ENTREVISTA COM ANTONIO CANDIDO DE MELLO E SOUZA[1]

ANTÔNIO CANDIDO DE MELO E SOUZA — professor-adjunto de Teoria da Literatura e Literatura Comparada do Departamento de Letras da FFLCH da USP. Durante 2 anos (1958-1959) foi professor da FFCL de Assis. Autor de: Brigada Ligeira (1945); Introdução ao Método Crítico de Silvio Romero (1945); Ficção e Confi ssão (1954); O observador literário (1954); Formação da Literatura Brasileira (1959); Tese e Antítese (1964); Presença da Literatura Brasileira (em colaboração — 1964); Parceiros do Rio Bonito (1964); Literatura e Sociedade (1965); Vários Escritos (1970) e outros. Durante todos estes anos tem publicado uma extrema quantidade de ensaios e artigos em revistas especializadas do Brasil e do exterior. Antigo redator de Folha Socialista, prestou também seus serviços ao Diário de São Paulo como crítico literário. Atualmente, como professor de pós-graduação, tem sido responsável pela orientação de inúmeras teses de mestrado e doutoramento.

 Como interpreta a sua produção teórica? Haveria um projeto comum ou uma “linha-mestra” que a percorre? Teria havido rupturas, cortes epistemológicos? Quais e em que momentos?

Eu não seria capaz de distinguir ou de defi nir a “linha teórica básica” de minha atividade, porque a considero regida por preocupações muito empíricas. Sempre tive tendência para o concreto e as situações como se apresentam. Talvez, em parte, devido a atividade precoce de crítico literário de jornal, tendo que falar semanalmente das obras que apareciam, quaisquer que fossem.

Se olhar para a minha atividade de estudioso de literatura, exercida desde o começo do decênio de 1940 e mesmo quando eu era professor de sociologia, talvez possa tentar uma formulação geral e esquemática, identifi cando três etapas principais. Para isso, será preciso simplifi car as ideias e lhes dar uma coerência maior do que tiveram e tem.

Numa primeira etapa, vista de hoje, percebe-se que eu estava preocupado, sobretudo com a busca de condicionamentos; para ser mais exato, a busca de causas. Assim, no nível da “explicação”, as obras literárias me interessavam na medida em que estavam ligadas a um determinado sistema de condicionantes do meio, e na medida em que infl uíam umas sobre as outras, sobretudo na dimensão do tempo. Como estão vendo, no fundo uma visão positivista da cultura, que era também é do marxismo reinante por aqui. No meu tempo de moço, pode-se dizer que o marxismo era extremamente positivista; e nós o aprendamos em livros de divulgação ou polêmica, como o Anti-Dühring, o resumo do Capital feito por Gabriel Deville, a História do socialismo e das lutas sociais, de Max Beer, o Tratado de materialismo histórico, de Bukarin. Resultava uma visão esquemática, aliás, corrente no tempo do stalinismo, que podia se aproximar de uma visão positivista. O livro de Bukarin, que teve grande infl uência na minha geração, era bastante mecanicista. Se somarmos a isto a formação “positivista” que tive na Faculdade (não no sentido estrito de Augusto Comte, mas no da tradição universitária francesa de cientifi cismo na Filosofi a), entende-se o porquê dessa preocupação com a causalidade e os condicionamentos. Ela aparece no meu primeiro livro, que foi a minha tese: Introdução ao método crítico de Silvio Romero (1945), onde formulei mais ou menos os meus pontos de partida teóricos.

Uma segunda fase, até certo ponto antitética, se desenvolveu por outras infl uências. De um lado, a Antropologia Social inglesa (Malinowski, Radcliffe-Brown); de outro, as ideias críticas de T.S. Eliot e o “new criticism” americano. Eu me preocupava então com o problema da funcionalidade, isto é; não apenas com a sequência temporal dos eventos ou das obras e seu encadeamento; não com o seu condicionamento — mas com a pertinência dos traços de um determinado sistema. Isto se refl ete na minha tese sociológica Os Parceiros do Rio Bonito (1954) e em Formação da Literatura Brasileira, publicado em 1959. Neste, nota-se o desejo de ver um sentido diacrônico combinado ao respeito pela visão sincrônica.

Finalmente, distingo uma terceira fase, mais recente, onde a preocupação teórica se subordina ao interesse pela estruturação. Não pela estrutura propriamente dita; mas pela estruturação, isto é, o processo por meio do qual o que era condicionante se torna elemento interno pertinente. A preocupação não é mais tanto o condicionamento quanto o próprio sistema. Não o sistema isolado, tornado em si, mas na medida em que é uma fórmula através da qual o externo se torna interno. O interesse pela funcionalidade leva ao interesse pela estrutura, num sentido diferente dos estruturalistas, pois o que se indaga é como a estrutura se estrutura. Talvez tenha havido ai alguma infl uência de Luckàcs, que li em traduções italianas no começo do decênio de 50. Mas posso dizer que não estava consciente dela quando pela primeira vez formulei em público aquela preocupação. Foi no II Congresso de Crítica e História Literária, realizado em Assis em 1961. Como não fi cou bem registrada nos Anais, publiquei uma formulação correta e mais completa no livro Literatura e Sociedade, de 1965.

Cronologicamente, eu diria que a primeira etapa corresponde ao decênio de 40; a segunda ao decênio de 50 e a terceira ao decênio de 60. A relação entre elas talvez de alguma coerência teórica as minhas ideias.

Quais as determinações da formação cultural brasileira que geraram o surgimento e o desenvolvimento do seu trajeto teórico?

Sobretudo a atmosfera reinante nos decênios de 30 e 40 no Brasil, dos quais me considero produto. Produto da Revolução de 30 e do Estado Novo. Como vocês sabem, esse foi o período condicionado pela crise de 1929. Nele o social adquiriu grande importância na consciência dos intelectuais, as ideias políticas se extremaram e houve a polarização fascismo-socialismo. No meio, fi cava uma coisa mais ou menos incaracterística, a que o intelectual fugia, indo mais para a esquerda. Eu fi quei do lado esquerdo, de modo que o meu pensamento, como o de toda a minha geração, foi condicionado pela opção política. Dai talvez a preocupação com os fatores sociais, com os condicionantes e os condicionamentos; e também com a funcionalidade e a própria estruturação. Confesso que, por toda a minha vida, mesmo nos momentos de mais agudo esteticismo, nunca fui capaz de perder a preocupação com os fatores sociais e políticos, que obcecaram a minha geração como uma espécie de memento e quase de remorso.

Naqueles decênios de 30 e 40, formou-se aqui, além do pensamento de esquerda, que atingiu setores mais restritos, um pensamento radical de classe média, que envolveu mesmo a maior parte dos socialistas e comunistas e a meu ver representou um enorme progresso. De fato, foi a primeira vez que surgiu de modo ponderável uma visão não-aristocrática do Brasil; a última visão aristocrática de peso foi a de Gilberto Freyre, apesar dos elementos que trouxe para a sua superação. Nesse período, nós vimos a expansão dos estudos sociais sobre o negro e em geral sobre as populações pobres; vimos minguar o ufanismo e a ideologia patrioteira dos livros de leitura. Isso favoreceu a formação de um pensamento radical, no qual me desenvolvi na mocidade.

Quais foram as condições institucionais que possibilitaram e tem possibilitado a realização do seu trabalho teórico?

Para mim e muitos da minha geração, foi basicamente a fundação da Faculdade de Filosofi a. Vocês sabem que a Universidade de São Paulo foi criada em 1934, reunindo escolas que já existiam e fundando uma nova, a Faculdade de Filosofi a, Ciências e Letras, ideada basicamente por Júlio de Mesquita Filho e Fernando de Azevedo. A meu ver, ela deu elementos decisivos para a formulação daquele pensamento radical que se desenvolveu em todo o Brasil.

Note-se que ela tem sido quase por instinto fi el a esse tipo de pensamento, o que leva frequentemente a esquerda a subestimar o seu papel, achando que ela devia por exemplo fazer a revolução... Ora, o seu interesse maior é justamente favorecer um pensamento radical e não assumir posição revolucionaria; e isso representou um grande progresso em relação ao que eram as Faculdades brasileiras, que na melhor hipótese formulavam ou abrigavam posições liberais tradicionais como ponto extremo, porque o grosso do pensamento era maciçamente conservador e não raro reacionário.

Entre os professores e alunos da nossa Faculdade há um pouco de tudo, é claro; mas estou pensando na sua tonalidade ideológica média enquanto instituição, que favorece o espírito de crítica e examino num sentido progressista, tornando mais difícil do que em outras escolas as manifestações coletivas de cunho reacionário e mesmo conservador. Um exemplo: em 1964, apesar da maioria dos titulares serem provavelmente simpáticos ao movimento armado ela foi a única Faculdade de São Paulo, salvo erro, que não fez manifesto de apoio. Creio que os próprios professores de direita sentem por instinto que há nela uma certa tradição que os leva nessas ocasiões a agirem como liberais, no sentido forte do tempo. Concordo que isto leva também os professores radicais a um certo absenteísmo compensador. Mas o ponto de vista crítico se mantem como tônica, refl etindo-se na produção intelectual.

Nesse sentido lembramos a obra de Florestan Femandes e sua equipe; os estudos sobre o negro a partir de Roger Bastide; alguns trabalhos históricos feitos com ânimo de revisão de valores e conceitos; o desvendamento das condições de vida por vários geógrafos; a vigilância intelectual de muitos estudiosos de fi losofi a e literatura. E não esqueçamos que desse espírito surgiram instituições como o CEBRAP. E a tudo isso que chamo genericamente de “pensamento radical”, sem fazer caso dos matizes. A partir do decênio de 1930 ele foi a primeira formulação coerente, em nível institucional, da classe média progressista, que deste modo se exprimiu, não como cuincha da oligarquia, mas como categoria autônoma. Para muitos isso parecera ridiculamente pequeno-burguês. Mas em perspectiva histórica é muito ponderável e positivo, porque signifi ca a radicalização da classe média nas instituições culturais, com todo o deslocamento para a frente que isto implica em relação as posições tradicionais.

Estas coisas foram mais ou menos vislumbradas por Lévi-Strauss em Tristes Tropicos. Ele conta que, ao chegar em São Paulo em 1934, percebeu que os professores estrangeiros tinham sido recrutados para fornecerem a sobremesa da oligarquia. Os setores esclarecidos da oligarquia paulista, já realizada e amadurecida como classe dominante, criaram uma Faculdade para ter a sua fi losofi a, os seus estudos de alto nível como enquadramento e viveiro de intelectuais a seu serviço. Mas, diz Strauss, bastava ver a composição dos alunos para perceber que isso não seria verdade: eram professores primários, gente da pequena burguesia, fi lhos de fazendeiros arruinados. Completando o pensamento, diríamos que a oligarquia suscitou um “aprendiz de feiticeiro”: criou condições para formar intelectuais que a exprimissem, mas estes desenvolveram uma atitude e um pensamento radical de pequena burguesia, que a negaram. Dai a decepção de muitos que contribuíram para a sua fundação (“esta não é a Faculdade dos meus sonhos”).

Quero ressaltar outra condição de ordem institucional que infl uiu muito na minha geração: o caráter assumido naquele tempo (digamos de 1934 a 1945) pela Filosofi a. Como ela era praticamente inexistente no Brasil em quadro universitário, em nossa Faculdade teve a princípio menos uma função específi ca, de formar especialistas em Filosofi a, do que a função genérica de criar uma atmosfera favorável ao espírito crítico e a, refl exão sobre a realidade social e cultural. A secção de Filosofi a, e um pouco a de Ciências Sociais, produziam críticos nos mais variados setores: arte, literatura, teatro, cinema. Refi ro-me a gente como Gilda de Mello e Souza, Décio de Almeida Prado, Lourival Gomes Machado, Paulo Emílio Salles Gomes, o Ruy Coelho da primeira fase, eu próprio. Notem que não somos formados em Letras ou Artes, mas em Filosofi a e Ciências Sociais.

A este respeito seria preciso citar a infl uência decisiva em todos nós do Professor Jean Maugüê, grande professor de Filosofi a que não era um fi lósofo acadêmico. Para começar, não acreditava muito nas instituições universitárias, nunca fez tese de doutoramento e acabou se aposentando na França como professor de Liceu. Discípulo de Alain era um espírito extremamente livre, que tencionava principalmente nos ensinar a refl etir sobre os fatos: as paixões, os namoros, os problemas de família, o noticiário dos jornais, os problemas sociais, a política. E para isso utilizava largamente refl exões e análises sobre literatura, pintura, cinema. As suas aulas eram extraordinárias como expressão e criação, sendo assistidas por várias turmas sucessivas de estudantes já formados, que não conseguiam se desprender do seu fascínio. Com ele fi z cursos sobre Kant, Hegel, Schopenhauer, Nietzsche, Max Scheler, Freud; de todos se desprendia uma espécie de inspiração que aguçava o senso da vida, da arte, da literatura, da historia, dos problemas sociais. Completando a deixa, o Professor Cruz Costa insistia sem parar na necessidade de aplicar a refl exão ao Brasil, mesmo que para isso fosse preciso sair da fi losofi a (ou da sociologia) estritamente concebida. Dai termos sido confi rmados na vocação de críticos.

Mais tarde o ensino da Filosofi a e da Sociologia se especifi cou, como era inevitável e conveniente; e sob este aspecto nos formamos uma espécie de ponte, guardando muito do diletantismo é da curiosidade onívora dos autodidatas. Era tão forte esta marca, e correspondia tanto ao que foi um certo grupo da minha geração, que logo que pude larguei a sociologia para fi car só com a crítica e o ensino da literatura. Esta atitude não era, aliás, contrariada por um professor que exerceu grande infl uência em mim, Roger Bastide, com quem tive cursos de Sociologia da Arte e da Literatura, sendo ele próprio excelente crítico em ambas.

As determinações institucionais têm limitado, neutralizado ou integrado os resultados da sua produção?

Em geral, tendo a ver as coisas pelo lado mais favorável. Acho que a Universidade, apesar do que tem de falha, operou uma tal transformação no nosso panorama cultural, que as determinações institucionais podem ser consideradas sobretudo como positivas.

Sabemos que há muitos aspectos negativos numa instituição que em trinta anos sofreu escleroses de vários tipos. Mas eles podem ser chamados de defeitos institucionais e não são os piores, mesmo porque muitos são inevitáveis.. E o caso da quota de mediocridade e rotina que por vezes causa tanto dano e tanta revolta, mas que infelizmente é uma espécie de tributo pago por todas as universidades do mundo, como verifi quei nalgumas muito ilustres do Estrangeiro, onde ensinei. Piores são os defeitos devidos a ações que vem de fora para dentro, como no momento em que vivemos a repressão sob todos os seus aspectos. Sobretudo porque eles tendem a se tornar “internos”, incorporando-se a instituição como algo normal. Por exemplo: é sabido que na Universidade estamos não apenas permeados de espiões e delatores em todos os níveis, mas que há notórios agentes de segurança calmamente instalados, dando palpites, fi scalizando contratos, vetando a admissão de docentes, proibindo conferencias e reuniões, como se fossem autoridades universitárias (através das quais procuram atuar). O perigo maior é que vão sendo considerados como parte do corpo universitário, porque a instituição os aceita, ou não os rejeita. E ai tem vocês um caso do que chamo de defeito de origem externa, que redunda em restrição da liberdade de pensamento.

O fato de apesar disso, e embora de maneira diminuída, continuar havendo o exercício da inteligência e do espírito crítico, a luta pelo direito de informação e comunicação, parece demonstrar que as determinações institucionais propriamente ditas, internas, não devem assustar.

Como interpreta a conjuntura teórica na atualidade brasileira?

Entendo a pergunta do seguinte modo: “como acha que a atual situação pode interferir na produção teórica?” Penso que ela pode operar duas distorções muito graves e de certo modo opostas. De um lado, impede a realização normal da personalidade dos estudantes e jovens professores, limitando a sua liberdade de opção e manifestação. De outro, como reação, desvia o pensamento demasiadamente para o pragmatismo político.

Cada época tem os seus tipos de engajamento, e a nossa requer sem duvida o ativamento da consciência política. O intelectual tem necessidade e obrigação de refl etir contra, para preservar posições. Tem de criticar uma situação da qual discorda profundamente. Por um lado isso e muito bom; mas por outro pode desviar as energias dos estudos específi cos e perturbar a visão correta; e isso nos leva a questionar o engajamento total do pensamento na política. Quero me referir a coisas como as que vimos no ano decisivo e por tantos aspectos admirável de 1968, quando alunos protestavam porque um professor, ao ensinar determinado problema estético, estava dando um curso que reputavam “alienado”; quando não se devia falar sobre Kant, mas sim sobre Debray. Isto é uma imbecilidade, que a presente conjuntura pode incrementar por contraste, porque a necessidade de oposição torna o intelectual aguerrido ideologicamente, e ele pode dai passar a intolerância e aquelas mutilações simétricas do pensamento. Em resumo, acho que uma conjuntura como a atual é ruim de dois lados: porque é repressiva e porque, sendo repressiva, hipertrofi a a reação intelectual até limites que ela não deveria atingir.

A partir dos anos 70 abrir-se-ia uma nova fase em seu pensamento?

Ressalvando sempre que não tenho um “pensamento”, creio que as minhas ideias já estão mais ou menos fechadas, no que tem de essencial. Me defi ni relativamente cedo, tenho 56 anos, e na minha terra há um ditado que diz: “Sabão não espuma na cabeça de burro velho”. Em geral, na minha idade a gente aprende mas não assimila em profundidade. Por exemplo: quando leio um livro de Semiótica moderna acho interessante e posso até me entusiasmar; mas quando for ensinar ou escrever, quase nada de decisivo entrará na minha escrita ou na minha aula. Formei-me nos decênios de 30 e 40, amadureci no de 50, fi rmei as minhas ideias no de 60. A minha preocupação atual é explorar diretrizes delineadas nesta — sobretudo o interesse pela estruturação. Mas dentro dessas limitações, pretendo publicar ainda uns dois ou três livros, e vejo com a maior curiosidade que neste decênio de 70 está-se desenvolvendo cada vez mais um movimento aliás previsível: a redefi nição dos elementos externos ao texto, por meio do conhecimento cada vez mais refi nado dos seus elementos internos.

É possível uma leitura não-ideológica do texto literário? Se o texto pode ser pensado como condensação de múltiplos sistemas, qual a relação entre o semiológico e o ideológico?

Quanto a primeira parte da pergunta, parece que a resposta é — não. A ideologia é uma deformação e todos nos lemos deformando. Por outro lado, o próprio texto vem carregado de ideologia, como condicionamento da sua produção. O importante para o teórico e o crítico é que isto não seja erigido em critério de valor, embora possa ser usado como elemento de identifi cação e análise.

Quanto a outra parte da pergunta, se o texto constitue ele próprio um sistema autônomo de sinais, e se estes estão vinculados a outros sistemas de sinais: admito uma leitura que conceba o texto apenas como sistema autônomo de sinais, não referidos a quaisquer outros. Acho fecundas essas leituras puramente formais, que tem feito progredir o estudo dos textos em nossos dias. No entanto, quando nos colocamos no piano da correlação dos signos, dos sinais do texto, com os sinais de outros sistemas, a leitura formalista se torna insatisfatória; embora por meio dela seja possível chegar a uma leitura ideológica satisfatória, que englobe a relação do sistema de sinais do texto com o sistema de sinais de outros conjuntos.

Poderia a Teoria Literária adquirir um estatuto científi co?

Em nossos dias ela se orienta neste sentido, porque está tentando descobrir a coerência rigorosa dos sistemas referidos há pouco. Embora não seja possível falar em sistema literário (do texto) da mesma maneira por que se fala em sistema linguístico. Na língua há sistema, porque os elementos se articulam segundo relações rigorosamente determinadas. Na literatura (a luz dos nossos conhecimentos atuais) só se pode falar em sistema metaforicamente. Seja como for, o certo é que a tendência geral é dar estatuto científi co a Teoria Literária, por meio de injeções de Linguística e Semiótica.

No caso, a minha visão é um pouco diferente, porque não sou teórico da literatura, mas um crítico literário que ensina Teoria. Por isso, tendo a ver esta como auxiliar da crítica; quase como uma teoria da análise.

Em que medida a leitura de uma obra literária e também uma questão de epistemologia?

A pergunta pressupõe talvez a questão de saber se a literatura é uma forma de conhecimento, o que depende das convicções de cada um. Posição curiosa é a do marxista italiano Galvano Delia Volpe, para quem ela é uma forma de conhecimento como outra qualquer. Segundo ele, a linguagem literária não é ambígua, mas, exatamente como a da ciência, tende a univocidade e a precisão, como se pode verifi car, segundo ele, pelo estudo das “variantes de autor”, que mostram. o desejo de afastar as imprecisões, os duplos sentidos, para obter um sentido preciso. Para ele, portanto, a literatura é essencialmente forma de comunicação, não de expressão. Sendo assim, poderia ser objeto de uma indagação epistemológica, como criação e também como refl exão teórica.

Esta posição pode levar a equívocos, porque sabemos desde sempre que a literatura cria e transmite uma visão do mundo, que pode ser considerada um certo tipo de conhecimento; mas não o que é tecnicamente objeto da epistemologia. Ela tem na sua natureza certas “especifi cidades” que obrigam a um tratamento também específi co.

A margem do assunto, poderíamos fazer a seguinte observação sobre a pergunta: hoje se fala sobre o estatuto epistemológico da literatura na medida em que ela está sendo estudada cada vez mais cientifi camente. No entanto, como teor de criação, ela se apresenta cada vez menos como algo que seria epistemologicamente pertinente. No tempo em que não era estudada cientifi camente, era algo epistemologicamente mais pertinente, porque transmitia clara e deliberadamente uma visão do mundo. E um paradoxo curioso, ligado ao formalismo atual.

No fundo é um falso problema, porque na medida em que a literatura é ambígua, quando temos um texto literário queremos simultaneamente nos absorver nele, como fi nalidade em si, e utiliza-lo como instrumento que comunica. Isso faz parte da sua natureza; dai não se poder concordar com Delia Volpe nem com os formalistas.

Esta questão pode levar ainda a outra: atualmente há tentativas de elaborar textos com signifi cado apenas interno, que no fundo não signifi caria, porque não visa a um referente. É como se houvesse medo do sentido e aspiração a um estado neutro ideal de (inventemos o termo) assemia. Isso é possível, evidentemente, nas artes plásticas, como vemos na pintura abstrata, geométrica ou tachista. Sendo que a abstração em Mondrian ainda dá ideia de uma arquitetura, uma disposição, enquanto o tachismo é mais radical (e menos interessante). Mas na literatura o esforço de transformar a palavra em mancha de quadro é impossível. Mesmo quando tratada como pincelada, ela é palavra, nunca objeto.

Pelo seu estatuto ambíguo, a literatura tem um aspecto ligado a certas formas de conhecimento, e outro de pura exibição da forma. Talvez o importante não seja tanto estar de um lado ou de outro, mas saber por onde começar a fi m de conhecer. Acho que é melhor sempre partir das formas, porque delas é possível chegar ao que a literatura é como conhecimento. A operação contraria pode encara-la como apenas mensagem, coisa que vocês fi lósofos costumam e podem fazer; mas não o crítico, a não ser tomando precauções que agora não cabe discutir.

Em que medida a refl exão sobre a ambiguidade da literatura é uma refl exão sobre a prática constitutiva da obra? Ou seja, sobre o que dá sentido a obra, e que aparece no nível das formas como o seu fantasma?

Na medida em que entendo a pergunta, acho-a fundamental, porque em literatura as formas “signifi cam” de modo total, isto é, constituem um objeto de contemplação; denotam um sentido; remetem a signifi cados não aparentes. De certo modo, como mostrou Hauser, a obsessão fundamental do nosso tempo desde o século XVIII é a busca das camadas ocultas de sentido, a começar pelo marxismo e passando pela psicanálise, instrumentos fundamentais e paradigmáticos sob este aspecto. A aparência, as camadas imediatas não satisfazem mais, como satisfariam a uma crítica de inspiração clássica.

Isto tem os seus perigos. Como dizia Mannhein em Ideologia e Utopia, quando se generalizou a noção freudiana de que o que aparece não tem sentido fi nal, o mundo se desnorteou, porque o sistema de valores fi cou de pernas para o ar. Em crítica, se pressuponho que importa mais o escondido, não o que diz o escrito, posso também estar entrando nessa jogada — perigosa, mas inevitável, porque é a da nossa civilização.

Talvez pensando em tais coisas, e no arbítrio que pode resultar, Susan Sontag disse que é preciso abolir a interpretação, a favor de uma descrição de reconhecimento do texto.

A interpretação se inscreve como uma determinação visível na obra?

Hoje não podemos mais ler Balzac como os contemporâneos. As leituras intermediárias recobriram o seu texto com uma série de camadas de interpretação que fazem parte dele. Misteriosamente ou não, fazem parte dele. A geração atual lê Mário de Andrade e Oswald de Andrade de maneira diversa da minha. A este respeito, aliás, Paulo Emílio diz com razão que estamos (nós, da outra geração) assistindo a formação do mito de Oswald.

Hoje Oswald de Andrade é considerado uma espécie de divisor de águas na literatura brasileira. Há dez anos considerava-se como tal Mário de Andrade. Qual dos dois contribuiu em termos concretos para a renovação da Teoria Literária?

Prefi ro substituir “Teoria Literária” por “Literatura”. E aproveito para dizer que essa pergunta pode ser ruim se implica o espírito de São Paulo x Corinthians que costuma reinar em tais questões. Começando a responder, acho que nenhum dos dois é divisor de águas. O divisor de águas foi o movimento modernista, coletivo, de que fi zeram parte e se exprime simbolicamente pela data de 1922. Eles foram protagonistas.

Se vocês estão querendo saber qual dos dois acho mais importante, direi o seguinte: depende do momento e do ponto de vista. Para quem estiver preocupado com os precursores de um discurso em rompimento com a mimese tradicional, seria Oswald. Para quem está interessado num discurso vinculado a uma visão do mundo no Brasil, seria Mário. Quem construiu mais? Mário. Qual a personalidade mais fascinante? Oswald. Qual a individualidade intelectual mais poderosa? Mário. Qual o mais agradável como pessoa? Oswald. Qual o mais scholar? Mário. Qual o mais coerente? Mário. Quem explorou mais terrenos? Mário. Quem pensou em profundidade a realidade brasileira? Mário. Oswald era um homem de intuições geniais, mas com escalas de valor muito desiguais. Em resumo, foram dois grandes homens, sendo irrelevante “optar” entre eles.

Historicamente, não se pode compreender o movimento modernista sem ambos. É possível inclusive dizer que o modernismo repousa uma dialética fundamental MárioOswald, que simbolicamente tinham o denominador comum do mesmo sobrenome. Por isso, embora muito diferentes, eles podem ser pensados como um mesmo “processo” e eu diria que, por exemplo, a Antropofagia é uma coisa em grande parte “Andradina”.

Essa dualidade Mário-Oswald é interessante e tem grande alcance cultural, porque permite a inteligência brasileira oscilar entre um e outro conforme a necessidade. No momento que estamos acabando de viver, a fi gura de Oswald foi mais importante e aglutinou as tendências gerais. Precisava-se um padroeiro para as revoluções da forma e as grandes explosões de desafogo, tipo Tropicalismo, — e ele encontrou o clima favorável para “funcionar” culturalmente, depois de morto. Se passarmos para outro momento dialético, Mário possivelmente avultara. Se se criasse aqui um Estado de tendência socialista, Oswald passaria por um eclipse, porque em Mário ressalta mais claramente a noção de serviço, de coletividade, de busca do popular. É preciso não esquecer que ele foi o único escritor brasileiro de primeira plana que procurou levar efetivamente a cultura ao povo, transformando-a em bem coletivo. Inclusive pela ação no Departamento de Cultura.

Oswald difi cilmente faria isso, porque era um tremendo individualista e no fundo aristocrata, apesar de muitos o considerarem politicamente mais radical pelo fato de ter pertencido alguns anos ao Partido Comunista. Mário, homem típico de classe-média, trabalhador e pé-de-boi ao mesmo tempo que esfuziante de rebeldia e fantasia, era muito mais pratico, enquanto ele entrava a cada instante pelo sonho. Mário prático, Oswald utópico, fazem um par admirável e culturalmente providencial.

Oswald queria criar a sociedade perfeita através de uma fi losofi a messiânica, segundo a qual as mulheres dominariam, com a substituição do pai pela mãe como instância decisiva. Esse mundo do matriarcado, seria o da não-propriedade, da não-violência. Enquanto isso, Mário traçava pianos, organizava mais modestamente a transformação social pela cultura.

O início de sua carreira foi fazendo crítica semanal. Posteriormente veio a se dedicar, sobretudo, ao ensino universitário. Pretenderia voltar àquela atividade?

Não, e nem haveria condições. Note que eu comecei simultaneamente como crítico de jornal e professor de sociologia, e só em 1958 passei para o ensino da literatura, na Faculdade de Assis.

Produzir um rodapé por semana é muito duro; e, como disse, não teria mais o mesmo sentido, porque passou o tempo do tijolo de 6 e 7 colunas onde, aliás, se estudava a obra a sério, contribuindo para formar a opinião literária. Hoje os métodos são outros.

Como vê a literatura brasileira atual?

A minha tendência é nunca recusar as experiências literárias. Mas feita a ressalva, parece que atualmente não tem aparecido grandes obras no Brasil. É verdade que se pode perguntar se ainda existe o fenômeno “grande obra”. Note que a tendência é para falar em “texto”, “produção do texto”, e descartar a fi gura do “grande escritor”, em benefi cio de uma espécie de manipulador técnico. Talvez seja isto. Mas também cabe perguntar se o excesso de experimentalismo não atrapalha. A chamada grande obra traz em si um elemento de permanência que se opõe ao movimento da experiência incessante que fi cou sendo uma espécie de motor contínuo da literatura. Mário de Andrade sempre adotou a ideia de obra transitória, feita para servir e passar, nesse tempo de mudança rápida. E Valery dizia que a era da obra-prima estava encerrada.

Voltando ao nosso caso, penso que apesar do grande interesse de muitos livros de fi cção e poesia, a nossa literatura passa por um momento de criatividade menos alta. Esta aparece frequentemente nos veteranos (Drumond, Murilo) e em obras de outros gêneros (Pedro Nava).

Diria o mesmo da literatura hispano-americana?

Não. Ela está em fase de alta produtividade, inovadora, sobretudo na fi cção.

Que sugestão faria para a utilização de textos literários num curso de fi losofi a?

Como discípulo de Maugüê, acho bom. E lembro que certos autores que transmitem uma visão mais articulada do mundo podem ser inclusive trabalhados quase como textos fi losófi cos. É o caso de Dostoievski, do nosso Machado de Assis, de Proust, de Thomas Mann.



[1] Entrevista publicada na Revista Trans/Form/Ação, v. 1, p. 9-23, 1974.