COMENTÁRIO

 

Elena Pagni[1]

 

O conteúdo deste comentário se coloca apenas como uma ampliação ou inserção de algumas questões importantes não apresentadas no artigo original, em relação a alguns conceitos-chave aos quais o artigo não se refere, mas que realmente os pressupõe: o conceito de psyché, corpo organikon, a relação entre physica e psicologia, dynamis (potência) e energheia (ato) (DA II 4-6; III 1-5).

 

O que é psique?

Paolo Rossi (2009, p. 344), filósofo e historiador da ciência, assim define hilemorfismo:

[...] a tese segundo a qual matéria prima e forma substancial são os fatores constituintes últimos de todo corpo físico[2]. A matéria é um princípio indeterminado e potencial, a forma principal, determinante e real”, argumentando, portanto, que” a doutrina hilemorfica pressupõe os conceitos de matéria e forma e se opõe diretamente às teorias atomísticas (corpo interpretável em termos de extensão e movimento).

 

Tal citação é muito importante e nos permite introduzir o tema em questão. Com efeito, Aristóteles está em busca de outras formas ou categorias filosóficas para expressar a vida (o viver) e o princípio do devir e do movimento dos corpos naturais. Tais categorias devem poder qualificar o viver como dimensão biológica e cognitiva dos entes naturais; contudo, é precisamente a palavra “qualificar” que nós queremos salientar. “Dos corpos naturais, alguns têm vida, outros não, e dizemos que a vida é a nutrição por si mesmo, o crescimento e o decaimento” (DA II 1, 412 a 11).

Vida significa manifestar disposições e capacidades/atividades que possibilitam o desenvolvimento da substância natural sensível, de acordo com o aperfeiçoamento do próprio ser. A reconceptualização da psyché, em termos de primeiro ato de um corpo que tem a vida em potência, portanto, tem a ver com a possibilidade de pensar a vida como um fenômeno que, embora preveja uma transformação do corpo, em termos materiais (causa material), na verdade e ao mesmo tempo enseja sua plena realização, segundo as funções específicas que cada espécie de alma torna possível (nutritiva e reprodutiva), sensitiva e intelectiva (EN II 4).

O “viver” alcança uma atividade ou capacitação do ser; por isso, as funções da psyché e suas respectivas atualizações devem ser entendidas como atividades no sentido de energheias e não de ações que terminam e que, nesse sentido, incluem a noção de movimento imperfeito ou kinesis (ref. definição de movimento). Exemplo: ver e ter visto é a mesma e única coisa; pensar e ter pensado é a mesma e única coisa; caminhar e ter caminhado não: o fim da ação “caminhar” é extrínseco à ação em si e é representado pela saúde.

Por isso, o filósofo pensa que qualquer concepção de princípio de vida, em termos ou espaciais (i.e., psyché platônica) ou redutíveis a elementos naturais, não seja capaz nem de explicar devidamente o viver como realização do ergon próprio nem de reunir a função biológica e cognitiva do corpo organikon (orgânico-instrumental). Com efeito, deve ser único o princípio através do qual vivemos, pensamos e percebemos.

Para explicar a relação entre psyché e corpo organikon e, também, a relação entre faculdade e funções múltiplas, Aristóteles introduz mais de uma metáfora. Pensamos, por exemplo, na metáfora da esfera e da linha tangente e na relação entre discreto e contínuo (primeiro sensor-> instante/número --> discreto/contínuo).

Nesse sentido, uma visão dimensional/geométrica (espacial) da psyché impediria a relação entre discreto e contínuo, a qual, para Aristóteles, está à base da funcionalidade da psyché como um princípio único, mas distinto em suas faculdades e funções, e, portanto, também pode operar simultaneamente.

Aliás, no primeiro livro do DA, o objetivo é destacar os aspectos problemáticos ou aporéticos que se alcançam, adotando-se uma concepção da psyché, em termos ou dualísticos – i.e. decorrentes do orfismo e da influência pitagórica, inspirada a uma visão da psyché como entidade incorpórea e imortal e princípio de conhecimento racional e, pois, da ação moral do ser humano – ou em termos materialistas – de influência homérica (que aprimora a conexão material) (SASSI, 1996) e perpetuada com Anaxímenes de Mileto, Diógenes de Apolônia, Demócrito de Abdera, Empédocles de Agrigento.

O segundo livro introduz a definição de psyché, alcançando efetivamente uma síntese entre dialética e física. Com efeito, o aspecto formal da psyché é apresentado a partir de sua enunciação, em termos de ato, primeiro de um corpo que possui a vida em potência. Aliás, no segundo livro, Aristóteles (416 b 18; 416 b 33; 417 a 9; 417 a 14; 417 b 16) aborda as faculdades nutritiva e sensitiva, segundo a doutrina do ato e potência.

O terceiro livro entra no assunto da discriminação perceptiva e simultânea de sentidos de espécies diferentes: 1) os próprios a cada sentido, 2) os denominados comuns e 3) aqueles percebidos por acidente. Aliás, aqui Aristóteles (429 a 10; 429 a 13; 430 a 10) visa a explicar o funcionamento da atividade intelectiva, introduzindo a distinção entre intelecto potencial e agente

 

Relação entre physica e psicologia

A psyché aristotélica não é um corpo material, mas é o princípio do corpo: ele não pode existir independentemente do corpo e, de fato, constitui sua primeira causa; a psyché não se opõe ao corpo, como Platão havia argumentado, mas constitui uma parte essencial dele, sendo a primeira causa de vida de um ser que possui vida apenas em potência.

No primeiro livro do DA, Aristóteles justifica a escolha de uma investigação em torno da psyché, afirmando que o seu conhecimento deve ser considerado, em relação à precisão e ao objeto tratado, um dos conhecimentos mais admiráveis. Ele questiona qual é o método mais apropriado para estabelecer sua essência e descreve os problemas que um caminho semelhante de pesquisa suscita, bem como as possíveis alternativas para o desenvolvimento de uma definição adequada da alma (Met. V 17, definição de limite). Antes de tudo, é necessário determinar a que gênero pertence a psyché e a qual das categorias identificadas corresponde (substância, qualidade, quantidade, etc.). Além disso, é necessário estabelecer se a alma está entre as coisas que estão no poder ou se é um ato, se é divisível em partes, se todas as almas são da mesma espécie e se a definição de alma é uma ou diferente para cada tipo.

Uma das questões mais importantes é, sem dúvida, a relativa ao tratamento da essência e à definição da alma; uma das críticas mais importantes que Aristóteles faz aos seus antecessores (especialmente aos pitagóricos e Platão) é que eles não foram capazes de compreender o estreito vínculo que existe entre a psiche e o corpo e de concentrar a pesquisa apenas na natureza da primeira, sem ter esclarecido sua relação com o corpo, precisamente como sendo possível, de acordo com os mitos pitagóricos, que qualquer alma se ligasse a qualquer corpo; parece que cada corpo tem sua própria espécie e forma (i.e. indivisibilidade da espécie).

Aristóteles define a alma como “forma” ou “enteléquia” (ato primeiro) de um corpo, no sentido de que constitui o princípio unitário das funções dos seres vivos e qualifica o ser de um corpo, de uma maneira ou de outra. A alma não é separada do corpo, mas constitui uma parte essencial dele, pois contém em si a razão de ser do próprio corpo; em última análise, é a forma, o princípio do movimento e o fim de cada corpo que pode ser considerado “vivo”. No início do segundo livro de De Anima, após um breve resumo dos conceitos fundamentais de “substância”, matéria e composição de matéria e forma, Aristóteles alcança a primeira formulação da definição de alma e afirma ser necessário que a alma seja substância, no sentido de que é a forma de um corpo natural que tem vida em potência.

Conforme declarado em “Física”, o termo “substância” refere-se a corpos naturais simples e compostos. Um corpo natural que tem vida é substância, porque é composto de matéria e forma; no caso da matéria, é o corpo que subjaz às determinações da forma. Como a forma determina a matéria, a alma determina o corpo; de fato, a alma é substância do corpo como forma e é a causa do ser de uma substância individual. Uma vez que tal substância é enteléquia, a alma é enteléquia do corpo.

Aristóteles distingue dois significados de enteléquia, “enteléquia é dita de duas maneiras, uma como conhecimento, a outra como seu exercício” e estabelece uma analogia entre a posse do conhecimento e a sono, por um lado, e vigília e exercício do conhecimento, por outro: como o exercício do conhecimento pressupõe a posse do conhecimento; assim, o viver pressupõe a alma em todos os momentos de sua vida, de fato, a alma preside as principais funções dos seres vivos e é a principal causa de suas existências; mesmo um ser que não desempenha ativamente suas funções possui a alma, por exemplo, durante o sono. “Portanto, é claro que a alma é enteléquia no sentido em que é o conhecimento, porque, assim como o conhecimento é primeiro em relação ao exercício, a alma representa a mesma capacidade de viver.” A partir daqui, Aristóteles (2006) elabora uma definição mais completa da alma do que a anterior e afirma ser ela a primeira enteléquia de um corpo natural que tem vida em potência.

 

Matéria e forma <----> dynamis (potência) e energheia (ato) (DA II 4-6; III 1-5)

Vamos agora dar um exemplo de como podemos reconduzir a atividade da psyché à doutrina aristotélica da causalidade, no caso específico da faculdade sensível. De fato, em relação à função (dynamis) da percepção, a constituição material dos vários sentidos desempenha um papel fundamental dentro do fenômeno perceptivo; é precisamente a composição física de um órgão que determina sua disposição ou capacidade particular de receber um sensível em vez de outro; isto é, um órgão sensorial é potencialmente capaz de perceber uma certa forma sensível, devido ao fato de possuir uma configuração específica e uma composição material. No entanto, nossa opinião é que no DA a matéria não desempenha um papel central no exercício da sensação e que essa última envolve apenas a realização de uma certa capacidade do órgão; com efeito, no ato de receber a forma sensível sem a matéria, o órgão sensorial se limita a passar de um estado potencial para o exercício atual de uma função.

Em DA II, 5 Aristóteles compara o exercício da sensação ao exercício da ciência: como no processo de aprendizagem ocorre um aumento das habilidades do sujeito, ao invés de uma mudança qualitativa ou quantitativa, mesmo no presente exercício de sensação, o sujeito que percebe se limita a atualizar suas próprias habilidades e, ao mesmo tempo, manter suas próprias disposições. Se a matéria não desempenha um papel ativo na recepção da forma sensível, e a sensação não envolve nenhuma mudança quantitativo-qualitativa nas partes que compõem o órgão sensorial, fica claro que a função da percepção, embora definida várias vezes como uma espécie de alteração, não consiste em uma alteração qualitativa, contudo, na alteração que ocorre quando há uma mudança “em direção aos estados naturais” do sujeito (DA II, 5, 417 b 3 ss).

Segundo Aristóteles, o limite que aflige as explicações anteriores relacionadas ao fenômeno da psyché consiste em delinear apenas a causa material da sensação e negligenciar seu aspecto formal e final.

A causa formal da percepção é dada por sua definição como “apreensão da forma sensível sem matéria” e por ser assimilada ao exercício da ciência; consiste na mera atualização de uma capacidade, e não na alteração qualitativa das propriedades físicas que compõem o órgão sensorial. A causa material da sensação é dada pela composição material dos órgãos sensores, que os distingue como órgãos dos sentidos capazes de perceber um certo tipo de sensibilidade e de ser “afetada” por um tipo particular de intermediário; em última análise, a capacidade de cada sentido de perceber um certo sentido é dada por sua conformação material específica; a questão do sensor determina apenas sua potencialidade para receber um objeto sensível, mas apenas a recepção da forma sensível permite a atualização da capacidade do sensor. A causa eficiente da sensação é dada pela presença do sensível e do intermediário (LUZ/COR), externo ou interno ao corpo.

Enfim, a causa final da sensação, por outro lado, coincide com o fim para o qual possuímos a faculdade sensível e os respectivos órgãos perceptivos; em geral, podemos dizer que, embora os animais possuam o sentimento de necessidade, para sua preservação, para que possam obter o que é benevolente e escapar do que é prejudicial a si mesmos, os homens possuem os sentidos para o bem e a realização da própria obra/ergon, segundo a virtude mais perfeita.

 

referências

Aristóteles, De Anima. Tradução e notas de Maria Cecília Gomes dos Reais. Editora 34: São Paulo, 2006.

Rossi, Paolo. Dizionario di Filosofia. La Nuova Italia: Firenze, 2009.

Sassi, Maria Michela. La conoscenza di sé. Aspetti e momenti di storia dell`antropologia. Trento, 1996.


 

 



[1] Departamento de Filosofia, ICH, Universidade Federal de Juiz de Fora. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5099-358X. Email: elenapagni@gmail.com.

[2] Sugerimos “biológico”.