Comentário

 

Vanja Grujić[1]

 

O mundo moderno, atual, é um delirium hegeliano.

Milovic, Comunidade da diferença

 

 

A filosofia do direito hegeliano de Axel Honneth pertence à terceira geração da Escola de Frankfurt, na qual o estudo do direito, como na segunda geração (que foi marcada pelas obras de Habermas e Maus) foi desenvolvido fora do Departamento de Direito. O artigo “Entre Honneth e Hegel: Da Liberdade à Eticidade em o Direito da liberdade” põe em foco a definição de Honneth de liberdade social decorrente da Filosofia do Direito (FD), de Hegel. Mais especificamente, o artigo fornece certas leituras integradas de Honneth e Hegel que se mesclam na ideia de eticidade imanente no mercado.

Tidre e Helfer dialogam, nesse artigo, quanto a dois tópicos: um criado pelos conceitos de Honneth e Hegel, entendidos conforme a interpretação de Honneth da FD de Hegel, e o outro no debate entre Honneth e seus críticos, visto conforme a rejeição objetiva ou a aprovação das argumentações apresentadas. O objetivo desses diálogos é situar a leitura honnethiana de Hegel como uma das leituras possíveis, em que certas seções podem ser afirmadas de acordo com o primeiro diálogo, e outras precisam ser questionadas e problematizadas, o que pode ser realizado através do segundo diálogo.

O caráter inovador desse artigo está na aplicação do método especulativo hegeliano ao debate entre Honneth e seus críticos. Em outras palavras, após a exposição de certas argumentações de Honneth, os autores iniciam um diálogo entre elas e as vozes críticas, até que finalmente voltam à argumentação, dessa vez dotados dos estímulos críticos externos. Do mesmo modo, através da objetividade e consistência nas leituras dos críticos de Honneth considerados como os mais importantes, eles alcançam um novo discernimento e crítica à leitura honnethiana de Hegel.

Porém, a primeira questão levantada neste momento é: qual seria o critério utilizado, ao decidir focar em poucos críticos (apenas dois)? Embora os autores mencionem, até certo ponto, a maior parte das críticas de importância quanto à teoria da justiça de Honneth, eles basicamente seguem concentrados nas argumentações de Ellmer e Siep. Eles travam o diálogo mais importante e contundente com Ellmer, o que faz sentido, pois o livro de Siep foi publicado antes de O direito da Liberdade de Honneth (o que nos leva a ainda outra observação: embora esse livro esteja no título do artigo, as análises apresentadas não justificam essa limitação, pelo que o título indica). Outros autores, como Kervégan, são mencionados apenas em uma nota de rodapé. Sem dúvidas, o espaço limitado de um artigo em periódico requer uma bibliografia limitada, e as escolhas tomadas devem levar isso em consideração. Porém, uma explicação dos critérios ou motivos para as escolhas dos autores forneceria uma base de argumentação mais rica ao artigo. É por essa razão que, de forma a discutir certos tópicos do artigo, utilizarei críticas feitas por outros autores a Honneth, as quais também podem ser lidas como críticas a certas conclusões expostas por Tidre e Helfer.

O primeiro tópico a ser abordado é o uso da palavra “intersubjetividade” em relação à filosofia de Hegel. Muitos autores, incluindo Honneth, interpretam a teoria do reconhecimento de Hegel como a superação, por parte dele, da subjetividade, alcançando certo tipo de “liberdade intersubjetiva” (Honneth, DL, p. 86). De forma a estabelecer a ideia de Honneth do terceiro tipo de liberdade, Tidre e Helfer voltam à definição de Hegel de liberdade, a qual, segundo a opinião dos autores, precisa ser lida por meio da diferença entre vontade livre e arbítrio, ou entre a vontade universal e a particular. Por certo, em FD, “Hegel vai mostrar que finalmente não precisamos escolher entre o jus naturalismo e o positivismo” (Milovic, 2017, p. 49). Porém, a dialética entre o universal e o particular, apesar de atraente, não pode ser observada fora do espectro da teoria da história de Hegel. A dialética interna do espírito se baseia em alcançar a autoconsciência que, antes de se reintegrar em si mesmo, liberta-se da “forma da natureza imediata” (FD, §352). Ao mesmo tempo, transcender o mundo da natureza é o caminho para a liberdade, algo que não pode ser cedido por nenhum contrato. Ele precisa ser alcançado no mundo social e humano que Hegel chama de história (MILOVIC, ZR, p. 1), e história, em Hegel, é estabelecida como a única verdade que pode ser seguida (Marx; Engels, 1956, cf. p. 106).[2]

A propriedade privada e as posses são momentos decisivos para a transição do mundo da natureza para o mundo social, e podem ser vistas como a primeira realização da liberdade. A propriedade particular é uma vontade particular de indivíduos, constituída por posses que eram de suas famílias, e não foi criada por uma nova lei positiva: foi reconhecida nela. Essa vontade particular se torna universal no Estado, através do conceito de direito abstrato, o qual, por sua vez, é abstraído do uso particular de direito de alguém, e que precisa ser reconhecido institucionalmente ou, em outras palavras, positivado. Na FD, Hegel se concentra nessas formas institucionalizadas de liberdade.

No sentido contrário, Honneth alega que todas as três esferas da vida ética, incluindo a família, produzem formas diferentes de reconhecimento mútuo ou de níveis de autorrealização individual e, portanto, negligencia a diferenciação de Hegel entre as formas abstratas e institucionalizadas de liberdade. Este é um dos tópicos principais da crítica de Karin de Boer, quanto à leitura honnethiana de Hegel. Além disso, o homem (e não a mulher) na família “possui a imóvel intuição [dessa unidade substancial] e o sentimento [ellldend] subjetivo correspondente à moralidade objetiva na família” (FD, §166). Portanto, o casamento representa um tipo de reconhecimento assimétrico, como aquele entre escravo e mestre, que não pode ser superado apenas no Estado e não na família.

Tidre e Helfer se concentram em outra instituição social, a corporação, e sua posição na filosofia do direito de Hegel, afirmando que ela pode levar à eticidade imanente no mercado. Eles atribuem essa ideia à leitura honnethiana de Hegel e dos escritos de Durkheim sobre o papel de corporações na sociedade civil, o que é bastante problemático. Como observa De Boer (2013, p. 543), em Pathologies of Individual Freedom, “Honneth propõe-se a revisar a visão de Hegel da sociedade civil ao remover sua análise de corporação da segunda esfera da vida ética” e a posicionando na esfera do Estado. Da mesma forma, Honneth acredita que Hegel “[...] teria sido ao menos poupado da vergonha de ter de acomodar, na mesma esfera, duas formas de reconhecimento completamente diferentes”, assinala Honneth (2010, p. 123). Fica claro que Honneth não compreende a importância e o potencial da corporação de transcender o abismo entre a vontade particular e a vontade universal, fato que Tidre e Helfer também atribuem à sua visão problemática da esfera do mercado que “[...] só pode ser compreendida como ética se fundamentada em “relações de solidariedade anteriores ao mercado” (Honneth, 2015, p. 362).

Além disso, muito embora Tidre e Helfer critiquem a interpretação de Honneth do reconhecimento do mercado entre empresário e clientes, eles também deixam de ver o caráter de duas faces da corporação na FD. Isso fica, como observado por De Boer, claramente articulado nos parágrafos 255 e 289, onde Hegel, ciente do impulso particular e originalmente egoísta da corporação, “destaca que o Estado deve submeter as corporações a seus adequados propósitos” (De Boer, 2013, p. 550). Para Hegel, o Estado tem de controlar os interesses particulares, de forma a proteger a vontade social, e, na modernidade, isso ocorre na relação vertical entre o Estado e a sociedade civil, que pode coexistir com seus relacionamentos horizontais. De modo semelhante, Milovic (2017, p. 67) argumenta que Hegel “não procura uma intersubjetividade econômica, mas uma intersubjetividade política”.

Concordo que a teoria hegeliana precisa ser lida como uma rejeição filosófica do mercado no capitalismo e na teoria do liberalismo social. Assim como animais, indivíduos isolados que buscam seus próprios interesses de acúmulo de capital, agindo num sentido puramente utilitário, não podem alcançar a liberdade e, principalmente, não podem formar uma sociedade onde seu livre-arbítrio particular seja simultaneamente universal. A satisfação de nossos desejos não pode estar relacionada aos objetos desejados e, portanto, nossas ações não podem ser determinadas por esses mesmos objetos. Este é exatamente o modus operandi do capitalismo tardio e de seu mercado, o qual se baseia, adicionalmente, na impossibilidade de satisfação por meio do estímulo constante de desejos que conservam as relações de mercado no nível de relações primitivas. No sentido contrário, para Hegel, “a satisfação dos desejos não está ligada ao mundo objetivo, natural, mas ao mundo social, intersubjetivo” (Milovic, 2004, p. 15). A realização de desejos, por conseguinte, sempre se situa na relação com outro indivíduo.

Porém, em vez de buscar provas da intersubjetividade em Hegel, acredito que devamos observar seu subjetivismo como coletivo e social. Isso é evidenciado por seus textos mais antigos, quando, por exemplo, ele examina atenciosamente o Cristianismo desde sua origem, de forma a projetar uma perspectiva de seu colapso. História, para Hegel, é, por um lado, o entrecruzamento e desenvolvimento de inter-relações humanas dinâmicas que resultam numa harmonia contraditória, porém única, mas que, por outro lado, procura abolir certas contradições, de sorte a alcançar a harmonia necessária.

Essa parte do “método” hegeliano é amplamente baseada em sua filosofia da tragédia e, nesse ponto, pode ser observada através da moralidade que Hegel encontrou na contradição interna dos cidadãos burgueses, entre seu lado natural e seu lado citoyen. A abolição dessa dualidade do espírito ocorre na história e representa uma condição justificada e necessária para se alcançar a universalidade dentro da mesma. Hegel encerra FD com o “direito dos heróis que fundam Estados” (PR, §350). Esse direito, como na tragédia clássica, não é definido pelo que “desaba [...] em nós de mais nobre”, mas sim no “triunfo da verdade” (Nota do §140, ponto f). Além disso, na FD, ele escreve: “O espírito é a vida ética de um povo, enquanto é a verdade imediata: o indivíduo que é um mundo. O espírito deve avançar até à consciência do que ele é imediatamente; deve suprassumir a bela vida ética, e atingir, através de uma série de figuras, o saber de si mesmo” (§441).

Em outras palavras, o mundo moderno de Hegel se baseia no sacrifício necessário da “bela vida ética”, e não na busca pelas condições para prevenção de outro sacrifício. Ele não cria um meio de abolição eterna do reconhecimento assimétrico ou para encontrar injustiça, o que fica claro na sua visão de mulheres e africanos, todavia, em vez disso, ele aponta o papel deles na dialética da história. Sua filosofia do direito não se baseia somente no relacionamento horizontal entre cidadãos, mas também no vertical. No sistema hegeliano, o homem se limita ao que se tornou pela própria determinação, e o mundo é medido por um sujeito cujo intuito é dominar o mundo contemporâneo. Não obstante, o seu idealismo objetivo é postulado na filosofia da reflexão, que é a essência da metodologia de sua dialética específica. É a essa filosofia que Tidre e Helfer se referem como o “método especulativo”, e que, de acordo com De Boer, Honneth usa instrumentalmente, de modo a alcançar a noção de liberdade social dentro da teoria de reconhecimento de Hegel. O veredito é claro: com Honneth, e contra Honneth – a ética do mercado é possível apenas por meio de sua transformação através do “processo de formação inerente a suas próprias práticas”, em vez de um acordo prévio. Porém, o julgamento principal derivado das análises cuidadosas da eticidade imanente do mercado não consegue voltar aos postulados da liberdade social nos quais se mantém a necessidade de provar a superação da metafísica hegeliana. Portanto, a pergunta sobre a atualidade hegeliana permanece.

 

Referências

De Boer, Karin ‘Beyond recognition? Critical reflections on Honneth’s reading of Hegel’s Philosophy of Right’. International Journal of Philosophical Studies, 21(4), 534-558, 2013.

Hegel, GWH. Fenomenologia do Espírito. Petrópolis: Vozes, 1992.

Hegel, GWH. Princípios da filosofia do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

Honneth, Axel. The pathologies of individual freedom: Hegel’s social thought. Princeton and Oxford: Princeton University Press, 2010.

Honneth, Axel. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2015.

MILOVIC, Miroslav. Comunidade da diferença. Rio de Janeiro: Relume Dumará; Ijuí, RS: Unijuí, 2004.

Milovic, Miroslav. Política e metafísica. São Paulo: Max Limonad, 2017.

 



[1] Pós-doutoranda na Universidade de Brasília. ORCID: 0000-0002-3480-2883. E-mail: vanjagrujic@yahoo.ca.

[2] Michael Theunissen, por exemplo, escreve sobre a intersubjetividade reprimida na filosofia de Hegel. Ele argumenta que a vida abstrata, na filosofia de Hegel, é suprimida pelo espírito absoluto que se torna o espírito objetivo, substituindo a substância ética. Ver Theunissen, ‘The repressed intersubjectivity in Hegel’s Philosophy of Right’. Em Cornell, Rosenfeld e Carlson (eds.), Hegel and legal theory, p. 12.