coMentÁrio: Walter Benjamin, Surrealismo e Zen
Sônia Campaner Miguel Ferrari[1]
Como Francisco Pinheiro Machado enfatiza, em seu artigo, o movimento surrealista se colocou num ataque frontal contra a lógica cartesiana, a moralidade burguesa e o racionalismo. Para isso, adotou determinados procedimentos, a fim de conseguir desvencilhar-se das formas de pensamento da cultura ocidental. Os ensinamentos de Freud, assim como as teorias de Einstein, ajudaram o movimento a esquivar-se das ideias de causalidade e de onipotência da consciência. Assim, os surrealistas colocaram em seu lugar, conforme consta no Manifesto de Breton, os sonhos, a loucura, a imaginação e a intuição, como caminhos para acessar os aspectos mais recônditos e sombrios da mente humana.
Da mesma forma, Benjamin buscava, com as noções como pensamento por imagem, imagens dialéticas, espaço da imagem, acessar esferas para além da consciência fornecida pela razão iluminista, não só para dissipar os aspectos sombrios da própria razão, porém também para encontrar, nesses recônditos desconhecidos, outras possibilidades de superação do mundo humano tal como ele se encontrava organizado, naquele período.
Sonho, automatismo da escrita, imaginação, o acaso das relações, são todos procedimentos através dos quais o surrealismo pretendia negar a realidade, em favor de uma surrealidade: para eles, é nessa outra esfera que se encontram outras possibilidades. Tais imagens deveriam colocar em questão o “discurso lógico-linear privilegiado pela tradição do pensamento ocidental”. Assim, “o conhecimento buscado pelos surrealistas [...] implicaria também uma superação das dicotomias, sobretudo uma reconciliação do homem consigo mesmo e com o mundo”.
Os procedimentos estabelecidos pelos surrealistas e os elementos de que se utilizaram, com o intuito de alcançar essa esfera acima das dicotomias, são aqueles que apontam para fora da esfera da tradição racionalista do pensamento ocidental. Da mesma forma, nos procedimentos de produção artística, como as colagens, o intento era o de fazer chocar realidades completamente separadas, de modo a que o seu contato produzisse figuras abstratas com tal intensidade capaz de fazer com que nos desorientássemos em nossas referências.
De certa maneira, o surrealismo – e principalmente Breton – procurou, nas regiões do subconsciente, novas imagens do mundo que não estivessem carregadas com os pré-conceitos da racionalidade ocidental. Não era, portanto, uma busca no mundo externo, mas na interioridade humana. E essa busca incluía a dissolução do eu.
Benjamin estava ainda em busca de uma outra lógica, de uma outra forma de acesso que permitisse conhecer a realidade para além dos conceitos tradicionais. Já na introdução de crítica do conhecimento de seu livro sobre o drama barroco (terminado em 1925), esses conceitos são questionados, e Rua de mão única, escrito entre 1924 e 1926, traz inúmeros protocolos e reflexões de sonhos e reflexões. Benjamin destacou, numa carta a Scholem, que esse texto é uma coleção de aforismos, e Adorno, em seu comentário, declarou firmemente que Rua de mão única é uma coleção de imagens-pensamento (Denkbilder) (RAULET, 2006, 363). Portanto, simultaneamente à elaboração, por Breton, do Manifesto do Surrealismo, questões semelhantes ocupavam Benjamin, e a escrita de Rua de mão única atesta o interesse de Benjamin pelo movimento, tendo utilizado técnicas de escrita surrealista, nessa obra. O texto que Benjamin escreve sobre o Surrealismo, em 1929, é uma avaliação do movimento desde o seu surgimento até o ano de 1929, quando Benjamin procura integrar uma nova forma de pensamento às suas reflexões sobre a história.
Como afirma o artigo, essa avaliação apresenta o surrealismo com suas potencialidades e também seus limites. Uma das preocupações de Benjamin, naquele momento, era o pensamento acerca da revolução. Como pensar a revolução, fora dos parâmetros do racionalismo e de um materialismo que estava impregnado pelo racionalismo científico? Como não amarrar a revolução a expectativas que não abriam possibilidades para outras formas de organizar o mundo, para além dos interesses mercantis e do exercício do poder, em detrimento dos que não tinham voz?
O surrealismo trazia algumas respostas que conduziam para além das posições impregnadas do moralismo burguês e das concepções equivocadas da intelligentsia de esquerda europeia. As expressões mais fortes, porém, também um tanto enigmáticas dos últimos parágrafos do ensaio indicam que essa tarefa é cumprida pela imagem. Conforme cita Francisco Machado: “Organizar o pessimismo significa simplesmente extirpar a metáfora moral da esfera da política, e descobrir no espaço da ação política o espaço completo da imagem (Bildraum)”. É necessário, no entanto, acrescentar a frase que vem em seguida: “Mas esse espaço da imagem não pode de modo álbum ser medido de forma contemplativa” (BENJAMIN, 2012b, p. 34). A referência, no parágrafo seguinte, ao modo como se dá a interpenetração entre corpo e espaço da imagem traz a indicação de como a realidade se supera: quando as tensões revolucionárias se transformam em “inervações do corpo coletivo e todas as inervações do corpo coletivo” se transformam em tensões revolucionárias. A realidade se supera, quando o que é percebido e experimentado pelo coletivo o leva a agir e transformar a realidade, de acordo com a percepção de sua perplexidade diante do mundo.
A referência ao Zen cabe aqui. Devo essa indicação ao livro Surrealismo y Budismo Zen, de Juan W. Bahk. É possível identificar, no Budismo Zen, características que o Surrealismo e Benjamin pretendiam obter, por meio dos procedimentos por eles utilizados: ultrapassar a lógica racionalista, buscar superar as dicotomias inerentes a essa forma de pensar – lógica e natureza, pensamento e ação, eu e mundo externo.
Porém, o procedimento do Zen é mais radical do que a negação da lógica ou dos conceitos tradicionais. É simplesmente outra forma de pensar que opera em outra frequência. Conforme Bahk (1997, p. 11-12), o Zen não examina logicamente o universo e a vida, não é analítico, mas integrador, não separa pensamento e ação, eu e mundo externo; não há, no Zen, contradição entre fatos e ação, a contradição está na lógica. O Zen não confunde as leis criadas pela mente humana com as leis das próprias coisas, e nem confere poder à linguagem e ao pensamento. Tudo isso não significa nos afastar do mundo e nos colocar como espectadores, todavia incentiva uma vida baseada na experiência e na percepção, trabalha com a mutabilidade do mundo e das coisas, aceita essa mutabilidade e procura transcendê-la.
Embora os surrealistas tivessem a intenção de chegar ao mundo maravilhoso da liberdade e da anulação dos limites do pensamento pelos ditames da sociedade, sua estratégia foi a de substituir alguns conceitos por outros, assim como o fez Benjamin. O processo de meditação visa a libertar a mente desses limites pelo abandono do mundo racional. A desconfiança da linguagem racional é indispensável, pois ela nos separa do mundo. A unidade buscada pelos surrealistas e pelo Zen, a dissolução do eu buscada pelos surrealistas e por Benjamin só pode ser alcançada num mundo no qual o “eu” não existe separado da própria experiência.
O sonho e o automatismo do pensamento são procedimentos pelos quais o surrealismo procura acessar a surrealidade. Benjamin introduz conceitos, como imagens de pensamento e imagens dialéticas, a superação do sonho pelos despertar[2] e, com eles, almeja acessar o lugar original do eu.
Esse lugar é aquele em que se pode, segundo o Zen, acessar a totalidade, desde que sejam removidos os obstáculos que dificultam a chegada a esse ponto, e um deles é a ideia de uma mente pensante e a própria linguagem.
Artistas de vanguarda acreditavam que a liberdade se estabeleceria pela negação da moral e dos valores tradicionais. Essa negação se efetivava pela expansão da imaginação, do subconsciente e da dimensão do sonho. Porém, se a realidade é já sonho para o Zen, “o sonho é sonho dentro do sonho” (Bahk, 1997, p. 70).
Com o conceito de despertar, Benjamin pretende ultrapassar a dimensão do sonho do surrealismo. Ao despertar corresponde, segundo Benjamin, um estado de consciência capaz de perceber as estratégias que obstaculizam alcançar esse lugar onde o “eu” deixa de existir.
As estratégias surrealistas – conceitos, como o automatismo psíquico, a dialética de Hegel, o mundo onírico – obstaculizam a busca por aquilo que o movimento chama de surrealidade. Os conceitos benjaminianos, embora apontem para uma condição de superação do sonho, mantêm-se ainda na esfera da tradição linguística da filosofia ocidental.
REFERÊNCIAS
BAHK, Juan W. Surrealismo y budismo Zen. Convergencias y divergencias. Madrid: Verbum, 1997.
BENJAMIN, Walter. Rua de mão única. (Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa). São Paulo: Brasiliense, 4ª ed., 1994.
BENJAMIN, Walter. Surrealismo: o último instantâneo da inteligência europeia. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. (Trad. Paulo Sérgio Rouanet). 8ª ed. Revista. São Paulo: Brasiliense, p. 37-50, 2012b. (Obras escolhidas, vol. 1).
BENJAMIN, Walter. Gesammelte Schriften, vol. I-VII. (Editado por Rolf Tiedemann e Hermann Schweppenhäuser). Frankfurt a. M.: Suhrkamp, 1991.
BENJAMIN, Walter, Origem do Drama Barroco Alemão. (Trad. Sergio Paulo Rouanet). São Paulo: Brasiliense, 1984.
BRETON, André. Manifestos do surrealismo. (Trad. Sérgio Pachá) Rio de Janeiro: Nau, 2001.
RAULET, Gérard. Einbahnstrasse. In: LINDNER, Burkhardt (Org.). Benjamin Handbuch: Leben-Werk-Wirkung. Stuttgart/Weimar: Metzler, 2006, p. 359-373.
[1] Professora do departamento de Ciências da Linguagem e Filosofia da PUCSP. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4862-0183. Email: soniacamp@pucsp.br
[2] Não podemos esquecer a reflexão de Benjamin sobre a linguagem, na qual indica uma linguagem original que permitia um acesso mais imediato às coisas.