ENTREVISTA COM FLORESTAN FERNANDES[1]

FLORESTAN FERNANDES - Durante 25 anos lecionou Sociologia na Universidade de São Paulo, de onde foi afastado, em 1969, como professor catedrático. Lecionou durante três anos na Universidade de Toronto (Canadá) e tem sido frequentemente convidado por inúmeras instituições universitárias e de pesquisas do exterior a fi m de prestar colaboração em nível de cursos de pós-graduação, orientação de pesquisas etc. Tem participado de inúmeros congressos e seminários internacionais como conferencista e como relator de pesquisas. Autor de um extenso número de artigos, ensaios e de livros, dos quais destacamos: Fundamentos Empíricos da Explicação Sociológica, Ensaios de Sociologia Geral e Aplicada, Capitalismo Dependente e Classes Sociais na América Latina, Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento, O Negro no Mundo dos Brancos, A Integração do Negro na Sociedade de Classes, Mudanças Sociais no Brasil, A Revolução Burguesa no Brasil e Circuito Fechado. O depoimento que se segue, além de sua excepcional e provocante riqueza em termos de refl exão teórica e crítica, revela-nos igualmente uma fi gura de rara grandeza humana. O mínimo que podemos dizer, nós, que também procuramos “vincular a investigação científi ca e fi losófi ca à transformação da sociedade”, é que de Florestan Fernandes somos todos aprendizes.

Como interpreta toda a sua produção científica? Há um projeto teórico, uma “linhamestra”, orientando seus trabalhos e pesquisas? Qual é a sua trajetória intelectual?

Essa é uma pergunta complicada para mim. Pelo que sei, só Comte sabia o que ele ia fazer durante todo o resto da vida. Em geral, as preocupações teóricas de qualquer intelectual — especialmente se ele é um sociólogo, historiador ou um antropólogo, enfi m alguém que trabalha com problemas que dizem respeito as sociedades humanas — se alteram ao longo do tempo. Não há uma pessoa que nasça com um projeto e depois o realize completamente. Todavia em termos de formação intelectual, o ensino que nós recebíamos na Faculdade de Filosofi a, como já escrevi, combinava um nível acadêmico muito alto, pois nos tivemos a sorte de termos professores de primeira ordem mas, ao mesmo tempo, uma espécie de didatismo, que estava infi ltrado no ensino. Isto não era decorrência da estrutura do ensino. Era decorrência da situação cultural brasileira.

Nós não tínhamos um ponto de partida para começarmos com aquele tipo de universidade. Aquela universidade foi implantada em um meio mais ou menos agreste, exigindo uma base e uma tradição que nós não tínhamos; e a consequência foi que todos tínhamos que improvisar, uns mais, outros menos. É claro que pessoas que vinham de famílias de intelectuais e nas quais o trato com o livro era mais frequente do que pessoas que vinham de famílias pobres, provavelmente tiveram menos difi culdade nesta transição. Essa não era minha situação pessoal. Eu vinha de uma família pobre e o trato com o livro foi adquirido às minhas próprias custas. Eu não tinha ligação com ninguém que pudesse, em termos de situação de família, me ajudar e servir de apoio. Só para vocês terem uma idéia dessa contradição, vou dar um exemplo. Terminado meu curso na Faculdade de Filosofi a, a minha crise — não a de crescimento psicológico — era uma crise moral. Porque eu me perguntava: o que é a Sociologia?; o que são as Ciências Sociais?; posso ser um sociólogo?; sei o sufi ciente para ser um sociólogo? Assim, tive de armar um programa de trabalho que envolvia no mínimo 18 horas, e às vezes mais, de leituras intensas, todo dia. Isso era um trabalho de autodidata, montado a margem e em cima do trabalho desenvolvido pelos professores. Por que isso foi necessário? Foi necessário porque nos não tínhamos um ensino secundário que alimentasse o desenvolvimento intelectual do estudante. O estudante que chegava à USP era um estudante com defi ciências muito graves. E essas defi ciências eu senti logo no começo. Por exemplo: o primeiro contacto que eu tive com a Filosofi a foi através do professor Maugüé, em um curso sobre Hegel de um ano, dado em francês. Agora, o que é que um pobre coitado que sai de um curso de madureza, sabendo o que se sabia aqui a respeito de Filosofi a, poderia fazer no quadro de um ensino destes? Eu tinha de me meter a ler livros e fazer um esforço duplo: de um lado, o de entender o francês do meu professor; de outro lado, o de multiplicar as leituras para poder, independentemente da língua, entender o que ele estava ensinando. Havia, então, uma montagem autodidática paralela, que estava incrustada na atividade do estudante e que, depois, marcava a própria trajetória do intelectual formado pela Universidade de São Paulo.

A institucionalização nesta década de 40 é parcial. A preocupação para entrosar o ensino com as potencialidades culturais do ambiente nasceu conosco. Assim que nos tornamos professores, e como professores nós pudemos introduzir inovações, aí é que estes problemas foram sendo enfrentados e resolvidos. Até então, o professor europeu — embora fosse só o professor francês que fazia isso — simplifi cava as coisas. Ele achava que o estudante brasileiro tinha as mesmas condições intelectuais que qualquer outro estudante e dava o ensino que ele achava que devia dar; nós tínhamos assim que enfrentar os problemas resultantes. É claro que de uma forma precária, insatisfatória para os professores, e com muito sacrifício para nós. Então o autodidatismo era a outra face do trabalho intelectual. É curioso, porque era um ensino de grande densidade, um ensino de grandes qualidades, de professores que tinham um treino universitário. Isto fazia com que nós todos tivéssemos uma certa propensão muito abstrata e superestimássemos a Universidade pois essa precariedade toda fazia com que nos procurássemos segurança em termos de uma imaginação criadora. Naturalmente, para compensar as defi ciências do trabalho que fazíamos e que sentíamos, éramos obrigados a pensar que não só a Universidade de São Paulo tinha um embasamento satisfatório, mas, de outro lado, que a própria universidade e a vida universitária podiam ser implantadas nas condições precárias em que as coisas corriam aqui, sem consequências maiores do ponto de vista da formação intelectual. Quer dizer, era uma simplifi cação, mas uma simplifi cação que dava sentido ao nosso tipo de ajustamento.

Em termos da minha relação com as Ciências Sociais, meus professores não tentavam encaminhar os estudantes para a Sociologia, a Economia, a Filosofi a ou a Estatística. O ensino era eclético. Visava combinar as várias correntes do pensamento e, de outro lado, enfatizava mais que tudo, o aspecto teórico do trabalho. O preconceito contra o ensino de tipo elementar era tão grande que, quando eu me tornei estudante da Faculdade de Filosofi a, tive difi culdades de trabalhar com manuais. Os assistentes recomendavam que não se lessem manuais; que se lessem os livros originais. Os professores, naturalmente, usavam vários tipos de livros mas, eles próprios, também não usavam um texto fundamental, preferindo o trato simultâneo com vários autores. Tirando o professor Hugon, que usava um manual de Economia, os outros preferiam trabalhar diretamente com os autores fundamentais. Isto criava um problema bibliográfi co complexo. Nós tínhamos a biblioteca central da Faculdade e usávamos os recursos da Biblioteca Municipal e de outras instituições (as próprias livrarias também importavam intensamente). De modo que ter acesso ao livro não era difícil; o problema era a heterogeneidade e a vastidão das bibliografi as, o limite do tempo, porque cursávamos de cinco a seis matérias todo ano e uma bibliografi a desta natureza criava exigências de orientação mais ou menos graves. E, de outro lado, negligenciava-se a formação básica do cientista social. Alguém que lê diretamente certos textos de autores clássicos sem ter um ensino básico seguro, ganha uma vantagem acadêmica sobre outros que não tem acesso a estes textos. Porém, fi ca com a retaguarda prejudicada, porque há uma aprendizagem elementar inicial que não se fez e não se fazia por preconceito. (O preconceito de que é preciso trabalhar com os textos fundamentais).

Só mais tarde, no caso do Departamento de Sociologia e de Antropologia, por infl uência minha e do Antônio Cândido, é que se procurou dar mais atenção ao ensino básico, procurando instruir o estudante naquilo que é elementar, que é essencial e às vezes também é geral. O preconceito era tão grande que quando se há um manual isto era feito escondido. Foi graças a um professor de História, francês, que esteve aqui, que uma parte desse mito foi destruído. Ele contou em público que estava se preparando para um concurso e, nesta fase, a melhor coisa que julgava poder fazer consistia em ler uma introdução elementar ao seu campo de trabalho. Assim, refrescava a memória e se punha em contato com os problemas gerais e essenciais. Mas a regra era esta: pôr uma grande ênfase no aspecto teórico. O que vem a ser o aspecto teórico no caso? Isto signifi cava que os estudantes aprendiam a construir teorias; que os estudantes fossem orientados para as técnicas através das quais se faz análise e a crítica das descobertas, ao mesmo tempo se procede à síntese? Não se fazia isso. Os cursos eram monográfi cos, de balanços dos conhecimentos obtidos em determinados campos. Por exemplo, havia curso de Sociologia estética, de sociologia econômica, de monografi a familiar, de introdução à economia, história das doutrinas econômicas. Não havia curso de técnicas e métodos aplicados à investigação e, muito menos cursos de técnicas e métodos aplicados à parte lógica e de construção da inferência (indução, dedução, etc.). Esses cursos surgiram mais tarde, igualmente por infl uência nossa.

Assim o que se entendia por teoria, realmente era um ensino altamente abstrato e que levava os estudantes a trabalhar principalmente com idéias. Quando se falava em teoria, o que se pensava era mais em história das idéias ou, então, em balanços críticos em certa área de trabalho. Isto vocês podem ver pelo livro do professor Bastide sobre sociologia estética, que dá um balanço do estado dos conhecimentos naquele campo, no momento em que o professor o realiza e do modo em que ele o concebe. Agora, isso não é realmente uma orientação que permita dizer que se esta pensando em teoria como, por exemplo, um físico, um biólogo, um químico pensa em teoria. Ou, então, como o sociólogo ou o economista deveria pensar em teoria. É o trabalho intelectual do professor. Não é o trabalho intelectual do investigador. O treinamento do investigador foi negligenciado; nós não tínhamos condições para fazer isso. Os professores franceses, como os alemães e os italianos, que colaboraram com eles, tinham de enfrentar condições muito precárias de trabalho intelectual. Com isso, então é provável que eles realizavam apenas uma parte do que poderiam ter feito, se porventura eles pudessem ir mais longe.

De qualquer maneira, o estado da pesquisa nas ciências sociais na Europa estava relativamente atrasado, em relação, por exemplo, ao estado da pesquisa nos Estados Unidos. A pesquisa na Europa foi largamente negligenciada. Nunca se pensou que o sociólogo deveria constituir a sua documentação e com o mesmo rigor, por exemplo, com que o biólogo reúne a sua documentação. Essa é uma contribuição que se recebe dos americanos e que depois os europeus iriam absorver. Mas, naquele momento, havia uma relativa negligência quanto ao treinamento do investigador e quanto ao preparo teórico que o investigador deveria ter. Desta forma, a Faculdade de Filosofi a acabava sendo uma espécie de ponto menor de uma boa instituição universitária francesa naquele momento; é claro que em proporções reduzidas, mas principalmente voltada para uma formação de intelectuais que porventura iriam ensinar a matéria. Não se cuidava de formar o investigador ou o técnico. As duas coisas eram negligenciadas simultaneamente. De modo que, quando eu me formei, a grande contribuição teórica que eu tirei da minha aprendizagem aparece na crise intelectual pela qual eu passei: descobri que, depois de três anos de trabalho intensivo, estava muito inseguro, tinha lacunas muito graves dentro da minha formação intelectual e que precisava me submeter a um trabalho organizado que não tinha sido realizado dentro da instituição porque ela previa basicamente a formação intelectual do professor, foi por isso que então eu realizei um esforço de leituras que se dá paralelamente ao curso de licenciatura em 1944 e ao curso que eu fi z de Pós-Graduação na Escola Livre de Sociologia e Política. Um esforço terrível que poderia ter gerado um resultado péssimo, se eu não tivesse tido a sorte de fazer o curso que fi z. Foi graças ao fato de ter feito esse curso que eu tinha condições intelectuais de não me transformar em um autodidata indigesto. O curso me permitia selecionar autores, saber trabalhar com os autores, quer dizer que, no fundo, eu tinha tido a preparação para poder passar por isso.

Estas refl exões mostram que o intelectual produzido pela Faculdade de Filosofi a na seção de Ciências Sociais não levava consigo uma imagem da carreira teórica que ele se propunha fazer. Ele levava uma ambição intelectual muito abstrata e o desejo de dar uma contribuição de signifi cado maior. Nenhum de nós gostaria de trabalhar em assuntos de menor signifi cação; todos tínhamos ambições intelectuais muito amplas (talvez até excessivas para a situação em que podíamos trabalhar). Agora, como é que eu vou formando as minhas ambições intelectuais? Através deste esforço de combinação da experiência anterior, que depois se completa com a Escola Livre de Sociologia e Política, eu pude fazer outro percurso. De passar daquilo que o estudante aprende para aquilo que um professor que vai começar a carreira deve saber. Tive sorte por causa de alguns acidentes secundários na minha vida de estudante.

Realizei dois trabalhos de pesquisa logo em 1941 — o mais amplo foi sobre o folclore paulistano. Dediquei a este trabalho uma atividade intensa. Por condições da minha própria vida quando criança, do conhecimento dos bairros de São Paulo, dos contactos que eu tinha com certas pessoas, foi muito fácil para mim colher muito material. O trabalho fi nal foi apresentado à cadeira de Sociologia, a professora Lavínia da Costa Vilela, que era encarregada de dar assistência teórica do material. Ela estava mais perto dos folcloristas que dos sociólogos; achava que certas conclusões eram arriscadas. Eu não fi quei satisfeito com a discussão do meu trabalho e, quando o professor Bastide voltou da Europa, eu o abordei para saber quais eram as críticas fundamentais que ele fazia ao trabalho. Ele fi cou surpreendido, porque não tinha conhecimento do mesmo e queria lê-lo. A consequência da sua leitura foi que eu pude ter uma discussão com ele, fato que raramente os estudantes conseguiam. O professor Bastide tinha muito interesse por coleta de material e eu próprio, já a partir daí, andava coletando biografi as de algumas personalidades negras que ele queria conhecer. Mas, em relação ao meu trabalho, a discussão foi muito mais concentrada nos quadros da interpretação dos dados. Logo depois ele tomou a iniciativa de me por em contacto com o professor Wilhens pois queria publicar o trabalho na Revista de Sociologia, e com o Sérgio Milliet, que me convidou para colaborar em “O Estado de S. Paulo”.

O contacto com o professor Wilhens, que não havia sido meu mestre até então, foi muito importante. A crítica da técnica de investigação foi ele quem fez. Ele já tinha experiência anterior; estudou os alemães no sul do Brasil, conhecia as técnicas de pesquisa de campo usadas pelos americanos e, de outro lado, como tinha origem alemã e estudou em universidade alemã, possuía outra base teórica para criticar aquelas técnicas. Para mim isto foi muito interessante. Pude salvar uma parte do material enquanto a outra deixei como estava, porque não tinha como refazer toda a pesquisa. Esse episódio foi muito importante para mim porque, já no primeiro ano de Curso, a experiência no trato com o material empírico foi aprofundada de uma maneira que não era comum. De um lado, me vi alertado tanto para as técnicas de investigação que não foram usadas e que deveriam ser, quanto para as técnicas de investigação que foram usadas mal e mal aplicadas. De outro lado, com a contribuição do professor Bastide, melhorei a minha focalização sociológica dos quadros intelectuais do folclore e logrei chegar a uma interpretação mais rigorosa de vários problemas. Tudo isso criou uma exigência maior e me levou a pensar a relação entre pesquisa e teoria de uma maneira um pouco mais instrumental. Eu saí um pouco da tendência do estudante de fi car preso a certos livros e descobri que a pesquisa é instrumental para o trabalho intelectual: a teoria se constrói através da pesquisa.

O trabalho que eu fi z para o professor Hugon sobre a evolução do comércio internacional no Brasil no período que vai da Independência até 1940 tem alguma importância para as idéias que muito mais tarde eu iria elaborar. Ele próprio queria que eu fi zesse a minha tese de doutorado sobre esse trabalho e aprofundasse a pesquisa. Em termos de contribuição de um estudante de primeiro ano, foi um trabalho importante para mim. Algumas idéias que explorei mais tarde, no campo de sociologia econômica, se vinculam a essa investigação que eu fi z de processos econômicos na sociedade brasileira. A contribuição do professor Hugon não se dirigiu no sentido de criticar as fontes utilizadas ou o modo de aproveitar estas fontes. Ele pensou muito mais em termos de completar o levantamento para fazer, depois, uma verdadeira tese de doutorado. Mas, de qualquer maneira, vocês vêm que era um trabalho que permitia combinar história e estatística com a análise econômica. O que indica um nível de ambição teórica pouco comum nas condições imperantes de aprendizagem.

Em suma, uma experiência de coleta direta de dados, na realização de entrevistas, observação direta de atividade de grupos, contactos com crianças, entrevistas com mulheres adultas, com homens adultos, descrição de tradições populares que podiam ser comparadas com tradições do mesmo tipo em Portugal, na Espanha, na França, na Itália ou então no Brasil em outras épocas ou em outras áreas. Isso me abria não só para a pesquisa empírica mas, também, para a pesquisa comparada. A análise do folclore é uma análise de reconstrução histórica, quando se discriminam as fontes e se analisa tanto as fontes imediatas quanto as fontes remotas, e torna-se uma análise comparada focalizada sobre temas genéticos e a dinâmica da cultura. De outro lado, o alargamento do meu campo de trabalho, graças ao uso de dados estatísticos, de fontes históricas primárias ou secundárias e de investigação econômica, de quadros e tendências estatísticas, tudo isso era deveras importante e ocorria já no primeiro ano. No segundo ano, aproveitei ainda mais a crítica concentrada dos professores e a atenção que o professor podia dispensar ao estudante, que não se perdia em classes muito numerosas. Além disso, os professores também tinham interesse em uma colaboração. O professor Bastide, por exemplo, estava fazendo uma investigação sobre religiões africanas no Brasil; se ele descobria algum estudante interessado em pesquisa, logo o aproveitava para colher materiais sob sua orientação. Era um entrosamento muito produtivo para o estudante.

Os estudantes que puderam fazer o que eu fi z (penso que não fui o caso único), praticamente estavam fazendo simultaneamente o curso graduado e o pós-graduado, porque este desdobramento do contacto com o professor representava um treinamento muito mais avançado e muito mais rigoroso daquilo que se podia aprender em aulas e nos seminários. No entanto, alguns seminários possuíam uma importância maior. Alguns seminários, nas mãos de assistentes que negligenciavam o ensino, alcançavam importância medíocre. Mas havia seminários de grande envergadura. O Dorival Teixeira Vieira, por exemplo, discutia nos seminários do segundo ano de Ciências Sociais autores como Walras e Pareto. O professor Willhens tinha um seminário dedicado ao estudo de grandes contribuições da Antropologia, no qual trabalhava com grupo selecionado de cinco ou seis pessoas: cada um lia e debatia determinado livro. Mais tarde o professor Gurvitch introduziu as conferências públicas, nas quais, realmente, todo o Departamento podia participar e por aí havia uma frutifi cação também muito ampla.

Quer dizer que as condições para encaminhar, de uma forma geral, o pensamento abstrato eram relativamente frutíferas. Ao mesmo tempo, porém, faltava uma idéia diretiva. Os professores não estavam muito empenhados em marcar a atividade intelectual dos estudantes de uma maneira defi nida. Somente aqueles estudantes que eram retidos dentro da Universidade e que iam trabalhar como assistentes é que acabavam tendo do professor uma colaboração maior, porque aí se colocava o problema de escolher uma área na qual fazer uma tese. Em função da tese, vinha algo parecido com o que seria um curso de pós-graduação de alto nível e de preparação para o doutorado, como poderia ocorrer em universidades europeias ou americanas. Naquela época eram poucos os que se benefi ciavam de uma oportunidade desse tipo. Inicialmente, só uns seis ou oito fi zeram o doutorado. Isso quer dizer que as minhas ambições teóricas acabaram sendo produto de uma interação da universidade com outros elementos que dizem respeito a minha condição humana.

Paralelamente ao trabalho na universidade, eu estava envolvido também nas lutas clandestinas contra o Estado Novo e no movimento trotskista, de extrema esquerda. Por aí, eu tinha um contacto mais profundo com o marxismo do que seria possível dentro da USP. O ensino dos professores franceses nunca foi um ensino faccioso. Nenhum professor que nos ensinou sociologia ou economia incluiu Marx ou Engels, ou qualquer fi gura importante da história do socialismo. O professor Willhens, na antropologia, não tinha necessidade de incluir certos autores. De qualquer modo, minha militância política me permitiu ir um pouco além no estudo de Marx. Inclusive me levou a traduzir A Crítica da Economia Política que saiu, se não me engano, em 1946. Escrevi um prefácio um tanto arrojado para este livro, porque naturalmente com apenas 24 anos o meu preparo para enfrentar a tarefa era demasiado precário. Como atividade intelectual, porém, isso signifi ca alguma coisa. Não se tratava de um trabalho da Universidade; mas, o da atividade intelectual dos socialistas na cidade de São Paulo. A Editora Flama estava ligada a um movimento trotskista e os autores que ela publicou eram todos socialistas: Marx, Engels, Proudhon etc.

Essa pequena realização teve, no entanto, enorme importância para mim. Graças ao estudo do marxismo, ao qual eu podia aplicar as técnicas que aprendera na Universidade, me colocava o problema do que deveria ser a sociologia e sua relação com outras ciências de uma perspectiva que era relativamente diferente daquela que se poderia ter dentro do ensino acadêmico. Uma das coisas que me incomodava no ensino europeu era o seu caráter eclético, culminando sempre numa síntese falsa. Por exemplo, só para ter uma idéia: Cuvillier procura estabelecer uma síntese entre Marx e Durkheim, como Hans Freyer sugere uma síntese entre Marx e Max Weber. O estudo que fi z de Marx e Engels levou-me a conclusão de que não se podia fundir pensamentos que são opostos. Seria muito mais fecundo procurar a razão de ser de sua diferença específi ca. Eu começava a enfrentar, assim, a questão de saber qual é a contribuição teórica especifi ca de Durkheim, de Marx, de Max Weber etc. E por aí, tentei descobrir as respostas que me iriam conduzir, mais tarde, à identifi cação dos modelos de explicação sociológica, seus fundamentos lógicos e empíricos, suas consequências para a divisão dos campos fundamentais da sociologia etc.

Vocês poderiam me perguntar: isso signifi ca que a sociologia é um terreno de paralelas, que nunca se encontram? Jamais. Na verdade não é assim. Se vocês analisam a história da biologia verão que no seu desenvolvimento, quando a biologia supera a fase inicial, de construções muito empíricas, e se torna realmente uma ciência consolidada no fi m do século XIX e começo do século XX, ela passa por um período de defi nição de seus campos especiais. Quando estes campos se saturam é que os problemas gerais da ciência passam a ter importância maior, surgindo, ao mesmo tempo, a noção da complementaridade dos pontos de vista parciais e uma perspectiva global, totalizadora e de integração. De modo que, graças à posição que tomei fora do ensino, fui levado a colocar problemas que tinham muita importância para mim.

Durante um período da minha vida fui seduzido pela idéia de me especializar em temas lógicos e metodológicos — ou seja, de me dedicar ao que hoje chamamos metasociologia. Pretendia concentrar-me no estudo dos modelos de explicação sociológica, que me parecia a área fundamental para se abordar as técnicas de investigação empíricas, as técnicas lógicas de interpretação e, através dela, a construção de teoria e os problemas relacionados com a defi nição do objeto da sociologia e de sua divisão em certos caminhos fundamentais. Nunca confundi as “técnicas empíricas” e as “técnicas lógicas” porque, por sorte, eu lera por minha conta bons autores, como Wolf, e aprendera, como ponto de partida, como passar, na ciência, da observação à análise e desta à explicação. É claro que essas técnicas estão interligadas. A necessidade das técnicas vão depender da área em que se trabalhe e dos problemas que o investigador se proponha. Conforme o campo, as técnicas se tornam improdutivas. Doutro lado, o professor Arbousse-Bastide tinha deixado uma boa contribuição para o aprofundamento dessa aprendizagem, pois ele insistia na necessidade de separar-se a técnica, o processo e o método. Isso pode parecer algo menor. De fato, assim que eu comecei meu programa de leituras, tentei aproveitar vários autores que me permitiam adquirir maior rigor nessa direção e, inclusive, me estimulavam a dar maior importância a uma terminologia precisa. Não nos devemos esquecer que estávamos nas décadas de 30 e 40 e que, então, o fundamental era construir a sociologia como uma ciência empírica. O desafi o vinha das perguntas que respondiam a questões como: quais são as técnicas que se deviam usar nas reconstituições empíricas?; quais eram as técnicas que se deviam usar na análise e na explicação dos fenômenos? A minha primeira grande ambição foi trabalhar com essas questões e vocês poderão perceber isso lendo os Fundamentos Empíricos da Explicação Sociológica, Os Ensaios de Sociologia Geral e Aplicada e Elementos de Sociologia Teórica. Eu corri o risco, então, de me tornar uma fi gura mais ou menos ridícula no cenário brasileiro: pelo menos um scholar extravagante, já que não tínhamos condições para alimentar ambições tão complexas. Foi preciso que eu desse um impulso para ir tão longe, para depois verifi car que se tratava de um avanço relativamente prematuro. Ele era necessário; era necessário especialmente em termos de orientação do ensino, de treinamento dos estudantes e também para que o próprio professor absorvesse preocupações que são centrais para o investigador em qualquer campo das ciências. Mas se tratava de algo que era prematura porque a universidade brasileira não tinha base institucional para abrigar e expandir esse tipo de trabalho intelectual. Para que se pudesse fazer isso, seria necessário que contássemos com uma universidade na qual os professores tivessem condições autênticas de especialização. Em suma, que eles possam ser tão egoístas a ponto de cada um poder dizer: “o que eu faço é importante para mim e para os outros”. Eu não poderia dizer isso. O que eu fazia tinha importância para mim. Até que ponto poderia ser importante para os outros? Eu não tinha nenhuma dimensão para avaliar isso. Portanto, na medida em que avançava nessa direção, corria o risco de reproduzir, no cenário brasileiro, a carreira do scholar de tipo europeu. Ora, aí não estava o que eu queria!

Em 1944 fui convidado pelo Dr. Fernando de Azevedo para ser assistente da cadeira de Sociologia II; na mesma ocasião, fui convidado pelo professor Hugon para ser assistente da cadeira de economia; recebi outro convite do professor Eduardo Alcântara de Oliveira para ser segundo assistente em sua cadeira de estatística. Assim, poderia ter começado minha carreira em três áreas diferentes: sociologia, economia ou estatística. Para a estatística eu sabia que não tinha condições nem talento. O Eduardo Alcântara me convidou, de um lado, porque ele era meu amigo; de outro, porque as tarefas que eu precisaria enfrentar no ensino eram tão elementares que qualquer licenciado em ciências sociais realmente poderia desempenhar. Apenas eu nunca me tornaria um estatístico, e eu tenho quase certeza que ele sabia disso. Já no caso do professor Hugon, a coisa era mais séria porque desde o primeiro ano ele mantinha vínculos comigo. Arranjara para que eu trabalhasse com Roberto Simonsen, o que eu não quis. E, ao me convidar para assistente, ele me oferecia a oportunidade de trabalhar na Faculdade de Filosofi a e, mais tarde, na Faculdade de Ciências Econômicas, que estava em formação. Também contaria com um emprego no setor de pesquisa econômica de outra instituição. Quer dizer que, monetariamente, o seu convite era muito vantajoso e, no piano intelectual, ele me abria oportunidades sedutoras, pelas quais poderia me converter em um bom economista. Eu não aceitei porque sentia maior sedução pela sociologia, embora fosse uma sedução intelectual. Se eu tivesse só aquela oportunidade, aí naturalmente eu teria me tornado, de fato, um economista. No entanto, não foi possível começar a trabalhar na cadeira de Sociologia. II em 1944, por motivos que não vem ao caso agora. Só no início de 1945 é que saiu a minha nomeação.

Foi graças ao ensino que adquiri outra visão do que eu deveria fazer. É claro que levei para o ensino as minhas preocupações. Eu pus os estudantes em contacto com as idéias do que deveria ser a sociologia desenvolvendo com eles, gradualmente, as conclusões que mencionei acima. Apesar de estar envolvido no piano político com o movimento marxista, eu não impugnava nem os outros métodos nem as outras teorias. Eu compreendia Marx e Engels em termos da contribuição que eles davam as ciências sociais e não tentando confundir o socialismo com a minha atividade docente. De qualquer maneira, quando comecei a ensinar eu seduzi os estudantes a participar de minhas preocupações. Penso que em termos pedagógicos a minha orientação foi construtiva, já que os levei a ler muitos autores que eram ignorados ou mal conhecidos. Os professores franceses citavam muitos autores, mas eu imprimi outra diretriz ao seu aproveitamento, preocupado que estava com a pesquisa empírica sistemática e com a construção ou a verifi cação das teorias. Daí o impulso no aproveitamento de Mannheim, Freyer, a “Escola de Chicago”, os antropólogos ingleses, além dos autores clássicos e de Mauss ou Durkheim. Mannheim, em particular, foi muito importante; ele era chamado, na Alemanha, um socialista róseo. Sua carreira intelectual na Inglaterra, em termos políticos, fi ca impregnada de um espiritualismo que o incentiva, da busca de uma conciliação entre socialismo e democracia, a procura de um “terceiro caminho” que implicava em um claro retrocesso intelectual e político. De qualquer maneira, porém, através das pistas que ele abre em Ideologia e Utopia, Homem e Sociedade em uma época de transição e em outros livros eu podia ligar os estudantes as grandes correntes da sociologia clássica e ao que se estava fazendo graças a pesquisa empírica na psicologia social e na sociologia moderna nos Estados Unidos e na Europa.

Com todas as limitações que a crítica marxista pode apontar, ela me permitia abrir o caminho para a compreensão dos grandes temas sociológicos do presente, para a crítica do comportamento conservador, para os problemas da sociologia do conhecimento e para a natureza ou as consequências do planejamento democrático e experimental. Em especial, Mannheim permitia se tomar a contribuição de Weber e de vários autores alemães de uma maneira um pouco mais rigorosa e, inclusive punha a contribuição de Marx à sociologia dentro de uma escala mais imaginativa e criadora. Não se tratava de ver Marx em termos dos dogmatismos de uma escola política. Marx emergia diretamente de seus textos e do seu impacto teórico na sociologia. De modo que Mannheim teve uma importância muito grande para mim nesse período, em que eu tentava descobrir o meu próprio caminho. Fiz também seminários sobre Weber. No começo eu trabalhei mais com os autores franceses, como Durkheim, Mauss, Simiand, Maunier, Levy-Bruhl etc. Já em 1945 dediquei todo um semestre ao estudo exclusivo de As Regras do Método Sociológico. Por aí vocês podem ver o grau de impregnação teórica de minhas aspirações! Mas, ao levar as minhas preocupações para os estudantes eu comecei a me dar conta das limitações que elas continham. Descobri que esse não era o melhor caminho. Quase sempre o professor jovem é muito inquieto e isso é muito construtivo para o estudante -  pelo menos ele penetra, assim, rapidamente nas grandes linhas da reconstrução de uma ciência. Todavia, também devia perguntar-me: este tipo de ensino tem alguma importância defi nida para o estudante como jovem? Era aquilo mesmo que o jovem devia aprender para realizar uma carreira científi ca, sólida e proveitosa? Eu tenho a impressão que não era o que acontecia. Em 1949, por exemplo, via que começava o primeiro semestre com uma classe de 50 ou 60 alunos. Quando chegava ao segundo semestre, estava com 20 ou 25 alunos! Eles fugiram do curso — ou seja, de mim! Fugiam porque não tinham como acompanhar aquele curso. Dentro do meio intelectual brasileiro essa tem de ser a regra. O estudante conta com condições precárias para montar sua vida intelectual. Se o professor se converte em um fanático dos textos, das grandes teorias, o estudante não tem outra saída senão fugir dele. Por causa disso, fui levado a pensar sobre o ensino em termos instrumentais e procurei estabelecer uma ligação entre o que o estudante aprendia e o que ele deveria aprender. Nisso, não só eu fazia uma crítica do meu trabalho, mas fazia também uma crítica do trabalho intelectual dos meus antigos professores. Nada de pessoal; tratava-se de uma crítica impessoal e institucional. Ela se abria, porém, para horizontes novos e que exigiam, como ponto de partida, uma formação científi ca rigorosa.

Confesso que na realização desta tarefa crítica — impessoal e institucional — tive uma relativa sorte pois o companheiro mais chegado que eu tinha, pouco mais velho que eu, que já tinha me ajudado, inclusive na minha carreira, Antônio Cândido, estava enfrentando refl exões análogas. Nós pudemos fazer uma espécie de duo. Começamos a trabalhar no sentido de simplifi car os programas, de torna-los menos gerais e de introduzir matérias que os estudantes não aprendiam. De outro lado, procuramos, no ensino do primeiro ano, compensar mais aquilo que o estudante não aprende na escola secundária. O estudante vinha com uma bagagem muito pobre. Ele precisava aprender, saturar falhas que são do sistema escolar. Ao mesmo tempo, dávamos maior importância ao ensino básico: a teoria elementar, que é “geral” e precisa ser aprendida logo de início. Nenhum sociólogo pode ser sociólogo se não souber certas noções, em termos de precisão de conceitos, de domínio de certas teorias básicas em vários campos. Orientamo-nos nessa direção. Naquele momento isso pareceu uma coisa secundária. Tratava-se, visivelmente, de uma tentativa de adaptar o ensino da sociologia às condições brasileiras. Mas, a largo prazo, a iniciativa teve amplas consequências para os estudantes.

Qual foi a grande implicação, em termos teóricos dessa experiência para mim? É que, a largo prazo, ela signifi cou que eu passei a me preocupar menos com o que eu podia fazer como sociólogo e mais com o que a instituição deveria fazer na formação de intelectuais que deveriam preencher vários papéis. Eu tive a vantagem de perceber, rapidamente, a necessidade de diferenciar os papéis intelectuais. Não fi quei preso àquela idéia de que quem vai para a faculdade de fi losofi a deve ter uma formação apenas teórica e geral. E separei os papéis, pensando que a Faculdade de Filosofi a deveria formar, simultaneamente o professor, que era a solicitação maior, o investigador e o técnico.

A batalha em torno do técnico é uma batalha que eu perdi. Durante vários anos, nas polêmicas que tivemos no Departamento, sempre prevaleceu o ponto de vista de que a Universidade não tem nada que ver com a técnica, pois esta seria uma dimensão externa e que, portanto, o ensino não deveria levar em conta. Porém, no que diz respeito à formação intelectual do professor e, principalmente do investigador, tive condições para exercer uma infl uência construtiva crescente. Além disso, podia contar com o apoio das pessoas que trabalhavam comigo. Quando o prof. Bastide me convidou para ser seu assistente já tinha em mente que eu deveria ser o seu substituto. Ao sucedê-lo, procurei escolher pessoas que haviam sido meus estudantes e para as quais eu tinha um certo ideal de carreira. Eu não tinha um objetivo infl exível, mas gostaria que os novos professores não enfrentassem as mesmas limitações, as mesmas difi culdades, e que pudessem dar uma contribuição maior tanto no terreno da investigação empírica, quanto no da construção de teoria. Foi nesse sentido que me orientei. Trabalhando com esse grupo a ênfase se deslocou da minha carreira como sociólogo individual, para a constituição de um grupo que deveria produzir sociologia. Assim, a minha ambição sofre uma rotação completa. Em vez de estar preocupado com o que me cabia fazer como sociólogo, me preocupava com o que eu devia fazer, a partir e através da Universidade, para formar um grupo de sociólogos. É claro que contei com a colaboração deles.

Se todo esse pessoal que trabalhou comigo não colaborasse, não se teria feito nada. É uma injustiça atribuir a mim todas as realizações, porque, de fato, o que fi zemos resultou do trabalho cooperativo em grupo. É certo que o impacto inicial foi meu; eu tive de enfrentar e resolver problemas para formar o grupo. Porém, à medida em que o grupo cresceu, a solução dos problemas passou a depender da contribuição de todos e de uma colaboração. Nós discutíamos coletivamente, tomávamos as decisões coletivamente e trabalhávamos coletivamente. Qualquer que seja a maneira pela qual se refl ita sobre o assunto, a verdade é esta; a ênfase se desloca da minha carreira, pois eu deixo de ter uma ambição voltada na direção de meus alvos pessoais de carreira, e me volto mais para as condições institucionais de produção em grupo. E é a partir daí que toda a minha atividade iria se nortear. Vocês encontram essas refl exões em vários ensaios. Inclusive na Sociologia numa Era de Revolução Social e em outros trabalhos, como também em Sociologia e Etnologia no Brasil. Porque é claro que para ter adesão e apoio dos outros eu tinha que me comunicar, de abrir-me para os outros, senão as minhas idéias fi cavam dentro da minha cabeça e eu não receberia a infl uência criadora dos demais. Ou então, o que se fazia num pequeno grupo, fi caria para sempre fechado dentro daquele grupo.

Não há duvida que pusemos em prática uma certa linha de oportunismo na escolha de assuntos. Há um foco importante que vai produzir conhecimento sociológico de alto nível; todos nós queríamos isso e eu, mais que qualquer outro, porque cabia a mim exigir de todos que a produção tivesse um gabarito alto. Mas, fora esta questão, os temas iam depender das condições do ambiente e das oportunidades. No Brasil daquela época, as condições e as oportunidades nunca foram favoráveis para grandes projetos de investigações. Nós avançamos nessa direção, mas com muitas difi culdades. O progresso realizado, no entanto, e constante quando se compara o que fazíamos em 1953 ou 1954 com o que estávamos fazendo ou poderíamos fazer em 1964.

Q uem constituía esse grupo de pesquisadores?

Quanto ao núcleo estratégico, é o pessoal a quem eu dedico o livro, A Revolução Burguesa no Brasil. Quando fui afastado da cadeira de Sociologia I eram, ao todo, 19 pessoas. Em sua maioria, todas muito conhecidas como sociólogos e seria uma injustiça lembrar aqui os seus nomes. É claro que nós tínhamos a colaboração da cadeira de Sociologia II, inclusive eu próprio comecei a minha carreira nesta cadeira, e de todo o Departamento. Mas, em termos de organização de atividade em grupo, nós funcionávamos muito unidos. As linhas de cooperação eram defi nidas segundo a lógica dos pequenos grupos —os projetos de investigação, os programas de ensino, nossa atividade extra acadêmica, e tudo o mais. Alimentávamos a ambição de criar e generalizar um elevado padrão de pesquisa e de elaboração técnica, o que nos levou a escolher o Brasil como “laboratório” das nossas pesquisas. Gostássemos ou não, era o Brasil que se impunha como o centro das nossas cogitações.

Nós cultivávamos a ambição de chegar à análise comparada — mas, teríamos que tirar a análise comparada deste desenvolvimento. Alguns acidentes nos ajudaram decisivamente. O projeto da UNESCO de investigação das relações raciais trouxe alguns recursos, deu algum impulso para se montar um projeto de grandes proporções. Quando me vi à testa da cadeira, aproveitei a oportunidade para estender o projeto para o sul do Brasil, aproveitando a disposição de Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni e Renato Jardim Moreira de se dedicarem ao assunto. Tratava-se de um ótimo começo, embora nunca chegássemos a fazer uma análise comparativa global em colaboração, como tínhamos em mente. Logo no começo da década de 60, graças, principalmente, ao Fernando Henrique, nós obtivemos uma dotação especial da Confederação Nacional da Indústria. Montamos, então, o projeto “Economia e Sociedade no Brasil”. Nesse projeto nós tínhamos quatro investigações: sobre o empresário industrial, do Fernando Henrique; sobre o Estado, do Octavio; um terceiro, sobre o trabalho, da Maria Sylvia e da Marialice; e o quarto, no qual eu entrava, sobre as relações da urbanização com o crescimento econômico (para o qual Paul Singer fez os cinco estudos de caso). A este projeto estão ligados muitos livros importantes e os desdobramentos comparativos feitos por Fernando Henrique, Octavio Ianni ou por mim. A América Latina começava a ser explorada como campo de investigação quando o nosso grupo foi fragmentado. Já dispúnhamos de uma visão muito clara do que o cientista social deve fazer na situação brasileira, latino-americana ou de países subdesenvolvidos; estudar as condições intrínsecas desses países.

Se a preocupação de criar condições institucionais para o progresso da sociologia continua e se robustece, nessa época a preocupação teórica já estava mais concentrada. Pensávamos em construir o tipo de teoria que é mais relevante para o Brasil, para a América Latina e para os países subdesenvolvidos e dependentes, o que dava a concepção de teoria um novo signifi cado, tanto para a ciência, quanto para a fi losofi a. Felizmente, as pessoas que faziam parte do grupo não tinham uma mentalidade estreita. Todas percebiam que o trabalho intelectual do cientista social tem várias implicações. Realmente, acabamos explorando a dimensão estratégica da nossa posição. Em relação a nossa posição em um país como o Brasil, a área na qual nos podíamos dar uma contribuição maior era exatamente o estudo das condições de desenvolvimento da sociedade de classes no Brasil, na América Latina ou em outras situações análogas. Esse foco de referência acaba dominando toda a nossa atividade intelectual na década de 60, e daí em diante.

Vocês já encontram em alguns trabalhos que fi z em 1956 e em 1959/1960, incorporados à A Etnologia e a Sociologia no Brasil e a Mudanças Sociais no Brasil, os primeiros avanços. Eu ainda preferia o conceito de heteronomia — que naquela época pensava ser de Weber e hoje eu sei que é de Marx — ao conceito de dependência, mas já em 1956 usei este conceito e o de “burguesia dependente”. O grupo não produziu como grupo, mas se estabeleceram certas convergências fundamentais. Há certos diálogos que às vezes brotam em termos de antagonismos, mas no fi m os resultados vão sempre numa direção. Acabamos dando uma contribuição importante à uma área da Sociologia que poderia ser chamada de sociologia econômica: a teoria do desenvolvimento econômico nas nações capitalistas dependentes. Esse acabou sendo o nosso principal foco de trabalho. E essa é por assim dizer, a área em que eu mais trabalhei depois que iniciamos o projeto Economia e Sociedade no Brasil.

As refl exões não aparecem muito claramente até 1965. Nesse ano, no ensaio sobre “a dinâmica da mudança sociocultural no Brasil” (escrito para ser apresentado em várias universidades norte-americanas), procuro uma primeira fundamentação geral do elemento político intrínseco a transformação da ordem na sociedade capitalista no Brasil. Essa refl exão se aprofunda no ensaio sobre “Crescimento econômico e instabilidade política” (apresentada na Universidade de Harvard em 1966). Enquanto estive na Universidade de Columbia, no segundo semestre de 1965, trabalhei o quanto pude num esquema geral de interpretação da formação e desenvolvimento do capitalismo e da sociedade de classes no Brasil. Em 1966 organizei um curso sobre a matéria, que dei no primeiro semestre, na Faculdade de Filosofi a, e explorei as idéias centrais na redação da primeira e da segunda partes de A Revolução Burguesa no Brasil (mantidas inéditas até 1975, embora circulassem, na ocasião, entre alguns colegas, como Luiz Pereira, Fernando Henrique Cardoso, Maria Sylvia Carvalho Franco, José de Souza Martins e outros). Por isso, a primeira exposição global de tais idéias só aparece no ensaio sobre “Sociedade de classes e subdesenvolvimento” (apresentado em 1967 a Universidade de Münster e lá publicado em edição mimeografada). Outros elementos do nosso grupo trabalhavam, independentemente de mim, na mesma direção: Fernando Henrique Cardoso, Octavio Inani, Luiz Pereira, Leôncio Martins Rodrigues, Marialice M. Foracchi, Maria Sylvia Carvalho Franco e outros. Procurei aproveitar o melhor possível a contribuição positiva de todos eles e devo confessar que me foi muito útil a primeira formulação da teoria da dependência, elaborada por Fernando Henrique em 1965, e que chegou as minhas mãos em 1966.

Por aí, vemos que se poderia traçar três momentos independentes em minha carreira e que eles expressam as mudanças de minha relação com o ambiente. Acho errada a pretensão de abstrair o intelectual do ambiente. Abstraído do ambiente, o intelectual não tem vida, é uma planta de estufa, que morre precocemente. Essa interação, no caso brasileiro sofre muitas pressões e, de outro lado, a contribuição que, eventualmente, ele poderia dar se perde. Não sei o que eu poderia fazer se eu tivesse fi cado sempre no primeiro momento. Uma amiga que estimo, Paula Beiguelman, sempre tentou me incentivar a permanecer na orientação que segui no primeiro momento. Penso que o fato de ter gravitado em outra direção era necessário, pois o país estava enfrentando os processos iniciais de absorção da ciência. As condições especiais para o trabalho intelectual organizado só aparecem depois que as instituições estão maduras, não antes. O essencial, portanto, consistia em criar condições para que o trabalho teórico fosse possível. E, depois que ele se tornou possível, naturalmente surgiu uma área na qual nós podíamos trabalhar com maior ímpeto e força criadora. O que quer dizer que o meio, por vias tortuosas, ao nos destruir também nos levou a fazer aquilo que nós podíamos e devíamos fazer. É claro que nós interagimos de uma maneira inteligente. Se nós nos acomodássemos de uma maneira estreita, sem espirito crítico, provavelmente fi caríamos fazendo um vulgar ABC da sociologia e continuaríamos a pensar nos quadros iniciais: se a sociologia é ciência ou não é ciência, que ciência e etc. que formava o b-a-ba do começo do nosso trabalho intelectual. Essa orientação não podia, contudo, nortear o nosso trabalho a partir do momento em que ele crescesse.

Na medida em que o nosso trabalho cresceu, nós tivemos de enfrentar os dilemas de tentar construir uma teoria sociológica original, adaptada a situação brasileira. Esse é, pois, o lado positivo da nossa condição. O que demonstra que o sociólogo, se tiver estofo intelectual para tanto, acaba fazendo o que a situação histórica, por mais caótica que seja, exige dele. Aliás, por aí chegamos a uma posição de ponta. O nosso grupo, através da fusão da herança empírica, técnica e metodológica de europeus e norte-americanos, e do avanço que pudemos dar através das nossas pesquisas e das descobertas que elas possibilitavam, conquistou rapidamente uma posição de vanguarda. Em seguida, também perdemos rapidamente terreno — não pudemos reunir as condições que eram necessárias para continuar a crescer, como explico em “A crise das ciências sociais em São Paulo” (conglomerado de escritos publicado em A Sociologia em uma Era de Revolução Social), É que a sociedade brasileira não nos podia oferecer condições institucionais para manter o terreno ganho. À partir de certos saltos nós tínhamos de ser reabastecidos, em termos de recursos humanos e de recursos materiais. O sacrifício que há por trás de todo o trabalho é muito grande. Quando se fazia pressão para obter mais recursos humanos e materiais nós tínhamos em mente que não se pretendia engendrar um “elefante branco”, o que sempre evitamos.

Mesmo quando se criou o CESIT (Centro de Sociologia Industrial e do Trabalho) o governador Carvalho Pinto me disse pessoalmente que nós podíamos duplicar o pessoal. Eu recusei. Se nós começássemos com o dobro do pessoal estaria tudo perdido. Não dispúnhamos de tantas pessoas em condições de ser aproveitadas. Só poderíamos começar com um grupo reduzido e, depois, formar outros especialistas e crescer gradualmente, de maneira segura. A infl uência do Fernando Henrique na Universidade, através do Conselho Universitário, era grande e a minha própria infl uência também contava. Naquele momento vários fatores nos ajudavam. Apesar disso, nós nunca logramos obter os recursos de que tínhamos necessidade para consolidar os avanços. Os avanços exigem consolidação. Como a instituição não está plenamente integrada, plenamente madura, ela não protege o professor individualmente, não protege o investigador individualmente e não protege nenhum tipo de trabalho coletivo de ensino ou de pesquisa. Em seguida, a perda de terreno foi ainda mais grave.

No começo nós podíamos, com o nosso esforço e com denodo, compensar a erosão inevitável. Mas, no fi m, a crise se tornou maior e marchamos para uma espécie de piano inclinado. Um grupo, que era um grupo de ponta, acabou sendo pulverizado. Isso não signifi ca que nós tenhamos perdido tudo. Mas é preciso meditar sobre o exemplo. Quem faz história das ciências em termos instrumentais não está preocupado com o que está acontecendo; está preocupado com o que se deve fazer. E o que se deve fazer é dar recursos para que o terreno a ser conquistado possa ser realmente conquistado; para que haja um avanço contínuo e não um solapamento do trabalho intelectual, com um declínio incontrolável das potencialidades criadoras concretas.

Como analisa e interpreta os movimentos e tendências presentes na formação cultural paulistana durante as décadas de 20 e 30? Como a Universidade de São Paulo se integra neste quadro?

Eu não sou indicado para analisar esse período de 20 e 30, porque realmente, eu seria, como fi gura humana, aquilo que os historiadores, os antropólogos e os sociólogos chamam de personalidade desenraizada. Eu sou um desenraizado. Eu sou descendente de uma família de imigrantes Portugueses que se deslocaram do Minho para o Brasil, pessoas rústicas. E, inclusive para poder estudar, tive de enfrentar um confl ito com minha mãe. Precisei dizerlhe: “a partir desse momento, ou fi co em casa e vou estudar, ou saio de casa para estudar e a senhora perde o fi lho”. Nessa ocasião eu já tinha 17 anos, tinha feito parte do ensino primário, tinha lido muitos livros. Por sorte, encontrei pessoas com as quais eu podia conversar; fui formando a minha biblioteca e tinha uma pseudo-erudição em várias áreas. Mas eu era um desenraizado e não me vinculara a nenhum grupo intelectual em São Paulo. A primeira vinculação que eu adquiri coincide com o meu curso de madureza. Lá, com os meus colegas, entrei em contacto com várias correntes literárias que prevaleciam aqui no meio brasileiro. Até aí, a minha concepção de escrever era praticamente uma preocupação clássica. Foi graças a um colega no curso de madureza que eu me iniciei na literatura moderna brasileira e procurei melhorar a minha concepção de estilística. De modo que, naqueles anos, por exemplo, eu valorizava muito mais Monteiro Lobato do que Mário de Andrade, porque através dele eu conhecia coisas que me interessavam muito. Ele tinha um estilo vivo. De modo que eu não sou típico.

No entanto, às vezes as pessoas atípicas acabam sendo uma boa vertente para se estabelecer uma relação. Conheci várias fi guras do movimento intelectual de 20, quando comecei a colaborar nos jornais, em 1943. O meio intelectual de São Paulo não era um meio assim tão complexo e fechado. Eu tive contacto com várias pessoas, modernistas e antimodernistas. Na faculdade, naturalmente, Clima criara um foco da agitação intelectual. Os artigos do Antônio Cândido na Folha da Manhã, que vocês esqueceram de mencionar, causaram um impacto enorme. Naquele momento se lia muito o Tristão de Athayde. O crítico literário ainda era importante naquele tempo. Doutro lado, dentro da faculdade, o professor Maugüé alimentava várias fogueiras. Ele suscitava uma atitude crítica em relação às ciências sociais e, digamos, contra os professores “menos brilhantes”. Ele nos abria perspectivas seja para uma inquietação frutífera, seja para uma investigação mais seria do pensamento do tipo que não se fi zera antes no Brasil, e isso não pode ser esquecido. Eu acho que ele foi muito importante para mim porque, tendo fi cado na sociologia, as suas provocações me estimularam. Se eu não tivesse feito o curso que ele deu sobre Hegel, a minha formação intelectual teria sido muito mais pobre. E, em consequência, o meu horizonte intelectual teria sido muito mais estreito. Ele me levou a ler livros a partir dos quais eu me libertei de uma certa visão estreita que os socialistas costumam formar da história da cultura na Europa especialmente quando perfi lham uma concepção dogmática do materialismo. Com isso quero dizer que foi graças a infl uencia de Maugüé que escapei de semelhante limitação. E foi uma sorte que o curso tenha sido sobre Hegel porque daí podia passar a outros autores, como Kant, os representantes da esquerda e da direita hegelianas; e o próprio Marx, ao mesmo tempo que adquiria elementos para estudar os momentos de crise da cultura europeia. Todavia, ele não teve para mim a mesma importância que teve Roger Bastide ou Emilio Willems, pois aí já estamos em uma área diferente.

Bastide e Willems tiveram importância para mim nos termos diretos e restritos da formação do especialista. Mesmo no caso do professor Pierson, que eu criticava, foi importante para mim. Porque com o professor Pierson aprendi a utilidade básica de um curso de técnicas e métodos de investigação na sociologia. Não só descobri que havia uma lacuna no ensino da faculdade; percebi também como não se devia organizar o nosso curso da matéria. Sem desprender tal curso da problemática empírico-indutiva, com a imbricação da sociologia europeia era possível ser mais ambicioso em relação à função pedagógica que ele devia preencher.

Agora, para fi carmos dentro da perspectiva da década de 20 e 30. Acho que há um pouco de fantasia na reconstrução do passado. Tendemos a engrandecer a nossa literatura, a nossa fi losofi a, a nossa ciência. Aliás, o prof. Antônio Cândido em seu grande livro diz que nós temos uma literatura pobre, a qual devemos aprender a amar e a valorizar. Toda nossa cultura é pobre. E nós temos de aprender a dar sentido a esta cultura pobre. Ou seja, não é um mal que ela seja pobre. O mal é a gente não pensar em torná-la mais rica. A nossa função está em enriquece-la. Agora, para enriquecer, é preciso lutar contra a fantasia. É preciso ser duro na crítica do trabalho feito tanto quanto na crítica do trabalho que se está fazendo. É preciso, em suma, ser exigente. Eu acho que, entre os modernistas, Mário de Andrade era um homem exigente; mas só ele. Ninguém mais era exigente. Ele era exigente de uma maneira pouco organizada porque, embora tivesse a dimensão humana de um scholar, não era um scholar. Ele não foi treinado para isso. Quanto à geração modernista, coloco-me diante dela mais em termos do que seus componentes deveriam ter feito do que em termos do que eles fi zeram.

Eu gosto de usar o paralelo com Mariategui porque ele é didático e nos mostra, de uma vez e para sempre, o que o movimento modernista “deveria ser”, mas não foi. Compare-se Os Sete Ensaios com a produção dos nossos modernistas. Na verdade, não temos nenhum livro importante para o conhecimento objetivo e a interpretação crítica do Brasil ligado ao Modernismo. Tais livros ou são anteriores, como é o caso de Euclides da Cunha com Os Sertões, ou são independentes, de autores que não participavam do Movimento Modernista, porque eram intrinsecamente conservadores, como é o caso do Oliveira Viana. O próprio Gilberto Freire se situa na órbita dos Modernistas. Mas a produção que ele desenvolve como sociólogo não está vinculada ao Movimento Modernista. Talvez as intenções estivessem, mas a gente nunca pode entrar nas intenções das pessoas. O fato é que o Modernismo aqui foi um Movimento pobre e eu não acredito que ele tenha quebrado as arestas do obscurantismo tradicionalista, e que tenha sido ele o fator que nos libertou das limitações do passado. Não só porque essas limitações estão aí, tão vivas quanto eram antes; mais ainda, porque é evidente que o enriquecimento da literatura, que ocorre na década de 30, não tem ligação direta, causal, com o movimento modernista. Pode-se afi rmar o contrário, como construção intelectual. Todavia, para se comprovar a afi rmação: seria preciso demonstrar que essa literatura seria diferente se o Movimento não tivesse acontecido. Doutro lado, aquilo que é mais valioso, mais importante nos Modernistas, a gente encontra nos autores anteriores.

Eu não vou fazer um balanço disso porque eu não sou crítico literário nem professor de literatura. Tampouco é o caso, aqui, de fazer uma análise sociológica da cultura brasileira da década de 20 a 30. Penso que os Modernistas, de uma maneira geral, fi caram aquém do papel que lhes cabia. Eles tinham de ser necessariamente críticos da sociedade brasileira. E não foram. Se, se toma, por exemplo, Retrato do Brasil, de Paulo Prado; aquele é um livro novo que nasce velho. Quer dizer, são refl exões que, quando esbatidas sobre Os Sertões ou, principalmente, Um Estadista do Império, de Joaquim Nabuco, revelam-se ocas. A investigação que existe no livro do Joaquim Nabuco sobre o Império, aliás, deveria ser um ponto de referência. No movimento modernista não surge nada dessa dimensão. É uma refl exão que, praticamente, está dentro de um mundo de contradições burguesas que se fecham sobre si mesmas, revelando uma burguesia simulada, que quer ser europeia e não pode (ou só é europeia quando está em Paris). Então, ela é melancólica, porque vive em um mundo em que ela é contrariada em suas aspirações essenciais. Isso sem desmerecer aquele homem que tem certa importância na vida intelectual brasileira, inclusive porque foi um dos poucos que escreveu contra a dominação norte-americana. Contudo, O Retrato do Brasil não é o “retrato do Brasil” que um modernista deveria escrever: e, antes, o “retrato do Brasil” da consciência burguesa em crise! Isso não é modernismo. O modernismo é a negação da consciência burguesa, o anti da consciência conservadora, para ser mais preciso. Ora, a consciência burguesa no Brasil é uma consciência conservadora: nenhum modernista tentou negar os dois momentos dessa superposição, pela qual a “falsa consciência” da burguesia dá uma das mãos a modernização cultural dependente, enquanto com a outra preserva a idade das trevas. Só Lima Barreto tentou penetrar nessa contraditória superposição, mas ele não está no Movimento. Ele é excêntrico ao Movimento. E quando alguém como Mário de Andrade vai mais longe — porque ele é o único que faz a autocrítica; porque é o único que sente a insatisfação pelo fato deles “não pegarem o boi à unha” — ele põe a nu um sentimento de culpa revelador: a necessidade daquilo que os modernistas não estavam fazendo. Ele próprio também falha, pois as suas refl exões críticas são refl exões que balizam aquilo que o intelectual poderia e devia fazer, mas sem lançar o modernismo numa direção de outro tipo, verdadeiramente negadora do mundo dos donos do poder.

Mais do que qualquer outro grupo intelectual posterior, os modernistas cederam ao que deveriam se opor, sucumbindo a uma condição intelectual que pretendiam renunciar, mas a qual não renunciaram. Eles foram vítimas de um momento de transição, no qual a insatisfação com referência ao passado não: engendrou o futuro pelo qual se deveria lutar. Ficam, positivamente, as inquietações novas. Mas, o que elas refl etem? Tome-se, para análise, Antropofagia. É incrível! Numa sociedade que tinha os problemas da sociedade brasileira, os intelectuais se masturbam daquela maneira! Não é possível. Voltemos ao paralelo com Mariategui, para completar a rotação de perspectivas. Aí temos, de fato, uma interpretação densa, crítica e negadora do Peru. O Peru do passado é o Peru do presente, desembocando em uma concepção totalizadora e integradora da transformação do Peru através de uma revolução socialista. Em meu entender, isso encerra a questão!

Deixando-se de lado esse paralelo, já que os paralelos podem levar longe demais, o importante a salientar é que o modernismo é muito signifi cativo ainda hoje em termos das inquietações que ele engendrou ou, apenas, revelou. São inquietações propriamente históricas e novas, nascidas de um momento no qual se confi gura uma crise que vai em todas as direções, da base material, a política e a esfera cultural. Quer dizer que, neste piano, se os Modernistas não criaram um padrão intelectual novo, eles prenunciam esse padrão. Eles simbolizam, portanto, a fermentação que havia, que estava tomando conta dos espíritos entre os intelectuais. Essa fermentação que agitou os modernistas suscita também a idéia de se criar a Universidade. Essa fermentação já foi estudada; os passos para se criar a Universidade são conhecidos; eu não vou falar disso. De qualquer maneira, a fermentação existia, era profunda e sufocável, o que acabou levando a uma nova experiência.

A década de 30 e a década dos frutos dessa fermentação. Para mim é estranho que os universitários venham insistindo mais no estudo do modernismo que no do signifi cado revolucionário intrínseco a implantação da Universidade e a criação em São Paulo da Faculdade de Filosofi a, Ciências e Letras. Com todas as suas insufi ciências, essa inovação atingia o fulcro das elites culturais e de sua dominação conservadora, que fora, até então, a escola superior isolada. A escola superior e isolada teve uma importância relativa na vida intelectual brasileira, especialmente quando se pensa em termos da formação dos intelectuais que compunham aquelas elites. Mas, já no século XIX, ela deixou de ser funcional para o meio brasileiro. Desde quando ela se constitui, ela era atrasada mesmo em comparação com Portugal. Ela surgira aqui, como uma contingência; e se manteve, em grande parte, porque a consciência conservadora se ajustou bem as limitações que a Escola Superior Isolada criava, já que ela ajudava, praticamente, a quebrar pela raiz qualquer fermentação intelectual crítica. Quando os movimentos intelectuais surgiam encontravam ressonância na Faculdade de Direito e entre os estudantes das outras escolas superiores. De qualquer maneira, porém, a vida intelectual não era tão densa, não era tão ativa a ponto de criar ameaças muito sérias para o controle conservador, a estabilidade da ordem ou do poder. Ao transferir para o Brasil a idéia de Universidade, o que se estava fazendo, implicitamente, era a crítica da escola superior isolada. Saía-se de suas limitações férreas, que provinham do seu profi ssionalismo estreito e de um provincianismo cultural fossilizante. É claro que havia, dentro da escola superior isolada, indivíduos ou grupos de pessoas que trabalhavam muito bem, renovando sua bagagem intelectual ou desencadeando idéias novas. Apesar do isolamento, a Faculdade de Medicina de São Paulo, por exemplo, conseguiu inovar e exercer infl uências construtivas bem conhecidas. No entanto, não se pode generalizar. Como padrão, o modelo da escola superior isolada era negativo. E, a criação da universidade e, especialmente, da Faculdade de Filosofi a, respondia a necessidade de quebrar essa estrutura institucional. É claro que os idealizadores da Universidade não foram bastante longe para fazer essa crítica ou para aplica-la com toda a consequência. Na verdade, eles estavam muito presos, de um lado, à experiência tradicional brasileira e, de outro lado, à Utopia europeia. Mesmo quando pensavam na Universidade, não iam tão longe quanto deveriam ter ido. A situação histórico-cultural brasileira limitava o vôo. Além disso, simplifi cavam as coisas: pensavam que a Universidade era uma questão de reunir centros especialistas em um determinado espaço e que o atraso seria vencido de modo automático. Não viram o processo em termos da natureza histórica que ele deveria ter. De qualquer maneira, se refl etirmos sobre a experiência feita em São Paulo, a contribuição foi positiva. Ao se trazer para cá um grupo tão variado de especialistas voltando as costas para o “aproveitamento da prata da casa”, deu-se um enorme salto. Quer dizer, é como se o Brasil se pusesse dentro da história moderna de um momento para o outro. É claro que, como projeto, houve muitas defi ciências. Não se previu o controle das fases básicas do processo. Não houve uma tentativa de relacionar a experiência com as necessidades brasileiras. Prevaleceu, em geral, uma indisfarçável precariedade porque, inclusive, para saturar o corpo docente e discente foi preciso pescar estudantes entre os professores de ensino normal e secundário. Enfi m, várias contingências interferiram no processo, sem qualquer tentativa para resolvê-las ou submetê-las a controle. O resultado, porém, foi fecundo. À medida em que a experiência progrediu, não só se incorporou a idéia de universidade. A própria crítica da escola superior isolada acabou sendo feita através da experiência e, na década de 60, já não era mais possível “tapar o sol com a peneira”. A transformação acabou se impondo, com todo o seu impacto inovador.

O importante a salientar é que, pela primeira vez, foi possível congregar dentro de um mesmo espaço cultural, especialistas em várias matérias. E nós vamos encontrar várias fi guras que são, pelo menos, de grandeza intermediária (embora, para nós, possuam grandeza maior). Podíamos encontrar, em qualquer campo da investigação e da produção intelectual, especialistas brasileiros de uma qualidade mínima razoável. Não fariam uma fi gura em qualquer grupo de trabalho e, de outro lado, seriam capazes de dar conta do recado como professores ou como investigadores. Podem não ser gênios, podem não ser “nível Nobel”, contudo testemunham, através de sua presença e de sua atividade, uma revolução cultural. Para mim, pelo menos, o signifi cado sociológico desse amplo processo é muito maior do que o do movimento modernista. Nunca se faz tal confronto. E, na verdade, o confronto não possui interesse nem teria sentido. Mas, em termos de avanço relativo, o abalo produzido pela incrustação da Universidade e da Faculdade de Filosofi a em um ambiente como o da cidade de São Paulo foi muito maior do que o que se produziu através do movimento modernista.

Hoje já se pode ver que foi um abalo demasiado forte até para a sociedade brasileira considerada em conjunto, pois a consciência conservadora teve que se voltar contra aquela experiência e os seus efeitos inovadores de uma maneira muito mais violenta do que em relação ao movimento modernista. Diante deste movimento, ela tomou uma orientação tolerante, como se se tratasse de uma traquinagem, ou uma provocação dos “rebeldes da ordem”. Ora, a vanguarda dos intelectuais radicais formados pela Universidade exigiu outra reação, pela qual se passou da tolerância à repressão e à exclusão. Em vários campos da ciência ou do saber, da física a sociologia, foi preciso chegar ao extremo das “punições exemplares”. Se ocorreram punições exemplares, isso signifi ca que a fermentação foi muito maior e a viabilidade negativa do intelectual como tal se concretizou historicamente. O movimento de fermentação cultural indicado transcendeu, portanto, aos limites da consciência conservadora. Ou seja, a renovação em processo acabou emergindo de forma sufi cientemente clara para que os setores conservadores de dentro e de fora da Universidade acabassem se dando conta de que tinham de colocar um limite a experiência em curso. Tinham ao menos de tomar um controle mais serio da situação para impedir que a gravitação intelectual dos estudantes, dos professores e dos cientistas acabassem se transformando no celebre vulcão que “destrói a sociedade”.

Isto não diz tudo, todavia, pois 20 e 30 são duas décadas importantes na história do Brasil. Porque 20 não é só Movimento Modernista. É até uma certa injustiça que o intelectual refl ita sobre a década de 20 em termos da fermentação modernista. Houve uma fermentação social muito mais profunda — em termos de desagregação da “velha ordem” e de “reconstrução social” — da qual o movimento modernista é uma singular expressão e não a causa. Se ele age sobre ela, aumentando a ressonância das insatisfações e das frustrações que estavam em jogo, ele nunca passa de uma de suas manifestações e, sob alguns aspectos, de seus produtos. O antigo regime não entra em crise fi nal quando desaparece a escravidão: isso só acontece em 1930. Isso quer dizer que, durante a década de 20, a ebulição histórica alcança o clímax requerido pela desagregação do antigo regime. Isso não signifi ca, porém, o desaparecimento da oligarquia, como muitos pensam. A crise não engoliu a dominação oligárquica, com seu obscurantismo intelectual e sua propensão reacionária. Mas, de qualquer maneira, o antigo regime que deveria sofrer um colapso com a abolição e a proclamação da República, entra fi nalmente em agonia, perdendo a base material de seu precário equilíbrio social e político. A República traiu a sua missão e a sua função, pois o poder republicano caiu na mão dos círculos conservadores.

A década de 20 surge como uma década de recuperação cívica, de renovação econômica, intelectual e política. Portanto, a fermentação é muito mais ampla, ela transcende ao movimento modernista e delimita um momento histórico muito rico. Tudo isso fi ca evidente em 1930, com a tomada do poder por elementos que divergiam do estancamento histórico provocado pelos interesses inerentes a encampação do Estado republicano pelo antigo regime. Aí se defi ne o que os setores divergentes pretendiam fazer com a economia, a cultura, a ordem social e o sistema de poder da sociedade brasileira. A idéia de Universidade, a criação da faculdade de fi losofi a e a experiência universitária são rebentos desse contexto histórico, pelo qual a modernidade burguesa aparece, pela primeira vez, gravitando sobre eixos internos próprios. Se a modernização cultural desencadeada é tipicamente dependente, ela assume proporções maciças, é desencadeada a partir de dentro e tem por alvo utópico completar o circuito cultural e político da frustrada “revolução republicana”.

Quais foram as transformações culturais e políticas mais signifi cativas que se operam na sociedade brasileira após o “Estado Novo”?

Eu tenho a impressão que as transformações foram muito mais ao nível econômico e cultural do que ao nível político. As transformações ao nível econômico foram muito mais profundas porque esse é um período em que o crescimento do mercado interno acaba preenchendo a função de diferenciar ainda mais o sistema de produção. O sistema de produção, que começa a se diferenciar já na ultima década do século XIX desencadeando um processo de industrialização incipiente, encontra já na década de 20 um fl orescimento e é exatamente a partir da pressão de círculos mais ligados com o mercado interno e com a produção para o mercado interno, que se delineia uma fi losofi a política favorável à industrialização maciça. De modo que a ideologia conservadora acaba penetrando de maneira mais clara e profunda no signifi cado da industrialização como processo de transição e de modernização.

Figuras como Roberto Simonsen e outros tem uma grande importância porque avançam até ao ponto de admitir uma intervenção estatal maior e um planejamento em grande parte orientado pelo Estado. Inicia-se uma polêmica, que até hoje encontra clima para vivacidade, mas que só possui nesse momento pleno signifi cado histórico. Porque os setores que defendiam a industrialização e procuravam a colaboração do Estado, faziam isso porque entendiam que as classes burguesas no Brasil não tinham condições de alimentar um processo de industrialização maciço através de seus próprios recursos. Tinham de apelar para o Estado. Verifi ca-se, no entanto, que o avanço não era homogêneo, na medida em que o Estado não conseguira, por exemplo, o apoio que pretendia no caso da siderurgia. A iniciativa privada não se mostra bastante forte e ousada, exatamente porque temia que o processo acabasse resvalando no vazio. Ela não confi ava muito na industrialização autônoma. Apesar disso, esse período de 40 a 50 é um período de muita importância em termos do impacto do mercado interno sobre a industrialização e a modernização cultural (como consequência direta ou indireta). A industrialização não só muda de caráter — já se começa a produzir máquinas para produzir máquinas, não se limitando à mera substituição de produtos de consumo. Assume uma certa magnitude e cresce no sentido de tornar o parque industrial mais denso e capaz de produção de escala em vários setores. Capacita-se para produzir os bens de produção industrial. O processo de industrialização, em termos de relação de produção, é o foco principal nesse momento. É claro que, como acontece em toda a América Latina, o crescimento econômico vai ser satelizado pela cidade. São as cidades que, tendo redefi nido sua função de dominação em relação ao campo, vão drenar os recursos e exercer uma função de estabilização do crescimento econômico.

Redefi ne-se, pois, a relação entre urbanização e industrialização. Se, entre o fi m do século XIX e as três primeiras décadas do século XX (considerando o caso à luz de São Paulo), a industrialização ajudava a intensifi car a urbanização, a partir da década de 40, a urbanização vai ter uma importância maior para a industrialização. Por fi m, os dois processos acabam sendo interdependentes — eles interagem de uma forma recíproca, um aumentando a densidade do outro. As transformações maiores se dão nessa área. E, a descoberta principal da burguesia brasileira de que ela é débil, e de que não pode controlar o processo de industrialização também se dá nesse período.

É claro que o signifi cado político desta descoberta só apareceria na década de 60. Porém, é nesse período que a utopia brasileira da burguesia sofre um contratempo sério. A ilusão de que o Brasil poderia imitar países como a França se esboroa exatamente na década de 60. A ideologia conservadora no Brasil levava a presunção de que o crescimento do mercado interno e a diferenciação do sistema de produção iria criar para a burguesia nacional condições de liderança que iriam crescer continuamente a ponto de ela poder colaborar com o mercado externo e a tecnologia externa, mas ditando as condições da interação, ou seja, preservando sua capacidade de liderança, de direção e de dominação. Nesse período é que ela descobre que não possuía envergadura para isso; e descobre também que ela não podia alimentar crescimento contínuo do Estado sem criar certos riscos. O Estado vai ter de crescer com certo ímpeto, tornando-se ele próprio um perigo para a intervenção burguesa no crescimento econômico. Portanto, a década de 50, em termos de consciência burguesa conservadora, é decisiva. Ao mesmo tempo é ainda um momento em que a consciência conservadora não descobriu os riscos da atividade cultural independente.

Se vocês lerem Lévi-Strauss verão que os professores franceses, quando chegaram aqui, foram adotados pelas classes altas e praticamente incorporados ao seu padrão e estilo de vida. No início da década de quarenta eu próprio constatei que, pelo menos dois professores franceses meus amigos, viviam segundo esse escalão. No entanto, aqueles professores não podiam reproduzir se não a base material do padrão de vida das classes dominantes, pois necessariamente estavam em confl ito com elas no plano político e cultural. De modo que não houve um casamento de professores europeus com elites econômicas ou políticas brasileiras. Houve uma acomodação, que no fi m vai perder sua saliência e, em alguns casos, desaparecer. O intelectual, por sua vez, gozava no meio brasileiro de uma independência e de uma liberdade muito grandes. Essa liberdade entendida sociologicamente, estava relacionada com o fato de que o intelectual no Brasil sempre fez parte dos setores dominantes e de suas elites. Mesmo quando ele era divergente, como era o caso de Mário de Andrade ou Oswald de Andrade, não escapava a esta vinculação estrutural. A liberdade de divergência existia e era tolerada porque ele era parte da elite, não se esperando dele, por conseguinte, que se convertesse em “fator de confl ito contra a ordem”.

De modo que a consciência conservadora conferiu ao intelectual uma autonomia que não era intrínseca, mas extrínseca aos papéis do intelectual, algo decorrente da posição social, do estilo de vida das classes dominantes e do padrão de dominação conservadora de suas elites. É na década de 50, sobretudo em seu fi nal, que o esclarecimento da situação começa; mas a confusão ainda persistia e o intelectual desfrutava de uma independência muito grande (especialmente para um país como o Brasil, no qual não havia nem democracia econômica, nem democracia social, nem democracia política). Isso não deixa de ser estranho, se se tem em vista a rigidez inerente aos padrões mandonistas de uma burguesia de espírito muito estreito. Contudo, além da conexão apontada, o intelectual é quase sempre profi ssional liberal e, em particular, professor de ensino médio ou superior. Esperava-se dele, mesmo quando se convertia em dissidente, que fosse um “paladino da ordem” (em suma, alguém que, se não luta pela “conservação da ordem”, se empenha, no máximo, no “aperfeiçoamento” e na “renovação da ordem”).

Ora, são exatamente os professores das escolas de ensino superior que vão revelar uma atividade crítica maior, desgarrando-se desses limites. Essa evolução não foi, de imediato, registrada negativamente pelas elites das classes dominantes, que não sentiam a necessidade de policiar os seus membros. Ao contrário, quando se implanta a experiência universitária, na década de 30, essas elites esperavam que se iriam renovar, através do novo rendimento, em seus quadros e em sua capacidade de lançar-se ao controle do poder em escala local, estadual e nacional. Doutro lado, um Estado que conferia ao intelectual, como membro das elites, acesso ao aparelho estatal sem submetê-lo a uma vigilância intensiva, diferenciada, encobria vários desdobramentos políticos dos papéis dos intelectuais. É só a partir de confl itos concretos — confl itos de expectativas ou, diretamente, confl itos de interesses contrariados — na medida em que os intelectuais ousam gravitar para posições desaprovadas por essas elites, é que o antagonismo se evidencia e exige o contragolpe da reação conservadora. De modo que os movimentos que tiram o intelectual do isolamento e o projetam na cena política, levando-os a exercer uma função criadora em termos de consciência conservadora para a necessidade da vigilância e, inclusive, do controle pela violência e da exclusão desses intelectuais.

Na década de 50, porém nós tivemos uma gravitação quase pacífi ca. Durante o Estado Novo, é claro, as elites reduziram o espaço político até para a atuação construtiva de seus componentes ou de seus porta-vozes. Todo estado ditatorial tem essa função. E o Estado Novo restringiu a área da atividade crítica de todas as elites econômicas, culturais e políticas. Mas, com a transição que se dava, de 45 em diante, praticamente houve um restabelecimento dos padrões normais das atividades intelectuais das elites. O grau de autonomia que se conferia ao professor, como funcionário público, dava-lhe uma liberdade muito grande em relação às pressões externas. A década de 50 é a década na qual essas duas condições foram exploradas de uma forma ampla e intensa. É também o começo do fi m. Quando termina essa década, e no começo da década de 60, vê-se que a pressão conservadora se concentra, cada vez mais, nas condições externas dos papéis dos intelectuais. E, de outro lado, aumenta a pressão para que o intelectual se se identifi que com os interesses conservadores das classes dominantes: ou ele aceita esta identifi cação e se mantem livre para se masturbar ou, então, ele realmente e apeado das condições de trabalho que ele almeja.

Nesse quadro geral, a década de 50 aparece como uma década fecunda, de renovação e de esperanças. O governo de Juscelino soube irradiar uma certa euforia. Há quem diga que foi um período de estabilidade política, coisa que decididamente não foi. Mas, tenha sido ou não um período de estabilidade política, o fato é que constitui um período de profunda fermentação. A universidade paga os seus dividendos. A vida intelectual fora da universidade também cresceu. Nós temos o vício de fazer as coisas convergirem para a universidade, quando na verdade é a universidade que converge para o fl uxo da atividade cultural do país. A literatura, que se redescobre no começo da década de 30, vai fl orescer, vai germinar na poesia, no romance e no ensaísmo.

Graças à fecundidade desse período, a década de 60 pode se iniciar como uma década de confl ito entre concepções do mundo antagônicas. Na medida em que os círculos conservadores tentam impor controles que almejam destruir a atividade intelectual independente, eles descobrem que deviam eliminar os vazios do espaço cultural existente na sociedade burguesa brasileira, reservando-os como monopólio da ação conservadora. Os intelectuais divergentes descobrem, por sua vez, que não contavam com aquele espaço cultural e que existia uma funda contradição entre os requisites culturais da ordem social competitiva e o seu funcionamento sob o talão conservador. Orientam-se, pois, no sentido de exigir um “alargamento da ordem”, isto é, que a sociedade de classes se abrisse para as suas funções e papéis sociais, protegendo-os do controle conservador e da pressão reacionária. Lutam e se destroem como eu próprio tive a oportunidade de experimentar pessoalmente ao longo da minha participação na “Campanha de Defesa da Escola Pública”.

De qualquer maneira, porém, é um período fecundo e eu acho que, na curta história da universidade brasileira, ele é tão rico que é através dele que se engendra um maior envolvimento do estudante na vida do país? É a década de 50 que cria as condições materiais e intelectuais para que o estudante gerasse novos tipos de movimento estudantil e de protesto estudantil logo no início de 1960. Os intelectuais dão pouca importância ao estudante, porque tendem a considerar o estudante como um aprendiz. Mas o estudante, qualquer que tenha sido a manipulação dos movimentos estudantis, qualquer que tenha sido a interferência de partidos ou movimentos políticos externos em sua atividade, assumiu uma posição muito importante na fermentação intelectual. E foi ele que ajudou a quebrar a acomodação conservadora e, praticamente, foi ele que se encarregou de desmascarar a condição elitista do professor. O professor teve de decidir: ou ele fi cava gozando daquela autonomia que o protegia, mas ao mesmo tempo o neutralizava, ou ele desobedecia e ia além. O estudante teve muita importância nessa evolução. Muito mais do que certos movimentos políticos que não chegaram a empolgar todos os professores, eles estiveram por trás da gradual radicalização dos professores e dos “intelectuais engajados”. Se os movimentos políticos fossem “mais sólidos” e “mais maduros”, o estudante teria fi cado com um papel menor. No entanto, o estudante se radicalizou mais facilmente. Na medida em que a fermentação atinge a escola secundária o radicalismo entre os jovens, na universidade, vai se ampliando.

Deste modo, no começo da década de 60, a radicalização do universitário, que não era intrínseco à universidade porque ela herdava a radicalização que vinha do ensino médio e do ambiente, alcança proporções típicas do protesto coletivo. Logo em 60 os estudantes organizaram a conferencia na Bahia, de crítica da universidade brasileira, para a qual convidaram vários professores, sendo eu um deles. Isso é um atestado do que representou a década de 50 em termos de renovação cultural. É uma década em que a agitação passa da superfície para patamares mais profundos e na qual o controle conservador da vida intelectual acaba sofrendo um extenso desgaste. Os círculos conservadores, para se refazerem, precisam procurar novos pontos de apoio na esfera do poder político, militar, econômico, etc., e se vêm na contingência de revitalizar os padrões mandonistas de dominação social e de controle do poder, ao nível estatal e fora dele.

Para mim, portanto, a década de 40 foi para o intelectual uma década de consolidação, especialmente quando se pensa em termos de universidade; a década de 50 e uma década de fl orescimento, de autoafi rmação e que engendra a era de confl ito irremediável. Um confl ito que se mantem criador no desenrolar desse período. Mas que logo iria se tornar negativo e destrutivo através da reação burguesa e do seu Estado contra-revolucionário. Perdem-se posições, perde-se continuidade de trabalho, muitos elementos de valor, na escala de grupos, desaparecem. Ainda assim, essa evolução é produtiva, porque todo confl ito é produtivo.

No caso brasileiro só se deve lamentar o fato de que não houve uma real confrontação entre a concepção conservadora e a concepção radical da vida. Se se faz uma simplifi cação bastante ampla, só se deve lamentar isso. Se tivesse havido um confronto mais violento e profundo os resultados seriam melhores. De qualquer maneira, o confl ito se estabeleceu e ele está na consciência do estudante, do professor, do intelectual e mesmo dos que se vem obrigados a participar dessa situação sem serem letrados.

É importante o que aconteceu. Tenho em mente que, como todo o confl ito que não se resolve, germina de forma latente. O setor conservador deu a primeira palavra, mas não deu a última. E tudo isso esta imbricado no fl orescimento que se produziu na e através da década de 50.

De que forma os movimentos e os acontecimentos políticos ocorridos na sociedade brasileira durante os anos 60 tiveram importância na elaboração de sua obra? Nessa linha, qual o signifi cado que atribui a sua ativa participação na “Campanha de Defesa da Escola Pública”?

As coisas que tiveram maior importância na minha obra como investigador se relacionam com pesquisas feitas na década de 40 (como a investigação sobre o folclore paulista, a pesquisa de reconstrução histórica sobre os tupinambás e várias outras, de menor envergadura) ou com a pesquisa sobre relações raciais em São Paulo, feita em 1951-52, em colaboração com Roger Bastide (e suplementada por mim em 1954). Esse trabalho puramente intelectual conformou o meu modo de praticar o ofício de sociólogo. Já os movimentos descritos tiveram importância mais em termos de minha relação com a sociedade brasileira, embora fossem muito úteis para modifi car a posição através da qual eu poderia observá-la, descrevê-la e interpretá-la.

Segundo penso, a importância maior desses movimentos que eclodem no começo da década de 60 está neste fato: o de quebrar a mistifi cação das elites. Inclusive, foi possível levar o desmascaramento mais longe e constatar-se que a revolução de 30 foi uma revolução elitista, com ressonância popular, que o chamado “populismo” foi antes uma manipulação demagógica do poder burguês do que uma autêntica abertura para as “pressões de baixo para cima”. A revolução de 30 captou as frustrações das classes médias e de setores insatisfeitos das classes dominantes. Esses setores minoritários da sociedade brasileira tinham razões de estarem descontentes. Porém, não devemos esquecer que as massas populares — tanto os trabalhadores proletarizados quanto os trabalhadores, que às vezes nem passavam pelo mercado — possuíam razões de descontentamento e de rejeição da ordem existente muito mais profundas. A maioria da sociedade brasileira via-se frustrada pela continuidade do antigo regime e pela cega dominação elitista que isso pressupunha, o que confere a revolução de 30 uma ressonância popular ampla. E foi disso que ela extraiu sua força histórica, que ela traiu de modo rápido e irremediável.

A primeira coisa que a revolução de 30 fez foi trair. Lembro-me que era criança, tinha apenas dez anos, mas andei pelas ruas gritando: “Nós queremos! Getúlio! Nós queremos! Getúlio!” Isso mostra qual era o impacto popular da revolução de 30. Mas, com o poder na mão, o setor que ganhou a revolução não podia deixar de ser representante da maioria, e de implantar um governo elitista, ainda que renovador e modernizador. Uma modernização controlada a partir de dentro, através de reivindicações que muitas vezes tinha um sentido demagógico e com implicações populistas — mas, de qualquer maneira, era um elitismo. E o pior, era um elitismo com concessões demagógicas, anestesiantes. Todas as reformas controladas pelo Estado Novo foram reformas de imposição feitas de cima para baixo. Mesmo na esfera sindical e na esfera educacional, as concessões se faziam para impedir ou neutralizar as pressões dos interessados e para impor a consolidação da “Paz Social” ditada pelos interesses e pelas conveniências burgueses.

Hoje está em moda falar em estado tecnocrático. Ora, o Estado Novo não deixa de ser uma primeira experiência de Estado Tecnocrático, só que numa escala reduzida e de “vôo baixo”. Ele se abriu, é verdade, para vários círculos inovadores. Mas, em compensação, ele abriu muito mais para a composição com as antigas oligarquias. Se, de um lado, um Mário de Andrade, ou um Fernando de Azevedo como amigos de Capanema, faziam frutifi car certas inovações, de outro, as oligarquias novas e modernas se revitalizam ou, por trás de recomposições das estruturas de poder, preparam o campo para a unifi cação dos interesses burgueses convergentes e para a universalização dos padrões mandonistas de dominação social e política.

Esse pano de fundo, que iria cobrar o seu preço histórico em 1964, não impede que muitas inovações se consolidassem, especialmente, nas áreas da educação e do intervencionismo econômico do Estado. Uma das altercações mais importantes diz respeito a infl uência dos professores formados pela Faculdade de Filosofi a. Eles se instalam no ensino médio e uma das consequências, em um estado como São Paulo, por exemplo, é que a qualidade intelectual do estudante muda. E a relação do estudante com a sociedade, com os problemas da sociedade, também muda. Quer dizer que o estudante, que vai para a universidade na década de 50, é relativamente diferente do estudante que ia para a universidade na década de 40. Na década de 40 era raro que um estudante tivesse professores especializados na sua formação. Eu mesmo não tive nenhum licenciado como meu professor. Os meus professores, quando eram “bons” vinham da faculdade de Medicina, da faculdade de Direito, de um ou outro seminário religioso; nenhum era licenciado em geografi a, em história, em biologia, em química ou em matemática. Os professores que me examinaram nas bancas de ginásio estadual, por sua vez, vinham da velha improvisação e possuíam registro precário. Eu próprio, depois que terminei o curso de madureza, fi quei professor com registro precário. A década de 50 desdobra um panorama diverso, com muitos licenciados ensinando e difundindo, com um padrão de ensino novo, novas idéias e novos conhecimentos, ajudando a criar a fermentação que colheu o estudante já na escola secundária.

Doutro lado, o crescimento urbano mudou de padrão. As reivindicações de classe média mudaram também de sentido. A classe média passou a se sentir mais insegura e a defi nir de uma maneira mais direta a relação do seu status com o conhecimento. O fenômeno do interesse da classe média pelo ensino formal localiza-se concentradamente na década de 50. É na década de 50 que a competição por status leva a classe média a enfrentar a sua insegurança concorrendo maciçamente pelas oportunidades do ensino médio e superior. É que a carreira técnica, os empregos de alta qualifi cação e os cargos de direção começam a condicionar os mecanismos de mobilidade social vertical que exigiam conhecimentos técnicos. Portanto, a competição pelas oportunidades educacionais se associam a preservação de status e a transmissão de status para os fi lhos, a continuidade, portanto, da participação das classes médias nas estruturas do poder. Isso signifi ca uma profunda revolução na maneira de perceber o mundo e na maneira de entender os problemas da sociedade. Esses estudantes acabavam sendo um campo muito fértil para as idéias novas que os professores formados pela universidade perfi lhavam e difundiam. Se acontecia que um professor em certa cidade do interior, ensinando determinadas teorias da evolução em biologia, entrava em confl ito ou com o padre ou com certos setores da sociedade, esse era o aspecto negativo do quadro geral. Também acontecia que o estudante via nisso alguma coisa nova; ele se entusiasmava e queria, depois, fazer carreira em algum campo da ciência. Queria ser biólogo, queria ser químico, queria ser físico, queria ser sociólogo. Em 1949 descobri entre meus alunos vários que haviam decidido pelas ciências sociais porque eu ganhara um prêmio com o livro A Organização Social dos Tupinambás.

Também se criaram expectativas novas. Ao mesmo tempo, com o clima de liberdade que se criou ou se expandiu, os movimentos radicais adquiriram certa densidade política, pelo menos nas cidades grandes e em alguns setores da população. Os anarquistas voltaram à cena, os socialistas voltaram à cena, o partido comunista se reorganizava e se preparava para lutar no “plano legal”. A própria consciência conservadora acaba caindo nas malhas da demagogia. O setor mais urbano, mais pró-industrial acaba tendo uma certa sensibilidade para manipulação do voto operário e da massa popular, usando o demagogo como uma isca e um intermediário entre o poder burguês e a concessão política. O jovem, por sua vez, é pego nessas malhas. Muitas vezes se pensa que alguns dirigentes políticos maquiavelicamente apanharam os jovens, doutrinando-os e jogando-os no “caminho da sedição”. Como se nós estivéssemos lidando com o diabo diante do pecador. O processo foi diferente; a sociedade se transformou e nesta transformação, movimentos que antes eram impossíveis adquiriram condições de aparecer e com certa ressonância ocorreu então, um casamento entre movimentos sociais que tinham pouca base de massa mas muito sentido fermentativo — eles acabaram fascinando a inteligência inquieta não só do estudante jovem, de curso secundário e colegial, também de professores, de intelectuais, de jornalistas, de técnicos.

A ebulição histórica se irradia e, através dessa irradiação, eclode na atividade intelectual e põe o intelectual diante de um dilema: ele não pode mais fi car fechado à liberdade ritual de que desfrutava. A sociedade exigia do intelectual a participação. Mas, a participação que a sociedade queria ou consentia era uma participação apologética. Veja-se o seguinte exemplo. Um amigo me pôs em contacto com uma fi rma importante, que desejava fi nanciar uma pesquisa sobre suas atividades. Aceitei a oferta, que foi encaminhada a um antigo estudante. Feita a pesquisa, os interessados revelaram forte decepção; o que pretendiam era o elogio puro e simples de suas realizações, como se a pesquisa sociológica devesse absorver a ideologia das classes dominantes e sua visão da realidade! Não lhes ocorrera que a pesquisa sociológica desembocasse em outras soluções, que poderiam ter levado a realizações de muito maior alcance! Isso não entrava dentro do horizonte intelectual conservador. Se a liberdade que o intelectual desfrutava era muito ampla, sua capacidade para usar essa liberdade era pequena demais. Se ele se atrevia a ir além, não era entendido ou era desaprovado. Poderia dar um exemplo, ainda mais pessoal. No livro A Sociologia numa Era de Revolução Social escrevi vários ensaios que desafi avam a tolerância conservadora. Pois bem, um reitor que me chamava de “mestre” mostrou-me o livro com muitos rabiscos, dizendo-me: “o senhor está introduzindo conceitos muitos perigosos. Nós não podemos admitir que isso seja feito etc.” Ele praticamente contrapôs a crítica conservadora ao meu trabalho. Na medida em que impúnhamos o desmascaramento da liberdade elitista e a negação da liberdade ritual, defrontávamo-nos com incompreensões e ameaças, que por fi m foram concretizadas.

O nosso objetivo especifi co, porém, dizia respeito a uma diferenciação estrutural — que o intelectual tivesse o grau de liberdade efetiva para desempenhar os papéis inerentes a sua atividade. A radicalização que se deu — e que assustou os círculos conservadores — possuía um fundamento intelectual, não nascia de um movimento político. Isso quer dizer que os confl itos destrutivos não teriam surgido se a sociedade brasileira fosse efetivamente uma “sociedade democrática”. Como o negro, nos movimentos de protesto que levavam a uma segunda abolição, o intelectual praticamente pretendia a mesma coisa. Ele queria por a prova o seu papel de intelectual. Enfrentar aquele papel dentro de exigências máximas e com intransigência. A intransigência não era uma intransigência do tipo marxista-leninista ou socialista ou proudhoniana. Era uma intransigência específi ca inerente à responsabilidade ou implicitamente assumida: o intelectual como cientista, o intelectual como professor, e por aí afora. Neste confronto, as elites reagiram em termos conservadores porque o intelectual que eles pretendiam não era esse. Se o intelectual foge ao papel que lhe e atribuído, essa minoria, que detém o controle da sociedade brasileira, perde o investimento. E, o confronto não se faz em termos das exigências intelectuais ou da universidade, ou da ciência, ou da cultura; ele vai se fazer em termos da expectativa conservadora de utilizar o intelectual. Esse é o aspecto geral e é o que temos de por em equação. Como, afi nal de contas, se encadeiam a inquietação dos jovens, as transformações da sociedade urbana, especialmente nas áreas metropolitanas, e a irradiação do radicalismo político, não só na esquerda, mas também dentro de certos setores da burguesia.

Tudo isso se conjumina, se interinfl uencia e a consequência é que o fi m da década de 50 e o começo da década de 60 representa um momento de interação em que um setor se destaca da minoria, não para falar em nome da minoria, mas para falar em nome da maioria, através de papéis que não são da maioria; são do indivíduo que está preenchendo aquele papel de intermediário. Por exemplo, eu falava como sociólogo, outro poderia falar como economista ou como pedagogo, outro poderia ir em nome de qualquer outra coisa. Nesse começo da década de 60 surgem vários movimentos, um deles que é deveras importante é o “Movimento de Defesa da Escola Pública”. Porque, é claro, quando as inquietações se aprofundam na década de 50, o setor radical avançou. Quando ele avança o setor conservador, que nunca tinha sido assim amagado em conjunto sente-se compelido a tomar posição de confronto.

No caso do sistema escolar brasileiro o que aconteceu foi que os educadores sugeriram a incorporação, na constituição brasileira, de certas medidas globais para disciplinar e racionalizar o sistema educacional brasileiro. A lei de diretrizes e bases nasceu de uma inspiração dos educadores, alimentada por sua consciência utópica da realidade educacional e de suas perspectivas de transformação racional — uma questão que nunca foi analisada até hoje. A consciência pedagógica dos pioneiros da chamada “educação nova” era uma consciência utópica. Eles pensavam que, como estavam advogando causas boas, as sugestões que faziam poderiam ser absorvidas de modo mais ou menos rápido; e que todo processo de mudança poderia ser condicionado e regulado por essas medidas racionais. Era uma tentativa de racionalizar o processo de crescimento, diferenciação e expansão do sistema escolar, estabelecendo normas nacionais que permitissem certa fl exibilidade e uma racionalização no uso dos recursos materiais e humanos aplicados na educação. Ao fazer a sugestão, o que os educadores pretendiam? É claro, num plano, queriam ter mais poder, isso é inegável. Mas, noutro plano, procuravam adaptar o sistema educacional brasileiro às funções que ele não estava preenchendo. Quer dizer, mudar estruturalmente o sistema educacional, transferir o controle efetivo para os educadores e criar uma educação mais democrática e de melhor qualidade. Os objetivos educativos eram construtivos. Tinham em mente também conquistar mais poder, ter maior infl uência; pensavam nesse poder, nessa infl uência operacional ou instrumentalmente, porque era uma maneira de aumentar a efi cácia do papel intelectual que o educador deveria ter numa “sociedade moderna”.

Agora, ao perceber o que sucedia, o setor conservador se viu ameaçado. Vocês conhecem os confl itos que ocorreram entre católicos e os pioneiros da educação nova, anteriormente, na década de 20 e no começo da década de 30. Esses confl itos vão ressurgir, porém não vão ressurgir mais em termos de idéias e de dogmatismos; reaparecerão em termos de luta centrada em interesses e em grupos de pressão. Trata-se de uma coisa nova, que não ocorrera antes. Grupos de interesse que se polarizam para defender o controle conservador do sistema educacional ou o controle inovador do sistema educacional pelos próprios educadores, identifi cados com uma renovação educacional de alto a baixo. E aí entra o clero (uma parte do clero, pelo menos a parte ligada ao ensino e que defendia concepções muito retardatárias). Entra também a iniciativa privada envolvida na esfera do ensino, especialmente identifi cada com o lucro que a mercantilização da escola privada podia proporcionar. O fato é que esses grupos se articularam e, através, de Carlos Lacerda, então deputado federal, lançam um projeto para se contrapor ao projeto inicial, calcado nas sugestões e nas aspirações dos educadores. E daí nasce a necessidade de abrir uma frente de luta contra os grupos de pressão e de interesses privatistas no campo da reforma educacional.

O Movimento de Defesa da Escola Publica foi, portanto, uma resposta à interferência conservadora no processo político-legal, em que se discutia a Lei de Diretrizes e Bases. Vocês encontram, em um livro editado pela Pioneira, organizado por Roque Spencer Maciel de Barros, um bom escorço das origens e evolução dessa luta, elaborado por Laerte Ramos de Carvalho. As classes conservadoras não possuíam uma posição homogênea, como também não a tinham os setores radicais. Ocorreram muitas hesitações e amplas fl utuações nos dois lados. Havia gente que pretendia o fortalecimento do sistema público de ensino, como Júlio Mesquita Filho, Paulo Duarte e outros, que formaram naturalmente conosco e nos garantiu larga cobertura publicitária, especialmente através de O Estado de S. Paulo. Os intelectuais tiveram um papel importante e eu entrei nessa campanha depois de certa vacilação, já que não me considerava competente para fazer parte dela e para discutir problemas que eram muito mais da alçada do educador que do sociólogo. Porém, depois que eu vi que eu podia contribuir, como sociólogo, com um ângulo construtivo de discussão do projeto e que a perspectiva sociológica garantia certa efi cácia na discussão dos problemas, passei a participar com intensidade crescente da campanha. Isso quer dizer que a agitação que eu fi z e uma agitação que gira em torno do debate sociológico tendo em vista o nível de consciência crítica dos problemas educacionais da nossa sociedade. Com isso, fui a vários lugares, de Norte a Sul, de São Paulo para o interior e para o litoral. Ao todo, realizei umas 55 ou 60 conferencias, debates etc. sem contar as entrevistas e declarações para a imprensa escrita e falada.

Com isso, estamos diante de uma sociologia engajada? É claro que não; não se tratava de uma sociologia engajada. Essa noção de sociologia engajada, inclusive é uma noção errada, porque o sociólogo pode se engajar em várias direções. Ele pode se engajar ao lado dos interesses ultra-conservadores, como faz Gilberto Freire; e pode se opor a eles, como eu faço. Tal alternativa dependeria da vinculação com movimentos políticos — os movimentos políticos não tomaram conta da “Campanha de Defesa da Escola Pública”. Inclusive, havia uma certa desconfi ança em relação ao rendimento político que ela podia dar. A relação dos movimentos políticos com a “Campanha de Defesa da Escola Pública” foi tangencial. Não obstante, a campanha se radicalizou bastante porque o intelectual, posto em confronto com diversos auditórios, descobriu um meio de conhecimento da sociedade brasileira e de intervenção na realidade. A minha experiência a respeito é notória. Na Primeira Convenção Operária de Defesa da Escola Pública, por exemplo, que foi feita no Sindicato dos Metalúrgicos, na rua do Carmo, o Laerte me disse espantado: “Florestan, esse pessoal esta discutindo a educação como se fosse feijão e arroz”. Ora, era o operário que estava discutindo a educação, e talvez para ele a questão tivesse esse sentido.

Para mim, a participação na Campanha foi deveras importante. Eu descobri líderes sindicais de vários tipos, alguns que são oportunistas, outros que não são; entre eles, grandes homens, homens de real talento e capacidade de ação, altruístas e empenhados na reconstrução democrática da sociedade brasileira. Saímos do isolamento. De outro lado, deixamos de representar um papel intelectual de cúpula, em nome da elite. O que foi uma ruptura já não teórica, mas prática. Como sociólogo, podem perguntar-me, tive algum proveito? É claro. Primeiro, como intelectual na medida em que saí do isolamento. Para mim foi a possibilidade de descobrir as verdadeiras dimensões do papel que eu tinha ou poderia ter na sociedade brasileira — fato que não percebera antes tão bem como agora. Até esta época, eu fi cara preso nas malhas da profi ssionalização do sociólogo. Do sociólogo que faz o seu trabalho obedecendo a uma ética da ciência que foi construída no período liberal. Por que não se faz a crítica científi ca dessa ética? Por que o cientista que se isola e se retrai pensa que está agindo em nome dos padrões da ciência? A ciência não impõe nada disso à ninguém. O problema diz respeito à natureza do conhecimento científi co. Se esse conhecimento é exposto de uma ou de outra maneira, ou se o investigador está exposto ou não ao contacto com vários tipos de público, isso não afeta a natureza do conhecimento científi co. Desta maneira, quebrei o meu isolamento e deixei de estar confi nado (não só dentro da universidade, mas de uma universidade que estava em processo de formação, sujeita a forte inibição de controles externos conservadores, e submetida a várias pressões, todas elas de tipo elitista).

Como intelectual aproveitei muito e, principalmente, descobri que a sociologia precisa responder às expectativas que não devem nascer dos donos do poder, mas sim de critérios racionais de reforma, que levam em conta as necessidades da Nação como um todo, ou das pressões históricas de grupos inconformistas. Para evitar um confl ito frontal com os controles conservadores, defi nimos uma linha de ação que permitia combinar esses dois tipos de motivações, reduzindo ao mínimo o envolvimento ideológico e político de nossa atuação. Ainda assim, as transformações exigidas eram demasiado profundas e o confl ito com os setores privatistas, mais ou menos conservadores, cresceu em intensidade e em violência. Portanto, como sociólogo, adquiria uma posição estratégica que me oferecia uma visão crítica do trabalho intelectual do sociólogo quando ele não se liga a comunidade dos cientistas, dos cientistas sociais, mas se volta para a comunidade de que ele faz parte em termos de cidadão, em sua condição de membro do mundo em que vive. Isso foi crucial para mim.

Mas houve coisas ainda mais importantes. Afi nal de contas, quando se quebra o isolamento intelectual o diálogo se estabelece. E, se o diálogo se estabelece a partir do indivíduo que é sociólogo, que tem treino para fazer pesquisa, ele está desdobrando sua capacidade de observação da sociedade. Eu não tive uma: tive quase 60 oportunidades de observar grupos em ação e de discutir com membros daqueles grupos de diferentes posições: os que apoiavam a Campanha, os que eram contra, os que eram contra as medidas de racionalização do ensino e os que defendiam a patrimonialização do sistema nacional de educação. Pude, então, ir a fundo da natureza do controle conservador do poder. Em A Sociologia numa Era de Revolução Social há um ensaio (“Refl exão sobre os problemas de mudança social no Brasil’) onde defi no a oposição à mudança como uma modalidade de resistência sociopática das classes conservadoras e que eram ditadas pelo medo de perder suas posições nas estruturas de poder. É uma descoberta que eu jamais faria se não tivesse participado da “Campanha de Defesa da Escola Pública”. Ali eu vivia praticamente os papéis intelectuais do sociólogo-militante. Era um participante do grupo e discutia em termos de participante para participante. A polarização radical de minha posição exigia das pessoas que me antagonizam que evidenciasse, até ao fundo, a natureza imobilista, obscurantista e reacionária das pressões conservadoras. Eu podia também ter apoio. Nesse caso, líderes sindicais, estudantes e jovens inconformistas, espíritas, maçons, protestantes, católicos dissidentes da posição ofi cial da Igreja, gente com politização de esquerda — do partido trabalhista ao partido comunista e do partido socialista — indicavam como se desencadeavam as “pressões democráticas” e a reforma social: eu tinha um cadinho diante de mim, uma espécie de calidoscópio. As várias correntes, como elas entravam em confl ito e eu com a oportunidade de discutir e de acompanhar os argumentos, de ver como estes se ligavam com interesses, valores e ideologias de várias classes e setores de classes. Era um desdobramento da capacidade do observador direto de explorar a técnica de observação participante, que, permitia um aprofundamento vertical na observação e no conhecimento da sociedade brasileira. Quantas pesquisas eu teria de fazer para conseguir algo equivalente em matéria de conhecimento da sociedade brasileira? Como poderia chegar a resultados análogos?

No fundo, tratava-se de um conhecimento com forte cunho subjetivo. Mas o problema não é saber qual é o cunho subjetivo. Afi nal de contas, qualquer entrevista possuí uma base subjetiva. A questão está em saber como o analista, depois de depurar os dados, aproveita o que eles contêm de positivo. Pouco importa se falei em nome de minha consciência radical naquele momento ou se falei em nome de uma verdade que poderia ser comprovada por outro sociólogo. Tenho a plena convicção de que, na fase em que pude aproveitar os dados, realizei um aproveitamento objetivo das experiência. E ela me ensinou duas coisas. De um lado, que não se deve incentivar o isolamento do intelectual de qualquer forma, mesmo que seja para ele participar de posições reacionárias ou ultraconservadoras. É melhor que ele participe ativamente, respondendo as suas responsabilidades. É melhor ter o Corção dizendo o que ele pensa, do que ter o Corção exercendo essa infl uência de uma maneira desconhecida. De outro lado, a participação possui a sua lógica e todo processo de discussão democrática legitima o antagonista. Em outras palavras, o que aceita o debate público e nele defende a sua posição, qualquer que ela seja, não pode cobrar o silêncio daquele que pensa de maneira diferente. Ao proclamar os seus interesses e os seus valores, ele proclama também os interesses e os valores divergentes, do antagonista ou dos antagonistas. Isso é importante no meio brasileiro (não só e importante em geral). Em nosso meio sempre prevaleceu o monopólio conservador da verdade. E, a partir do momento da ebulição da crítica, da discussão, do diálogo, esse monopólio se esboroa e desaparece. Os argumentos são, afi nal de contas, cotejados.

Portanto, naquele momento, a campanha teve consequências muito produtivas. Se ela não foi mais longe é porque Jango Goulart, como presidente da República, capitulou. Já tratei dessa capitulação em entrevista que dei a O Estado de S. Paulo e foi publicada como artigo. Infelizmente, além do ministro da Educação outras pessoas que o assessoravam — e que tinham responsabilidade intelectual e política, porque eram educadores de prestígio nacional — aceitaram o conluio e endossaram concessões que nunca deveriam ser feitas. Não obstante, a campanha preenchera a sua função, retirando a universidade do isolamento e mobilizando o professor universitário. Foi uma avenida que nos pôs em contacto com os problemas humanos da sociedade brasileira e de uma forma que podia ser tolerada pelos diferentes grupos. A tal ponto que espíritas, maçons, protestantes, católicos dissidentes ou círculos radicais podiam patrocinar e participar das várias conferências e demonstrações. Os maçons tiveram uma importância muito grande no desenvolvimento da campanha. Por sua vez, mais tarde, depois do Concílio Ecumênico, a Igreja Católica deu um salto. Nós não teríamos tido muitos do antagonistas que enfrentamos se o contexto fosse outro. Mas, naquele contexto, o que aconteceu foi produtivo. Especialmente para o jovem, que ouvia. Ele aprendia a refl etir criticamente sobre os problemas da sociedade brasileira. E essa é uma aprendizagem fundamental.

Posteriormente, ocorreram movimentos mais signifi cativos e de maior amplitude política, com um nível mais alto e aberto de radicalização. É que, com a mudança do contexto histórico, depois de 1964, o controle conservador tornou-se mais rígido, explícito e implacável. Aí se inverte a relação descrita acima. Os limites estabelecidos e as soluções impostas aparecem para os estudantes, os jovens e os intelectuais radicais, ou outros setores da sociedade, como um desafi o intolerável. Portanto, um desafi o que obriga o elemento radical a tirar o capuz, a decidir o que é mais importante — o compromisso com o imobilismo ou a atividade inconformista. Então, especialmente a partir do momento em que os estudantes, os operários, os intelectuais, os padres e alguns políticos ou lideres sindicais vão saindo da perplexidade, do isolamento e do temor, especialmente depois de 66 — mas com muito mais intensidade entre 67 e 68 — ocorrem movimentos de muito maior importância, densidade e signifi cação política. Mas nesse momento o intelectual já estava exposto ao desmascaramento. Os grupos conservadores; especialmente utilizando o aparelho do Estado e os meios de comunicação de massa, identifi caram todos os divergentes como subversivos. Criou-se, sob os vários movimentos radicais, um vácuo que foi progressivamente isolando os grupos ativistas da base de massa que os alimentavam e os suportavam. É claro que esta base de massa era considerável. Basta que se lembre certos números: por exemplo, a primeira passeata no Rio, com mais de 150 mil pessoas; a primeira passeata em São Paulo, com 50 mil pessoas ou mais. A radicalização não estava dissociada de uma base de massa, que sugere, por si mesma, que os confl itos de classe se abriam para a reforma e a revolução democrática.

Independentemente disso, os movimentos radicais entram em uma etapa de confronto mais viril com o controle elitista da universidade, do saber, do papel do intelectual. E desse confronto, naturalmente, nasceu um esmagamento maior porque, realmente, a luta era desigual. Há, também, vários elementos interferentes, que não vem ao caso analisar agora. O que importa é reconhecer que esses movimentos tiveram muito maior signifi cação, não para as ciências sociais, em si mesmas, mas por suas consequências. O nível do diálogo e do protesto era mais homogêneo. Os que não sentiam alguma propensão a contestação ou a radicalização não iam, evitavam o engajamento. A visibilidade defi nida do intelectual ou do jovem como radical vai criar, portanto, um público de tipo determinado. Esse público, por sua vez, aumenta aqui, diminui ali. Porém ele sempre dá apoio às várias manifestações. Se não cresce como devia; isso se deve à uma estratégia ultra esquerdista errada, que se confunde, que não identifi ca nem os aliados potenciais nem o inimigo principal, e aceita, por isso, os clichês, os estigmas que o controle conservador manipula a seu bel prazer, A estigmatização em termos de “subversivo” não só suscita medo; ela afasta os que poderiam ser mobilizados para o confronto contra a ordem.

Nesses termos, há uma homogeneidade maior. Se ela reduz a contribuição construtiva que se poderia dar a consciência crítica dos problemas, ela aprofunda a efi cácia da análise inconformista e da ação divergente. Pois não se trata mais de abrir horizontes, mas de aprofundar as explicações, botá-las em confronto e levá-las ao plano prático. Ainda aí há pois um resultado positivo. O debate se concentra. A linguagem se fecha e os problemas são selecionados, o que é possível graças à um público mais homogêneo. Quais são os fatores que explicam o subdesenvolvimento? Quais são os fatores que explicam o desenvolvimento capitalista dependente? Quais são as consequências do subdesenvolvimento e do desenvolvimento do capitalista dependente? E por aí afora. Inclusive, problemas concretos como: qual é o diagnóstico da universidade existente?; o que se deve por no lugar desta universidade? O pensamento se torna realmente construtivo e produtivo porque o diálogo acaba sendo orientado através de objetivos comuns — não apenas de criticar a ordem existente, mas de transformá-la numa certa direção, de indicar certas limitações e criar uma experiência nova. Os movimentos são mais criadores porque aí eles se ligam a resultados de investigações, permitem que o sociólogo comunique a seus auditórios descobertas relativamente complexas e estabeleça em um nível mais abstrato a discussão. O auditório compartilha a dignidade de par intelectual. Estabelecese uma verdadeira relação democrática entre o intelectual e o público, o que converte a comunicação nos dois polos dialéticos de um modo de ser. E aí também, de novo, nós estamos transcendendo a experiência histórica.

Como explicar isso? Porque não se trata de algo comum. O sociólogo europeu ou norteamericano não desfruta essa possibilidade como e enquanto sociólogo. É que, por causa das circunstâncias, nós preenchemos uma função que até agora nenhum movimento inconformista preenche por si mesmo. Não há um movimento radical que tome a si as tarefas do intelectual crítico e militante as quais o sociólogo se arroja. Não há partido divergente com escola de partido doutrinando na parte teórica e dando adestramento na parte prática. As nossas fraquezas e as nossas debilidades forçam a situação histórica, o que faz com que o cientista social acabe preenchendo vários papéis que não teria, em outro contexto histórico. É claro que isso e transitório. Nem poderia ser permanente.

No fundo, não há ciência social nem cientista social que aguente esse peso, essa sobrecarga de modo permanente. Não há cientista social que suporte essa pressão concentrada e destrutiva da pressão conservadora, porque o trabalho dele fi ca esfacelado. São muitas solicitações desencontradas e que não se conciliam com a produção acadêmica programada ou com as possibilidades normais de rendimento individual. Lembro que em 1968 eu era solicitado pelo trabalho de ensino e de pesquisa, pela participação na Congregação, pela orientação do trabalho de equipe, pela discussão com o pessoal e todas estas atividades paralelas sem descurar nenhuma, tendo de me desdobrar em todas elas, tentando manter um nível de produção bastante alto, para que ninguém dissesse: “olha aí, o Florestan esta descurando do trabalho dele na escola”, o que seria um calcanhar de Aquiles.

Esta refl exão mostra a importância do envolvimento do sociólogo mas também indica que uma atividade militante intensa é incompatível com a vida acadêmica: ela pode ser posta em prática de modo transitório, em dados momentos. Apesar de tudo, a situação é produtiva para o cientista social. Ele pode descobrir coisas sobre a sociedade que fi cam ignoradas quando ele se protege por trás do escudo da “neutralidade” e da “profi ssão”, isolando-se mentalmente. Além disso, há a questão da crítica externa dos resultados das investigações e dos conhecimentos obtidos. Ao apresentar as idéias em público, há críticas de vários tipos — umas são estupidas, outras são inteligentes — e é sempre possível aproveitá-las. Aproveita-se a colaboração coletiva dos auditórios, o que torna o movimento de idéias, muito mais rico, aberto e fecundo. E, em particular, o sociólogo e a sociologia respondem as pressões do ambiente e interagem com ele. Supera-se o patamar de uma sociologia profi ssional ressentida, em busca de uma sociologia na qual sociólogos com formação profi ssional participam e põem o trabalho intelectual deles como e enquanto sociólogos em interação com expectativas e preocupações da coletividade. E isso, do ponto de vista da sociedade, é importante. Porque se o meio intelectual brasileiro fosse diferente não haveria essa necessidade.

De que maneira as condições institucionais integraram, limitaram ou neutralizaram os resultados de sua produção científi ca e profi ssional?

É claro que devemos considerar que todos estes resultados estão misturados. Nunca poderia ter me tornado sociólogo se eu não fosse professor de sociologia na USP. Com todas as limitações que a instituição possa ter, ela possui uma vantagem fundamental: permite que alguma coisa se faça ou deixe de ser feita. O que não se faz lá não se faz em nenhum outro lugar. Há certas pesquisas que, ou se faz dentro da universidade ou elas não se realizam. Se nos vivêssemos, por exemplo, nos Estados Unidos, vários tipos de pesquisas poderiam ser patrocinadas por fundações e alguém poderia ser cientista social sem precisar converter-se em professor da universidade. James West, um antropólogo famoso, é um exemplo disso. E existem muitos outros, que não vem ao caso citar — inclusive alguns que fi zeram carreiras brilhantes fora da universidade. De outro lado, há muitas investigações que foram feitas na Europa a partir de partidos, como o partido socialista, o partido comunista, o partido trabalhista etc.; na Itália, na França, na Alemanha, na Inglaterra etc., ou, então, a partir dos sindicatos. Aqui só o DIESE permitiu o desenvolvimento de coleta de informações importantes sobre o custo de vida, mas sem envergadura para suscitar contribuições teóricas de relevo ou para alimentar a carreira de um grupo de especialistas.

De modo que a Universidade, gostemos ou não de suas estruturas e funções, centraliza certos trabalhos. De fato, se fui alguma coisa em minha vida, fui um universitário. Não só me preparei para ser um universitário, mas fui um universitário no sentido mais pleno da palavra. A tal ponto que quando deixei de ser universitário, fi quei desarvorado. Eu não sei para onde vou. Estou numa crise que é psicológica, é moral e é política. Em grande parte porque, na medida em que não tenho grande interesse em ser professor de sociologia no exterior, e não podendo sê-lo aqui, perdi um ponto de referência e de identidade que poderia ser muito vantajoso para a minha sobrevivência e o meu trabalho.

Falando francamente, a Universidade exerce uma função básica, pois permite certo tipo de trabalho intelectual que não existiria de outra forma. Aceita esta idéia, de que a Universidade oferece uma oportunidade de trabalho que não se concretizaria de outra forma, é preciso deixar claro que a Universidade brasileira não tem condições de dar suporte pleno ao trabalho intelectual em todos os campos da ciência. Ela ampara mas com limitações muito graves. Quanto às fontes que suplementam o apoio (Fundação de Amparo a Pesquisa e Conselho Nacional de Pesquisas etc.) eles também preenchem as suas funções com certas limitações. Eu próprio nunca me benefi ciei, de uma maneira pessoal, dessas vantagens.

Refl etindo em termos do que aconteceu durante a minha vida, acho que a Universidade brasileira, ao mesmo tempo que me ofereceu a oportunidade de me tornar um sociólogo, determinou que eu fosse um sociólogo com possibilidades estreitas de produção teórica. A palavra teoria exerce uma fascinação muito grande no Brasil, e não só entre os sociólogos, os matemáticos, os fi lósofos, os críticos literários, professores de literatura — todos, em suma, querem fazer trabalho teórico, e só dão sentido ao trabalho quando se pode falar em Teoria. Para mim, o trabalho só é teórico quando produz um conhecimento novo, seja de alcance médio, seja de alcance geral. Em um livro como A Organização Social dos Tupinambás há teoria, mas é uma teoria implícita que, em grande parte, não foi criada por mim, que eu herdei e outros etnólogos, antropólogos e sociólogos. A parte criadora que existe em A Organização Social dos Tupinambás está mais na articulação das várias partes do sistema social tribal. Essa articulação representa um produto da minha capacidade criadora. Se eu não tivesse uma imaginação sociológica eu não seria capaz de, explorando os dados oferecidos pelos cronistas e o que eu sabia da teoria da organização social, reconstituir o sistema tribal e chegar a explicação de uma civilização.

Em A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá já existe um pouquinho mais de teoria explícita. Porém, é uma teoria que só tem validade para o sistema cultural tupi. É claro que é esta a contribuição máxima que um investigador empírico pode dar. Quando ele consegue uma explicação que vale para um determinado sistema de civilização e que se pode falar em “contribuição teórica”. Mas, aí, temos uma espécie de teoria que está abaixo daquilo que Merton chama de teoria de nível médio, de nível intermediário”, ou de alcance médio, como quiserem. Ainda assim, eu acho que nesses dois trabalhos eu dei uma contribuição teórica. Apesar de ter encontrado pouco reconhecimento, ela não me parece ser uma contribuição irrelevante. Consegui reconstruir o sistema social tupi de uma maneira tal que encontrou corroboração de investigadores com treino em pesquisa de campo e que vistoriaram o meu trabalho de uma maneira rigorosa. A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá, talvez tenha sido a obra na qual eu dei maior vazão aos meus ímpetos de scholar; o meu trabalho mais puro como sociólogo. É certo que dei pouca atenção a qualquer norma que reduzisse a elaboração interpretativa ao que pudesse ser corroborado pela análise comparada. Realmente trabalhei tendo em mente aprofundar o sistema tupi e acho que, principalmente na análise das várias funções da guerra, o trabalho tem uma contribuição teórica de grande importância, embora limitada, pois nunca ultrapassei a sociedade tupi e a sua civilização.

Agora, vamos perguntar: esse trabalho foi possível graças a Universidade de São Paulo? Foi, mas só no sentido em que eu tinha um emprego pelo qual me sustentava e facultava certas escolhas. Isso quer dizer que eu dispunha de ócio e, graças à instituição do tempo integral, podia suplementar minha renda facilmente com artigos de jornal, podendo empregar meu tempo para fazer um trabalho daquela envergadura. Levando mais longe a pergunta: se eu pretendesse fazer uma investigação em que ainda não dispusesse dos dados (porque no meu caso já dispunha dos dados, pois havia feito um levantamento prévio das fontes), se quisesse investigar com a mesma plenitude um grupo tribal contemporâneo, não teria condições nem meios para subvencionar as viagens e longas permanências no campo, em uma pesquisa que durasse três ou quatro anos. Igualmente não teria tempo para me dedicar exclusivamente à crítica e à análise dos dados, a verifi cação das interpretações e a redação do trabalho. Isso signifi ca que a Universidade não dá condições de trabalho efetivo. Porque um livro como A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá só se tomou possível na medida em que eu usei todo o meu tempo excedente, que não era empregado na escola, na elaboração do trabalho. O que cria, praticamente, uma situação de neurose. Porque é preciso ser neurótico para escrever um ensaio daquele tipo.

Institucionalmente eu não faria aquele trabalho; a instituição não oferece condições para tanto. Entre nós, o scholar, fl oresce à revelia da Universidade e, em certo sentido, em tensão com o meio, que não entende nem estimula qualquer investigação altamente especializada, especialmente se envolver o que se poderia chamar de “investigação sociológica pura”. Mas essa não é a principal limitação, pois ela já pode ser compensada, atualmente graças à existência de instituições de amparo à pesquisa e que se empenham em identifi car os investigadores. A principal limitação está no fato de que um grupo de investigadores não conta com recursos materiais e humanos para organizar projetos de investigação de maior envergadura, projetos que pretendam estabelecer uma conexão entre objetivos teóricos, empíricos e práticos. Ainda sofremos a deformação de dar preferência a projetos nos quais só existem, explicitamente, objetivos empíricos ou teóricos. Os objetivos práticos são costumeiramente negligenciados. Se eu quisesse fazer uma investigação reunindo esses objetivos e que envolvesse um grupo grande de pessoas, a instituição não poderia patrocinar esse projeto.

A principal limitação está no fato de que a carreira científi ca não foi incorporada à Universidade; o que foi incorporado à Universidade foi o papel de professor. Quando o professor se desdobra em investigador, esse desdobramento corre por conta das contingências. Se ele tem oportunidades de usar mais tempo ou menos tempo isso é com ele, a instituição não se preocupa com isso. Ela depois vai controlar se ele produziu não um certo número de livros ou de artigos mas, de fato, ela não dá apoio institucional à pesquisa de uma maneira mais ampla e, muito menos, a redação dos livros e artigos. Para mim, esta aí um elemento crucial, que se torna mais grave quando se considera a questão de uma perspectiva competitiva. A pesquisa científi ca não se organiza apenas em bases nacionais, ela se organiza também em bases internacionais. E em bases internacionais a Universidade brasileira não tem existência no campo da ciência. Talvez em certos setores da física e da matemática, e em alguns desdobramentos da química e da biologia, a Universidade brasileira, graças a certas articulações com grupos externos, acaba saturando algumas funções. Pelo que conheço, através de conversas com colegas que trabalham nesses campos, tal saturação é muito defi ciente e insatisfatória, tornando o investigador brasileiro praticamente dependente dos centros externos. Não vou discutir aqui os signifi cados nem as implicações dessa dependência, nem se é desejável que ela existe. Apenas reconheço que, nesses campos, a colaboração externa permite uma compensação.

No caso da sociologia, da antropologia, da ciência política, da economia, a articulação com os centros externos signifi ca que o trabalho será orientado a partir de normas defi nidas e estabelecidas de fora. Durante toda a minha carreira científi ca combati esta impregnação da pesquisa sociológica. Eu não acho que a pesquisa deve ser nacional ou internacional; acho que ela precisa responder a certas normas que são estabelecidas formalmente e muitas vezes são universais para todos os investigadores que trabalham com um determinado problema. Mas, independentemente disso é indesejável que se invistam recursos na pesquisa sociológica, por exemplo, para desenvolver teorias que são irrelevantes em termos da sociedade brasileira, da América Latina — ou das Américas Latinas — e dos países dependentes, enfi m de todo o terceiro mundo. E não sou só eu que penso assim. Há quem pense que sucumbimos à ideologia e à uma posição política. Mas, se se leva em conta um trabalho importante de Myrdal, escrito já há quase vinte anos, descobre-se que muitos trabalhos de investigação nas ciências sociais só podem ser feitos nos países chamados dependentes e se estes países tiverem alguma autonomia intelectual, política e científi ca. Por isso, uma articulação muito estreita com os centros de investigação do exterior (tidos como mais dotados de recursos materiais e humanos ou mais avançados) pode ser indesejável.

É exatamente esse o caminho errado e negativo que se está escolhendo, agora, nas ciências sociais, para compensar as defi ciências da nossa universidade. Ao invés de se procurar saturar a universidade com funções novas, com recursos que permitissem uma expansão da pesquisa autônoma, estão se estabelecendo condições para articular a pesquisa científi ca com preocupações que eventualmente serão, quando pouco, centrífugas em relação àquilo que poderia ser mais importante para o desenvolvimento da ciência no Brasil. Desta perspectiva é que se pode fazer a crítica fundamental a Universidade brasileira. Ela não oferece ao investigador, em qualquer campo das ciências sociais, condições para avançar na construção de teoria original. Na ciência não interessa repetir experimentos e verifi car teorias já estabelecidas; interessa produzir teorias novas. E na Universidade brasileira é muito estreito o trabalho que pode conduzir à produção de teorias novas. E onde a produção de teoria nova se consolidou ou está se consolidando (porque era inevitável, já que as escolhas se impunham como a única área em que nos poderíamos realmente concentrar o esforço da pesquisa criadora), a Universidade não foi capaz de revelar nenhuma vitalidade. Inclusive de dar um apoio funcional ao crescimento das equipes de pesquisa e a renovação dos recursos materiais e humanos que eram indispensáveis.

Por isso é que se poderia dizer que de um lado a Universidade brasileira se equipou apenas para ensinar, quase que repetindo uma limitação fundamental da escola superior isolada; e que, de outro lado, ela ampara a pesquisa que cria a teoria original mas apenas até um certo ponto. Quando a teoria original começa a exigir mais recursos, maior fl exibilidade, aí a universidade não tem condições de oferecer qualquer tipo de apoio ao investigador individual ou a grupos de investigadores que estiverem envolvidos em projetos, mais ou menos complexos e prolongados. E essa limitação é básica porque, qualquer que seja a opinião que se tenha a respeito da polarização dos cientistas sociais por causa do confl ito de ideologias, nenhum país da periferia do mundo capitalista terá hoje condições de lutar contra o subdesenvolvimento e a dependência se não for capaz de produzir teoria original no campo das ciências sociais.

Como enfrentou durante toda a sua carreira profi ssional a questão da chamada “responsabilidade política e ideológica” do intelectual? De outro lado, a seu ver, de que forma a sua produção científi ca teria contribuído para o enriquecimento do quadro teórico e para a ampliação do campo de investigação das ciências sociais no Brasil?

De uma maneira geral, devo dizer que me sinto muito insatisfeito pelo fato de que não consegui superpor os dois papéis que gostaria de preencher. Eu gostaria de ser um cientista social ao mesmo tempo vinculado com a universidade e com o socialismo. Todas as tentativas que fi z para combinar as duas coisas falharam. E falharam porque não existe movimento socialista bastante forte na sociedade brasileira que sirva de substrato e de apoio para os intelectuais que tenham uma posição socialista. Muitas vezes, quem vê de fora a minha carreira, fi ca com a impressão de que eu privilegiei a ciência contra o socialismo. É claro que isto não aconteceu. Se se levar em conta que traduzi Marx no inicio de minha carreira ou que, como estudante, já estava engolfado no movimento socialista clandestino percebe-se melhor quais eram as minhas intenções. A cisão ocorreu, em grande parte, porque não havia um movimento socialista capaz de aproveitar os intelectuais no meio brasileiro de uma maneira mais consistente.

A gente não é uma coisa ou outra em função da própria vontade, mas em função das oportunidades que o meio oferece. Se o meio oferece ou não uma determinada oportunidade, a inteligência pode caminhar em dada direção; caso contrário não. De modo que, inclusive, eu tive de viver uma crise de consciência muito profunda, da qual e testemunha o Antônio Cândido. Porque ele foi a pessoa com a qual discuti os aspectos mais graves e dramáticos das escolhas que tive de fazer. Ficar no movimento socialista clandestino, que não tinha nenhuma signifi cação política e destruir certas potencialidades intelectuais; ou aproveitar dessas potencialidades, sair do movimento e esperar que, numa ocasião ou noutra, a minha identifi cação com o socialismo viesse à tona. Nós discutimos muito seriamente esses problemas, que eu enfrentei com integridade, embora tivesse de escolher um caminho que não era o que eu queria. É claro que se eu tivesse seguido um caminho, no qual pudesse defi nir a minha perspectiva como cientista social a partir de um movimento socialista forte, nunca teria trabalhado com os temas com os quais eu trabalhei. Muitos dos temas foram escolhidos de uma maneira muito acidental, para não dizer oportunista. Por exemplo, ia fazer meu doutorado com um trabalho sobre sírios e libaneses; depois desisti. Por quê? Porque eu não podia fazer a pesquisa nas condições de trabalho acessíveis a partir da Universidade, pois não dispunha dos recursos necessários (naquela época não tínhamos nem tempo integral). Tive de substituir o tema procurando me ajustar a uma realidade que naquele momento era muito difícil. Tive de pensar sobre um tema que permitisse evidenciar minhas qualidades como sociólogo e, ao mesmo tempo, acumular prestígio para mais tarde poder participar dos vários tipos de trabalho que iria enfrentar (em confl ito com uma sociedade nacional que é muito mais provinciana que a cidade de São Paulo). Precisava, pois, do prestígio de sociólogo competente.

A escolha dos tupis, como objeto de investigação, foi fruto de uma longa e racional meditação. Na década de 40, aquele era o tipo de trabalho que vários círculos intelectuais no Brasil podiam identifi car como um “trabalho relevante”. Deixando de lado esse aspecto, que para mim é importante, não consegui fundir as duas áreas de preocupação intelectual. Fiquei como uma pessoa dividida ao meio, entre o sociólogo e o socialista. Por sua vez, os temas que marcaram minha atividade intelectual como sociólogo estão ligados de um lado ao ensino, de outro lado a pesquisa. Na área de ensino eu tive uma atividade que considero muito construtiva. Eu dei muita ênfase à construção de uma linguagem rigorosa, a formação de uma atitude científi ca consistente e, principalmente, a elaboração do elemento prático na sociologia. De modo que dediquei minha atividade docente a vários temas, que ainda hoje são importantes.

Se eu tivesse de começar a minha carreira de novo eu voltaria, nas condições daquela época, aqueles temas. No campo da sociologia geral fi z um trabalho que não poderia ser diferente, no momento em que eu vivia. Talvez, hoje se poderia dar mais ênfase a construção de teoria e as técnicas que permitam aprofundar a contribuição do investigador na área teórica. Mas, naquele momento, nós estávamos ainda no começo que, se não era incipiente, era quase incipiente. Nós não nos distanciávamos mais que uns 8 ou 9 anos da criação da universidade. Eu não podia ir mais longe do que fui. E acho que, ao tentar combinar infl uências teóricas que vinham dos Estados Unidos e da Europa e concentrar a refl exão crítica em Marx, Durkheim e Weber, estava fazendo algo de muito sentido para a formação dos sociólogos brasileiros.

O que representa esta ênfase nos clássicos? Por que os clássicos? Eles estão tão longe. Eu me lembro do meu professor Wilhens, que me dizia: “Florestan deixe disto. O importante são os autores dos nossos dias. Os autores que preocupam você já morreram, eles não tem mais importância”. Ora, eles tinham e continuam a ter importância. De um lado, porque eles construíram os campos fundamentais da sociologia. A investigação de cada um deles está ligada ao desenvolvimento de certas áreas de investigação, que estão aí, e podem ser cultivadas ainda hoje. De outro lado, eles também construíram modelos através dos quais nós construímos a teoria original na sociologia. Nós ainda não superamos essa fase de trabalho na sociologia histórica ou na sociologia comparada ou na sociologia sistemática. E por aí afora.

Mas há um outro elemento a se destacar. A ênfase nos clássicos representava uma maneira de buscar autonomia intelectual para nós, de criar caminhos próprios dentro da produção intelectual na ciência, caminhos que permitiriam a todos nos um esforço de criação intelectual independente. É como se eu estivesse procurando as vias mais puras na investigação sociológica. Vias que depois se abriram nos Estados Unidos, no Japão, e em outros países e puderam ser exploradas pelos investigadores de várias formas. Tome-se como exemplo A Estrutura da Ação Social de Parsons: a montagem responde à um intuito análogo, embora ele não seja confessado. Seguindo outra orientação e dentro de outras preocupações, eu estava fazendo a mesma coisa, buscando novos caminhos através dos clássicos. Não para formar o meu pensamento, mas para se criarem balizas através das quais o pensamento sociológico pudesse se reproduzir aqui em condições de autonomia intelectual máxima para nós. Nunca me pareceu desejável que nós crescêssemos como um centro de investigação sociológica sem condições de autonomia intelectual. Daí os clássicos. É claro que não se imitam os clássicos. Os clássicos são pontos de partida, pontos de referência e elementos que permitem redefi nir centros de preocupação. Se se misturam os vários clássicos, então fi ca claro que o que se procura e criar, dentro das condições do país, meios para a elaboração da sociologia a partir dos recursos internos desse país. Essa era a ênfase, essa era a intenção.

Podem criticar-me, mas eu fui fi el a essa linha: basta que se comparem os primeiros capítulos dos Ensaios de Sociologia Geral e Aplicada e de Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento para se verifi car isso. A busca de autonomia criadora gerou, pois, uma orientação básica que se manteve constante e que cresceu sem destruir-se. Quando se usam autores recentes, quase sempre o que se está fazendo é procurar uma inspiração direta, repetindo, imitando, reproduzindo. Exatamente o que eu tentava evitar. Isso quanto à uma coisa que foi muito importante na minha vida, que são os cursos que dei de Sociologia Geral. Agora, no meu trabalho como professor, eu consegui dar um certo relevo a preocupação prática. Mas, nem mesmo na pesquisa sobre relações raciais, onde poderia haver desdobramentos práticos muito importantes, nunca consegui montar um desdobramento de signifi cado prático.

No ensino, porém, tudo é possível. Eu cultivei durante muitos anos o ensino da sociologia aplicada, com certa sorte. O professor Baldus, que era um homem muito generoso, mas perspicaz e crítico, costumava me dizer que “na sociologia aplicada você está pelo menos vinte anos mais adiantado do que qualquer outro”. E qual era o segredo desse adiantamento? Não tinha nada que ver com minha capacidade inventiva pessoal. No fundo, aproveitava as vantagens de uma situação estratégica. Para uma pessoa ligada ou voltada para o movimento socialista, que conhecia a contribuição dos sociólogos americanos na análise empírica dos problemas sociais e não ignorava a contribuição europeia centrada nos grandes conjuntos e nas transformações de estruturas globais, não era difícil ser original. Estes são os ingredientes do balanço técnico de maior envergadura que realizei em toda a minha carreira e que tomou por objeto o campo e os problemas da sociologia aplicada.

Para o gosto atual, o ensaio está muito impregnado de uma metodologia científi ca “positivista” ou “naturalista”. Contudo o eixo do trabalho foi a ampla infl uência de Marx! Se a orientação que defendi não é possível, a culpa não é minha. Houve um momento em que se acreditou, em todas as sociedades capitalistas de periferia, que a reforma social e a revolução democrática nos eram acessíveis. Nunca se pensou que o capitalismo ia bloquear as saídas e, principalmente, que a dominação imperialista teria de associar-se com as burguesias nacionais para gerar um impasse histórico universal. Se eu trabalhasse em um país como a França ou como a Itália, ou talvez, nos Estados Unidos onde o movimento de reforma social é mais forte, talvez eu pudesse ter sido mais feliz. Mas, de qualquer modo, acho que dei em meu ensaio uma contribuição que é importante. Mesmo o meu antigo mestre, Roger Bastide em A Antropologia Aplicada, usa e se inspira abundantemente no meu trabalho, quando ele cita e até mesmo quando ela não cita. Se se tem em vista as nossas condições de produção intelectual, trata-se de algo considerável e de que me orgulho.

Para os que me criticam diria que não fi quei parado, como demonstram ensaios posteriores. Além disso, parece-me que eu interagia muito mais com os requisitos ideais da ciência e da intervenção racional do que com as limitações práticas de uma sociedade capitalista dependente. Em uma sociedade planifi cada — e uma sociedade planifi cada em escala nacional deve ser necessariamente socialista — é provável que a ciência adquira as funções que eu presumia: a de que a linguagem científi ca, o rigor científi co, ao invés de serem um elemento de distorção, sejam um elemento de precisão e de efi cácia. Como a montagem se dá em uma dada situação, num país capitalista periférico dependente ela acabou perdendo o sentido. Quando releio aquele trabalho, constato que, se de um lado explorei possibilidades de grande signifi cação, de outro lado superestimei as condições do ambiente para a pesquisa sociológica aplicada.

Se ainda valorizo aquele trabalho, é porque nele, pela primeira vez na sociologia, se pensa, em termos marxistas (embora não ortodoxos), nas condições de intervenção na realidade. Eu incluí as condições de intervenção na re alidade tanto na fase de trabalho de investigação do sociólogo quanto na fase de controle da mudança provocada. Isso é uma coisa que, ainda hoje não surgiu sequer nos países onde há planifi cação socialista. Os que leram André Gorz sabem o que é o “socialismo difícil” de acumulação, que não pode combinar a transição para o socialismo com o controle democrático da mudança e com as técnicas experimentais de intervenção racional.

Na área de ensino ainda dei outras contribuições, mas nenhuma delas é tão marcante. O que eu fi z na área de técnicas de investigação, na área de modelos de explicação, na área de estado da sociedade brasileira, em vários outros campos — eu dei cursos em vários outros campos e, inclusive, muitas vezes eu abria uma área e depois a transferia para um dos colaboradores — em nenhuma delas logrei um êxito comparável, embora na discussão das técnicas sociológicas de formação de inferência e de explicação também tivesse ido bastante longe para a situação brasileira.

Voltamos à refl exão circular. A universidade brasileira não possuía vitalidade para conjugar a carreira intelectual do sociólogo com as suas tarefas no ensino. Muitas vezes, o sociólogo ensina uma coisa e pesquisa outra e, mesmo quando ele dá cursos de pós-graduação, ele acaba não tendo condições de vincular a sua área central de interesses com o ensino. É um divorcio grave, uma limitação estrutural da universidade, que precisa ser corrigida. É claro que não se deve estimular o investigador a fi car só “dentro do seu problema”. Todavia, durante o período em que ele trabalhe com determinados problemas, é essencial que ele possa trabalhar na mesma área ou em áreas conexas na esfera do ensino. Porque o ensino representa um desdobramento crítico do trabalho intelectual. Ao levar as suas descobertas para a sala de aula, o professor recebe um impacto criador e, por vezes, uma colaboração que é construtiva; ele próprio é obrigado a refl etir criticamente sobre o seu trabalho.

Passemos aos temas dos projetos de pesquisa. Eu acho que os livros e as pesquisas são como as mulheres: a gente abandona a área, mas o amor permanece.. . Em cada um dos projetos eu estava satisfazendo a determinados impulsos, a determinados incentivos ou desafi os. A iniciação correspondeu ao projeto mais elementar e precário, tendo como objeto o folclore na cidade de São Paulo. É preciso que se leia o último ensaio que escrevi e que está em Folclore e Mudança Social na Cidade de São Paulo (com o primeiro capítulo) — para se perceber o amor que eu tive por aquela área, É um amor que nasce não só do que eu fi z de relevante para os outros, nasce também do que a pesquisa foi de relevante para mim, do que eu aprendi com ela. Foi a primeira vez que pude relacionar um grupo em atividade com a cultura, que pude analisar a socialização como um processo em desenvolvimento; enfi m pude colocar problemas que, no ensino, aparecem abstratamente, em termos de conceitos e categoriais sociais. Aquela pesquisa, feita em 1941, enche a minha imaginação ainda hoje. Quando eu penso nela, eu me lembro dela com gratidão. E lamento que tenha dado menos do que eu deveria, porque ela foi tão importante para mim que eu deveria ter feito mais. A introdução do mencionado ensaio somaria as conclusões a que cheguei: e uma exposição madura, na qual tentei dar o melhor de minha capacidade interpretativa e de síntese e eu sinto um grande orgulho de tê-la escrito como desejava que ela fosse. Os estados sobre os Tupinambás marcam já o fi m da minha iniciação como cientista social. O período em que eu aprofundo o processo de aprendizagem e, ao mesmo tempo, em que eu me tomo o que seria depois: um sociólogo com pleno domínio da sociologia descritiva e da sociologia diferencial.

Em que época isso ocorre?

A Organização Social dos Tupinambás foi defendida como tese em 1947 e foi publicada em 1949 — quer dizer, cronologicamente, e um trabalho que cai na década de 40, e assim se coloca entre os primeiros que fi zeram as investigações de tipo moderno. Eu me lembro o que o Antônio Cândido me disse: “Florestan, vendo o seu trabalho a gente não tem inveja dos ingleses. Agora nós temos um livro para mostrar”. Generosidade dele. Mas, de qualquer modo, para alguém que tinha 27 anos, um livro como aquele não é brincadeira. Como aprendizagem, eu tive a oportunidade de ir muito longe.

Hoje prevalece uma idéia errônea a respeito dos “estados de caso”. A aldeia e a sociedade tribal tupinambá completaram a minha formação como sociólogo. Eram para mim o equivalente de um laboratório ou quiçá, muito mais! Os grandes problemas de qualquer civilização aparecem na comunidade. A questão está em saber-se ligar à comunidade com a sociedade e a civilização — de ver, através do microcosmo, os dilemas humanos e históricos do macrocosmo. Além disso, o estudo de comunidade obriga o soció1ogo a operar com a totalidade. Ao estudar os tupinambás eu tive, pela primeira vez, essa experiência interpretativa. E, naquela época, apesar de todas as limitações da minha formação, eu já conhecia o sufi ciente de Mauss, para saber que não estava estudando apenas uma comunidade local, mas a civilização tupi. O que Mauss fez com os esquimós, eu fi z com os tupinambás. Tentei conhecer a sua civilização nos limites da documentação possível, pois lamentavelmente eu não podia ir além dos olhos dos cronistas. O trabalho abriu-me essa ampla perspectiva e, como tema para o estudo do Brasil, ele também era signifi cativo. Ali se achava o ponto zero da nossa história. Qual é o conhecimento positivo, preciso, do indígena no momento em que surge o branco? Para nós deveria ser uma preocupação fundamental, É claro que aquela documentação é limitada, uma documentação distorcida, mas ela tem valor. Inclusive, são muitas as fontes; pode-se cotejar umas com as outras e selecionar (ou peneirar) o conhecimento positivo. Às vezes exagerei, querendo colocar tudo em evidencia. É provável que se eu fi zesse um escrutínio crítico mais rigoroso eu teria eliminado muitas informações e restringido o campo de análise. Todavia a reconstrução histórica não contrariou o que se sabe (ou se pode supor) sobre os tupis através da pesquisa de campo. O professor Baldus, que funcionou como meu orientador e era um especialista sobre os Tapirapé, endossou plenamente os resultados de minha investigação. Na defesa de tese, ele chegou a interromper um dos examinadores, para dizer: “Oh, Wilhens! Que bobagem! Bem se vê que você nunca viu um índio”.

A monografi a sobre A Função Social da Guerra na Sociedade Tupinambá tinha outra signifi cação teórica, em si mesmo e para mim. Foi a primeira tentativa que fi z de “sair do chinelo” e de enfrentar o trabalho de elaboração teórica propriamente dito. A teoria que estava em jogo era a teoria de solidariedade coletiva das sociedades tribais. E é alguma coisa que eu só podia fazer depois de ter feito um trabalho de reconstrução pura e simples, como no livro anterior. Quem leu os dois livros vai notar que eu avanço muito mais no segundo, porque a reconstrução está estabelecida. Se um leitor desconfi ar das interpretações, ele pode recorrer ao outro trabalho como fonte de controle.

De outro lado, procure isolar as contribuições para o conhecimento da guerra: na sociedade tupinambá e quanto à guerra como fenômeno social. Quer dizer que estabeleço níveis de generalização.

Por isso, penso que, como contribuição teórica, esse foi o trabalho mais rigoroso que eu realizei, embora hoje ele pareça um trabalho menos importante porque hoje se condena de maneira preconceituosa e dogmática toda espécie de análise funcional. Todavia, eu duvido que alguém possa tratar as relações sincrônicas de uma perspectiva dialética. Ou falsifi ca a dialética, ou falsifi ca as relações sincrônicas. Não há talento que resista a essa prova. Ou, então, a análise dialética não é uma tentativa de explicar a transformação da sociedade; é uma tentativa de mistifi car.

Naqueles estudos, eu não tentava explicar a transformação da sociedade, nem mesmo como a sociedade tribal se transforma no processo de sua reprodução, o que envolve o problema analítico e interpretativo de apanhar a mudança no tempo concreto da vida humana e no instante que as alterações emergem. Ao contrário, tentava descobrir como a sociedade tupi recuperava o passado de maneira incessante. A renovação ocorria — algumas alterações foram identifi cadas e apontadas — mas sempre mantendo suas bases estruturais, como ela era antes. Essa reprodução estática da ordem tribal é tão intensa, que muitos especialistas chegam a dizer que o que é inovação em um dia converte-se em tradição no dia seguinte: a tradição absorve a inovação e a renovação. Não se trata de uma invenção teórica do funcionalismo ou uma consequência deturpadora da “análise funcional”. Basta ler a quadrilogia sobre José, de Thomas Mann, para se ver que mesmo a reconstrução estética produz o mesmo resultado, onde o fl uxo da vida social une o que se perpetua e o que se renova através de um padrão estático de equilíbrio da personalidade, da economia, da sociedade e da cultura.

A história projeta o homem em um passado que se faz presente ou um presente que recupera o passado — não existe a negação do passado pelo future mediante um presente que coloca o homem em tensão com a sua época. Em consequência, a tradição fornece, objetivamente, o padrão pelo qual se avalia a inovação. Tudo isso é tão evidente que um dos documentos que eu transcrevo, tanto em A Organização Social, quanto em A Função Social da Guerra, um velho descreve todo esse processo através do relato das etapas da colonização apanhada a luz das tentativas francesas. Onde a ordem tribal funciona, essa é a sua contribuição à “dinâmica da sociedade” (ou da cultura). No entanto, esse trabalho tem uma importância fundamental só para a minha carreira, o amadurecimento da minha formação sociológica. Se acabaram tendo signifi cado para a sociologia no Brasil, isso foi mais produto do acaso: as duas contribuições surgem em um momento que as torna, queiramos ou não, um marco nas investigações das sociedades primitivas no Brasil. Ou seja, no momento em que Radcliffe-Brown condenava a reconstrução histórica como técnica de observação, análise e interpretação, e no qual pretendíamos construir uma antropologia social rigorosa.

Penso que mostrei que se pode explorar a reconstrução histórica com o mesmo rigor que a pesquisa de campo e que demonstrei que éramos capazes de estudar as sociedades tribais, por nossa conta e com os nossos meios, segundo os requisitos descritivos e interpretativos da ciência moderna. A mim me impressionou menos as críticas dogmáticas ao “meu funcionalismo” que a atitude de Alfred Métraux, um etnólogo de grande nomeada e, além do mais, especialista sobre os Tupinambás. Ao ler A Função Social da Guerra ele me disse — “Olha Florestan, todo o livro devia ser traduzido, mas nós não podemos. Vou traduzir a parte sobre o sacrifício humano, na qual você fez o que eu deveria ter feito” (e, de fato, providenciou a tradução e a publicação de toda aquela parte em francês). Era uma atitude científi ca bonita e que nos deixa uma lição, quer quanto a natureza da mentalidade científi ca, quer quanto ao modo pelo qual se deve proceder a crítica segundo critérios científi cos. O que não se deve perder de vista é que os dois trabalhos foram produtos de minha exclusiva iniciativa, que entre os 25 e os 31 anos, com toda a precariedade de nossa situação cultural, eu fi zera uma investigação empírica tão complexa e escrevera os dois livros. Eles não são perfeitos — é certo! Não existe “obra perfeita” na ciência. Contudo, nem a investigação nem os seus resultados, como eles aparecem nos dois livros, devem fi car sujeitos às oscilações da moda, as implicações da substituição da análise estruturalfuncional por não sei que tipo de “estruturalismo”.

Quanto ao mais, estados teóricos, que fi z sobre organização social (publicados condensadamente como introdução ao livro e na íntegra, posteriormente); sobre a guerra (condensado em notas que constam do livro ou em uma subdivisão de um balanço prévio das fontes e das possibilidades de aproveitá-las para o estado sociológico na guerra na sociedade tupinambá); e sobre as técnicas de formação de inferência e de explicação sociológica, deixam claro o quanto essas críticas são injustas e deslocadas. Não só eles ignoram o que eu pretendia, podia e devia fazer; elas deixam completamente de lado que a ciência não se faz de “um dia para o outro”. Naquele momento, eu não era, apenas, um jovem abrindo o seu caminho dentro da Sociologia. Eu abria também caminho para outros, que vinham depois e, de modo mais geral, para o desenvolvimento do pensamento sociológico no Brasil.

A análise estrutural-funcional que pratiquei foi instrumental em todas essas direções. E ela nada tem a ver com o “funcionalismo” da sociologia sistemática. Trata-se da análise estrutural-funcional que pode ser — e deve ser — explorada pela sociologia descritiva, pela sociologia comparada e pela sociologia diferencial. Se eu fi zesse o levantamento empírico e o tombamento analítico dos dados e não a aproveitasse, em seguida, jogaria o bebê fora com a água do banho...

Como um ponto fi nal: para os que pensam que se pode estudar as relações sincrônicas de uma perspectiva dialética, relembro Marcel Mauss. Ele, por exemplo, estudou os esquimós, mas não achou necessário fazer análise dialética de sua sociedade e de sua civilização. Mesmo quando ele estuda o presente (ou a dádiva) através de uma análise comparada, ele não se impõe qualquer análise dialética. Por quê? Porque as conexões que ele procurava investigar não eram conexões que exigissem análise dialética. Ou a gente falsifi ca a análise dialética, no sentido vulgar da palavra falsifi car — para converter a análise dialética em uma espécie de cafi aspirina — ou então a gente procura a especifi cidade da análise dialética, descobrindo que a análise dialética só é válida para determinados tipos de problemas e, principalmente, para os problemas que aparecem nos povos que tem um determinado tipo de história, a qual nasce da estrutura antagônica do modo de produção e de organização estratifi cada da sociedade, e se caracteriza pelo fato do presente negar o passado, como um elo com um futuro que não repete as “estruturas existentes”, porque no processo de se objetivarem e se reproduzirem elas se transformam.

De que maneira o processo de destribalização a que nossos índios sistematicamente têm sido submetidos o afetou como pesquisador e intelectual crítico?

Foi bom vocês terem indagado isso porque, quando eu fi z a coleta de dados, tinha em mente fazer uma análise também da destribalização e o material para essa análise estava preparado mas, acabei deixando a idéia de lado. A culpa não foi minha, a história da sociologia brasileira foi mais rápida que eu, ela acabou pondo os tupinambás no porão da história, onde eles estavam, e eu acabei deixando o assunto de lado. Ainda assim, escrevi um ensaio — que está publicado em um livro organizado por Sérgio Buarque de Holanda — sobre a reação a conquista. Depois eu o reproduzi em as Mudanças Sociais no Brasil. Tratase de uma tentativa de explicar porque os índios sossobraram diante dos brancos. Por quê? Eu procuro a explicação no sistema tribal, que impedia a unifi cação dos índios. O problema não era tecnológico. Com a tecnologia nativa e o controle dos recursos fornecidos pela terra, tendo-se em vista a precariedade do equipamento adaptativo dos Portugueses, eles poderiam ter condições de resistir a colonização. Porém, seria preciso que o sistema tribal fosse sufi cientemente fl exível. De um lado, para eles se unirem e enfrentarem a invasão portuguesa, não como grupos isolados e em confl ito permanente, que os Portugueses podiam usar uns contra os outros. De outro lado, que eles pudessem, a partir dessa unifi cação engendrar uma evolução independente, diferente, pela qual a sociedade tribal engendrasse outro tipo de estrutura societária. As duas coisas não ocorreram. Acabei não escrevendo o livro sobre a destribalização, sobre os contactos com os brancos, por vários motivos. Seria difícil manter o projeto dentro do clima de trabalho que se constituiu na cadeira de Sociologia I e dos problemas que passaram a nos interessar. Eu não pretendia ser etnólogo e, ao fazer os trabalhos sobre os Tupis, estava dentro da tradição francesa, que permite incluir o estudo de povos primitivos no campo da sociologia. Os alemães e os americanos já não admitem isso. Para eles, isso e etnologia ou etnografi a.

Se se procede a uma avaliação global, de todos os temas que eu tratei, aquele que me engrandeceu mais, do meu ponto de vista, foi o estudo do negro. Eu entrei na pesquisa sobre relações raciais de maneira acidental. Quando o Métraux veio aqui oferecer o projeto, ele realmente não estava querendo atrair o professor Bastide; ele queria a colaboração do professor Pierson. Eu sei muito bem disso porque participei de todas conversações. A UNESCO dispunha de quatro mil dólares, o que era uma ninharia, pois o projeto envolvia um desdobramento psicológico, um estudo sociológico de área urbana e outro de área rural. Não sei que concepção de pagamento de pesquisa estava em jogo. Paulo Duarte arranjou uma suplementação da Universidade de São Paulo, de 60 contos na ocasião, que serviu para subvencionar a publicação do trabalho. Os quatro mil dólares, foram divididos assim: a psicologia fi cou com 2 mil (por duas pesquisas que deram origem aos dois trabalhos que estão publicados pela editora Anhembi, de Virginia Bicudo e Aniela Ginsberg); mil dólares fi caram com Oracy Nogueira pela pesquisa sobre Itapetininga e mil dólares fi caram para mim e o professor Bastide (nós demos o dinheiro aos nossos pesquisadores: 500 dólares para Lucila Herrmann, por sua colaboração com Roger Bastide e 500 dólares para Renato Jardim Moreira, por sua colaboração comigo). Um sociólogo americano, mesmo que fosse tão desprendido com o professor Donald Pierson, jamais aceitaria um esquema de fi nanciamento tão precário, ao mesmo tempo que envolvia um projeto de pesquisa tão ambicioso... Só amadores, como Bastide e eu, aceitariam fazer pesquisa por “amor à ciência”!

De qualquer modo, a recusa de Pierson forçou Métraux a insistir com Bastide, que era muito seu amigo e não sabia dizer não. Ele acabou tendo de fazer o trabalho e me convidou para o mesmo. Eu já tinha trabalhado com ele, em virtude do meu estudo sobre o folclore e, diretamente, de biografi as de algumas personalidades ligadas a cultos africanos. Além, disso, em 1943 fi zera em Sorocaba uma pesquisa para o Dr. Wilhens, tendo coligido dados sobre João de Camargo, certas manifestações locais do preconceito de cor e o folclore negro de Sorocaba. O assunto não era novo para mim. Mas, eu não queria aceitar o convite de Bastide porque eu ia fazer meu doutorado sobre os Tupis. Estava com muito trabalho para acabar a tese e para preparar-me para a sua defesa. A pesquisa sobre os sírios e libaneses, que fora suprimida das cogitações do meu doutorado, estava em andamento. Eu não queria de jeito nenhum incluir mais uma pesquisa. Vi-me na contingência da recusarme. Sabe qual foi a reação dele? Ao sair da sala em que conversávamos e, no vão da porta, me perguntou: “o senhor não aceita só escrever, eu colho os dados para o senhor”. Ele foi meu professor durante quatro anos — de 41 a 44 (porque inclusive no curso de didática eu fui aluno dele). Eu fi quei tão comovido, que saíram lágrimas dos meus olhos. Aí eu me levantei e lhe respondi: “está bem, o senhor venceu!”

A pesquisa, no entanto, foi algo de fascinante porque apesar de tudo o que se sabe sobre a vida das populações pobres no Brasil e da identifi cação que o intelectual pode ter com a vida dessas populações, eu me senti tão compensado com o fato de estar fazendo aquela pesquisa, que aquilo tudo deu novo sentido a sociologia para mim (e deu sentido ao meu trabalho e ao que eu pretendia fazer com a pesquisa sociológica). À medida que a coleta de dados progredia, aumentava o meu entusiasmo. O projeto de pesquisa fora escrito ainda de uma maneira ambivalente, o entusiasmo era pequeno e o objetivo consistia em corrigir as diferenças de pontos de vista que existiam entre eu e o Bastide. Escrevi aquele projeto como se ele fosse uma técnica adaptativa, para chegarmos a um entendimento e a uma perspectiva comum. No projeto, eu usara as idéias do professor Pierson, de que o Brasil constituía um caso negativo, quanto a existência do preconceito e da discriminação raciais, como uma espécie de straw man. O professor Bastide atenuou as críticas, mas fi cou nisso. O que signifi ca que, com o projeto, alcançamos uma grande homogeneidade no entendimento comum. Ele avançou numa direção e eu avancei noutra. O resultado e que pudemos trabalhar, durante todo o período da pesquisa e da redação do livro, em colaboração sem enfrentarmos nenhum confl ito. E, realmente, nós cumprimos a programação que está feita lá — aquele não foi, pois, um mero projeto “teórico”; ele foi elaborado para valer praticamente. O que não pudemos fazer em colaboração, fi zemos posteriormente, de modo independente, em outros trabalhos. No livro, que tinha cinco capítulos, indicamos de quem era a autoria (coube-me redigir três capítulos). Aquela foi a maior pesquisa de que participei e os dois livros contam como a maior contribuição empírica que logrei dar ao conhecimento sociológico da sociedade brasileira. Por acaso, o encadeamento das pesquisas foi fundamental para mim. Através do índio, fi cara conhecendo o Brasil dos séculos XVI e XVII; através do negro teria de estudar relativamente a fundo o Brasil dos séculos XVII, XVIII, XIX e XX. Pus o pensamento sociológico no amago da sociedade “colonial”, “imperial” e “republicana”, o que representou uma enorme vantagem em termos de aprendizagem ou de possibilidades de lidar comparativa e historicamente com os problemas de estratifi cação social e de evoluções de estruturas sociais. A nova pesquisa permitia-me concentrar a observação, a análise e a interpretação sobre as condições e os efeitos da desagregação do sistema de trabalho escravo. É claro que essa era uma perspectiva seletiva, que expunha os problemas não em termos da formação do “sistema novo”, mas dos obstáculos que o “antigo sistema” opunha a sua formação e desenvolvimento. De qualquer maneira, os resultados teóricos foram muito importantes, inclusive porque eu descobri os papéis do fazendeiro e do imigrante na transformação de toda a economia e podia ligar esses papéis ao processo global da revolução burguesa no Brasil.

De um angulo teórico, portanto, esse foi o trabalho que teve maiores consequências para mim, seja para conhecer o Brasil como sociedade nacional, seja para chegar a temática da sociologia do subdesenvolvimento e da dependência. Além disso, eu me senti como ser humano em comunhão com outros seres humanos. Nenhum outro trabalho meu anterior me permitiu essa comunicação endopática em profundidade. Há muita controvérsia a respeito de saber se o cientista social deve ou não deve repetir o biólogo, o químico etc. Eu penso que esta controvérsia é inútil, porque quer se estude uma tribo primitiva, quer se estude uma sociedade contemporânea altamente industrializada, quer a gente se identifi que com os problemas humanos descritos, quer não, o fato é que o sociólogo, como ser humano, sempre interage e recebe o impacto do que estiver investigando. O impacto que eu recebi no estudo do negro não foi brincadeira. Estabeleceu-se uma base de identifi cação psicológica profunda, em parte por causa do meu passado, em parte por causa da minha experiência socialista prévia, em parte porque, graças à origem que tenho — descendo de uma família de imigrantes Portugueses que se destroçou em São Paulo —, provavelmente tudo isso não apareceria e eu seria o típico sociólogo profi ssional “neutro”, “seco” e “impecável”. Porém, dada a minha história de vida, eu era a pessoa para fazer aquela pesquisa e aproveitar a oportunidade que ela oferecia de amadurecer o sociólogo como cientista e como ser humano. Embora não seja um trabalho do mesmo valor teórico que A Função Social da Guerra, ele é um trabalho no qual eu dou uma contribuição empírica muito mais ampla para o conhecimento da sociedade brasileira, e por acaso, muito na moda porque hoje o estudo da marginalidade bota esse tipo de investigação na “crista da onda” na sociologia.

No entanto, se pensamos na comunidade de sociólogos — se se considera o sociólogo que trabalha não só no Brasil, mas na América Latina, na Europa, nos Estados Unidos — minhas contribuições mais importantes estão ligadas com a parte que me coube no projeto “Economia e Sociedade no Brasil” que me levou, do meu tema específi co — urbanização e crescimento econômico — para uma análise mais ampla de revolução burguesa no Brasil e das linhas de formação e expansão da sociedade de classes. Embora eu não realizasse as tarefas concretas previstas (Paul Singer se incumbiu dos estudos de caso de uma maneira tão perfeita que eu dei aquelas tarefas como encerradas), eu me dediquei intensamente à refl exão sobre os temas teóricos que deviam ser focalizados e resolvidos, ainda que de modo provisório e aproximado. Os resultados dessa refl exão aparecem nos ensaios de Sociedade de Classes e Desenvolvimento, Capitalismo Dependente e Classes Sociais na América Latina e, principalmente, no livro A Revolução Burguesa no Brasil.

Portanto, ultrapassei os limites do meu tema e fi quei com liberdade para fazer uma síntese do meu pensamento sobre o aparecimento e as transformações do capitalismo no Brasil, do passado remoto ao presente. Muitos sociólogos não concordam com a idéia de que a revolução burguesa se de sob o contexto da dominação imperialista. Inclusive um dos maiores especialistas, que é Barrington Moore Jr., sustenta que a última revolução burguesa foi a norte-americana. É que ela estipula como requisito um mínimo de autonomia nacional para caracterizar a emergência da revolução burguesa. A inconsistência dessa interpretação esta em suas limitações. O problema central esta na transformação capitalista. É o problema de saber se uma sociedade nacional autônoma ou não, mais ou menos dependente, e ou não capaz de absorver os diferentes modelos de desenvolvimento capitalista. O problema é o de verifi car se ela chega ou não a fase da industrialização maciça. Se se realiza a hipótese de que ela chega a fase da industrialização maciça, em termos de associação com o capital externo e com a tecnologia externa, a condição pró-imperialista da burguesia nacional dependente não exclui a revolução burguesa como uma transformação estrutural. Ela signifi ca que esta transformação fi nal se processa em condições especiais.

De qualquer modo, a revolução burguesa surge como o requisito global do processo e o alvo que lhe dá sentido. Ou há uma burguesia interna — embora sua “condição nacional” seja heteronômica — que controla o processo ou não há nada. Porque se não houver uma burguesia interna que controle o processo, qual é a alternativa? Em um extremo, a persistência da situação colonial. Em outro extremo, poderia ser uma regressão a situação colonial. Haveria uma terceira hipótese: a transição direta para o socialismo. Aí, porém, não se estaria lidando com as nações capitalistas dependentes da periferia.

Em minhas investigações dei muita atenção as três situações: colonial, neo-colonial e de dependência. São situações distintas. O Brasil passou por um período de transformação neo-colonial, já como Estado nacional. Todo o período que vai de 1808 até mais ou menos 1860 é um período de transição neo-colonial. E o Estado nacional estava presente. A situação de dependência e uma situação na qual o modelo de transformação capitalista e internalizado, mas em termos de relação heteronômica com uma super-potência ou várias nações hegemônicas externas. A previsão era de que, na fase de industrialização maciça, nós atingíramos a autonomia. Contudo, isso não aconteceu. Tivemos uma crise do poder burguês que introduziu a necessidade da revitalização do poder burguês. Em nossos dias, os países centrais não estão tão desinteressados do fortalecimento das burguesias da periferia. Para eles, é vital fortalecer o capitalismo da periferia — e, com isso, as burguesias nacionais dependentes — como um recurso extremo para impedir a irrupção de revoluções socialistas e a universalização do socialismo. Cria-se, assim, um quadro histórico que não foi levado em conta pelos “teóricos da modernização”. Além disso, o conceito de revolução burguesa não é um conceito particular, ele é um conceito estrutural (ou, como se diria em sentido marxista: uma categoria histórica), que tem de ser aplicado de forma mais ou menos generalizada.

Revolução burguesa ou revolução capitalista — o que está em jogo é a passagem para a industrialização maciça de um país da periferia. Nesse conjunto de trabalhos, portanto, lido com temas teóricos de muito maior signifi cação, não só para a sociedade brasileira, como também para outros países da América Latina e, em termos gerais, de uma teoria que não teve muita repercussão aqui: a teoria da incorporação. Em Toronto cheguei a dar um curso nessa área. Aqui nós nunca cuidamos disso seriamente. Não obstante, nessa área a minha contribuição teórica é maior e o tema é mais relevante, ainda que aí a controvérsia seja mais forte. Muitos sociólogos profi ssionais não aceitam nem a minha posição metodológica nem a teoria da incorporação. Eles evitam cuidadosamente a associação entre socialismo e sociologia.

Se se tem em conta que procurei fundir a análise sociológica com uma posição socialista, tenho a impressão que, em dois pontos, consegui dar uma contribuição teórica importante à sociologia. Primeiro, procurando descobrir qual é a peculiaridade da revolução burguesa atrasada num país da periferia capitalista de hoje. A última análise socialista consistente do processo de uma revolução burguesa atrasada é a de Lenin — aproveitando a fase de 1905 na Rússia até 1907, mais ou menos —, onde aparece algumas de suas contribuições teóricas mais importantes às ciências sociais. É uma pena que não tenha sido aproveitado de maneira mais ampla. Na verdade, ele elabora pela primeira vez uma explicação sociológica das burguesias que perderam suas oportunidades históricas, por fraqueza e por falta de ímpeto revolucionário. Ele interpreta a situação russa confrontando a situação da burguesia com o poder relativo do Czar, da nobreza e da burocracia. Procura mostrar, então, que uma burguesia que não é capaz de defender sua capacidade de ação revolucionária acaba não fazendo a sua revolução. Assim, ela transfere muitos dos seus papéis para outras classes, perdendo a oportunidade histórica de concretizar plenamente a revolução burguesa. É na base dessas análises que ele depois vai dizer que a revolução burguesa não tinha mais chance histórica. Ao escrever as “Teses de Abril”, repudia a posição ofi cial do Partido Comunista e defende com tenacidade a estratégia da revolução proletária. A burguesia, em vez de privilegiar a sua ação revolucionária, se acomodou com outros setores mais poderosos da sociedade russa e, com isso, destruiu-se. A questão da revolução burguesa não se punha mais — a revolução em curso era outra! Se se compara a situação russa com a situação que prevalece na América Latina capitalista o que ressalta é o fato de que, em nossa região, a chamada lei do desenvolvimento desigual e combinado até agora não favoreceu nem o proletariado nem as massas populares. Ao contrário, as burguesias usaram o seu poder econômico, social e político para manter o controle do Estado, convertê-lo em uma tirania total e acelerar a revolução burguesa no plano econômico.

Minha outra contribuição que considero importante é a de esclarecer os mecanismos de dominação imperialista na atualidade. Na literatura socialista há uma tendência muito exagerada de confundir a dominação imperialista com a destruição da burguesia na periferia. Isso poderia ser verdadeiro em termos da situação histórica do século XIX ou do começo do século XX, quando a ocupação colonial excluía a incorporação da periferia na totalidade da economia hegemônica. Nessa condição, onde a dominação imperialista cedesse as burguesias locais, ela perdia a iniciativa, permitindo as burguesias locais condições de iniciativa histórica, inclusive de revolução nacional. Dentro do capitalismo, ou contra ele mas, em regra, dentro do capitalismo. Hoje a situação não é mais essa. Nós estamos em um mundo dividido por um confl ito mundial entre o socialismo e o capitalismo. Os países centrais dependem, de maneira direta e profunda, da capacidade das burguesias da periferia de defenderem as fronteiras do próprio capitalismo, ou seja, de manterem a hegemonia dos países centrais. Daí o fato de que os países centrais acabam apoiando essa transição atrasada na direção de modelos recentes de transformação capitalista. Não se passa para o “tipo clássico” de revolução burguesa, que envolvia o padrão de desenvolvimento inerente ao capitalismo competitivo — e, portanto, um mínimo de autonomia econômica, sociocultural e política — mas para um tipo compósito e retardado de revolução burguesa, que concilia potencialidades econômicas, sociais e políticas das multinacionais, dos países hegemônicos e de sua super-potência, das burguesias nacionais dependentes e de um Estado burguês ditatorial. Todos convergem para um mesmo fi m: defendem o mundo para o capitalismo. Na medida em que fazem isso há um fortalecimento inegável das burguesias das nações periféricas e do seu Estado autocrático. No meu entender esta contribuição é válida tanto para a sociologia quanto para o socialismo. Sem contar que, eventualmente, possa implicar num conhecimento mais minucioso, se quiserem, do regime que se estabelece aqui, que é um regime instrumental para que as burguesias periféricas possam controlar o poder e impedir qualquer revolução democrática, ou seja, uma revolução de baixo para cima, mesmo que ela fosse “nacionalista” e “capitalista”.

Desde que possível, como se compatibiliza a análise funcional com a explicação dialética?

Na verdade, em ensaios de Fundamentos Empíricos da Explicação Sociológica e de Elementos de Sociologia Teórica procuro situar a explicação dialética como uma orientação compatível com os problemas que surgem dentro do campo da sociologia diferencial ou histórica. Enquanto que a análise funcional aparece mais ao nível dos problemas com que se defronta o sociólogo na sociologia descritiva e na sociologia comparada. É muito difícil dizer que se pode compatibilizar a explicação funcionalista com a explicação dialética. A explicação funcional, quando envolve um modelo lógico completo, opera só com uniformidades de coexistência. Portanto, ela toma correlações em lapsos de tempo muito curtos e, às vezes, até no tempo físico e psicológico de duração dos contactos das interações entre pessoas ou grupos e do funcionamento das instituições. De outro lado, quando ela é aplicada na sociologia comparada, com frequência, o que interessa, teoricamente, ao investigador e a persistência das causas; o que se busca saber e se certas estruturas se mantêm e se repetem ou se as mesmas causas se mantêm presentes. Nesse caso, a análise funcional procura descobrir e explicar como se processa a persistência das causas. É uma situação bem diferente daquela em que opera o investigador que trabalhou no campo da sociologia diferencial e histórica. Pois ele não lida somente com uniformidades de coexistência; de modo sistemático, concentrado e dominante, ele opera com uniformidades de sequência. O que ele tenta explicar é a transformação de estruturas dentro do tempo histórico contínuo. Por isso, os problemas lógicos e teóricos da explicação são diferentes. Muitas das críticas, que se fazem ao uso da análise estrutural-funcional, estão ligadas a formalização, a construção de conceitos e, principalmente, a análise axiomática no campo da sociologia sistemática. O que se crítica são autores como Parsons e outros — que, realmente lidam com o sistema social concebido no plano a-histórico. É um tipo de construção possível e eu nunca trabalhei nesta área. Como já mencionei, acho que nós não temos condições de expandir a sociologia sistemática no país, nem há interesse nisso.

Nos estudos sobre folclore, sobre os Tupinambás e, um pouco menos, sobre o negro, trabalhei no campo da sociologia descritiva. Lidei também com uniformidades de sequência mas sem procurar construir o que chamo, a partir de Marx, de tipos extremos. Por isso, usei o método dialético da mesma maneira que Marx. Também não estava tentando explicar o aparecimento e o desenvolvimento do capital industrial na Inglaterra ou da “revolução burguesa clássica”. Entretanto, quem utiliza a análise funcional, eventualmente pode estar interessado na busca de causas. E, às vezes, é possível, especialmente quando certos processos sociais estão em emergência, explorar a análise funcional para explicações que quase captam problemas do tipo que surgem quando o investigador opera com relações de sequência e com uniformidades de sequência. Do outro lado, no trabalho sobre os Tupinambás, especialmente a monografi a sobre a guerra na sociedade tupinambá, eu só podia passar de correlações para a causação utilizando a análise funcional. Foi o que fi z: para poder explicar o comportamento guerreiro dos tupinambás em termos causais precisei recorrer à análise funcional e descobrir, então, o mecanismo de causação através da análise funcional.

Em um plano mais amplo, autores que fazem análises de tipo dialético, muitas vezes são obrigados a fazer caracterizações estruturais-funcionais para determinados fi ns. Por exemplo, quando Marx em O Capital, elabora um esquema no qual projeta o tempo de trabalho necessário para a reprodução do trabalhador e o produto produzido, o que está em jogo não é uma análise dialética, porém uma análise estrutural-funcional. A seguir, interpretativamente, ele elabora dialeticamente as descobertas dessa análise, incorporandoas nos dinamismos de uma ordem social fundada no antagonismo das classes. Passa, pois, das “estruturas elementares e gerais”, para os “grandes processos históricos”, o que não seria possível se não tivesse feito a análise estrutural-funcional e utilizado os seus resultados para a compreensão das relações de classe, da dominação de classe, da concentração do capital, da formação de um exército industrial de reserva, na reprodução da forma capitalista de produção e em seu desmoronamento. Todavia, ele emprega a ótica estrutural-funcional como uma técnica de observação de análise. O que permite falar, em certo sentido, em uma compatibilização.

Da mesma maneira, encontra-se em Lenin (em O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia), várias análises onde a abordagem básica e funcional. No livro famoso de Lukács, com frequência aparece o uso do conceito e da análise funcional. Por sua vez, Mannheim que descreve o método dialético de modo sinuoso, como análise circunstancial da realidade (uma espécie de “contrabando radical-liberal” da dialética), aplica abundantemente a análise estrutural-funcional em situações históricas nas quais pode passar livremente de uniformidades de coexistência para uniformidades de sequência. É uma maneira de compatibilizar as técnicas lógicas da explicação sociológica na sociologia descritiva, na sociologia comparada e na sociologia diferencial ou histórica.

Não devemos exorcizar nem a palavra função, nem a análise causal resultantes de elaborações interpretativas estruturais-funcionais. Elas são instrumentais. O que se deve exorcizar é uma concepção naturalista de ciências sociais: esse é que é o busilis da questão. Existem autores que estabelecem similaridades entre organismo e sociedade ou que operam como se a explicação devesse ser uma explicação por analogia; ou, então, que utilizam a análise estrutural-funcional para criar um conhecimento sobre a respeito de aspectos estáveis da vida social. Uma das críticas que tem sido feitas à análise causal, de uma maneira muito persistente, é a que entende que a análise causal incide somente sobre aspectos estáticos da vida em sociedade. E isso é verdade, tanto na explicação de correlações estruturais, quanto na explicação da causa in actu ou in status nascendi, a análise estrutural funcional foi mais usada no estudo de sociedades primitivas ou de pequenas comunidades camponesas. Em consequência, ela fi cou associada a interpretação de tipos de ordem social e de. sociedades nos quais prevalece um padrão de equilíbrio estático do sistema social e do seu devenir. Como os investigadores não tentaram estabelecer conexões entre tais situações e o processo mais amplo da evolução dos sistemas sociais no tempo histórico e supra-histórico, eles acabaram sendo criticados como se pretendessem privilegiar o status quo e a estabilidade social. Porém, por mais legítima que seja essa crítica, ela substancializa os argumentos críticos, identifi cando a “posição do observador” com a “descrição dos processos observados”.

Por fi m, é inegável que o uso da análise funcional na sociologia sistemática privilegia a estabilidade da ordem, o que poderia e deve ser criticado; não se pode negar a ciência social, entretanto, o interesse de conhecer aspectos da realidade “sem os quais a sociedade” e a “vida em sociedade” não poderiam existir. O erro seria, naturalmente, de concentrar as investigações só nesses aspectos e de supor que uma “visão estática da ordem” e intrínseca à análise funcional. A análise funcional, repito, é instrumental. Pode-se usá-la numa direção ou em outra. Se se for estudar, por exemplo — como fi z no caso do livro com o professor Bastide ou no livro sobre o negro — as transformações que ocorrem “através” e “além” da repetição da ordem, a análise estrutural-funcional e largamente complementada pela análise histórica. O que quer dizer que trabalhei simultaneamente com as duas perspectivas de análise, completando-as e corrigindo-as. Muitos pensam que as duas análises se excluem — o que é um erro e um dogmatismo — pois ambas foram empregadas ao nível analítico da reconstrução da realidade e como técnicas lógicas de formação de inferências e de controle. Por isso, acredito que seria conveniente não eliminar a análise estrutural-funcional.

As pessoas que atacam, a partir de uma perspectiva ideológica (por causa de uma suposta posição revolucionária), a análise estrutural-funcional, esquecem-se que a análise estruturalfuncional é muito importante para lidar com problemas humanos a curto prazo — períodos de cinco, dez ou quinze anos. Elas precisariam imaginar qual seria o tipo de análise que um sociólogo, um economista ou um antropólogo poderia usar para acompanhar um processo de planejamento, de aconselhamento etc. sem o emprego de tal análise. Assim, a análise estrutural-funcional acaba sendo instrumental para assessorar e acompanhar a realização do plano: se, realmente, o plano está ou não alterando as condições de existência; como a intervenção na realidade está sendo recebida em uma dada comunidade; quais são os efeitos que se podem verifi car e quais são as consequências desses efeitos na intervenção global. Para isso, é preciso usar a análise estrutural-funcional porque se está trabalhando com concomitantes e não com uniformidades de sequência. Além disso, quando a intervenção racional possui um escopo limitado como ocorre com o “controle dos problemas sociais” em uma sociedade capitalista, em que ela só apanha a rede de efeitos e não a das causas: pois se trata de ajustar os indivíduos e as instituições à ordem existente — a única via consistente de análise é a estrutural-funcional. Não por culpa do investigador, certamente, que poderia desejar ir mais longe e associar a análise dialética à revolução social.

A impugnação da análise funcional, que se baseia na idéia de que o marxismo repele a análise estrutural-funcional, acaba colidindo com o que ocorre numa sociedade onde o socialismo de Estado está criando condições novas de passagem para uma sociedade comunista. Seria interessante que as pessoas que criticam ideologicamente a análise funcional refl etissem sobre os aspectos das condições do planejamento nessa situação histórica-limite. A análise dialética é importante para o planejamento quando se trata da estratégia dos planos. Mas, quando se trata da tática dos planos, aí a análise estrutural-funcional é que vem a ser importante, porque todo o assessoramento e toda a verifi cação dos resultados e a própria alteração dia-a-dia dos planos de intervenção, com a adequação deles seja as transformações ocorridas, seja as tentativas de superação das transformações frustradas, tudo vem a depender de análises que são feitas na base das relações de concomitância.

Contudo, não se deve ignorar o problema mais grave. Ou seja, se nós imaginamos que o objetivo do socialista é a passagem para uma sociedade onde não haja antagonismos de classe, nós acabamos tendo uma situação parecida com a que eu enfrentei ao estudar a sociedade tupinambá. Numa sociedade onde os antagonismos são menores, onde eles não dependem da estrutura da sociedade, a análise dialética não é necessária para previsão a longo prazo. Essa é uma situação histórica nova, e seria preciso, então, que os cientistas sociais refl etissem sobre todos estes aspectos. Fazer uma crítica estreita a um recurso intelectual lógico é quase sempre arriscado. Eu não me proponho defender de uma maneira dogmática a análise estrutural-funcional, mas eu acho que a sociologia perderia muito se ela fosse eliminada.

Para mim, muito menos importante que a compatibilização entre os dois tipos de abordagem é o fato de se continuar a usar a análise estrutural-funcional. Ela tem sido ameaçada por causa de tendências conservadoras de sociólogos e antropólogos norte-americanos e europeus. Os marxistas mais ou menos dogmáticos, por causa do conservantismo desses cientistas sociais, atacam os seus conceitos, as suas teorias e os seus métodos. Seria o caso de perguntar se esse ataque é correto. Se tudo deve ser destruído; e se, realmente, a análise estrutural-funcional, no caso da sociologia descritiva e da sociologia comparada, não tem utilidades descritivas, analíticas e lógicas especifi cas de utilização, que não estão sujeitas a controvérsia — qualquer que seja a posição política, ideológica ou intelectual do investigador. Por exemplo, se eu fi zesse de novo investigações sobre o folclore paulistano, a socialização de crianças em grupos de folguedos etc., teria de usar a análise estrutural-funcional, por mais que eu desejasse preservar a orientação interpretativa do materialismo dialético. É claro que se pode fazer uma mistifi cação. Ainda recentemente recebi um trabalho sobre folclore no qual se transfere para o folclore toda a interpretação da luta de classes. Pode-se fazer isso, mas é algo forjado. Realmente, não só há uma confusão entre o folclore objetivo, quer dizer o folclore que aparece na atividade humana concreta e o folclore como disciplina que estuda essas entidades como também, projetam-se processos revolucionários em grupos que não tem, por si mesmos, uma atividade revolucionária em si e para si. Se nós dependêssemos da dinâmica dos grupos de folk e das comunidades de folk, nós nunca teríamos revoluções socialistas. Isso Lenin já disse aos narodiniki da Rússia! A sociedade camponesa pode ser o fulcro de uma revolução socialista. Quando isso ocorre, porém, a dinâmica da “cultura de folk” se superpõe um processo revolucionário que exige uma “visão agonística” da realidade e que nos põe diante de uma outra problemática. Ou seja, devemos evitar as confusões inúteis e as polêmicas estéreis. Muitas das refl exões que caem nesta área da utilização da análise funcional são refl exões desse tipo: confundem o ataque à sociologia positivista aos recursos e aos instrumentais de investigação da sociologia empírico-indutiva.

Retomando uma questão polêmica no quadro atual das nossas ciências sociais: qual é o estatuto da noção de dependência — conceito teórico-explicativo ou categoria ideológica?

Na verdade, quando eu começo a me preocupar com os problemas da dependência, conforme eu já disse, eu partia muito mais da sociologia clássica do que das confl uências que ocorreram no Brasil e na América Latina. Eu sempre me preocupei muito com certos conceitos — como anomia; autonomia e heteronomia; disnomia, o que me levava a Weber, Durkheim e a Radcliffe-Brown. Foi só recentemente que deparei com a seguinte afi rmação de Marx, no 18 Brumário: “Le pouvoir executif contrairement au pouvoir legislatif exprime l’hétéronomie de la nation en opposition à son autonomie”. Weber foi sempre um bom leitor de Marx. O que indica uma origem para o seu par de conceitos. Quanto à pergunta que foi feita: o conceito de dependência e um conceito teórico-explicativo ou ideológico? Ele trata de uma situação de dependência. Para mim, essa situação de dependência pode ser elaborada em termos de percepção crítica, de explicação a partir de categorias ideológicas ou a partir de categorias científi cas. Isso é verdadeiro porque os chamados países do terceiro mundo fazem uma ampla utilização da chamada “herança ocidental”, especialmente os que têm um desenvolvimento capitalista bastante marcado, que já saíram da transição neo-colonial. Ou seja, eles possuem condições de reivindicar a aceleração da transformação capitalista ou, então, de escolher a revolução socialista. E, exatamente por causa disto, é que eles podem utilizar ideologicamente o conceito de dependência, não para ocultar a dominação imperialista mas, ao contrário, para mostrar que a situação de dependência se vincula ao imperialismo. A dependência não é criada por quem sofre a dominação externa; a dependência é criada por quem prática a dominação externa.

No uso ideológico do conceito de dependência, em termos que se entende vulgarmente por “política do terceiro mundo”, isso fi ca bem claro. Qualquer que seja a matiz (se e um governo de tipo militar, autoritário-militar ou populista de cunho civil) a elaboração tende para um desmascaramento de tipo ideológico. Agora, os cientistas sociais, especialmente na América Latina, passaram a utilizar (primeiro alguns economistas, depois os sociólogos), o conceito de dependência para explicar o processo do ângulo do dominado. Ou seja, existem dois polos na dominação: o externo e o interno. Quando se fala em imperialismo, se explica o que ocorre de fora para dentro. Agora, resta saber o que ocorre de dentro para fora. Se se cultiva uma imagem dialética da dominação imperialista, é preciso compreender que as condições de dominação não são dadas a partir de fora, são dadas também a partir de dentro. E, a partir de dentro, também sempre se materializa alguma resistência que, às vezes, é efi caz, outras vezes é tênue e impotente.

Quando a situação é uma situação de dependência, e à medida em que essa dependência vai diminuindo de intensidade, vai se transformando em seu caráter a capacidade de uma reação aumenta até atingir um limite extremo, no qual o nacionalismo revolucionário interfere sobre o desenvolvimento capitalista e converte sua autonomia em uma realidade política última.

De uma maneira geral, o capitalismo dependente condiciona o próprio imperialismo. Ele condiciona o imperialismo porque ele também comercializa o subdesenvolvimento. Há, na verdade, uma dupla comercialização do subdesenvolvimento: 1) a partir das burguesias nacionais e das classes medias nacionais e, às vezes, até de certos setores do operariado urbano; 2) a partir das nações hegemônicas que acabam, a partir de fora, abocanhando a maior parte do excedente econômico através dos mecanismos de dominação. É por isso que é errada a crítica que muitos marxistas fazem ao estudo da dependência na sociologia, na antropologia, na economia.

Se nós quisermos ir além das descrições sumárias, temos de ver como é que os mecanismos do imperialismo se realizam dentro dos países submetidos à dominação imperialista. E aí é preciso analisar a dependência em termos da maneira pela qual os vários setores da sociedade capitalista dependente se ajustam, tanto passiva quanto ativamente, à dominação imperialista. Mesmo uma burguesia pró-imperialista, como são os casos das burguesias brasileira, argentina, chilena, mexicana etc., precisam, para ter condições de sobrevivência, defender o seu Estado, a sua base de poder e, inclusive, de alguma forma, a sua posição no mundo dos negócios. É importante, então, fazer a análise completa ou total, para ver como é que se dá o enlace entre as estruturas de poder que são internacionalizadas e as estruturas de poder nacionais mantidas sob controle do Estado pelas burguesias e pelas classes médias de um determinado país. Isso é tão verdadeiro que, na tipologia esboçada por Lenin, no famoso O Imperialismo, a dependência aparece como uma categoria específi ca. É claro que o estudo desta categoria tinha de começar na periferia; ele não podia começar nos países centrais. Porque os países centrais não estão nada interessados em que se estude o referido enlace entre imperialismo e dependência; e, muito menos, em que se estude como a dependência gera um capitalismo atrofi ado, incapaz de gerar “dentro da ordem”, qualquer das miragens utópicas da civilização burguesa. Tive vários confl itos com colegas americanos, mais do que com os europeus, por causa disso. Pois, assim como fi cam doentes quando ouvem falar em imperialismo, se irritam diante do uso consistente do conceito de dependência e da difusão dessa teoria. Eles preferem lidar com conceitos abstratos, evasivos, para explicar as coisas, não “dar nomes aos bois” e confundir os vários processos na vala comum da “teoria da modernização”, vista unilateralmente como modernização dependente e controlada de fora.

Como se articulariam as teorias da dependência e do imperialismo? Nos termos ainda da discussão acima referida: em que medida na teoria da dependência o approach nacional é privilegiado em detrimento do approach de classes?

Não acho que a teoria da dependência seja uma teoria nova. Ela é um desdobramento da teoria do imperialismo. No que ela tem de específi co, ela apenas suplementa aquela teoria mais geral e inclusiva. Essa afi rmação é tão verdadeira, que a primeira formulação sistemática e rigorosa da teoria se encontra em Teoria do Período de Transição de M. Bukharin, e não em Baran, como muitos supõem. Note-se, não estamos tratando de comunicação em vasos estanques; não se trata pois de um processo físico-químico, trata-se, isto sim, de um processo social. Exatamente por isso é preciso ver os dois lados. Se se considera o livro famoso de Rosa de Luxemburgo — que é o primeiro livro no qual são descritos os dinamismos da economia capitalista que envolvem, em diferentes momentos e de maneiras diversas, a periferia das economias centrais — percebe-se que ela não está interessada nos mecanismos que ocorrem na periferia. Não é que eles não fossem importantes. É que eles, da posição e do ponto de vista do qual ela descreve aqueles dinamismos, não tinham grande importância. Ela podia negligencia-los, já que os mecanismos das economias periféricas, coloniais, neo-coloniais ou dependentes, não modifi cavam o curso da história. O curso da história se determinava, como ainda se determina, a partir dos dinamismos do mercado mundial — portanto, a partir das nações centrais e da sua capacidade de dominação imperialista. Assim, para ela, os mecanismos das economias periféricas eram irrelevantes. Mas, para nós, que sofremos a dominação imperialista, é importante ir mais longe, para explicá-los. Seja porque precisamos explicar o nosso próprio circuito histórico, tão peculiar, seja porque dependemos do conhecimento da “estrutura íntima” daqueles mecanismos para poder combater o imperialismo e passar da “luta anti-imperialista” à revolução nacional democrático-burguesa ou socialista. Não nos bastam conceitos abstratos; nós temos de partir, para atingir estes fi ns, de descrições concretas. Temos de saber o que a dominação imperialista produz nos diferentes níveis de organização da vida econômica, social e política, porque ela manieta as burguesias nacionais, corrompe o Estado capitalista periférico e pode “modernizar dentro da ordem”. Daí a importância da análise feita em termos de dependência. É por isso que há um desdobramento de perspectivas analíticas e interpretativas. É claro que o elemento maior é o imperialismo e a dominação imperialista.

Se quiséssemos fazer uma síntese, podíamos falar em teoria da incorporação. Como se dá a incorporação da periferia ao espaço econômico, socio-cultural e político das nações centrais e de sua superpotência, ou, então, da economia capitalista mundial. Alguns autores preferem este conceito, mas ele revela uma desvantagem: até hoje, a teoria foi formulada de modo a excluir a idéia de imperialismo e de dominação imperialista da análise sociológica, econômica, política, antropológica, histórica ou geográfi ca. Por isso, é importante combinar os dois conceitos, imperialismo e dependência e explorar as duas teorias parciais, simultaneamente. Se chegarmos a um esforço integrativo, através de uma teoria da incorporação inclusive, então os dois conceitos e teorias devem ser mantidos explicitamente. Os autores que só usam o conceito de dependência fogem, consciente ou inconscientemente, do quadro real dos problemas. A questão, portanto, não consiste em repudiar a chamada “teoria da dependência”, mas adequá-la, sociologicamente, às realidades históricas que ela deve explicar e contribuir para modifi car. Por isso é tão importante o grau de consciência crítica que o investigador adquire da rede de problemas que ele deve tratar. Porque falar em dependência e esquecer que a dependência existe por causa da dominação imperialista, e que esta é o alvo central da análise sociológica, é fugir realmente da questão.

Como se articulam? Em que medida o approach nacional aparece em detrimento do approach de classes? Eu penso que a Nação se torna mais importante para a análise de dependência em termos de contexto, de sistema de referência. Operacionalmente, é necessário trabalhar, tanto no plano da observação e da análise, quanto no da interpretação, com as classes. Como a dependência refl ete dominação externa de tipo imperialista, no momento histórico que vivemos — no caso brasileiro como em qualquer outro, tanto a partir de fora, quanto a partir de dentro — o que está em jogo são relações e confl itos de classes. Assim como a dominação imperialista oculta relações e confl itos de classe, a situação de dependência também oculta relações e confl itos de classe. No entanto, para se explicar como é que essas relações de dominação e de subordinação se dão, é preciso colocar as relações e os confl itos de classes no centro da observação, análise e interpretação — o que eu faço, aliás, nos meus trabalhos. Procuro mostrar que a pressão das classes operárias e camponesas ou das massas populares ainda é muito fraca para acelerar a história e que, por causa disso, as minorias nacionais e estrangeiras, que detêm o poder econômico, social e político, podem manipular a economia, a ordem social e o Estado, estabelecendo acomodações que tornam tanto o imperialismo funcional para a burguesia nacional, quanto a dependência funcional para o imperialismo e a comunidade internacional de negócios.

Portanto, é obvio que o conceito operacional mais importante e central é o de classes, não o de Nação. Porque, inclusive, não se pode conceber a Nação moderna fora e acima da organização e da transformação do sistema de classes. Queira ou não, o sociólogo tem de lidar com classes e chegar a conclusões que envolvem, tanto conjunturalmente quanto a largo prazo, a história que se cria graças a existência das classes e dos dinamismos gerados pelos confl itos de classes. Se algum sociólogo abstrair esses fatores condicionantes e determinantes centrais, ele prática uma omissão que não se justifi ca em termos de uma sociologia crítica, ou seja, de uma explicação sociológica rigorosa.

São as ideologias obstáculos à prática científi ca?

É conhecida a controvérsia a respeito, alimentada pela chamada sociologia positiva, em que se colocava a questão como se a ideologia sempre fosse um elemento negativo ou um obstáculo. Na verdade, hoje se sabe que tudo depende da relação que exista entre a perspectiva do sujeito e aquilo que se poderia chamar as “exigências históricas da situação”. Desde os autores que fi zeram a crítica socialista da sociedade burguesa até Mannheim, sempre se pensou que a ideologia pode ser uma condição vantajosa para a observação e a interpretação da realidade. De modo que a ideologia pode ser uma condição altamente favorável à interpretação científi ca e, se quiserem usar um conceito mais amplo, para a investigação científi ca em geral.

Neste sentido é que se poderia afi rmar a ideologia como instância crítica? A seu ver, em que medida o Socialismo desempenharia tal função?

Na verdade, a pergunta levanta várias questões — não uma só. Quando se coloca o problema de saber se a ideologia é ou não uma instancia crítica, se coloca naturalmente aquilo que Lukács caracteriza como uma limitação burguesa ao conhecimento da realidade. Acho que uma das melhores refl exões marxistas a respeito de como a ideologia pode ser limitativa é a análise que Lukács faz da limitação da consciência burguesa e, mesmo, do conhecimento científi co infi ltrado por ideologias burguesas (mesmo que se trate de um conhecimento apresentado em nome da economia política, da história, da sociologia ou da fi losofi a). Os interesses das classes dominantes introduzem um limite ao conhecimento objetivo da realidade e geram a incapacidade do agente cognoscitivo de descobrir os fatores de transformação da ordem. A perspectiva do sujeito está tão orientada na direção de interesses e valores que se relacionam com a estabilidade do status quo, que ele fi ca incapaz de perceber os processos de transformação da realidade de forma racional e objetiva. De modo que, para ir além, é preciso não só transcender a consciência burguesa mas, também, negar essa consciência.

O problema não é só um problema de ideologia; é também um problema da natureza do conhecimento. Somente a investigação científi ca pode produzir essa negação, desde que as técnicas empíricas e lógicas do pensamento científi co sejam aplicadas em toda a sua plenitude e em conexão com uma posição de classe revolucionária. Ainda que seja uma simplifi cação falar em “ciência proletária” e em “ciência burguesa”, quando se toma uma posição condicionada a partir de interesses dominantes dentro de uma sociedade capitalista, o horizonte intelectual do investigador é limitado. É claro que o sociólogo, o economista, o historiador muitas vezes têm recursos mais refi nados para fazer uma crítica da ideologia. Não obstante, se a posição do sujeito investigador é uma posição limitada pelos interesses e valores sociais das classes dominantes, ela acarretara um condicionamento ideológico que limitara sua capacidade de conhecer e explicar a sociedade capitalista. Portanto, as limitações tanto contam a partir do condicionamento ideológico, quanto a partir do grau de bloqueio ou inibição que tal condicionamento acarreta no uso da explicação científi ca.

Por sua vez, uma perspectiva social revolucionária (ou socialista) também se abre em duas direções. Como enquanto ideologia, a partir dos processos de transformação da ordem existente, porque aí, no limite ainda voltando-se a Lukács — o que se busca é o desemburguesamento do sujeito. Isso quer dizer que uma posição social revolucionária limpa o horizonte intelectual do sujeito, expurgando-o de infl uências e resíduos intrínsecos a socialização burguesa e ao condicionamento ideológico mais ou menos ativo da sociedade capitalista. No plano da investigação (teremos de voltar a este assunto) a posição do sujeito é igualmente limitativa. No caso das ciências sociais — como da economia política, da sociologia ou da história — não basta o domínio de técnicas empíricas e lógicas do saber científi co. É preciso que o sujeito tenha condições para usar entre essas técnicas, aquelas que permitam observar, descrever e interpretar os processos pelos quais a ordem social capitalista se desagrega e se transforma em uma ordem social igualitária. Portanto, o expurgo da sociologia burguesa aparece não só através da negação subjetiva da ordem social capitalista — mas, também, através de um conhecimento objetivo que permite prever o curso dos processos sociais e intervir, de modo concreto, em sua aceleração histórica (ou seja, que permite passar da “explicação” para “a transformação do mundo”).

Ao se falar em socialismo devemo-nos lembrar, realmente de três coisas. Em primeiro lugar, temos de fato uma ideologia. Não há dúvida nenhuma de que não se pode discutir o socialismo sem a dimensão ideológica. Sei que existem correntes, dentro do pensamento socialista, que o apresentam como um pensamento estritamente científi co, supraideológico, inclusive em relação à prática social e política. Ora, o pensamento socialista contém uma dimensão ideológica, como contém uma dimensão política e outra utópica. Os conceitos, aparentemente, estão brigando uns com os outros. Dentro dos clássicos do socialismo, como se sabe, o conceito de Utopia não foi esclarecido e calibrado, como foi mais tarde graças à contribuição de Mannheim. A análise de Mannheim estabelece uma espécie de cisão: de um lado, a ideologia em termos de transcendência da situação, mantém a incapacidade de ir além; e, de outro lado, a transcendência da situação que, à medida que se concretiza, transforma a realidade existente. Na verdade, o que os clássicos do socialismo chamaram de ideologia, com relação ao socialismo, é o que Mannheim chama de Utopia. Pois esta instânc ia negadora e transformadora é, realmente, a dimensão prática do socialismo. No entanto, teríamos, de qualquer maneira, três elementos: um ideológico; um que é científi co; e outro que seria utópico (não dentro do conceito específi co de Utopia que Engels aplica a certas correntes do socialismo).

A dimensão ideológica do socialismo é fundamental. Se ignorarmos que o socialismo possui e deve possuir uma ideologia, ignoraríamos que ele é, sobretudo, uma atividade política — e uma atividade política que se organiza em termos de transformação da sociedade capitalista. Esta função prático-política está tão fundamentalmente ligada com a ideologia e nos trabalhos de Lenin aparece claramente o conceito de ideologia em conexão com o socialismo. Embora ele procure fazer uma análise das várias fontes do pensamento socialista e das doutrinas socialistas, ele nunca ignora que o socialismo é um sistema de interesses e de valores, compartilhado pela maioria espoliada. Na medida em que é um sistema de interesses e de valores, também é uma ideologia negadora da ordem através da qual as classes operárias se desvinculam dessa mesma ordem, procuram desagregar a sociedade capitalista e construir a sociedade socialista. A diferença que existe entre o que se poderia chamar de ideologia, quanto ao capitalismo, e de ideologia, quanto ao socialismo, é que o socialismo possui uma base científi ca.

Os que leram Socialismo Utópico e Científi co sabem que Engels demonstra como as correntes pré-marxistas se separam da corrente marxista no socialismo exatamente quanto ao uso da ciência para explicar o caráter histórico do capitalismo, da sociedade capitalista e do Estado burguês. Portanto, a ênfase é posta na base científi ca do socialismo, que explica como a sociedade de classes se transforma e fornece, através dessa explicação, os princípios que conferem à classe revolucionária o poder racional para conduzir a revolução social. Por essa explicação, o socialismo científi co descobre os princípios de transformação da sociedade capitalista que são, simultaneamente, intrínseca à própria estrutura dessa sociedade e imanentes ao movimento através do qual o proletariado destrói tal sociedade. As duas coisas estão combinadas. Para mim, essa concepção de socialismo científi co é válida até hoje. O que é científi co no socialismo é o fundamento da concepção do mundo, não a própria natureza da concepção do mundo. Distinguem-se e unem-se duas coisas; isto é, uma constelação de interesses e de valores sociais e um tipo de saber e de uso do saber. O que concilia e conjumina uma ideologia revolucionária, que nega a ordem e um sistema de explicação, que procura contrapor a racionalidade revolucionária do proletariado à racionalidade conservadora da burguesia.

Nesse esquema, fi ca faltando a outra dimensão, a dimensão utópica, que nos obriga a ligar três coisas. A dimensão utópica, no caso, estaria incluída na caracterização leninista da ideologia. O sociólogo, porém, pode e deve separar os dois níveis do conceito de ideologia — o que se refere ao momento de desagregação da ordem existente e o que diz respeito ao momento de uma ordem social igualitária (reservando para este a noção específi ca de Utopia). O socialismo não pretende só “destruir” ou “desmoronar”; o essencial nele é o reverso da medalha, o que ele pretende “construir”, ou seja, o elemento utópico. Em suma, do ponto de vista do socialista a ideologia não procura encobrir, ela nega e transcende a realidade em um movimento que envolve a destruição da ordem existente e a construção de uma ordem socialista. Teríamos pois, três elementos fundamentais, que estão interligados e a partir dos quais se poderia delimitar o caráter crítico do socialismo como ideologia. Todavia, cumpre reconhecer, este caráter crítico naturalmente existe no socialismo tanto em termos de sua base científi ca, quanto em termos de sua impulsão utópica. Ele é crítico nas três direções, se se concebe o socialismo como totalidade. O que confi rma a idéia segundo a qual o socialismo e a instancia crítica por excelência.

Qualquer que seja a corrente do socialismo que se considere, no mundo moderno, a percepção crítica, a explicação crítica e a atuação crítica estão ligadas à investigações que são condicionadas e determinadas, ideologicamente, cientifi camente e utopicamente pela compulsão socialista de conhecimento e de transformação do mundo (isto é, de destruição da sociedade capitalista e de construção da sociedade socialista). Por isso, a visão de mundo do socialista é uma visão crítica do mundo e visa, simultaneamente, buscar uma explicação que seja objetiva mas intrinsecamente revolucionária. Como contraposição, se se tomam os argumentos de Engels, por exemplo, o elemento científi co impede o socialista de pensar no sistema social perfeito, como a entidade ideal para a qual nós orientamos a ação prática. Pode-se assim dizer que o elemento científi co penetra tanto a ideologia quanto a utopia do pensamento e do movimento socialistas. Não se pensa em um modelo de sociedade para o qual se procura tender; só se sabe que, concretamente, é preciso destruir as formas privadas de controle da produção, da sociedade e do Estado, para estabelecer os pontos de partida para construir-se uma sociedade socialista.

Tenho a impressão de que quando se afi rma que o marxismo é um socialismo científi co, se existe um elemento que é ideológico, existe outro que é especifi camente um sistema de explicação da realidade e que procura — o materialismo histórico — uma tentativa de explicar a sociedade do presente; e, se existe um elemento utópico, o pensamento científi co penetra, como tentativa de explicar a possiblidade e a necessidade da sociedade do futuro. De modo que, para o marxista, não haveria o mesmo limite de temor (ou de falta de liberdade) para associar a ciência a ideologia e a utopia. Mas eu não sei se é necessário fazer essa qualifi cação. Porque mesmo para Marx e para Engels, impôs-se como essencial, nas explicações da formação da sociedade capitalista, e da transição para a sociedade socialista, separar ideologia de ciência. Então é preciso considerar o nível em que se interpretam as realidades. A explicação rigorosa para Marx não deve ser ideológica. Poder-se-ia lembrar que isso foi importante para ele para desentranhar a ciência da ideologia burguesa (como ele faz em Introdução à Critica da Economia Política e em O Capital). E que, em uma sociedade socialista plenamente constituída, a equivalência entre “ciência” e “ideologia” poderia estabelecer-se pela primeira vez na história moderna. Contudo, a necessidade da ideologia é histórica e, espera-se, ela não teria funções construtivas ou destrutivas a preencher sob o socialismo.

Que relações e articulações se estabelecem, ao nível da prática social, entre representações ideológicas e construção científi ca?

Já em termos da própria análise feita por Marx, especialmente em A Ideologia Alemã, na Miséria da Filosofi a, ou na Sagrada Família (são vários livros), por Engels na Filosofi a Clássica Alemã, fi cou bem clara a natureza do conhecimento proporcionado pela ideologia. A pergunta seria: qual é a percepção que a ideologia oferece? Quando se partem dos dados poder-se-ia dizer, usando-se um subterfúgio, os dados da consciência, aquilo que está na percepção crítica, nas categorias de refl exão, de pensamento, de explicação dos grupos humanos e das classes sociais o que se obtém? O resultado sempre contém uma representação do modo pelo qual os seres humanos explicam a sociedade em que vivem. Depois que essa representação é estabelecida, ela deve ser submetida a uma análise crítica para se saber até que ponto essa representação não oculta (ou como oculta) amplos aspectos da realidade. Isso pode ser feito tanto a partir de motivos práticos e políticos, quanto a partir de indagação fi losófi ca ou científi ca. Marx fez esses três tipos de indagação. É, exatamente, o que tentei sugerir. Mesmo no meu trabalho sobre os Tupinambás, dei grande atenção a essa via analítica, pela qual se passa das “auto-explicações” de uma coletividade para o conhecimento sociológico descritivo ou interpretativo. Desde Morgan e Engels se sabe que as sociedades tribais não são sociedades estratifi cadas. Isso quer dizer que as ideologias não preenchem funções cognitivas e perceptivas muito importantes nessas sociedades? É claro que não. É perfeitamente possível partir das representações e ver o que que as representações aprendem no mundo tribal em que vivem as pessoas.

A principal idéia do marxismo, com referência às ciências sociais do século XIX, é a de que o homem sempre procurou explicar as sociedades nas quais ele vive. Isso acontecia mesmo quando a ciência não era acessível à curiosidade do homem. De modo que, através da magia, da religião, mais tarde da fi losofi a, e por fi m da ciência, ou simplesmente através do conhecimento do senso comum, o homem sempre tentou “tomar consciência”, “explicar” e “alterar” o seu próprio mundo social. A ciência aparece e se torna necessária quando a estrutura da sociedade se torna muito complicada e os homens passaram a depender de um conhecimento objetivo seja para entender e explicar o mundo em que viviam, seja para se poderem comunicar apesar das divisões de classes ou das diferenças de cultura e dos antagonismos que elas pressupunham.

Tanto em A Organização Social, quanto em A Função Social da Guerra eu parti das percepções dos sujeitos da investigação. Como é que eles explicavam o sacrifício humano, qual é a consciência que eles tinham dos objetivos e dos fi ns do sacrifício humano. Sobre essas explicações construí categorias mais amplas e cheguei as explicações propriamente sociológicas. Aquelas explicações foram o ponto de partida; estas últimas, o ponto de chegada. Da mesma maneira, em A Integração do Negro, especialmente no capitulo 4, procurei descobrir a maneira pela qual o negro percebia e explicava criticamente as manifestações do preconceito de cor, do “complexo” da discriminação; e depois fui além. Esse procedimento, para mim, é quase uma rotina. Os autores que eu mencionei — Marx e Engels — fi zeram isso tanto com referência a fi lósofos, economistas e historiadores, quanto com referência a ativistas políticos. O procedimento não contamina o conhecimento obtido. Ao contrário, ele permite pôr em evidência o que a ideologia revela ou oculta e, principalmente, estabelecer os limites do conhecimento científi co — onde ele começa, o que ele pode ou deve explicar e que tipo de forças ele submete à controle racional.

A seu ver, seria possível constituir uma teoria (científi ca) das ideologias?

Para o sociólogo, existe inteiro cabimento de fazer uma análise sistemática da ideologia e, talvez, até uma análise comparada, transcendendo ao mundo ocidental moderno e mesmo a margem de sua discussão. No entanto, o conceito de ideologia não é um conceito pacífi co nas ciências sociais. Para Chapple e Coon, por exemplo, ideologia é a parte intelectual da cultura. A esse conceito lato, contrapõe-se a concepção dos “ideólogos”, que no fi m do século XVIII e no século XIX se propuseram, com o nome de ideologia, os problemas da consciência falsa na análise fi losófi ca e histórica. Por sua vez, o conceito de ideologia, que se desenvolve na análise marxista, aparece como uma tentativa de desmascaramento do pensamento burguês, das categorias de percepção do mundo dos fi lósofos idealistas e dos cientistas clássicos ingleses e dos princípios políticos do liberalismo. Com Mannheim, busca-se uma conceituação especifi camente sociológica, que fundamenta uma distinção célebre — de um lado, o que é uma ideologia particular; de outro, o que é uma ideologia total. Há, pois, um campo amplo para se fazer uma análise da ideologia. Não se deve ignorar, por fi m, que as ideologias preenchem funções que dependem da natureza das idéias que são defendidas pelas diferentes classes sociais. O próprio Mannheim, no seu ensaio sobre as possibilidades de fundamentar uma ciência da política, contrapõe cinco tipos de posição ou de orientação que entram em confl ito quanto à relação com a estabilidade ou a transformação da ordem (ele contrasta desde uma ideologia com polarização reacionária até uma ideologia substantivamente revolucionária).

São muitas as questões que se abrem, portanto, a análise sociológica da ideologia. A questão consiste em saber o que se pretende: se se quer elaborar uma teoria geral da ideologia do ponto de vista da sociologia; ou se se pretende fazer uma análise da ideologia tendo em vista o movimento marxista. Para o movimento marxista a análise da ideologia é muito mais instrumental, É muito provável que as elocubrações em que funda a interpretação histórico-sociológica de Mannheim não interessa à crítica marxista da ideologia. Do ponto de vista do movimento socialista, o problema é muito mais, de um lado, de examinar a natureza da relação entre a concepção de mundo e as funções das várias ideologias ligadas ao pensamento burguês e, de outro lado, de ligar aquilo que é especifi camente ideológico no socialismo à sua função revolucionária..

Eu não sou muito de citar Althusser; mas, agora é importante citar Althusser, Pois ele mostra muito bem que esta dimensão ideológica não está só vinculada à destruição de uma sociedade capitalista: ela se vincula à construção de uma sociedade socialista. Se o movimento socialista perder de vista o signifi cado da ideologia, em termos não só de destruição da sociedade capitalista mas de construção da sociedade socialista, é provável que ele também perca a possiblidade de realizar os ideais últimos do próprio socialismo. O humanismo socialista se prende a ideais que só se concretizarão mediante o duplo movimento de negação da ordem existente e de implantação de uma ordem social revolucionária socialista. Acho muito importante essa refl exão porque os que se dedicam à análise da ideologia fi cam, com frequência, num limiar muito pobre. A ideologia é vista em termos de um ataque ao comportamento burguês, a dominação burguesa, a sociedade existente, a condição burguesa da mentalidade operária ou do sindicalismo.

Pode-se, também, examinar o reverso. A ideologia que permite a liberação do pensamento, o movimento liberador em termos de um processo de transição revolucionária e, por fi m, essa revolução em concretização. Tudo isso requer que se refl ita sobre a ideologia à luz de uma ordem social nova. Aí aparecem as funções mais criadoras da ideologia, porque os valores só podem ter efi cácia se eles se realizam na prática e na medida em que se realizam. Há, ainda, uma certa timidez. Como Gorz salienta, as revoluções socialistas nasceram em nações que enfrentavam problemas de pobreza. Como já lembramos acima, a transição se deu em termos de um socialismo ‘difícil, o chamado socialismo de acumulação. As ideologias e as utopias socialistas sofreram um esvaziamento relativo e provisório. Tal situação, no entanto, para os socialistas deveria ser um desafi o, que nos obriga a pensar no humanismo socialista combinando teoria e prática com maior rigor e, ao mesmo tempo, com extremo ardor político. Por que a transição se tornou possível onde havia maior difi culdade? O que aconteceria se a transição se tornasse possível onde há mais recursos materiais e humanos para se criar a sociedade socialista? Essas questões são fundamentais e elas não podem ser discutidas se não se levar em conta as idéias revolucionarias intrínsecas ao socialismo. É por isso que, do ponto de vista do socialista, há maior interesse por um tipo de debate que é diverso daquele pelo qual o sociólogo focaliza os problemas da ideologia. O debate do sociólogo considera as ideologias como realidades, como algo que se pode delimitar concretamente na história; e a análise sociológica, deste ângulo, perde a dimensão prática. Ela é empírica e teórica, enquanto que o socialista estaria muito mais preocupado com a dimensão prática e política. Em suma, como a concretização de idéias e valores revolucionários conduz não só a desagregação de um sistema social em que essas idéias são proscritas, mas à construção de um sistema social em que essas idéias farão parte da ordem em processo de constituição como valores permanentes.

Não sei se está claro o meu pensamento. Mas, a perspectiva é diferente. E eu acho que há interesse nos dois tipos de atitude e de investigação. E é provável que um possa ser útil ao outro. Na verdade, sem Marx não haveria Mannheim; e as contribuições de Lukács, por sua vez, sublinham o quanto a revolução russa permite ir muito mais longe e muito mais fundo na interpretação marxista da ideologia. No que me diz respeito, o último ensaio de Capitalismo Dependente refl ete uma perspectiva ideológica explicitamente socialista. Ela é intrínseca a minha posição intelectual como sociólogo. Tanto falar, simultaneamente, como sociólogo e como socialista. Muitos se sentirão no dever de criticar essa submissão à ideologia. Em vez de perguntar se os que me criticarão (ou me criticam) não escondem sua tomada de posição ideológica de modo cômodo, por trás de uma simplista “neutralidade ética”, eu perguntaria, apenas: a ideologia é limitativa ou não é limitativa? Penso que, ao desmascarar-se, o sociólogo vai mais longe e aproveita melhor as consequências de uma superposição de perspectivas, pela qual ideologia e sociologia entram em uma relação dialética criadora.

O político se circunscreve ao exercício de uma dominação?

Essa é uma questão complexa. É claro que em todas as sociedades estratifi cadas existem momentos em que o político se equaciona em termos de dominação e momentos de crise e de revolução, a partir dos quais a política se defi ne a partir exatamente da negação da ordem e, portanto, do movimento liberador. Lembro-me de um trecho fundamental de A Miséria da Filosofi a, no qual Marx salienta que é intrínseco à condição do operário e do proletariado a impulsão no sentido de negar e destruir a ordem social repressiva da sociedade capitalista. O problema central da dominação consiste em impedir que as classes submetidas à dominação consigam se libertar das condições imperantes. Em outras palavras: é o problema da opressão. Onde existe a opressão, ela acaba criando a sua réplica, que é o movimento de negação e de superação da ordem. Eis o que nos diz o próprio Marx: “uma classe oprimida é a condição vital de toda sociedade fundada no antagonismo das classes. A libertação da classe oprimida implica pois, necessariamente, a criação de uma sociedade nova”; e adiante: “de todos os instrumentos de produção, a maior força produtiva é a própria classe revolucionária”. Portanto, é intrínseco a uma sociedade estratifi cada a existência de um movimento de negação da ordem a partir das classes oprimidas. Agora, esse modelo não é universal. Por exemplo, em uma sociedade de castas, a dominação consegue pulverizar diferentes formas de rebelião. Já numa sociedade estamental o movimento de negação é muito mais profundo e muito mais dinâmico. Na sociedade de classes, por sua vez, típica do capitalismo industrial, a libertação da classe trabalhadora acaba sendo uma condição para a abolição de todas as classes, o que é, exatamente, o tópico dessa análise de Marx.

À luz desse raciocínio é que se poderia dizer que enquanto uma classe (ou um conjunto de classes dominantes) consegue manter a estabilidade da ordem existente, a política se defi ne em termos de uma dominação. O Estado torna-se instrumental para esse fi m. A política de classes e a política do Estado convergem na mesma direção, de impedir a transformação revolucionária da ordem. Mas, como é intrínseca ao antagonismo existente uma pressão revolucionária, pode-se dizer que a partir do momento em que as contradições germinam no movimento histórico, no sentido de destruir a ordem existente, a política se defi ne não mais como dominação, mas como liberação e revolução. Os exemplos clássicos seriam o da revolução burguesa, na França e o da Revolução Socialista, na Rússia. Nos dois casos — e as análises são muito conhecidas — nós temos uma política que se confi gura não em termos de dominação, mas em termos de revolução. A revolução é que informa a política, determina o seu sentido, fazendo com que a política se defi na como prática coletiva que subverte as estruturas do poder.

No político estaria envolvido a Ciência, a Ideologia, a Utopia — ou seja, todas as formas de conhecer?

Houve muitas tentativas, inclusive a que eu mencionei, de Mannheim em Ideologia e Utopia de fundamentar uma ciência do político em bases científi cas. A pretensão era, exatamente, de que a síntese de perspectivas ofereceria uma probabilidade de chegar-se à uma política científi ca. Política que responderia ao sentido do processo da história. Mas, na verdade, quando ele escreveu aquele ensaio, a posição dele era a mais socialista que jamais tomou. Portanto, quando Mannheim fala na síntese de perspectivas, o que está em jogo é realmente o fato de que o movimento mais radical acaba suplantando os outros e contendo todos elementos que os outros contêm. Em termos da práxis revolucionária, o proletariado teria, dentro da sua perspectiva do mundo, elementos que transcenderiam as diferentes classes e acabaria sendo incorporador. Então, a síntese das perspectivas, no plano formal, é uma coisa e, no plano prático, outra? A discussão dele permite supor que, como movimento histórico, o movimento mais radical contém as alternativas (as outras perspectivas que são reformistas, conservadoras ou reacionárias).

De minha parte, não acredito que, dentro de uma sociedade capitalista, se possa utilizar a ciência para se chegar a uma política realmente científi ca, como Mannheim pretendia. O pensamento dele, mais tarde, se tornou um pouco mais fl uído a esse respeito; ele chega a falar num planejamento democrático, no planejamento que abriria um terceiro caminho. O que quer dizer que esses argumentos, que envolvem a ciência e o radicalismo, podem ser equacionados em termos da chamada “terceira posição”, pela qual se lograria a transformação revolucionária mediante o planejamento democrático. No entanto, eu penso que não há como conciliar a sociedade capitalista com semelhantes funções da ciência e do planejamento democrático. Na verdade, o capitalismo cria confl itos insanáveis entre a intervenção racional, baseada na ciência, e os propósitos intrínsecos aos meios privados de dominação e de organização do poder estatal. Em outras palavras, essa confl uência entre ideologia, ciência e utopia poderia ocorrer, mas em uma sociedade na qual a ordem existente não limitasse o uso racional da ciência e do planejamento, não criasse fatores de anarquia da produção, de expropriação do trabalhador, de desigualdade econômica, social e política. São irracionalidades que não podem ser eliminadas dentro e através de uma sociedade capitalista. Para que elas sejam eliminadas é preciso passar para uma ordem diferente, socialista. É por isso que eu suponho que discutir a questão dentro dessa perspectiva é limitativo.

A questão só pode discutir realmente, se se admitir que há um movimento na direção do socialismo. O próprio Mannheim, no seu livro Homem e Sociedade numa Era de Reconstrução Social, fala em “planejamento experimental”. Mas, o que vem a ser um “planejamento experimental”? O modelo de planejamento experimental é impossível numa sociedade capitalista. É claro que, em uma sociedade socialista, ele também é difícil porque o limite para que ele seja possível proceda de uma penetração bastante profunda da ciência na administração das coisas e dos homens. Tal resultado não pode ser incipiente, revela-se plenamente numa fase, por exemplo, de perpetuação do Estado, de controle do Estado pela classe revolucionária. Nesse contexto, a dominação seria um requisito para aprofundar a revolução, na medida em que a dominação da maioria contra a minoria permitiria criar as condições que são essenciais para a construção de um sistema de produção socialista e de um estilo de vida socialista. Porém, enquanto essas condições não existirem, um planejamento experimental não será possível. Então não se pode pensar numa penetração da ciência que vá tão longe, o que indica que o uso verdadeiramente livre e racional da ciência exige a desaparição do Estado: a vigência de uma sociedade plenamente igualitária.

Nas refl exões teóricas vigentes, epistemologia e política são tomadas como práticas autônomas. Epistemologia e política são praticas irreconciliáveis?

O predomínio da concepção de ciência natural acabou excluindo a ciência da esfera do político. A epistemologia que se cria, em função dessa concepção de ciência, é uma epistemologia condicionada por um tipo de ciência especial, que exclui a relação do homem com o controle das forças da própria sociedade. Essa perspectiva não pode ser mantida após o aparecimento das ciências sociais. Temos, de novo, de voltar a Marx — os que tratam da contribuição de Marx à criação de uma sociologia do conhecimento, e àquilo que se poderia chamar de uma teoria da ideologia como uma forma de desmascaramento, quase sempre se limitam ao uso do método ideológico para atacar o antagonista, para desannar o adversário e para armar a própria posição de ataque ou de contra-ataque.

Na verdade, também existe em Marx uma epistemologia. E ela é permanente — desde os trabalhos em que ele crítica Hegel bem como nos trabalhos em que ele é um leitor crítico de Feuerbach e dos neo-hegelianos ela aí está presente. É uma epistemologia que ele contrapõe à fi losofi a idealista, e que lhe permite chegar à idéia de pôr a dialética sobre seus próprios pés. O livro mais importante a este respeito, é, sem dúvida nenhuma, A Ideologia Alemã: uma crítica dos princípios, das hipóteses e das explicações oferecidas pelos neo-hegelianos de todo processo histórico do mundo moderno. No entanto, o trabalho mais sólido — deixando de lado a crítica de Proudhon, que também possui a mesma implicação — é A Critica da Economia Política. Aí é que se vê melhor como ele usa o método epistemológico para estudar criticamente categorias que surgiram na área da percepção humana e da atividade humana, mas que se transferiram para o pensamento sistemático produzido pela ciência. Essa refl exão surge reiteradamente em todo o livro e, de maneira explícita e concentrada, nas refl exões que aparecem na famosa “introdução”, que depois de 1907 foi incorporada ao livro como apêndice. Esta tem sido considerada como o núcleo de uma metodologia. No entanto, ela é também o núcleo de uma epistemologia. O limite que ela estabelece para a ciência econômica clássica, a economia dos clássicos, não é apenas um limite ideológico. Os clássicos não perceberam as coisas apenas porque eram burgueses? Não, eles não perceberam as coisas porque, como economistas, eles consideraram o funcionamento da economia e a transformação da economia de uma posição limitativa. Essa posição pode ter sido condicionada ideologicamente mas, na verdade, eles pensavam que a economia europeia do século 19 era uma economia universal e geral; e que aí terminava a história do homem.

De modo que há aí uma epistemologia: uma crítica que transcende a contribuição que os clássicos deram a teoria econômica. E é a partir dessa crítica, muito mais do que da crítica ideológica, que se pode afi rmar que a alternativa da explicação marxista e, realmente, a ciência que não fora feita anteriormente. Isso não signifi ca, em suma, que há apenas uma ideologia, que aquela ideologia limitou a economia clássica. A própria economia clássica, como e enquanto ciência, era limitada. Era necessário superá-la e transcendê-la com outras categorias e outros modelos de explicação, para se chegar a elaboração de uma teoria que apanhasse todo o movimento histórico da transformação do capitalismo e da transição para o socialismo.

A seu ver, pois, a refl exão epistemológica sempre estará sujeita a “contaminação” ideológica? Ou seja, tal refl exão, como toda produção teórica, jamais estaria plenamente livre do processo de ideologização?

Como já disse, o epistemologista não está isento do condicionamento ideológico; ele não está isento da posição social. Todas as implicações que o condicionamento ideológico e a posição social possuem para a ciência, repetem-se com referência a epistemologia. Não poderia ser diferente, pois a epistemologia não existe no vácuo. De modo que ela também tem de se haver com essas infl uências socializadoras, que resultam do impacto da estrutura da sociedade sobre o pensamento. O pensamento que recebe o impacto não é só o da ciência; todo pensamento recebe esse impacto. O fi losofo também o recebe e precisa não só estar preparado para reconhecer isso — como também para controlar suas consequências puramente intelectuais. O investigador que trabalha no campo da epistemologia pode valorizar certo tipo de conhecimento ou outro, em função desse condicionamento externo. O que faz com que a contribuição do cientista social seja reversamente importante para a epistemologia para salientar, ao nível psicológico e no plano lógico, as implicações de determinada posição social.

A crítica não é uma crítica pura. Ela nasce de idéias e valores; estes são condicionados a partir da estrutura interna do meio. De modo que a situação social do sujeito pode ser limitativa ou estimulante em várias direções. Não é só na direção da ciência. Se o epistemologista partisse desse pressuposto, de que tudo é condicionado, menos a fi losofi a, ele daria com os “burros n’água”, pois ele cairia nos braços de uma refl exão tradicionalista, estreita e de circuito fechado. A contribuição do cientista social, naturalmente, irá depender das questões que o epistemologista souber ou for capaz de formular.

Como cientista social, como pensa a questão da refl exão epistemológica? Seria ela uma atividade fundamentalmente subsidiária da prática científi ca?

É claro que ela tem um papel próprio porque se ela não o tivesse, o próprio sociólogo, o economista, o antropólogo fariam essa refl exão. Isto quer dizer que se eles não fazem tal refl exão, alguém devera fazer. Esse alguém, é o fi losofo das ciências. Na fi losofi a das ciências nós temos, de um lado, a metodologia; e, de outro lado, a epistemologia. A metodologia diz respeito aos recursos utilizados na abordagem da realidade e no processo de investigação. A epistemologia procura dar um balanço crítico dos resultados, discutindo os princípios, a natureza dos princípios, as hipóteses, os conhecimentos conseguidos. É claro que, pelo fato de ter uma autonomia relativa, isso não signifi ca que o epistemologista deva se separar do cientista social. Esse é que é o problema. Isso Mannheim já esclarece em Ideologia e Utopia. Ele demonstra muito bem qual é a contribuição que a sociologia do conhecimento da à epistemologia, reagindo à tendência de certos fi lósofos a um dogmatismo estanque exclusivista. O papel do fi lósofo seria, pois, o de um supervisor do cientista social, alguém que teria um conhecimento das instrumentalidades, que o sociólogo, o antropólogo, o economista ou o historiador não pode alcançar. Isso não corresponde à verdade.

Dependendo de sua formação, o cientista social poderá dedicar-se ao estudo crítico das instrumentalidades da pesquisa científi ca em seus caminhos de investigação. Agora, a própria investigação econômica, histórica, sociológica, antropológica e de outras ciências sociais pode esclarecer problemas que o epistemologista não é capaz de esclarecer. Toda ciência se transforma; não existe ciência estagnada, ciência estaque, inclusive no que diz respeito à base epistemológica requerida para a avaliação do conhecimento científi co. Quais são os fatores nesse processo de transformação da ciência, que explicam porque certas concepções surgem e depois desaparecem? Por que certas concepções impregnam de tal maneira o horizonte intelectual do cientista que acabam parecendo universais?

A concepção liberal do mundo, por exemplo, impregnou o horizonte intelectual do cientista de tal maneira que se difundiu uma ampla confusão entre a concepção liberal do mundo e a posição liberal do cientista. Tratadistas como Stuart Mill, Pearson, Stanley Jevons e tantos outros perfi lham como “cânones da ciência”, recomendações que não tinham nada a ver com a ciência em si mesma. Inclusive, hoje, os cientistas que trabalham nas mesmas áreas não estão mais preocupados com as referidas formalizações. A coisa mais fácil de salientar é a que diz respeito ao destino das descobertas científi cas. O cientista do século XIX tendia a pensar que a função dele era construir a teoria. O que se faz com a teoria — depois que ela é “descoberta” e “revelada” — é um problema que precisa ser resolvido por outros indivíduos, que teriam, naturalmente, de lidar com ela no plano técnico. A técnica, a arte, não constitui uma área do cientista, pois pertenceria à especialistas de menor valor. Por que isso aconteceu? Por causa do âmbito da lógica da invenção: a invenção, naquela fase da história cultural do homem moderno, era uma invenção na qual o inventor trabalhava com um modelo antecipado do que ele ia produzir. Então, a idéia que se tinha é que o processo de invenção era forçosamente independente. A descoberta científi ca no plano empírico e teórico era uma coisa; a articulação das descobertas feitas, com soluções práticas pertinentes era outra coisa totalmente diferente.

Essa concepção se manteve durante o período em que a porção da ciência de que o inventor precisava dominar era muito pequena; no qual, por conseguinte, o número de pessoas que trabalhava com inventos também era pequena. Quando se passa para uma situação totalmente diversa, em que a área prática exige uma massa de conhecimentos científi cos muito variada e ao mesmo tempo de uma terrível complexidade, envolvendo um número muito grande de investigadores, essa concepção não pode ser mais mantida. Nos dias que correm, por exemplo, os grandes nomes da física atômica surgem na área da investigação empírica e teórica e também na área prática. Porque a área prática exige um tipo de cérebro que seja capaz de lidar com os dados mais complexos do pensamento científi co. Então, como é que o cientista de hoje poderia manter aquela concepção dos seus papéis práticos, do cientista que se pensava em termos da concepção liberal do mundo? Não seria possível.

O epistemologista, por seu lado, precisa do historiador, do sociólogo e do antropólogo para compreender essa evolução e, inclusive, questões mais complicadas que dizem respeito as transformações de campos particulares da ciência. Essas transformações acabam sendo muito rápidas, pelo menos a partir do momento em que as técnicas de racionalização penetram a produção industrial sob o capitalismo na era em que o socialismo aparece. Em suma, o universo tornou-se muito complicado, o que faz com que o investigador, que não lida com os problemas técnicos da epistemologia, possa ser útil ao epistemologista. De modo que o melhor seria pensar que há uma interação de complementaridade entre eles. O epistemologista dá uma contribuição que é vital, pois onde ele não opera, corre-se o risco de negligenciar, de maneira permanente ou esporádica, a necessidade de submeterse o aparato teórico e conceitual das ciências sociais a uma crítica sistemática. De outro lado, o epistemologista pode perder terreno se ele não estiver com o horizonte aberto, não só para as explicações que os cientistas sociais podem dar a respeito das transformações das pesquisas, como também para a contribuição que os cientistas sociais podem dar especifi camente a crítica do conhecimento, inclusive o científi co e o fi losófi co.

Penso que há uma contribuição que o cientista social pode dar a epistemologia, em termos da análise das funções no conhecimento em uma sociedade moderna — seja em uma sociedade de classes, seja em uma sociedade socialista. Pensando-se nessa perspectiva a melhor escolha seria a da interação e da infl uência recíproca. É claro que se poderia pensar que o sociólogo, o historiador, o psicólogo, o antropólogo, poderia aprender epistemologia encarregando-se eles próprios de resolver seus problemas epistemológicos. Mas, isso exigiria um desdobramento de atividades que a nossa universidade não tem condições para comportar. Em termos de organização do trabalho intelectual, o melhor seria que os vários especialistas pudessem trabalhar de forma articulada. Assim, eles poderiam aproveitar as contribuições teóricas recíprocas e colocar a própria colaboração a serviço do progresso das ciências sociais e da epistemologia (ou da fi losofi a, em um plano mais geral). O isolamento é o mal que precisa ser destruído. Pode-se, muito bem pôr os especialistas em coexistência e até em contacto mas não em interação. Isso aconteceu na Faculdade de Filosofi a — nós tínhamos um bom departamento de fi losofi a, um bom departamento de sociologia e antropologia, mas eles não mantinham comunicação criadora entre si. Então aí não adianta. O importante é produzir esse clima de colaboração interdisciplinar fecunda e exigente.

No seu longo trabalho como cientista social, que relações manteve com a Filosofi a?

É preciso levar em conta o seguinte: nós não tivemos condições de estabelecer tal comunicação. Provavelmente ela agora seja possível e surja. Por exemplo, quem leu a entrevista de Giannotti, publicada em Trans/form/ação, constata que há um clima para se alterar um pouco a contribuição do fi lósofo, de um lado, e de outro lado, o interesse que o fi lósofo refl ete pelas ciências sociais. Dos fi lósofos que vieram para cá com maior interesse pelas ciências sociais especifi camente, um deles era o Granger; mas ele estava mais preocupado com a economia, com explicações muito abstratas, que nos não estávamos explorando. Eu próprio não tive oportunidade para colaborar com ele.

O que transparece na minha experiência é mais produto de leituras. Porque os sociólogos alemães do fi m do século passado e do começo deste século eram sociólogos que se abriam para a fi losofi a. O diálogo que existia entre Marx, Engels e a fi losofi a na Alemanha, o socialismo na França e a economia na Inglaterra não desapareceu, embora ele se tenha circunscrito ao âmbito da relação da fi losofi a com a ciência. De modo que aprendi muita coisa a partir dos autores que li. Como eu próprio estava pretendendo trabalhar numa área de fronteiras, tive mais cuidado que muitos dos meus colegas na leitura de trabalhos de psicologia, de lógica, de epistemologia, de sociologia do conhecimento. E, na sociologia do conhecimento, procurei absorver vários tipos de contribuições. Algumas estreitamente vinculadas ao marxismo, outras construídas contra o marxismo. Em consequência, fi quei com um horizonte um pouco mais aberto para tais questões. Depois, acabei saindo dessa área de trabalho. Mas, houve um momento em que para mim era instrumental esse conhecimento. Eu não poderia trabalhar com os problemas da explicação sociológica sem ler muitos autores diferentes, de Comte e Stuart Mill a Goblot, Wolf, Piaget, Bachelard,

Wisdon e tantos outros. Hoje o sociólogo profi ssional quase não se preocupa com essas questões, pelo menos entre nós. No entanto, seria útil começar as coisas de maneira mais racional. Isto é, criando-se um diálogo mais frutífero e mais rigoroso.

Além disso, seria ideal que o fi lósofo das ciências — em especial o que pretenda trabalhar no campo das ciências sociais — tivesse um treino efetivo na área das ciências sociais de seu interesse e que esse treino abrangesse pelo menos a realização de um projeto de investigação completo. É muito ruim que o fi lósofo, se faz a crítica do conhecimento científi co ou que lida com os problemas de metodologia das ciências, não tenha experiência concreta em investigação bem como não saiba usar as técnicas de investigação e as técnicas de explicação, a que se propõe criticar. Não basta aprender lendo certos livros. A experiência vicária cria o risco de um pensamento demasiado abstrato, que acaba não dando atenção às difi culdades que existem no trabalho intelectual do sociólogo, do economista, do historiador.

Se se toma um dos meus trabalhos do qual gosto muito, “A reconstituição da realidade nas ciências sociais”, pode-se ter uma idéia do que pretendo insinuar. Muitos sociólogos, com frequência, dão por encerrada a investigação empírica, quando ela deveria começar. É o caso, por exemplo, de vários estados de comunidade. Neles eu quase me colocava na posição do epistemologista: onde, realmente, deveria ter começado a explicação? Podese explicar alguma coisa operando com comunidades isoladas, separando-as do sistema societário global? Durkheim coloca a questão em termos de tipos sociais. Se se considera o tipo ou casos concretos, quando o caso concreto permite, de fato, conhecer uma civilização? Em Les Formes Elementaires de la Vie Religieuse, ele mostra que o caso particular pode ser explorado frutiferamente para obter explicações gerais. Mas, então, ele é um caso especial. Se se trabalha com sociedades estratifi cadas essa possiblidade não existe. A reconstrução da realidade é um esforço prévio. Depois dela é que começa realmente a investigação, que vai propor problemas ao nível lógico, ou da descrição ou da explicação. Para penetrar nesse emaranhado e possuir uma penetração adequada sobre as possiblidades das ciências sociais, só há um meio para o epistemologista “amadurecer” — ele consiste no treino direto.

Em que medida nossas atuais estruturas universitárias propiciam ou não um autêntico e fecundo trabalho interdisciplinar?

Talvez em Assis, uma escola que está localizada em uma comunidade menor, seja mais fácil do que aqui. Porque há mais facilidade para formar uma comunidade intelectual lá do que aqui. Esse é um elemento que se perde de vista com frequência. Aqui, o contacto entre os professores era muito difícil. E, ainda agora, a estrutura espacial da USP não é uma estrutura elaborada para facilitar o contacto. Ela foi montada para facilitar o isolamento, para pulverizar o intelectual. A sociedade não quer que o intelectual constitua uma comunidade própria. Essa é a verdade. Se quisesse, o espaço não estaria organizado dessa maneira. E, principalmente, se organizasse o espaço dessa maneira — o que é um problema de distribuir serviços dentro de uma área — não pulverizaria o trabalho intelectual como o fez. Se essa pulverização resulta de decisões tomadas pelos próprios universitários, isso signifi ca que os universitários interiorizaram os papéis através dos quais eles entram como especialistas que trabalham em áreas estanques, e não como pessoas em comunicação, que pretendam produzir em bases comuns. Pelo contrário, vocês em Assis tem muito mais facilidade de convivência, de comunicação, de trabalho em conjunto.

Para mim, o central é o modo de entender as coisas. Se se cria um projeto comum de trabalho, se se treina o sociólogo para conhecer os problemas da epistemologia e viceversa, se se treina o fi lósofo das ciências para ter experiência do processo de investigação; se se desenvolvem objetivos que são reciprocamente necessários, isso é que é o essencial. Porque, se não houver, desde o começo, esse projeto comum, então não há nenhuma coordenação possível. A sociedade em que nós vivemos não estimula a formação de uma comunidade intelectual integrada, porque uma comunidade intelectual integrada pode ser um risco potencial em termos de elaboração de um pensamento crítico e militante. Daí o fato de que a especialização quase sempre é um dos requisitos da maneira pela qual se entende a profi ssionalização do cientista na sociedade capitalista.

Poder-se-ia afi rmar que o seu último livro, A Revolução Burguesa no Brasil, — produto de uma longa e amadurecida investigação teórica e, confessadamente, trabalho que não se pretende “acadêmico” — seria uma obra política?

O livro foi pensado como uma resposta à uma situação política. Para mim foi uma surpresa que o livro se tornasse mais complexo do que pretendia. Quando escrevi toda a primeira parte e o fragmento da segunda parte, em 1966, pensava que estava escrevendo um livro de grande acessibilidade para o leitor comum. A distorção do intelectual é tão grande que nós não nos colocamos o problema da linguagem aberta. É claro que quando falo em leitor comum penso em alguém que tenha um mínimo de qualifi cação intelectual, a que nos habituamos através do nosso “público letrado”. De qualquer modo, pensava que o livro era fácil. Foi preciso que José Albertino Rodrigues me contasse que teve de fi char toda a primeira parte do livro, para entendê-la e escrever o seu comentário, para que eu percebesse a complexidade da linguagem adotada. Eu acreditava que a linguagem era fl uente e acessível. Na verdade, parece que não era, o que prejudica a minha intenção, que era uma intenção política. Pretendia explorar o conhecimento sociológico que tenho da sociedade brasileira para responder a situação que se criou em 1964. Tanto que projetei o livro no último semestre de 1965 — eu estava então, na Universidade de Columbia — e já no primeiro semestre comecei a redigir o que me parecia ser o protesto político de um sociólogo. Todavia, não conclui o livro — preferi devotar o meu tempo disponível à luta política direta e alguns desentendimentos com certos colaboradores da cadeira de Sociologia I deixaram-me incerto (impedindo-me de publicar o que já estava pronto). Naquele momento, certas interpretações que eu desenvolvera chocaram aqueles colegas. É provável que hoje, a reação deles seria diferente. De qualquer modo, se um trabalho com intenção política chega a dividir um pequeno grupo, a sua utilidade efetiva é discutível. Só mais tarde o retomei e conclui, replanejando a última parte e ampliando assim, o signifi cado político da obra.

Deste ângulo, há duas contribuições no livro. Primeiro uma tentativa de explicar o próprio regime que prevaleceu na sociedade brasileira, o Estado, o tipo de Estado, a concentração de poder que alimentou o Estado. Pode-se dizer que o Estado associado à sociedade escravista, uma sociedade estamental e de castas, é o Estado de uma certa natureza; e o Estado que surge em conexão com o desenvolvimento do capitalismo competitivo, com a expansão das cidades, com a transição para o capitalismo monopolista e outro tipo de Estado. Ele é o Estado de uma sociedade de classes, com um poder burguês já consolidado. Não se trata do mesmo Estado. Não há no livro nenhuma confusão entre esses dois tipos de Estado. Mas, o que há de comum nos dois casos é que o Estado representa um comitê de uma minoria muito pequena. Nas duas situações históricas extremas, há a presença de uma estrutura intermediária, uma sociedade civil que organiza o poder político concentrado ou institucionalizado e permite as várias classes burguesas unifi car a dominação social e político-legal. A explicação desse fato parecia-me muito importante, ainda mais importante que a explicação institucional do Estado.

Os nossos especialistas em ciência política tem se dedicado ou à investigação do ritualismo político, isto é, ao estudo dos partidos e dos regimes, ou à investigação da organização do Estado. Ora, o elemento central, do ponto de vista sociológico e político, vem a ser o modo pelo qual os Estados dominantes (no passado) e as classes dominantes (hoje) se unifi cam socialmente para conseguir uma articulação política a partir da qual chegam a uma ditadura de classes e a põem em prática através do Estado. Porque realmente o problema é esse. Trata-se de uma ditadura que vincula a sociedade civil à uma democracia restrita, ao mesmo tempo em que a converte em uma oligarquia perfeita, nas relações da sociedade civil e do seu Estado com a Nação como um todo.

Minha tentativa é a de compreender o que acontece na periferia do mundo capitalista em nossos dias, não só uma fase de apogeu e de crise do capitalismo monopolista mas, também, de confl ito mundial entre capitalismo e socialismo.

Muitas das explicações elaboradas pelos socialistas na Europa não levam em conta a situação que vivemos na periferia. Certas idéias a respeito da dominação imperialista são inadequadas pois o confl ito mundial entre capitalismo e socialismo engendrou novas formas de acomodar as burguesias nacionais e os centros imperialistas às quais foram aproveitadas e consolidadas pelas grandes corporações multinacionais. O debilitamento da burguesia periférica destruiria as fronteiras do próprio capitalismo mundial, desagregando as bases do poder internacional do capitalismo. Procuro explicar como se dá a relação de fato entre a burguesia da periferia, ou as classes burguesas da periferia e a dominação imperialista; em que sentido a dominação imperialista procura fortalecer estas burguesias de um lado e, de outro lado, como essas burguesias, sendo pró-imperialistas, são forçadas a sufocar a revolução nacional. Ambos os interesses centrais — da dominação imperialista e das classes burguesas nacionais — convergem para o mesmo fi m, a aceleração da revolução econômica.

Houve quem fi zesse confusão quanto ao que eu entendo por dissociação dos tempos porque a análise que faço implica em que o tempo econômico e o tempo político da revolução burguesa são dissociados. Enquanto que no modelo clássico europeu, especialmente dos países em que a revolução burguesa teve uma evolução rápida — não estou pensando na periferia da Europa, em Portugal, na Polônia, na Espanha, na Grécia; estou pensando na Inglaterra e na França — houve uma sincronia entre tempo econômico e tempo político. Ao mesmo tempo em que se realizavam as três revoluções quase concomitantes — rural, urbana e industrial — havia um processo acelerado de integração do poder em bases nacionais. Em grande parte porque as pressões de camadas da classe média baixa, da chamada pequena burguesia e dos operários foram muito fortes. Tanto o setor campesino quanto o setor do proletariado urbano nesses países fi zeram forte pressão sobre as estruturas nacionais de poder. Isso fez com que as burguesias se tornassem mais abertas e com que o radicalismo burguês tivesse de avançar muito mais. Esse é o velho problema: de saber se uma classe que faz a revolução, faz a revolução também para as outras classes e porque (o que expõe a abertura democrática da revolução burguesa a uma visão sociológica pluriclassista). Na periferia os setores baixos das classes intermediárias ou não estão organizados politicamente para realizar as referidas pressões ou, então, fazem a pressão de uma maneira tão débil que ela não chega a desencadear qualquer efeito político.

Em resumo, o tempo político foi retardado como condição mesma para que o tempo econômico fosse aprofundado e acelerado, em detrimento da grande maioria e para privilegiar ainda mais uma pequena minoria, na qual se incluem os parceiros dos centros imperiais. Nunca existiu um regime democrático no Brasil, se se entender por esse conceito uma democracia de participação ampliada. Os que falam que de 45 a 64 nós tivemos regimes democráticos não prestam atenção à realidade. Tentou-se uma transição para uma democracia de participação ampliada, que foi cortada pelas próprias classes burguesas, pois elas não podiam admitir essa transição. Em consequência, a caracterização sociológica parecia-me óbvia: o que existe na periferia do mundo capitalista de hoje é mais autocracia burguesa, com um Estado autocrático burguês. Ora, essa não é uma conclusão agradável; obviamente não o é para a direita (que pretende manter as ilusões da democracia burguesa), nem para a esquerda (que precisa de espaço político para iniciar, pelo menos, a revolução democrática. Todo o movimento socialista, na Europa e mesmo na Rússia do começo deste século, se organizou sob a lógica política da “democracia burguesa”, visando aproveitar as aberturas do radicalismo burguês. Não existe porém uma abertura de radicalismo burguês na periferia, especialmente nesse momento. As poucas aberturas, montadas depois da segunda grande guerra mundial ou então antes de fato não germinaram, não resultaram em nada, falharam. Não realizei um trabalho exaustivo de investigação comparada, mas, se fi zesse, seria mais fácil ainda mostrar como o fenômeno que ocorre no Brasil não é singular.

Ele corresponde a certas condições mais ou menos gerais; outros países da América Latina passaram (ou estão passando) por fenômenos análogos.

O elemento prático dessa conclusão é óbvio. Se se puser o movimento socialista a reboque de reivindicações políticas das classes burguesas, deve-se ter em mente que não se consolida alguma suposta democracia burguesa. Um avanço em tal direção só poderia se justifi car em termos de objetivos limitados, como o aumento dos confl itos entre interesses divergentes das classes dominantes ou a redução paulatina entre o tempo político e o tempo econômico, da revolução nacional. Por hipótese, é o caso do regime peruano; é um regime em que alguns partidos de esquerda colaboram com um governo militar que introduz certas reformas econômicas mas contendo o processo revolucionário “dentro da ordem”. Não se deve ver em tais objetivos limitados uma transição para a democracia burguesa. Seria uma ilusão pensar que, por aí, se vai a democracia burguesa. A democracia burguesa desapareceu.

Mesmo os investigadores, que tratam do problema em termos europeus e norteamericanos, já se questionam para saber se as bases democráticas de organização da sociedade e do Estado são do passado ou do presente. Quem tenha lido Marcuse, Wright Mills ou outros autores deve ter percebido que as interpretações mais lúcidas mostram que o Estado burguês se torna, crescentemente, um Estado repressivo, com tendências a se tornar tecnocrático e totalitário (ou, como a maioria prefere dizer, autoritário). O movimento socialista precisa levar em conta essas novas condições.

O problema que não analiso no livro, pois eu não podia analisar todas as questões, mas esta implícito, é o seguinte: se o movimento socialista pretende se organizar para enfrentar essas condições, ele tem de se organizar para colidir com essa autocracia, ou seja, para criar o seu próprio espaço político nas piores condições possíveis. É o que aconteceu na Rússia, por exemplo, depois da revolução de 1905. Esse é, aliás, o grande paradigma para nós. Tenho a impressão de que se deve estudar muito mais do que se tem feito esse período da história russa. Na medida em que a democracia se torna improvável, se esvazia, e o que se tem pela frente é um “regime autoritário” com funções fascistas (ou que se pode transformar em um regime fascista rapidamente), o movimento socialista está na mesma situação em que esteve na Rússia depois do insucesso de 1905. Sob uma contrarrevolução prolongada é uma repressão extremamente forte, que destruía qualquer espaço político para uma atividade socialista organizada e independente, ele devia manter as esperanças e a possiblidade de uma revolução democrática. A lição, parece-me, é uma só: o movimento socialista precisa criar seu espaço a partir do limite zero.

Se pretendemos, de fato, desencadear uma revolução democrática dentro das condições existentes na periferia do mundo capitalista, é do próprio socialismo que teremos de extrair nossa força.

O confl ito mundial entre capitalismo e socialismo constitui a única condição externa que, por ser altamente oscilante, poderá converter-se em um ponto estratégico de apoio. Graças a oscilações dessa origem, alguns países na América Latina, na África, na Ásia poderão adquirir condições de transição mais toleráveis, nas quais surjam possibilidades para um movimento de liberação nacional ou de revolução socialista. Essa é a estratégia política recomendável ao movimento socialista. Mas, não estamos diante de uma evolução automática. A pressão a partir do mundo capitalista é para uma rigidez crescente. E essa rigidez crescente só pode ser enfrentada a partir de comportamentos específi cos, que levem em conta que o espaço político para o socialismo é igual a zero, e que os socialistas tem de operar dentro desse espaço político se quiserem criar as suas condições de atuação revolucionária. Portanto, concentrei-me sobre uma refl exão política, que desemboca nas perspectivas do socialismo na situação atual.

Para nós, uma das mais urgentes tarefas a ser realizada pelos cientistas sociais no Brasil é a releitura e retomada, de forma sistemática e crítica, de toda a sua extensa produção científi ca. Em que medida A Revolução Burguesa no Brasil antecipou para nós este trabalho?

É claro que a vida intelectual de qualquer autor apresenta momentos diferentes. Eu realizei vários tipos de trabalhos e vários deles não estão tão ligados entre si como se poderia presumir. É claro que a experiência teórica vai aumentando e, de outro lado, as tensões sociais forjaram, por si mesmas, exigências maiores. Não se pode pôr o cientista social fora da sua pele. Ele vive sempre em um país determinado. Se ele responde as pressões externas, ele tem de viver sob constante tensão moral; é essa tensão moral que vai torná-lo mais exigente para consigo mesmo e com relação às posições possíveis diante dos problemas nacionais e dos dilemas nacionais. O que aconteceu comigo, em termos de evolução intelectual, não é tanto uma passagem de um socialismo menos consequente para um socialismo mais consequente. Nesse nível, a sociedade brasileira não foi de muito proveito para mim. O movimento socialista no país nunca foi tão organizado ou tão forte a ponto de dar amparo intelectual ao meu trabalho. Muitas vezes aconteceu o contrário, pois foi da esquerda que partiu, no país, o conceito de desenvolvimento, — do desenvolvimento como revolução ou de coalizão de classes para consolidar a frente democrática. Se eu tivesse cedido a certas pressões de grupos infl uentes do movimento esquerdista eu teria assumido posições muito menos exigentes e menos consequentes. De qualquer maneira, eu tinha certas possibilidades de responder às expectativas que se criaram.

Lendo-se a introdução que redigi para a segunda edição de Mudanças Sociais no Brasil, podese perceber uma linha política na compreensão sociológica da dinâmica da sociedade e da cultura. Na verdade, a relação do cientista social com a sociedade depende muito do modo pelo qual a sociedade procura a contribuição do cientista social. Nas décadas de 40 e de 50 eu era solicitado para certas contribuições práticas, que giravam em torno da discussão de idéias gerais e de temas que permitiam o exame empírico de certos problemas. Realmente, a sociedade brasileira não se questionava de uma maneira profunda; nós não tínhamos partidos políticos na esquerda ou no centro que estivessem preocupados em aprofundar essa contribuição do intelectual (seja no setor de educação dos seus militantes; seja em um plano mais amplo de consciência crítica).

Eu próprio tomei algumas iniciativas (cheguei, mesmo, a procurar dirigentes de partidos de esquerda, mas nunca fui bem sucedido). Certa vez argumentei com um dirigente que deviam dar maior cuidado ao preparo doutrinário dos militantes, especialmente os jovens.

Lembrei Lenin: “sem teoria revolucionária não há revolução”. Ele me respondeu que fariam a revolução com aqueles militantes e seu tipo de disciplina. O que estava em jogo: a velha concepção dogmática segundo a qual a revolução socialista seria uma consequência feliz de um “processo natural”. Uma experiência amarga? Não uma; mas muitas. Os que criticam o intelectual e esperam demais dele, isoladamente, esquecem-se que o intelectual, ele próprio, possui as mesmas limitações. Ele pode avançar, se ele estiver sob uma determinada pressão, se ele estiver sendo utilizado. Tome-se por exemplo, como paralelo, o que aconteceu na Rússia, entre fi ns do século XIX e o começo deste século. Havia vários movimentos anarquistas, sindicalistas e socialistas que criavam papéis intelectuais específi cos. Inclusive na área propriamente científi ca de investigação da economia, da história, da fi losofi a ou de criação de pensamento socialista original. Houve uma ampla importação de idéias socialistas da Europa na Rússia mas, ao mesmo tempo, um forte movimento de elaboração criadora da imaginação política revolucionária. Nós não tivemos nada disso aqui. Eu já era socialista antes de começar a lecionar na Faculdade de Filosofi a e, inclusive, tive alguma militância em movimentos de esquerda como socialista. Todavia, daí não resultou exigências para que o meu trabalho intelectual adquirisse um outro sentido. Nunca houve um partido que me solicitasse um curso sobre esta ou aquela coisa. A única vez que me pediram, para fazer uma conferencia de âmbito maior foi aquela que está publicada em Mudanças Sociais no Brasil, sob o titulo “Existe Democracia no Brasil?”. As pessoas que me convidaram eram do IBESP — instituição que precedeu o ISEB — entidades muito ligadas com ideologias de nacionalismo equivocado. Naquela época (1954), o impacto da conferência foi tão grande que os organizadores suspenderam o seu debate.

Assim, uma interação mais produtiva do sociólogo com os movimentos sociais só começa, realmente, na década de 60. Os movimentos, porém, eram espontâneos, que se pulverizavam em várias direções e, por conseguinte, também pulverizavam as contribuições dos intelectuais. Na verdade, estavam muito mais interessados em saber o que um especialista podia dizer sobre certos assuntos do que envolver os intelectuais em um processo socialista de transformação da ordem. Eles queriam ouvir o sociólogo que havia em mim, muito menos do que o socialista. Estava mais ou menos implícito que todos tenderiam para o socialismo; o que eles queriam ouvir, porém, era a opinião do sociólogo. Isso ainda é verdadeiro hoje.

De modo que a pressão externa foi muito fraca e a minha adaptação se deu no sentido de proteger-me contra as concessões a uma pseudo democracia burguesa. Como as experiências da época do Estado Novo e, logo posteriormente ao Estado Novo, me mostraram que não havia um movimento socialista organizado, no qual eu pudesse ter papéis intelectuais defi nidos, de uma forma criadora para mim e para o movimento, tive de buscar a alternativa de ser útil a todos os grupos de esquerda. Daí a minha obsessão de proteger-me contra concessões espúrias e um radicalismo tosco, que não era bem compreendido nos “meios políticos”. Procurei, no entanto, as correntes mais vigorosas que alternavam na cena histórica sem poder impor-me qualquer exigência teórica ou prática de maior signifi cado.

No começo da década de 60 especialmente em torno de 62, a idéia de uma colaboração com a burguesia nacional era uma idéia dominante e muito forte. Isso criava uma espécie de ilusão, de que aqui nos estávamos lutando com êxito pela democracia burguesa. Por uma burguesia que ia fazer, simultaneamente, a revolução industrial e a revolução nacional, ou seja, unindo os tempos econômico e político da revolução burguesa. Como socialista não acreditava naquilo, mas se me negasse a aceitar os debates reformistas fi caria condenado ao silêncio. Vários trabalhos deixam implícito ou explícito o traço melancólico de tal situação, que eu não podia alterar. A minha contribuição sociológica se defi nia no plano mais baixo possível do racionalismo burguês caboclo. As minhas veleidades socialistas eram pura e simplesmente sufocadas. De modo que a evolução do meu trabalho traduz muito mais a precariedade da situação do investigador no Brasil do que uma constante que pudesse ser permitida pela combinação de um movimento socialista forte com uma universidade aberta as correntes democráticas da maioria da sociedade brasileira. Nós sabemos que a nossa universidade é elitista; eu já insisti nisso. Que ela trabalha para minorias, de uma forma muito limitada.

A minha carreira intelectual refl ete, de ponta a ponta muitas precariedades convergentes. Todavia, na década de 60 podia lançar-me de uma maneira mais intensa ao debate de certos temas que, se carecem de signifi cado socialista, eram pelo menos importantes em termos de luta por condições crescentes de autonomia política para as massas e para os intelectuais. O máximo que conseguia era proteger o meu trabalho intelectual e realizar uma investigação tão rigorosa quanto me era possível. Essas constantes estão em todos os trabalhos de fundamento empírico. Inclusive, em A Revolução Burguesa no Brasil, no qual o fundamento empírico não é tão evidente. Assim, se se tem em conta um determinado momento, no qual tento fazer — dentro das minhas aspirações — o que estava ao meu alcance, é nos trabalhos que se localizam na década de 60 que as idéias mais críticas são elaboradas. E, de modo mais concentrado nos livros: A Integração do Negro na Sociedade de Classes, Sociedade de Classes e Subdesenvolvimento, Capitalismo Dependente e Classes Sociais na América Latina e A Revolução Burguesa no Brasil. Em relação a todos eles se poderia dizer que não são contribuições de cunho marxista puro. Nem mesmo tentei simular, passando por “análise dialética”, o que eu sabia que não o era. Poderia fazer a ressalva, não obstante, de que mantive uma patente fi delidade para com os meus ideais socialistas e uma congruência que foi posta à prova muitas vezes. O que não me desobriga de reconhecer que, em nenhuma ocasião, tentei ou pude fazer um trabalho no qual eu surgisse como um marxista puro. A única vez em que, como professor, me ajustei ao papel intelectual de sociólogo marxista, de maneira bastante dogmática, foi durante o período em que estive em Toronto. Lá, de fato, talvez como medida de autodefesa, tentei quebrar essa sobreposição de papéis, que põe os de sociólogo em um lado e os de socialista em outro. Os estudantes da Universidade de Toronto reagiram bem; pelo menos os estudantes de esquerda ou radicais. Mas eu tinha um bom público e poderia ter fi cado lá ou poderia voltar para lá, se quisesse. O que mostra que a Universidade de Toronto é uma universidade onde há efetiva liberdade intelectual e política para os professores. Esse foi o único período, pois na USP sempre me ajustei aos papéis de professor, acima de tudo, como um professor eclético, dando naturalmente igual importância às diferentes correntes da sociologia sem privilegiar o marxismo. Também, nunca procurei ser um marxista dogmático e rígido. Isso simplifi caria o meu ajustamento intermediário e me dava certa força para “remar contra a corrente”.

A releitura, a que se referia a pergunta formulada por vocês, não deve ser feita necessariamente por mim. Quer dizer, a obra de qualquer intelectual sempre tem signifi cado em função das correntes que existem dentro do país. Inclusive, quando comecei minha carreira nas ciências sociais, os grupos mais avançados esperavam que nós fôssemos funcionalistas. Isto é, naquele momento, se se conseguisse fazer aqui investigação como faziam Malinovski na Inglaterra e Marcel Mauss na França, estaríamos dando uma contribuição excelente. De 40 a 60 houve uma mudança radical na avaliação do trabalho intelectual dos cientistas sociais pela juventude. No futuro, tenho a impressão de que o trabalho que fi z — não sei se ele merece o nome de uma obra, pois não vejo aí uma contribuição tão maciça e tão signifi cativa — recebera a avaliação que merece. Mesmo A Revolução Burguesa, que em 1966 foi considerada sob um clima de controvérsia, pelos que trabalhavam comigo, poucos anos depois mereceu uma releitura, mais atenta e uma apreciação favorável.

A questão da releitura é portanto uma questão de tendências, de modas nas ciências sociais. Uma das constantes do meu trabalho foi tentar escapar à moda; de ter um rigor marcado, que me desse certa congruência. Os que me conhecem sabem que, apesar de todas as transformações que ocorreram na minha vida, procuro manter a mesma posição diante dos problemas básicos da vida brasileira e dos papéis intelectuais do sociólogo no mundo em que nós vivemos. Fui pouco suscetível às modas. No entanto, acompanhei as tendências, as modifi cações. Procurei aproveitar os autores que se tornaram sucessivamente importantes, tanto na Europa quanto nos Estados Unidos. Não fi quei alheio a essa oscilação. Mas, de outro lado, procurei me proteger da sedução fácil porque acho que a marca negativa do intelectual brasileiro e a rapidez com que ele adere as transformações da moda no exterior. Isso não se aplica só contra conservadores ou liberais; aplica-se também contra a esquerda. Eu acompanhei várias “ondas”: vi como Lukács foi substituído por Sartre; Sartre por Goldmann, depois Althusser; e, agora, Althusser também está indo “para as cucuias”. Isso tudo é desmoralizador. O que que devemos ter e defender em termos de formação teórica básica? Temos capacidade crítica de seleção ou não temos? Se temos, devemos ser capazes de ler livros, selecionar deles a contribuição positiva e construir um caminho próprio de contornos defi nidos. Tenho a impressão de que aí está uma lacuna terrível, que precisa ser superada. É necessário um amadurecimento intelectual que nos dê a capacidade de reagir com um mínimo de energia intelectual e inclusive de pensamento criador. Dirigir a nossa própria via intelectual, não oscilando como se afi nal de contas estivéssemos a mercê do último livro que chega no último vapor, no último paquete. Isso era a situação do século XIX. E continua a ser a situação hoje.

Recentemente recebi uma tese de doutoramento de grande valor. Ela não incluía, porém, bibliografi a brasileira, porque isso seria incompatível com o rigor conceitual e de análise da monografi a... Isso é extra-científi co ou mesmo anticientífi co. Não se constrói nada a partir de uma atitude tão exclusivista e fechada. É um radicalismo que, sem constrangimento, poderíamos chamar de radicalismo infantil. Tenho a impressão de que esse radicalismo precisa ser eliminado, porque uma coisa é o intelectual basear o seu prestígio na novidade, outra coisa é a contribuição positiva que ele pode dar a uma área de conhecimento. O ideal seria que o seu valor nascesse da contribuição positiva, e não do fato de apanhar (ou contrariar) uma fl utuação da moda no exterior. Podemos observar o padrão de verdade da ciência e convertê-lo no fulcro de um crescimento cultural autônomo — o que exige muita disciplina intelectual, originalidade e talento inventivo.

Como se faz, hoje, a cooptação do intelectual?

Essa é uma questão complexa e para respondê-la seria preciso fazer todo um curso de sociologia do intelectual. Mas, os mecanismos são conhecidos, pelo menos com relação à institucionalização dos papéis dos intelectuais. A sociedade cria uma massa de empregos que vincula o intelectual à sociedade de consumo e, de outro lado, entorpece a sua capacidade crítica. As duas coisas se unem em termos de salários, reconhecimento de valor ou de prestígio a partir de padrões que se baseiam muito mais nas estimativas das classes em presença do que na importância intrínseca do que o intelectual produz. De qualquer modo, o intelectual se vê arregimentado pelas instituições que podem proporcionar a ele sua socialização fundamental, uma ocupação estável, ascensão de status e algum prestígio intelectual. Ao se considerar países como o Brasil, é preciso não esquecer que neles o capitalismo não pode oferecer uma grande massa de empregos de classe média ao mesmo tempo em que, inevitavelmente, as classes médias estão relativamente sufocadas.

Temos poucas possibilidades de imaginar a situação que existe em países de prosperidade maior, como seria o caso do Canadá, dos Estados Unidos, da França, da Alemanha, da Inglaterra etc. Contudo a experiência que eu tive nos Estados Unidos e no Canadá mostrou-me que a insegurança das posições de classe média e a competição bastante intensa por oportunidades de trabalho, entre os intelectuais, fazem com que eles aceitem padrões de profi ssionalização que restringem de maneira severa a sua capacidade criadora e aquilo que muitos autores chamam de idealismo crítico ou negador. O estudante sai da universidade (seja ele médico, engenheiro, cientista social, jornalista, enfermeiro) com uma forte dose de idealismo profi ssional. Esse idealismo profi ssional é corroído rapidamente, porque ele não se coaduna com as condições de aproveitamento do talento que impera numa sociedade capitalista. A rotinização do trabalho, feita em termos burocráticos, é tão profunda que o intelectual acaba tendo de ceder às pressões conservadoras, se quiser manter seu emprego, seu nível de vida e suas aspirações de segurança econômica ou de ascensão social. É claro que quando se encara as coisas através de símbolos externos, parece que o nível de vida de classe média (seja do seu estrato médio ou do seu estrato baixo), justifi ca tudo isso. Talvez para os indivíduos que estejam envolvidos no processo não haja outra alternativa, se não ceder à pressão. Somente intelectuais que pertencem a movimentos radicais e inconformistas oferecem alguma resistência e assim mesmo em escala praticamente individual ou de pequeno grupo, com frequência mais simbólica que efetivamente revolucionária. A maneira mais fácil de escapar a essa pressão é sair do mercado. No entanto, sair do mercado signifi ca deixar de ser intelectual. Assim, poucos têm o recurso de se afi rmar em função de papéis intelectuais íntegros, que envolvam um alto idealismo profi ssional e a maioria acaba cedendo. Com isso, se transformam naquilo que Lorenz Baritz chama de “servos do poder”. É o caso dos sociólogos que trabalham com a sociologia industrial, dos psicólogos que trabalham com a psicologia industrial, de todos os cientistas sociais que se devotam a chamada assistência social, a pesquisa de mercado, aos vários tipos de “planejamento”, as sondagens sobre o comportamento político, a assessoria das instituições-chaves, etc.

A profi ssionalização responde muito mais aos requisitos de segurança econômica e de competição estreita do que às grandes ambições de trabalho. Ou seja, em pouco tempo todo o idealismo profi ssional é posto de lado e a pessoa aceita se transformar em um instrumento dócil dos grupos e das instituições que manejam e aproveitam praticamente o talento do intelectual. O intelectual se entrega nas mãos desses grupos e dessas instituições, quer ele reconheça isso, quer ele mantenha a ilusão de que é “livre” e “independente”. O próprio professor de universidade não escapa a esse destino. Em seu estudo sobre a Agonia da Esquerda Americana, Cristopher Lash analisa muito bem a situação da universidade nos Estados Unidos. Ele mostra o quanto a profi ssionalização do scholar acaba reduzindo ou eliminando sua capacidade de interação com os problemas da comunidade local e da sociedade nacional. Ele se neutraliza e perde a oportunidade de dar uma contribuição na esfera prática, em termos de discussão dos problemas centrais da época de crítica da sociedade. A este respeito, há um livro importante de Bottomore denominado justamente Críticos da Sociedade. A crítica da sociedade sempre foi uma dimensão importante do trabalho do cientista social. Mas a universidade limita institucionalmente a autonomia do intelectual. Quando o intelectual persiste em se afi rmar através de papéis críticos, acaba sendo estigmatizado, isolado e, por vezes, até posto fora da instituição universitária e perdendo qualquer perspectiva de carreira. Eu conheço o caso famoso de Wright Mills, que sofreu todo o impacto negativo da pressão conservadora, bem como de alguns colegas que viram suas carreiras distraídas ou bloqueadas por causa da participação aberta em movimentos radicais.

Por aí se tem uma idéia de que uma sociedade democrática não é igualmente democrática em tudo e para todos. Ela é seletivamente democrática. Em relação aos intelectuais, mesmo uma sociedade democrática da envergadura dos Estados Unidos não lhes confere a autonomia sufi ciente para preencher papéis críticos que seriam indispensáveis no caso das ciências sociais. Isso cria uma situação muitas vezes curiosa. Alguns dos melhores trabalhos recentes, de crítica da sociedade norte-americana, não saíram da pena ou da máquina de escrever dos sociólogos. Foram, sim, produzidos por ensaístas e jornalistas de muito talento que tiveram uma boa formação acadêmica, e que dispunham de recursos para utilizar de alguma forma a investigação empírica sistemática. Acabam, assim, fazendo levantamentos importantes. Ao mesmo tempo, os sociólogos de maior notoriedade, mas que não são contaminados pelo radicalismo intelectual — preservam-se sob a etiqueta de “liberais” ou de “pluralistas” —, se evadem através das “explicações neutras” ou se refugiam no campo da sociologia pura ou formal, no qual sua liberdade não fi ca sujeita à pressões ou controles externos. Como não existe uma democracia de participação ampla em países da periferia, é muito frequente que neles a autonomia intelectual do cientista social seja muito menor ou mesmo que eles não tenham nenhuma. Quando se passa para esses países, portanto, os problemas são ainda mais graves. A economia de consumo em massa marca a rede de aspirações mais profundas das classes médias.

De outro lado, o nível de vida das cidades aprofunda ainda mais as polarizações de classe com as quais o intelectual se identifi ca, de modo consciente ou inconsciente. Por fi m, quase sempre ele fi ca preso à expectativas tortuosas, nascidas do provincianismo cultural e do obscurantismo conservador e às ambiguidades de uma condição elitista, da qual raramente o intelectual pode escapar, o que cria consequências perniciosas. O intelectual se torna, literalmente, em escravo do poder. Se ele tentar o contrário, corre o risco de sofrer pressões muito violentas e de ser eliminado da arena intelectual. Tudo isso torna o cientista social muito dócil, reduzindo a sua propensão a converter-se em porta-voz das maiorias oprimidas ou, em um plano mais abstrato, de associar a investigação sociológica à crítica da sociedade ou dos donos do poder. O controle conservador do papel e do talento do intelectual tornase, nesse contexto, bloqueador e destrutivo. Mesmo que o cientista social procure evadir-se, mediante mecanismos mais ou menos abstratos e de contemporizações sutis, ele é coagido e limitado, através de uma repressão intermitente ou constante. E essa repressão é tão forte que, se se considera o nosso grupo na universidade, tivemos de atrasar muitos projetos ou adiar muitas inovações acessíveis. Jogávamos com o futuro, na esperança que uma provável consolidação democrática garantisse os avanços que pretendíamos. No entanto, a não ser em questões de pequena monta, o contexto da instituição e da sociedade nunca melhorou e tão pouco tornou-se democrático. Os próprios intelectuais minam a “liberdade intelectual” e a “responsabilidade do cientista social”, pois na medida em que estão presos umbilicalmente aos interesses das profi ssões liberais e às posições elitistas, atuam na prática como forças, de manutenção e de fortalecimento da democracia restrita.

Quanto à questão da cooptação, ao contrário do que sucede nas nações capitalistas avançadas, as realidades não se mascaram. Os mecanismos do “da lá, toma cá” são evidentes. O intelectual — e o cientista social não conta nem poderia contar como exceção — aprende bem depressa a “lei” de sua sobrevivência e prestigiamento. Ele recebe certas compensações e logo aprende que, se deixar de obedecer às expectativas, corre o risco de perder regalias. Assim, uma das coisas importantes que se deve analisar, na presente situação com referência ao universitário brasileiro, é a tendência ao estabelecimento de níveis salariais muito altos. O que isso representa? Não se pretende apenas impedir a fuga de talentos, de estabelecer competição, de incentivar o talento etc. Parece claro que se quer comprometer o intelectual com o nível de vida das minorias poderosas e com o espírito conservador, para neutralizálo. Entre uma investigação e outra, ele vai preferir uma pesquisa que crie menos problemas; entre uma forma de fazer uma análise e outra, ele vai preferir uma análise mais mitigada e mais evasiva. Talvez até, ele acabe sendo altamente racional com relação a fi ns, como diria Max Weber. E o fi m vem a ser a preservação e a melhoria de sua própria posição na universidade, Trata-se de uma racionalização aprendida, adquirida, que faz parte de uma socialização orientada.

Todavia, a cooptação não se faz só por aí. Ela se dá através de vários canais, não só por meio da universidade. Há empregos que ainda são mais importantes que aqueles que se podem obter nas universidades. No entanto, a “carreira universitária” é um exemplo. Um professor que tenha um alto nível salarial, como sucede em algumas universidades no país, se identifi ca muito mais e com maior intensidade com o nível de vida de classe média, penetra a fundo na sociedade de consumo em massa e se condena fatalmente como intelectual. Ele fi ca uma peça da ordem, uma força cultural da ordem e não pode gravitar pelos caminhos da rebelião e da contestação, nas quais acaba tendo muito a perder. Não há pois, como compatibilizar um indivíduo que aceita tal nível de vida com os comprometimentos envolvidos e uma atividade intelectual crítica, independente e negadora. Inclusive, na melhor das hipóteses, sobra-lhe pouco tempo para a atividade intelectual propriamente dita. Ele pulveriza a vida intelectual comprimindo-a entre outras exigências, nascidas das atividades mundanas, do consumo conspícuo e dos fi ns de semana sedutores. Torna-se, enfi m, em um pobre diabo.



[1] Entrevista publicada na Revista Trans/Form/Ação, v. 2, p. 5-86, 1975.