Comentário

 

Lilian S. Godoy Fonseca[1]

O que mais chama a atenção, durante a leitura, é a incrível atualidade do texto. De fato, embora o tema seja abordado por Habermas em diferentes escritos e seja o foco principal da obra Die postnationale Konstellation, publicada em 1998, ou seja, há vinte e dois anos atrás, é como se ele nos oferecesse uma desconcertante radiografia do Brasil de 2020.

Senão, vejamos: já na primeira parte, intitulada “Impactos da globalização econômica sobre a soberania dos Estados e democracias nacionais”, o autor expõe, de forma bastante esclarecedora, seis aspectos da soberania nacional que são frontalmente ameaçados pelo processo de globalização econômica, o qual nada mais é do que o estágio mais atual do capitalismo, consumado por sua expansão global. Conforme Habermas, os seis aspectos da soberania nacional afetados pela globalização econômica são: o cultural, o econômico-financeiro, o administrativo e jurídico, o político, o social e o trabalhista.

Cada aspecto é analisado separadamente e, mais do que uma excelente análise teórica, o que o autor nos apresenta é a assombrosa precisão com a qual Habermas foi capaz de antever as mais nefastas consequências para os Estados nacionais, submetidos à irrefreável globalização econômica.

Se, à época da escrita, a realidade ali retratada se mostrava ainda distante do contexto brasileiro, pouco mais de duas décadas depois, percebemos a fiel descrição da lamentável situação atual de nosso país. A começar pela soberania cultural, atônitos, assistimos a um ataque feroz à cultura popular, ao ponto de se decretar a extinção do Ministério da Cultura e de um representante do governo alçado a “Secretário Especial da Cultura” citar Goebbels, a fim de lançar um plano de “renascimento da arte e da cultura nacionais”, inspirado em elementos de teor visivelmente fascistas.

O segundo aspecto, referente à soberania econômica/financeira, praticamente dispensa explicações, pois os números pífios da economia brasileira, recentemente divulgados, demonstram o completo enfraquecimento da atividade econômica nacional, a despeito de todas as “reformas” levadas a cabo, sob o pretexto de que seriam imprescindíveis para fazer a economia crescer. A discrepância entre a retórica e a realidade é tão evidente que apenas confirma a acertada análise de Habermas.

Quanto ao terceiro aspecto, relativo à soberania administrativa e jurídica, é preciso fazer duas considerações em separado. Com efeito, foi justamente a cooptação do sistema jurídico que nos colocou na medonha situação em que estamos, enquanto a condição administrativa corresponde à próxima cartada do governo, para promover o maior e mais criminoso desmonte do Estado brasileiro, comprometendo não apenas sua efetividade, mas a própria funcionalidade administrativa e ameaçando ainda mais a já combalida segurança jurídica, em nosso país.

No tocante ao quarto aspecto, a soberania política, nem é preciso destacar o quanto a nossa democracia se encontra ameaçada. Com o apoio de fortes grupos econômicos, em 2016, a vontade popular foi desrespeitada, sendo uma presidente eleita democraticamente injusta e criminosamente destituída, e hoje vivemos a ameaça concreta de um golpe autocrático, apoiado por forças conservadoras de matizes os mais contraditórios, como o religioso e o miliciano-militar.

Em relação ao quinto aspecto, o da soberania social, também é mais do que evidente como ela foi impactada no Brasil. Basta lembrar que, com a aprovação da Emenda Constitucional do Teto dos Gastos Públicos, o texto da Constituição de 1988 foi alterado, de sorte a permitir que se congelasse por 20 anos o gasto dos Três Poderes. Isso impõe o fim do compromisso do Estado com as políticas públicas e justifica as privatizações e o desmonte do Estado social, em curso acelerado no atual governo.

Por fim, cabe mencionar o aspecto da soberania trabalhista. De fato, no Brasil, desde 2017, quando foi aprovada a chamada “reforma trabalhista”, com a promessa de acabar com o desemprego, o que se vê é a retirada de todos os direitos do trabalhador até então assegurados pela CLT e a crescente precarização das condições de trabalho. Tal situação só piorou, com a extinção do Ministério do Trabalho, uma das primeiras medidas do atual governo, estimulando, cada vez mais, a “uberização” do mercado de trabalho – fenômeno global que torna invisível a desigual relação empregador-empregado e deixa o trabalhador completamente desamparado, frente à ferocidade da exploração a que é submetido, sob a máscara ilusória do “empreendedorismo”.

Com base em todos esses elementos, na segunda parte do texto, o autor focaliza as seguintes reflexões habermasianas que lhe dão título: “Como reequilibrar política e mercado? É possível reenquadrar politicamente os mercados? Desafios da democracia na constelação pós-nacional.”

De fato, Habermas não se limita a levantar os problemas, mas se propõe indicar alguns caminhos. Assim, para responder à primeira questão apontada acima, ele sugere uma “crítica ao modelo neoliberal de sociedade de mercado desestatizada”. Em seguida, para responder à segunda questão, ele enumera “ao menos quatro respostas políticas que se apresentam diante dos desafios da globalização”, a saber:

1. – A dos Neoliberais, que, por serem favoráveis à globalização, “recomendam a subordinação do Estado [...] restando-lhe a tarefa de Estado empreendedor, preparando a infraestrutura e preparando os cidadãos para o trabalho empresarial [e, por consequência,] defendem a diminuição do Estado social”.

2. - A dos Protecionistas, que, por serem totalmente contra a globalização e todos seus efeitos, “defendem a necessidade de fechar as comportas contra tudo que possa transcender as fronteiras nacionais”.

3. - A denominada Defensiva, a qual representa uma espécie de “terceira via em sua variante defensiva”, e como considera que “a subordinação da política aos mercados se tornou inevitável [...] aposta na força [...] de uma política [em] que, [...] em vez de reativo, o Estado deve assumir um papel ativo e desenvolver uma política social que capacite seus cidadãos para a concorrência [...]. Trata-se de um deslocamento do ônus da responsabilidade e dos riscos do Estado para o cidadão; colocando o risco em suas costas, [assim,] o indivíduo não precisa recorrer ao amparo social do Estado.”

4. - E a denominada Ofensiva, que representa uma espécie de “terceira via em sua variante ofensiva [e] orienta-se, não pela lógica do mercado, mas sim pela prioridade da política, criando condições políticas para além do Estado nacional. A política, vinculada a um processo democrático de legitimação apoiada no princípio do discurso, poderia opor-se aos mercados globalizados. [...] Para Habermas, esta via seria mais convincente porque não sacrificaria as vítimas da globalização nem interromperia a corrente de legitimação democrática que se iniciou no âmbito dos Estados nacionais.”

 

Por fim, quanto ao terceiro ponto, referente aos “desafios da democracia na constelação pós-nacional”, o autor nos mostra que Habermas identifica um “Desafio histórico análogo: [como] impulso abstrato para uma cultura política pós-nacional.”

Sem dúvida, frente aos novos desafios colocados pela globalização econômica, Habermas defende a criação de “novas formas de auto condução democrática”, no contexto do que ele denomina “constelação pós-nacional.” Logo, uma vez que o mercado não respeita a regulação dos Estados nacionais e atua predominantemente no âmbito transnacional, a única maneira de “reequilibrar mercado e política” seria ampliar as formas de condução política nacionais também para a esfera transnacional. Ou seja, somente a expansão “da democracia estatal-social para além das fronteiras nacionais (democracia pós-nacional) seria capaz de resolver o desequilíbrio entre política e mercado”. Assim, mesmo sendo “cada vez mais difícil a política acompanhar a concorrência dos mercados globalizados, torna-se necessária [...] uma política social e econômica direcionada para o futuro de uma ordem cosmopolita socialmente mais equilibrada. [...] Nesse sentido, Habermas ainda procura tratar o tema de forma menos derrotista, não do ponto de vista da ‘supressão’ (Abschaffung), superação, extinção do Estado nacional, mas antes da sua ‘suprassunção’ (Aufhebung), suspensão, atuação diminuída.

Essa seria, por exemplo, a solução identificada à criação da Comunidade Europeia e que o autor considera ter também seus problemas. De qualquer modo, é um caminho apontado no sentido de fazer frente ao poder crescente do mercado global.

Para finalizar nosso comentário, cujo objetivo foi apontar a atualidade da análise habermasiana, tão notavelmente destacada pelo texto aqui apreciado, seria pertinente ressaltar uma vez mais a não casual coincidência entre a descrição proposta por Habermas, em sua obra de 1998, e o Brasil contemporâneo.

Com efeito, inúmeras vezes ouvimos a nauseante afirmação de que, com as reformas postas em marcha, desde a deposição da única presidente brasileira, “o governo tem feito o seu dever de casa”. Essa expressão, tão propalada pela mídia conivente com a situação atual, provoca, ao menos, uma justa questão: quem teria proposto esse tal “dever de casa”, que o governo presente e o anterior tanto se empenham em cumprir? Após a leitura do texto, que tão bem abordou a análise de Habermas, a resposta fica evidente: o “mestre” mercado, cujo objetivo principal, para consolidar a sua expansão global é aniquilar, de uma vez por todas, todos os Estados nacionais, afetando mortalmente aquilo que eles têm de mais precioso: a sua Soberania, em todas as formas (supracitadas) em que ela se manifesta. Só esse oportuno esclarecimento já faz valer enormemente a leitura desse relevante texto.


 

 



[1] Professor Adjunto II da Faculdade Interdisciplinar de Humanidades da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9481-3376. E-mail: godoylilian2@gmail.com.