi losofi a das ciências?

Não creio, embora eu confesse nada entender de fi losofi a das ciências. Por falta, é claro, de uma boa formação científica.

Se pudesse pensar hoje o curso de fi losofi a, que exigências formularia para ele?

É coisa que não me acode agora, pois há onze anos que estou fora da... Universidade e não conheço o nível de cultura dos estudantes que procuram a Faculdade. O que posso dizer é que um curso de filosofia pode ser iniciado de várias maneiras: pela matemática, pelas ciências, pela literatura, pela história. O essencial é que o estudante tenha gosto (?) por aquilo que estuda e queira ir mais longe.

Nos movimentos estudantis que culminaram nas paritárias em 68, o Departamento de Filosofi a sofreu um sério questionamento por parte dos alunos e de alguns professores; e uma das críticas era a seguinte: os professores pesquisadores em fi losofi a estariam condescendendo em uma atividade meramente acadêmica de produzir monografi as sobre os fi lósofos, em trabalho que, embora formalmente rigoroso, pouco teria a ver com o genuíno exercício do espírito fi losófi co, que com isso acabaria se desvitalizando e se tornando incapaz de contribuir para a compreensão dos problemas fi losófi cos contemporâneos. Como viu essa crítica?

Em primeiro lugar, não creio que o trabalho monográfi co, que julgo muito útil, pouco tem a ver com o genuíno (?) espirito fi losófi co. Afi nal, qual o critério para julgar se um trabalho ou outro de fi losofi a é genuíno? Caráter genuíno (próprio, verdadeiro, natural, exato, legitimo, puro) é dado pelo próprio trabalho e não há regras ou normas para dita-lo. Ao questionamento referido, a meu ver, faltou espírito fi losófi co... Nos movimentos estudantis de 68, que se deram em toda parte, houve, como é sabido, muita paixão. E a paixão não se dá bem com a razão...

Como é que o marxismo teria tido infl uência em suas preocupações?

Sou homem de meu tempo e sofri a infl uência da obra de Marx que, como já lhes disse, comecei a conhecer em Paris, ao mesmo tempo que começava a ler Freud. Não entendo, porém, as fi losofi as como pontos fi xos, imutáveis e invariáveis. Elas são marcos de referência na compreensão do homem e da vida, em vários momentos da história. O desfi lar de doutrinas no correr da história é algo que ao mesmo tempo encanta e desencanta. O essencial na fi losofi a, não são as fi losofi as, mas o espírito que emana do encontro e desencontro das idéias. “Toda a teoria é névoa”, já dizia Goethe (tão esquecido hoje). O que conta é a “Árvore da vida”...

Como caracterizaria a ideologia?

É perigosa essa palavra e pode ser tomada em vários sentidos. Dela muito se abusou. Afi nal, a meu ver, quem melhor a definiu foi Engels, em carta a F. Mehring, de 14 de julho de 1893. Nada tenho a acrescentar ao pensamento de Engels.

Acha que é possível, por exemplo, uma filosofia como critica? Ela tem que ter duas coisas fundamentalmente: um certo enraizamento numa tradição cultural e, ao mesmo tempo, um diálogo quase que internacional com as principais produções?

Por certo: a filosofia é crítica. E enraíza-se na tradição de uma cultura, em diálogo constante com as produções de outras fontes e tradições culturais. O que nos falta, ou melhor, aquilo a que não temos prestado a devida atenção e cuidado é a nossa tradição cultural, a nossa maneira de ser. Sobra-nos, no entanto, não um diálogo, mas o monólogo das produções internacionais. Não sei se me fiz entender...

Como interpreta hoje a produção, de ordem fi losófi ca, com a linguagem?

Os estudos linguísticos são de grande importância para o esclarecimento dos conceitos filosóficos. Mas eu nada entendo de assuntos linguísticos e, por isso, não ouso falar sobre isso. Apenas noto que, de uns tempos para cá, enquanto a linguagem comum piorava muito, a fi losófi ca — do mesmo modo que a sociológica e econômica — fi caram, para nós, do vulgo, um tanto (ou mesmo muito) herméticas. Ha um economês, um sociologuês e logo, um fi losofoguês. O alcance dessas disciplinas, assim, diminui e isso não me parece proveitoso para a cultura geral.

Hoje Oswald de Andrade é de certa forma recuperado pela tradição cultural. Na sua opinião que importância teve ele? Qual foi o projeto dele?

Eu conheci já tarde, uns dez anos antes de sua morte, o Oswald de Andrade. Tivemos boas relações e só uma vez ele fez piada comigo. Era um homem bom, mas criava inimigos por causa das piadas que inventava. Foi o escândalo no meio intelectual paulista anterior a 1922.

Quando eu era menino, lia muito o Pirralho, que era dele e de outros de sua geração. Não perdia o Juó Bananere que era publicado no Pirralho. Depois perdi o Oswald de Andrade de vista, embora tomasse conhecimento de sua vida tumultuosa. Vim a conhecê-lo já assistente da Faculdade, e ele candidato ao concurso que eu também faria. Estivemos juntos várias vezes e a minha simpatia cresceu pelo meu concorrente. Não é aqui o lugar para lembrar muitas das excelentes piadas que ele me contou quando me procurava para esclarecer alguma questão fi losófi ca. Mas uma eu vou contar; realizava-se em S. Paulo um congresso fi losófi co. O Oswald lá estava. Fui procurar um amigo que também participava do Congresso e nesse momento, dois “fi lósofos” discutiam muito e inutilmente, um assunto qualquer de ontologia. Levanta-se o Oswald e pede a palavra. Vai ao palco, apanha o microfone e muito seriamente diz: “O problema hoje não é mais de ontologia. É de odontologia.”... Oswald não perdia vez para piada.

Qual a sua importância? Teve importância, mas, melhor do que eu, aí estão os especialistas em literatura para dizê-lo. Projeto do Oswald? Desconfi o que não tinha nenhum.

Poderia explicar as razões de sua desconfi ança em relação a fi losofi a da História?

Vocês me metem em cada entaladela... É, não confi o muito nessas vastas sínteses que são as fi losofi as da História. Prefi ro a História. Prefi ro a fi losofi a.

Certa vez procurou-me um estudante de história, que pretendia fazer uma tese sobre a Filosofi a da História do Positivismo. Ele, simplesmente, não havia estudado os documentos — muitos — relativos ao positivismo. A gente não pode desiludir os moços... Assim, como ele era estudante de história, aconselhei-o que fi zesse uma pesquisa na Inspetoria de Imigrantes e nos papéis das Docas, a ver se descobria, num período de 10 ou 15 anos, quantos imigrantes italianos haviam entrado em S. Paulo, suas idades, família, profi ssões e como se espalharam pelas diversas zonas do Estado, etc.

Olhou-me e disse-me: “mas isso seria uma tese muito banal...” Deu-me as costas e nunca mais o vi. Mas é com teses assim, banais, muitas e muitas, que um dia poderemos talvez nos aproximar de uma fi losofi a da história. Como dizia Mário de Andrade: “é com muita e muita análise que chegamos a alguma síntese...”.



[1] Entrevista publicada na Revista Trans/Form/Ação, v. 2, p. 87-94, 1975.