O MODELO LIBERAL E REPUBLICANO DE LIBERDADE: UMA ESCOLHA DISJUNTIVA?
Cesar Augusto Ramos[1]
RESUMO: Este artigo tem por objetivo apresentar duas maneiras de compreender a liberdade: a liberdade negativa do liberalismo, definida como a esfera do livre agir do indivíduo pela ausência de impedimentos externos, e que se norteia pelo paradigma jurídico dos direitos individuais; e a liberdade política do republicanismo, que se define como não-dominação e se orienta pelo paradigma das virtudes cívicas da cidadania. Um outro propósito consiste em mostrar que a oposição entre o ponto de vista jurídico-liberal e o republicanismo não está na aceitação ou na recusa da liberdade e dos direitos individuais. A divergência repousa, antes, sobre a maneira pela qual essa liberdade e direitos podem ser fundamentados: se pela via do individualismo e subjetivismo, que subordina a sociedade e o direito como instrumentos para a realização e proteção dos direitos individuais, ou pela via comunitarista e cívica. Desse modo, o conceito republicanismo de liberdade, sem abandonar a conquista liberal do pluralismo e da liberdade negativa, pode contribuir para uma efetiva ampliação e garantia dos princípios democráticos de uma sociedade moderna.
PALAVRAS-CHAVE: Liberdade. Liberalismo. Republicanismo.
Introdução
A partir da modernidade, a associação política dos homens assume a forma de uma societas ou civitas: uma organização de fundo patrimonial, criada pelo contrato e juridicamente regulamentada. A política deixa de constituir a unidade ética do espaço público da antiga koinonia politike, e sofre uma inflexão que modifica o sentido da vida social dos indivíduos. Ela passa a ter por referência a sociabilidade privada de pessoas preocupadas em organizar a sociedade civil segundo regras adequadas à proteção e à promoção dos interesses individuais vinculados a direitos. Dessa organização decorre o governo, no qual prerrogativas jurídicas são postuladas com base na realidade primária dos direitos subjetivos, notadamente a liberdade individual.
A antiga primazia dos deveres à comunidade se desloca para os direitos naturais dos indivíduos – com destaque para a liberdade – em oposição à tradição que afirmava que o homem só atinge sua perfeição no seio da comunidade política. Tributária do individualismo dos novos tempos, a liberdade informa e se constitui, de maneira cada vez mais abrangente e decisiva, o objeto da filosofia política desse período, sobretudo, para o liberalismo.
O modelo liberal da política[2] transfere para o direito (lei) a normatividade das ações humanas. Sem recorrer a qualquer concepção de bem moral, o regramento jurídico da vida e das relações sociais determina os limites da liberdade individual, protege os direitos, especialmente as liberdades individuais, e define o alcance do poder político. Uma vez que o ponto de partida é a liberdade individual, a finalidade da vida não é mais a fruição política da cidadania na dimensão pública, mas a autonomia dos sujeitos na esfera privada da sociedade civil. O inevitável processo de “despolitização” da sociedade e dos conflitos sociais é decorrência da ênfase da política atrelada à garantia da pessoa com privilégios e imunidades. Contudo, a filosofia política não se esgota na forma de pensar a política segundo o paradigma jurídico do liberalismo. O resgate da tradição do republicanismo, e com ela a adoção de outra concepção da liberdade, significou a possibilidade de compreendê-la como fenômeno político diante da insatisfação e insuficiências do modelo hegemônico jurídico-liberal da liberdade negativa.
Este artigo tem por objetivo apresentar essas duas maneiras de compreender a liberdade: a liberdade negativa do liberalismo – definida como a esfera do livre agir do indivíduo pela ausência de impedimentos externos indevidos, e norteada pelo paradigma jurídico dos direitos individuais, que instrumentaliza a cidadania para a defesa desses direitos – e a liberdade política do republicanismo, que se define como não-dominação e se orienta pelo modelo das virtudes cívicas da cidadania com valor substancial.
Pretende-se, ainda, mostrar que a oposição entre o ponto de vista jurídico-liberal e o republicanismo não está na aceitação ou na recusa da liberdade subjetiva e dos direitos individuais. A divergência repousa, antes, sobre a maneira pela qual essa liberdade e direitos podem ser fundamentados, manifestando, assim, a sua finalidade: se pela via autorreferencial de princípios da justiça que subordinam a política como instrumento para a realização e proteção dos direitos individuais; ou pela via das referências intersubjetivas que associam os direitos a relações de mútuo reconhecimento e aos deveres da cidadania, com vistas à proteção do bem comum da comunidade, e cujo escopo maior é a liberdade como não-dominação. Desse modo, a defesa dessa forma de liberdade, propugnada pelo republicanismo – e sem abandonar a conquista liberal do pluralismo e da liberdade negativa – pode contribuir para uma efetiva ampliação e garantia dos princípios da liberdade e da igualdade.
Assim, sustentamos a tese – próxima do chamado republicanismo neorromano – de que a concepção de liberdade como não-dominação pode garantir a efetiva autonomia dos sujeitos, assegurando o direito subjetivo da liberdade. Mas isso só é possível porque essa concepção envolve determinados pressupostos ou condições, os quais, devidamente articulados, efetivam o caráter subjetivo da liberdade, superando as suas limitações que decorrem do “juridicismo” liberal. Tais pressupostos são três e podem ser formulados nas seguintes proposições: A) A primeira afirma que a vida do homem se realiza e se desenvolve na dimensão social do viver político do ser humano, e que a liberdade, nessas condições, só se constitui e se afirma por intermédio de relações de mútuo reconhecimento. Esta é a face intersubjetiva da liberdade como não-dominação. B) A segunda, de ordem objetiva, diz respeito à proposição de que a comunidade política necessita ser constituída pelo autogoverno dos cidadãos, pela mediação do império da lei, criando condições objetivas políticas e éticas adequadas para a ausência de ingerências indevidas, e que são garantidas pelo direito. C) A terceira, de fundo subjetivo, concerne à vigilância do cidadão mediante a atuação política da cidadania como atribuição de virtudes cívicas, a qual pretende viabilizar e sustentar o ideal de liberdade como não-dominação e, inclusive, assegurar com eficácia o próprio elemento liberal da liberdade negativa como ausência de impedimentos.
I. A concepção liberal de liberdade (negativa)
A filosofia política do liberalismo, lídima expressão dos novos tempos, retoma algumas teses do Direito Natural Moderno, particularmente a questão da liberdade individual. Desde o início, com J. Locke, o liberalismo clássico procurou avaliar e julgar a legitimidade e a extensão do poder da sociedade política, vinculando a sua finalidade à questão do alcance da ação livre dos homens diante desse poder, e que pode assim ser formulada: até onde somos governados?
A discussão liberal contemporânea sobre a liberdade, tributária do liberalismo clássico,[3] avança no sentido de precisar o âmbito e a extensão da liberdade individual, bem como as possibilidades do seu constrangimento mediante a lei. No século XX, essa discussão foi equacionada, de modo exemplar, pelas análises de I. Berlin, no ensaio Dois Conceitos de Liberdade. Segundo esse autor, a liberdade pode ser compreendida tanto no sentido negativo como positivo.
No primeiro sentido, ela é definida como ausência de impedimentos. Ser livre significa não sofrer a interferência de outrem e fazer tudo aquilo que as leis permitem. A liberdade negativa pressupõe um espaço de não ingerência, da ausência de impedimentos ou obstáculos, para o livre exercício de ações que deliberadamente desejamos realizar. Os indivíduos serão livres, se eles forem sujeitos das suas escolhas e decisões, definidas num campo não arbitrário de interferência. Por essa razão, a liberdade passa a ser chamada de negativa, isto é, ela existe na ausência de ações que podem criar impedimentos arbitrários e indevidos à livre atividade dos sujeitos. A relação entre a lei e a liberdade é externa, pois a primeira não promove a última, apenas constitui um instrumento de proteção da liberdade como direito fundamental.
Quanto à compreensão da liberdade negativa como ausência de impedimento, Berlin segue a intuição hobbesiana:[4]
De um modo geral, diz-se que sou livre na medida em que nenhum indivíduo ou conjunto de indivíduos interfere com a minha atividade. A liberdade política, neste sentido, é muito simplesmente a área dentro da qual um homem pode agir sem ser impedido por outros. Se eu for impedido por outros de fazer o que poderia fazer se assim não fosse, nessa medida eu não sou livre; e se essa área for restringida por outros homens para lá de um determinado mínimo, poder-se-á dizer que sou coagido ou, até, oprimido. (BERLIN, 1998, p. 246).
Segue-se que a liberdade deve, basicamente, ser contrastada à coerção indevida de terceiros, à interferência deliberada e ilegítima de alguém, num campo de ação no qual desejo agir sem ser impelido por outros: “[...] ser livre significa para mim não haver a intromissão de outrem. Quanto mais vasta a área de não-interferência tanto mais ampla será a minha liberdade.” (BERLIN, 1998, p. 247). Esta acepção de liberdade visa responder à pergunta: “[...] qual a área dentro da qual ao sujeito – um indivíduo ou um grupo de indivíduos – é ou deve ser permitido fazer ou ser o que é capaz de fazer ou ser, sem a interferência de outras pessoas?” (BERLIN, 1998, p. 246).
No sentido positivo, a liberdade é compreendida como a capacidade de autodeterminação do indivíduo, por meio da autonomia da vontade. De inspiração rousseauista, esse conceito de liberdade opera com a ideia de autonomia da vontade. Ela é positiva, porque indica a presença de uma faculdade de volição que decide (a vontade autônoma), mediante a qual o indivíduo age e escolhe sempre de acordo com as preferências racionais sobre como ele deve, livremente, viver. Nesse sentido, a liberdade significa o desejo de o indivíduo ser senhor de si próprio e da sua atividade:
A sua vida e as suas decisões dependam de si próprio e não de qualquer tipo de forças exteriores. Quer ser o instrumento dos seus próprios atos de vontade e não dos de outros homens. Quer ser um sujeito, não um objeto [...] Quer ser alguém e não ninguém; um agente – que decide, e não deixa que decidam por ele, autônomo e não determinado pela natureza exterior ou por outros homens como se tratasse de um objeto, de um animal ou de um escravo incapaz de representar um papel humano, isto é, de conceber metas e práticas próprias e de as concretizar. (BERLIN, 1998, p. 255-256).
A liberdade positiva visa a responder à questão: “[...] o que ou quem constitui a origem do controle ou da interferência capaz de determinar que alguém faça isto em vez daquilo?” (BERLIN, 1998, p. 246). Ou então: quem é o senhor das nossas decisões, quem deseja ser o nosso mestre? Trata-se, portanto, da origem incondicionada da ação de um sujeito que nasce da autonomia da vontade, sendo irrelevante o alcance ou as circunstâncias externas à ação livre. Eu sou livre, quando controlo a minha vida, sou senhor da minha própria vontade, sujeito das minhas escolhas e do modo de vida que quero levar, não sou instrumento ou não estou submetido à vontade de outrem, permitindo, assim, o autogoverno pessoal, na esfera privada, e coletivo, na esfera pública.
O problema dessa concepção positiva de liberdade consiste, segundo Berlin, na distinção de dois “eus”, com os quais tal concepção opera: um dominante e racional, que se identifica com a natureza superior do sujeito com o ideal superior de autonomia. “Este eu dominante é identificado de diversas maneiras: com a razão, com uma ‘natureza superior’, com um eu calculador e que visa aquilo que o satisfará, a longo prazo, com um eu ‘real’, ‘ideal’ ou autônomo, ou com um eu ‘supremo’.” (BERLIN, 1998, p. 256). O outro eu é inferior, movido por desejos irracionais, que buscam o prazer imediato: “[...] o eu ‘empírico’ ou ‘heterônomo’, varrido pelas rajadas de desejos e de paixões, que necessita ser rigidamente disciplinado se quiser ascender aos cumes da sua natureza ‘real’.” (BERLIN, 1998, p. 256). Ora, como o indivíduo é impotente para buscar o seu bem na realização do seu eu superior, entidades mais elevadas (a Igreja, o Estado, o partido, a razão) surgem de forma vicária como o eu verdadeiro e autêntico, e se impõem como vontade coletiva suprema, à qual o indivíduo deve se identificar.
Segundo Berlin, a liberdade positiva é retrógrada e potencialmente despótica, porque supõe uma noção potencialmente disciplinadora de uma vontade não adequada à concepção do bem comum, definido por um “eu” superior e transcendente, ao qual os indivíduos devem submeter-se por meio de mecanismos de integração das vontades particulares.
A concepção “positiva” de liberdade enquanto autodomínio, com a sua sugestão de um indivíduo dividido contra ele próprio, temse prestado de fato, por razões de história, de doutrina e de prática, a uma mais fácil cisão da personalidade em duas: o controlador dominante e transcendente e o feixe de desejos e de paixões empíricas, que tem de ser disciplinado e submetido. (BERLIN, 1998, p. 258).
Na análise de Berlin, os dois conceitos de liberdade envolvem concepções distintas sobre os fins e o sentido da vida, com evidentes consequências políticas. Sem negar o valor da liberdade positiva, a concepção negativa impõe-se de forma incontornável, uma vez que ela pressupõe o pluralismo ético, amparando a diversidade de concepções sobre a ideia de melhor vida e diferentes estilos de comportamento que os indivíduos podem, livremente, escolher. Numa sociedade aberta e democrática, na qual vários modos de vida competem, a concepção negativa de liberdade é fundamental. Pela ausência de coerções indevidas, o homem permanece livre do controle na esfera social e livre das imposições que a sociedade, mesmo que majoritariamente, julga ser o bem a ser seguido pelos indivíduos.[5]
Contudo, essas posições não são definitivas, na teoria liberal da liberdade negativa, pois sofreram alterações. Gerald MacCallum Junior, no seu conhecido ensaio Liberdade Negativa e Positiva, amplia a concepção dualista de Berlin. Afirma que a liberdade é uma relação triádica, e que controvérsias acerca do seu sentido devem envolver a disputa sobre o adequado arranjo de três variáveis: x, y e z.
Sempre que a liberdade de algum agente ou agentes está em questão, ela é sempre liberdade de algum constrangimento ou restrição, interferência ou barreira para fazer, não fazer, tornar-se ou não tornar-se algo. Tal liberdade é, portanto, sempre de alguém (um agente ou agentes), diante de algo, para fazer, não fazer, tornar-se ou não tornar-se algo; é sempre uma relação triádica. Tomando o formato ‘x é (ou não é) livre de y para fazer (ou não fazer, tornar-se ou não tornar-se) z’; x indica os agentes, y abrange “condições impeditivas” como constrangimentos, restrições, interferências e barreiras, e z enumera ações e condições de caráter ou circunstância. (MACCALLUM, 1991, p. 102).
Essa forma de entender é seguida por outros teóricos do liberalismo político. Rawls, por exemplo, enfatiza que a liberdade deve ser explicada na referência a três aspectos: os agentes que são livres, as restrições ou limitações das quais eles estão livres, e aquilo para o qual eles são livres para fazer ou não fazer. “A descrição geral de uma liberdade, então, assume a seguinte forma: esta ou aquela pessoa (ou pessoas) está (ou não está) livre desta ou daquela restrição (ou conjunto de restrições) para fazer (ou não fazer) isto ou aquilo.” (RAWLS, 1997, p. 219) Trata-se, como se vê, de um conceito amplo e formal de liberdade negativa. Esta pode ser especificada como um conjunto de liberdades, chamadas de básicas (“bens primários”), “definidas por direitos e deveres institucionais que dão aos cidadãos o direito de agir como desejarem e que impedem os outros de interferir.” (RAWLS, 2000, p. 176)
Com o objetivo de garantir a liberdade individual e o pluralismo como resultado das diversas formas de vida, a filosofia política do liberalismo adota um paradigma jurídico que estabelece procedimentos equitativos e imparciais na constituição e na defesa daquilo que é adequado (justo) para a sociedade. Essa é a finalidade da política, pois o sistema dos direitos e dos deveres preexiste à instituição da sociedade politicamente organizada sob a forma estatal. Se os homens são livres, e se a liberdade individual constitui o valor superior, qual é o papel do Estado? Na medida em que os indivíduos não são suficientemente escrupulosos para observar o princípio da liberdade (negativa), o liberalismo acata a ideia de que o Estado, por meio do direito positivo, deve torná-la peremptória e garantir o respeito recíproco dos indivíduos à liberdade, a qual pode ser limitada pelo poder político, mas tão somente no interesse da própria liberdade.
O poder governamental deve estabelecer limites legítimos para a ação dos outros e instituir regras que regulam a liberdade e protegem, por conseguinte, a esfera privada das condutas individuais. Um dos deveres básicos do Estado é impedir a invasão dos direitos produzida pela ingerência indevida dos cidadãos e, sobretudo, do próprio poder político. Um dever que ele cumpre pela imposição da força coercitiva da lei sobre todos igualmente.
A função do Estado é a de assegurar, mediante princípios de justiça, a igualdade formal dos cidadãos, sem esposar nenhuma concepção particular de bem. Ele deve ser neutro em relação às diversas concepções de bem e de vida boa que os indivíduos revelam e realizam, no uso das suas liberdades. Assim, a noção de justiça deve ser entendida como o estabelecimento de regras equitativas que regulam formas de procedimento visando ao respeito dos direitos individuais, constituindo o meio mais adequado para assegurar a liberdade individual, a pluralidade das opiniões, a diversidade dos modos de vida, a propriedade privada e a concorrência econômica. Em razão do multiculturalismo ético, cultural e religioso, as leis tornam-se neutras, e o Estado surge como instância imparcial para arbitrar conflitos que resultam de interesses divergentes. O direito e a liberdade individual são os únicos “bens” possíveis que podem ser partilhados por todos, e que, por isso, podem ser considerados universais.
II. A concepção republicana de liberdade como não-dominação
O liberalismo firmou-se como filosofia que ofereceu uma resposta – e que se tornou hegemônica – à grande questão da política sobre o que é liberdade e como uma sociedade deve tornar-se livre. O chamado Estado de Direito liberal foi concebido como uma instituição que se autorregula por princípios constitucionais, os quais visam à organização social, econômica e política de uma sociedade, e cujo escopo principal é a proteção dos direitos individuais, sobretudo as liberdades. O seu poder e seu âmbito de ação encontram-se limitados por esses princípios. Contudo, esse Estado
[...] enfrentou, no decorrer do seu desenvolvimento, uma série de contradições internas que o destruíram, de certa maneira, por dentro, ou pelo menos, o esvaziaram do seu sentido primeiro [...] Ao invés de ser considerado e praticado como um ideal regulador, o Estado de direito se transforma em sistema fechado, que mobiliza a verticalidade das normas jurídicas, sua organização piramidal, para dar origem a uma nova concepção de poder, a um poder unitário e hierárquico, em detrimento de todas as formas de autonomia. (ABENSOUR, 1998, p. 128).
O modelo liberal da liberdade negativa acaba deslocando a compreensão normativa das ações humanas da política e da ética para o direito. Essa inflexão jurídica determina o regramento da vida e das relações sociais de acordo com os limites da liberdade individual, na tentativa de proteger os direitos, especialmente as liberdades individuais, e definir o alcance do poder político. Uma vez que o ponto de partida é a liberdade individual, a finalidade da vida não é mais a fruição política da cidadania na dimensão pública, mas a autonomia dos sujeitos na esfera privada da sociedade civil. O inevitável processo de “despolitização” da sociedade e dos conflitos sociais é decorrência da ênfase da política atrelada à garantia da pessoa com privilégios e imunidades.
Contudo, estudiosos da filosofia política moderna tentaram mostrar que ela não se esgota na forma hegemônica de se pensar a política segundo o paradigma jurídico do liberalismo. O resgate da tradição do republicanismo, e com ela a adoção de outra concepção da liberdade, significou a possibilidade de compreendê-la como fenômeno político face à insatisfação e insuficiências do modelo jurídico-liberal.[6] Diante do conceito de liberdade (negativa) e do viés jurídico da sua compreensão, na teoria política do liberalismo, deficiências foram apontadas quanto a esse conceito, mormente aquelas que merecem respostas vis-à-vis às exigências de autonomia das sociedades democráticas modernas.
A ascensão do pensamento político do contratualismo com o conceito hegemônico dos direitos individuais acabou eclipsando a antiga tradição republicana que remonta ao classicismo político greco-latino. Skinner procurou mostrar que a teoria dos direitos individuais, na esteira do hobbesianismo, transformou a liberdade negativa em um direito naturalmoral. O republicanismo representa um desafio a essa tese, redefinindo os objetivos da concepção liberal da liberdade negativa. Propõe uma retificação conceitual na linha da teoria maquiaveliana da liberdade, sem recorrer à estratégia dos direitos (subjetivos) naturais, os quais se tornaram preponderantes e penetraram a teoria política do liberalismo clássico.
A filosofia política do republicanismo pretende corrigir a noção liberal de liberdade, a partir de uma análise mais abrangente que permite compreendê-la num sentido mais apropriado diante do fato concreto do poder e do domínio de indivíduos ou grupos, na sociedade. As análises de Pettit são esclarecedoras na interpretação da liberdade nessa linha ou para introduzir a importância da ideia de dominação, na esfera conceitual da liberdade. Ao criticar as limitações da interpretação (liberal) da liberdade negativa como ausência de interferência, esse autor se apega a uma concepção mais abrangente de liberdade vinculada à tradição republicana: a tese da liberdade como liberação de qualquer dependência ou relação de domínio de um agente (pessoas ou instituições) que tem a capacidade para interferir em bases arbitrárias nas escolhas, na vida ou nos afazeres de uma outra pessoa que não concorda com essa interferência.[7]
Um ato é arbitrário quando ele está sob o controle do arbitrium de alguém, e cujo poder de uso afeta ou pode afetar uma outra pessoa que se sente coagida ou ameaçada nas suas escolhas, nos seus interesses ou no livre desenvolvimento de suas capacidades diante do poder (real ou potencial) abusivo de interferência de outrem. Portanto, existe um poder de dominação na medida em que três condições estão presentes: alguém “1. tem capacidade para interferir; 2. de modo arbitrário; 3. em determinadas escolhas que o outro está na posição de realizar.” (PETTIT, 1997, p. 52).[8]
Pettit observa que,
[...] enquanto os liberais assimilam a liberdade à ausência de ingerência, os republicanos a assimilam ao fato de não estarem submetidos à ingerência do outro segundo a sua vontade, ao fato de estar colocado ao abrigo de tal ingerência. A liberdade de uma pessoa, nesse sentido, equivale ao fato de ela não estar submetida ao poder que o outro tem de prejudicá-la, ao fato de não ser dominada pelo outro. A liberdade concebida como ausência de dominação – como segurança contra a ingerência arbitrária – é um ideal muito diferente da liberdade concebida como simples não-ingerência. A dominação é o tipo de relação que une, por exemplo, o senhor e o escravo ou o senhor e o empregado doméstico. [...] A não-dominação e a não-ingerência representam ideais muito diferentes. A diferença entre esses ideais manifestase pelo fato de que a dominação é possível sem ingerência, e a ingerência sem dominação. (PETTIT, 2003, p. 57).
A dominação significa viver à mercê de outrem e experimentar tal experiência como dependência real ou potencial, em virtude do grau de vulnerabilidade que alguém tem em relação a outrem, por estar submetido ao seu poder. Um agente, pessoal ou coletivo, domina outro, se ele tem um poder arbitrário (real ou potencial) de interferência, e uma pessoa só é livre quando inexiste esse poder. “Ser não-livre é estar sujeito ao domínio arbitrário: sujeito à vontade potencialmente caprichosa ou ao julgamento potencialmente idiossincrático de outro. Liberdade envolve emancipação de toda subordinação, liberação de toda dependência.” (PETTIT, 1997, p. 5).[9]
O autor assevera que a concepção republicana da liberdade como nãodominação constitui uma terceira abordagem, diferente da concepção positiva (do autogoverno tanto pessoal como político) e negativa (ausência de interferências ou coerção). No que diz respeito à concepção negativa, não concorda com a tese de que a liberdade consiste, simplesmente, na ausência de interferência, pois pode haver dominação – e, portanto, ausência de liberdade – sem a ocorrência de uma efetiva interferência. Dominação e interferência são fenômenos diferentes. Se a interferência for entendida no sentido amplo, que inclui não apenas a coerção física, mas também a coação da vontade, o castigo ou a ameaça do castigo e outras formas de manipulação, pode haver dominação sem interferência. A dependência à vontade arbitrária de um ou mais indivíduos não consiste apenas na opressão efetiva ou real, mas pode ser também possível, virtual ou mesmo provável, quando o poder de opressão de outrem é de tal monta inibidor que acaba retirando a autonomia em virtude do grau de dependência e de fragilidade de quem está à mercê do poder do mais forte. É o caso do escravo que, mesmo não sofrendo a interferência do seu senhor, é por este dominado. Embora não havendo uma interferência real, a dominação existe, em função do poder que algumas pessoas têm de, a qualquer momento, intervir.
Os recursos, em virtude dos quais uma pessoa pode ter poder sobre outra, são extremamente variados: compreendem os da força física, a vantagem tecnológica, a influência financeira, a autoridade política, os contatos sociais, o prestígio na comunidade, o acesso a informações, a posição ideológica, a legitimação cultural, e outros. (PETTIT, 1997, p. 59).
Pettit descreve algumas situações nas quais o indivíduo pode sofrer o domínio de outrem, por conta de uma relação de dependência. Casos concretos desse poder amparam as ações de maridos, executivos, patrões, credores, agentes governamentais, burocratas etc., que, nos seus âmbitos de suas prerrogativas, exercem ou podem exercer um domínio arbitrário sobre as outras pessoas com as quais se relacionam e que estão numa condição de fragilidade ou de dependência afetiva, psicológica, financeira, ainda que essas ações não configurem uma ilegalidade. Por exemplo: o devedor que teme possíveis chantagens do credor, ficando à sua mercê; o empregado que necessita do emprego e silencia-se, quanto aos seus direitos diante do empregador; a mulher que se priva da sua independência, para não desagradar ao marido, com medo de ser rejeitada etc. Em todas essas situações, há ausência de interferências, de coerção ou de ingerências nas escolhas do devedor, do empregado e da mulher. Porém, não há liberdade, uma vez que prevalece uma evidente relação de dominação.[10]
Quanto à concepção positiva, Pettit salienta que ela é, também, por si só unilateral. Alguém pode ser senhor de si mesmo e, ainda assim, não ser livre naquelas situações nas quais há interferência (legítima) sem ocorrer, todavia, uma efetiva dominação. Por exemplo, quando a autoridade pública se imiscui na vida das pessoas, de modo a induzi-las a fazer escolhas por suas próprias decisões, mas sem afetar a “autonomia” delas, mesmo diante da interferência não dominadora da autoridade; ou quando alguém, sob legal obrigação, interfere nas escolhas de outrem, mas não de forma arbitrária. Em todas essas situações, pode haver perda de liberdade, por conta da interferência legítima ou ingerência legal de alguém – via de regra do poder público – a despeito de não ocorrer nenhuma dominação.
Afinal, a liberdade deixa de existir diante de atos de ingerência de alguém que não se abstém de interferir naquilo que julga necessário e oportuno agir. Em razão da autoridade supostamente legítima, o beneplácito de uma vontade senhora de si mesma é induzida a obedecer e, voluntariamente, cede a essa interferência. Nesse caso, para que a liberdade (positiva) possa ser plena, há necessidade de se garantir a ausência da interferência (liberdade negativa), mesmo diante de uma vontade que não foi violentada na sua autonomia, sob o artifício rousseauista de que a “[...] obediência à lei que se estatuiu a si mesma é liberdade.” (ROUSSEAU, 1978, p. 37).
Assim, a limitação da liberdade positiva consiste em não perceber que pode haver interferência sem dominação. Quanto à liberdade negativa do liberalismo, a qual afirma que somos livres na medida em que estamos livres de interferência, ou seja, quando se manifesta a ausência (negação) de impedimentos ou obstáculos que interditam a nossa ação, a liberdade política republicana sustenta que pode haver dominação sem interferência.
A liberdade, se tomada pela via unilateral da liberdade negativa da ausência de impedimentos, cristaliza-se na forma impeditiva do normativismo formal do direito. Se tomada pela via, também unilateral, do autogoverno da liberdade positiva, limita-se ao sujeito autorreferente, e se revela parcial, permitindo a interferência diante da “astúcia” do seu conceito, visto que ele gera a ilusão de que o sujeito é sempre livre, pois depende da sua vontade acatar a interferência sem perceber que, na verdade, a sua liberdade foi tolhida ou reprimida de forma sub-reptícia.
A liberdade republicana, por sua vez, necessita ser integralizada tanto pelo aspecto objetivo da ausência de impedimentos, quanto pelo aspecto subjetivo da autonomia da vontade. Com isso, ela deve atender, sobretudo, ao requisito da ausência objetiva de domínio ou de dependência. Assim, somos livres na medida em que não somos dependentes num duplo aspecto: na ausência de interferência e, de forma solidária, quando não se produz a dominação. Se o domínio inexiste, o indivíduo pode exercer a sua autonomia, mas esta só é plena se não há interferência ou impedimento.
A proposta retificadora de Pettit da liberdade como não-dominação consiste em entender que, enquanto autogoverno, ela precisa ser completada com a ausência de interferência e esta, com a presença do autogoverno. A liberdade
[...] é negativa na medida em que ela requer a ausência de dominação por outros, não necessariamente a presença do autogoverno [...] A concepção é positiva na medida em que, pelo menos sob um aspecto, ela necessita algo mais do que a ausência de interferência; ela requer segurança contra a interferência, particularmente contra a interferência em bases arbitrárias. (PETTIT, 1997, p. 51).
A liberdade não consiste, pois, tão somente em realizar uma ação na ausência de impedimentos externos, impedimentos estes que são proibidos por lei. Mais que isso, ela consiste em realizar uma ação – a que os indivíduos reconhecem que não têm o direito de criar obstáculos – porque a lei impeditiva da interferência dos outros, que possibilita a livre efetividade dessa ação, emana da vontade comum e, sendo legítima, o seu poder não é dominador, mas compatível com aquilo que nós mais desejamos, quando vivemos em conjunto: a liberdade (autogoverno), o fato de o homem ser senhor do seu destino e dominar a fortuna.
III. Republicanismo ou liberalismo: uma escolha disjuntiva?
No confronto com a tese liberal da liberdade como ausência de impedimentos, ou da liberdade negativa entendida como o uso de uma área de ação própria à livre atividade do sujeito sem interferências de outrem – indivíduo ou Estado –, a concepção republicana de liberdade tem uma relação de proximidade crítica. Se o ideal republicano de liberdade é a não-dominação, qual a diferença com a concepção liberal que argumenta, justamente, a não ingerência como elemento principal para eliminar a dominação? O que separa a compreensão da liberdade republicana da liberal? Mas os adeptos da liberdade positiva também enfatizam que uma vontade só é plenamente autônoma, se ela não se submeter a ingerências externas. Qual dessas concepções deve ser seguida pelas sociedades democráticas modernas?
Um modelo de liberdade mais adequado a essas sociedades não pode ser, no nosso entendimento, constituído em termos de escolha entre duas possibilidades – liberalismo ou republicanismo – porque os problemas e as deficiências dos modelos de liberdade, se considerados na sua identidade teórica, excluem possíveis formas de correção que diferentes teorias necessitam, caso elas sejam confrontadas. Isso significa dizer que nem o conceito liberal, nem o republicano, se considerados na unilateralidade das suas posições, são suficientes para dar conta da rica e complexa significação da categoria política da liberdade para uma sociedade democrática moderna.
Esse conceito deve ser compatível com as sociedades democráticas modernas marcadas pelo pluralismo de grupos divergentes e pela diversidade dos interesses individuais que buscam a proteção dos seus direitos; e, ao mesmo tempo, é suficientemente adequado para resistir às diversas formas de dominação que podem existir nessas mesmas sociedades, mesmo diante da garantia formal da liberdade na ótica do liberalismo. Tal perspectiva estimula o debate, no sentido de combinar o conceito republicano de liberdade como não-dominação com a ideia liberal da liberdade como ausência de interferência, de tal modo que a alternativa para resolver as deficiências, tanto de uma concepção quanto de outra, seria a conciliação de elementos positivos que ambas as concepções em disputa possuem? [11]
Se essa sugestão é alvissareira, a reunião de elementos liberais e republicanos não tem a pretensão da mera conciliação das duas teorias. O propósito teórico do chamado republicanismo neorromano – como o de Q. Skinner, M. Viroli, P. Pettit e J. Maynor e outros – parece ser de outra ordem: mostrar que a teoria republicana da liberdade, por ser mais ampla, pode comportar e realizar de forma mais adequada a aspiração liberal à não interferência. O que se discute é a possibilidade de que a tese republicana da liberdade como não-dominação possa servir de alternativa à noção liberal da liberdade negativa, ou, então, com ela ser compatível. Nesse caso, o que está em jogo são os termos e o alcance dessa compatibilidade. Por outras palavras, as teses republicanas, sobretudo a da liberdade como nãodominação, representam valores substantivos em si mesmos e devem substituir a filosofia política do liberalismo, ou elas são instrumentos para melhor realizar os ideais do liberalismo, sendo compatíveis com esses ideais?
Esses autores afirmam que a concepção liberal de liberdade negativa está, também, presente no republicanismo, particularmente em Maquiavel. Na opinião de Skinner,
[...] os autores neo-romanos aceitam plenamente que a extensão de sua liberdade como cidadão deveria ser medida pela extensão na qual você é ou não constrangido de agir à vontade na busca de seus fins escolhidos. Ou seja, eles não discordam do princípio liberal de que, como Bentham iria mais tarde formular, o conceito de liberdade “é um conceito meramente negativo” no sentido em que a sua presença é sempre assinalada pela ausência de algo e, especialmente, pela ausência de alguma medida de restrição ou constrangimento. (SKINNER, 1999, 70-71).
Na avaliação de Viroli, muitas das teses do liberalismo (de que a sociedade política deve proteger o indivíduo, de que os cidadãos devem participar da soberania para defender a sua liberdade, de que o Estado deve ter o seu poder limitado e controlado, entre outras) já estão presentes na tradição republicana, sobretudo em Maquiavel. Desse ponto de vista, o “liberalismo pode ser considerado um republicanismo empobrecido ou incoerente”, enquanto o “republicanismo é uma teoria liberal que é mais radical e consistente do que o liberalismo clássico.” (VIROLI, 2002, p. 61). Mas, ainda assim, ele não pode ser tomado como uma alternativa para o liberalismo.
O republicanismo – observa Viroli – sustenta que para realizar a liberdade política é preciso opor-se tanto à interferência e à coerção em sentido próprio, quanto à dependência, pela razão de que a condição de dependência é um constrangimento da vontade e, portanto, uma violação da liberdade. Isso significa que quem ama a verdadeira liberdade do indivíduo não pode não ser liberal, mas não pode ser apenas liberal. (BOBBIO; VIROLI, 2002, p. 33-34).
Pettit pretende estabelecer diferenças entre liberalismo e republicanismo, principalmente no que se refere à concepção de liberdade e à forma como as sociedades democráticas deveriam funcionar. Por isso, ambos dão respostas diferentes ao papel da lei e dos direitos, à dinâmica do processo eleitoral, à função da política do governo e ao valor da cidadania. O republicanismo trata de modo diverso a realização da vida política, cujo valor essencial é a liberdade. A tradição liberal acabou tornando-se indiferente à questão da dominação nas relações humanas que secretam diversas possibilidades de domínio. Com base no pressuposto de que os indivíduos devem ser livres para agirem como desejam agir, sem obstáculos à sua ação, as relações de poder entre as pessoas, e entre estas e as instituições sociais e políticas, são relaxadas em nome do cordão de segurança da liberdade negativa e dos direitos individuais que se coloca entre os indivíduos. “Esta relativa indiferença ao poder de dominação – comenta Pettit – fez do liberalismo tolerante nas relações em casa, no local de trabalho, no eleitorado, e em outros lugares, que o republicano deve denunciar como paradigmas de dominação e não-liberdade.” (PETTIT, 1997, p. 9).
Pettit, portanto, inclina-se para a posição daqueles que, como Skinner e Viroli, veem a liberdade republicana da não-dominação como um valor instrumental, e não um bem em si mesmo. Isto é, os fins propostos por uma sociedade liberal são realizados com mais eficácia, quando forem mediados pelos valores políticos do republicanismo: a liberdade, a cidadania participativa etc. Destarte, a adoção desses valores traz vantagens irrecusáveis para uma sociedade liberal que não precisa abandonar os direitos subjetivos e o conceito de liberdade negativa, pois esses princípios não são incompatíveis com a concepção republicana de liberdade.
IV. As condições para a realização da liberdade como não-dominação
Diante do estado da questão, qual posição é a mais razoável a ser tomada? Antes de tudo, é importante destacar que não se trata de escolher entre a alternativa liberal ou a republicana. A escolha disjuntiva implica a negação de aspectos essenciais que ambas defendem para a constituição do conceito de liberdade: seja o elemento liberal da liberdade negativa da ausência de interferência, seja o elemento republicano da não-dominação. Ora, são esses elementos que precisam ser preservados, se queremos realizar e garantir a liberdade individual como direito subjetivo, conquista irrenunciável da modernidade.
Mas, se esses elementos são importantes, não se trata igualmente da mera associação deles na tentativa de conciliar duas formas de liberdade. O que é decisivo é como e de que modo essas formas de liberdade permitem realizar, de maneira mais consistente e duradoura, o ideal de liberdade no sentido pleno. Somente assim é possível assegurar tanto a não-dominação como a ausência de interferência. Assim, sustentamos a tese – próxima do chamado republicanismo neorromano – de que a concepção de liberdade como não-dominação pode perfeitamente realizar o conceito liberal da liberdade negativa com mais eficácia e propriedade e, ao mesmo tempo, garantir a efetiva autonomia dos sujeitos, diante dos diversos mecanismos de dominação. Contudo, isso é possível – e este adendo é de fundamental importância – porque essa tese envolve determinados pressupostos, implicações ou, até mesmo, condições de possibilidade, as quais não só efetivam a dimensão subjetiva da liberdade, como também estimulam a criação de elementos objetivos políticos e éticos adequados, que garantem a ausência de ingerências indevidas, e que são formalmente assegurados pelo direito. Tais pressupostos ou condições são três e podem ser formulados nas seguintes proposições:
A) A primeira condição afirma que a vida do homem se realiza e sedesenvolve na dimensão social do viver político do ser humano, e que a liberdade, nessas condições, só se constitui e se afirma mediante relações intersubjetivas de mútuo reconhecimento.
A diferença entre a tese republicana e a liberal consiste no modo de fundamentação da liberdade. O republicanismo afirma que a liberdade é social e não um dado da natureza humana, seja esta entendida como fenômeno antropológico, seja compreendida como um fato da razão, e que encontra na estrutura dos direitos subjetivos sua formulação normativa. Para o liberalismo, a liberdade tem uma justificação pré-política, pois está ancorada em princípios normativos de uma racionalidade autorreferente, que autoriza a formulação dos direitos subjetivos, naturais ou positivos. Ela vincula-se, destarte, a uma visão “juridicista” da liberdade, fundamentada no pressuposto de uma sociabilidade caracterizada pelo individualismo de sujeitos atomizados, os quais ostentam de per si o direito subjetivo da liberdade. Este, por sua vez, só tem validade se configurar uma situação de violação por meio de atos de interferência não legítimos de outrem.
Já o republicanismo sustenta a tese de que a liberdade depende das condições sociais, e tem por base a ideia de que as aspirações à autonomia e as realizações de uma vida independente são concebíveis no diálogo com os outros pela compreensão comum de práticas sociais que amparam o viver junto, e que são reconhecidas como tais. Uma consequência correlata da dimensão social do viver político do homem se constitui na presença de um campo de reciprocidade de relações intersubjetivas de mútuo reconhecimento. E são essas relações que possibilitam que os homens possam, na dimensão do seu viver social, estabelecer e concordar com uma concepção racional de um bem comum que, nas sociedades modernas, consiste no reconhecimento social da legitimidade do direito, da igualdade e da liberdade de todos.
A liberdade só existe onde os outros estão presentes, e as relações entre os indivíduos são institucionalizadas, de maneira a tornar possível a coexistência dos sujeitos que se reconhecem livres de relações de dominação. Vivemos com os outros que têm a obrigação de respeitar a nossa ação e, reciprocamente, cada um de nós reconhece que deve agir de forma semelhante. O republicanismo pensa a liberdade na presença dos outros e com os outros. Somente assim é possível efetivar a independência recíproca dos sujeitos, porque estes têm a consciência do dever de abstenção, face ao reconhecimento da legitimidade dos direitos da outra pessoa.
A liberdade não pode ser vista apenas no seu aspecto restritivo e limitador, como mera escolha de opções ou alternativas que se colocam diante do sujeito, mas, sobretudo, na dinâmica do reconhecimento que opera como elemento constituinte da liberdade. A ação de um sujeito livre deve ser explicada como o resultado de uma pessoa que é reconhecida prioritariamente como livre no seu status e na sua capacidade de fazer escolhas. Há necessidade, portanto, do reconhecimento público de que todos, como cidadãos, dispõem da liberdade de se opor à ação dos outros e às tentativas de dominação por parte de terceiros. Nesse sentido, a própria liberdade, embora individual, está atrelada à presença constitutiva e positiva de outrem numa relação de reciprocidade, já que a ausência de arbítrio consiste no reconhecimento da liberdade do outro.[12]
B) Essa primeira condição vincula-se a outras duas. A segunda dizrespeito à proposição de que a comunidade política necessita ser constituída pelo autogoverno dos cidadãos. São eles que criam leis para efetivar e garantir a liberdade, visto que se impõe como consequência do reconhecimento público de que todos são cidadãos, e dispõem da liberdade de se opor à ação dos outros e às tentativas de dominação por parte de terceiros. Tal constatação significa dizer que a liberdade como não-dominação deve ser vista sob um regime jurídico adequado de leis que criam e garantem a liberdade de todos. Ser livre significa estar protegido pela lei numa forma da vida social, na qual o reconhecimento da liberdade é possível, porque todos pertencem a uma sociedade cujo valor social pressupõe a proteção das ações dos sujeitos que reconhecem a legitimidade dessas ações, e se abstêm de interferências.
A liberdade política do republicanismo implica, pois, a ação de criar uma ordem ética e cívica objetiva que, instaurando a igualdade e a submissão de todos ao governo de leis de um regime constitucional, torna-se instrumento de proteção contra o infortúnio, a dependência e a servidão. Uma característica essencial da liberdade política é o autogoverno, possível nas repúblicas como forma de poder político (o Estado), sob o qual uma comunidade pode obter grandeza e garantir aos seus cidadãos suas liberdades individuais. Na teoria republicana, a liberdade não está circunscrita ao mero atributo da natureza humana, mas como um modo de ação que essa natureza propicia, quando ela é estimulada pelas instituições políticas. Mediante essas instituições é que se tem uma garantia efetiva contra a interferência dos outros, e cuja eficácia é produzida por um sistema social e político republicano igualitário, o qual garante leis impeditivas à ação abusiva e dominadora de outrem.
Fora da ordem legal própria às sociedades constituídas, existe apenas um jogo de vontades que procuram dominar. No entanto, o conflito não deve ser expurgado das práticas políticas da sociedade, mas regulado pela atuação de forças democráticas hegemônicas. Tais forças defendem a liberdade como espaço político vital para a democracia, afastando a tendência sempre presente da dominação. Trata-se, portanto, de uma forte compreensão do espaço público como esfera decisiva para a defesa e a ampliação da liberdade, para cuja proteção é requerido um Estado democrático de obediência à lei.[13]
C) A terceira condição, de ordem subjetiva, refere-se à vigilância docidadão pela atuação política da cidadania como atribuição de virtudes cívicas. Para que isso seja efetivamente viável, há necessidade do recurso à ideia forte de um bem comum que congrega os indivíduos em torno do ideal político da cidadania virtuosa. Por meio desse elemento, pode-se viabilizar e sustentar o ideal de liberdade como não-dominação e assegurar com eficácia o elemento liberal da liberdade negativa como ausência de impedimentos. Se a questão da liberdade for analisada pelo lado da concepção liberal, por si só, ela não se sustenta diante da necessidade de realização dos valores democráticos no espaço público. Somente leis justas e legítimas de um Estado republicano garantem a existência das liberdades individuais e asseguram os direitos subjetivos. E esses direitos encontram sua efetividade apenas com a vigilância ativa do dever cívico de cidadãos virtuosos, os quais impedem que as leis e as instituições sejam o resultado da ação dominadora, principalmente do poder econômico, que busca perpetuar relações de dominação.
Os Estados livres, como as pessoas, são definidos pela capacidade de autogoverno realizada no espaço público, no qual os cidadãos se qualificam para a vida política como indivíduos dotados de virtudes cívicas. O mote republicano de que o preço da liberdade é a eterna vigilância exige uma política virtuosa que os indivíduos, como governantes e governados, desenvolvem na coletividade, no sentido de exercer ações e de perseguir fins em prol do bem público. O republicanismo depende de uma concepção forte de cidadania, pela qual o bem comum se forma para além dos interesses individuais e do valor instrumental do cidadão como mero portador de direitos. Se a comunidade política for compreendida no propósito republicano – definida por Cícero como res publica: coisa que pertence ao povo (res publica, res populi) – a cidadania possui um conteúdo mais amplo e um sentido mais forte do que a sua compreensão liberal como simples intitulação de direitos. As boas leis de um Estado necessitam de hábitos de civilidade (como a adesão, o respeito e a confiança) e de valores públicos que devem ser interiorizados na consciência do cidadão por intermédio de ações educacionais adequadas. Essa identificação com a comunidade política republicana é o que se entende por patriotismo.
Conclusão
O republicanismo visa, portanto, a denunciar o paradoxo de que a lógica da vida política liberal pode engendrar uma situação não desejada pelos próprios ideais do liberalismo: a “des-politização” da liberdade e da cidadania acaba levando a uma ameaça da liberdade e da democracia – como já previra Tocqueville –, criando um novo despotismo, que comprometerá as próprias liberdades individuais.
Os valores do moderno republicanismo, sintetizados na ideia da liberdade como não-dominação, são de tal forma valiosos para uma sociedade democrática que a sua adoção acaba por ter força institucional profundamente diferente dos valores instrumentais que o liberalismo vem praticando. A adoção e a prática da liberdade como não-dominação fazem dela quase um bem em si mesmo, com força formadora de certos ideais e de instituições que podem sustentá-la, e cuja ausência torna a política liberal pobre, na promoção dos seus próprios fins, e demasiado abstratos para estimular a intermediação de meios necessários para a efetiva realização desses mesmos fins.
Uma das formas de superar a oposição entre o individualismo – com ênfase nas teorias da justiça – e o comunitarismo – com destaque nas teses da prevalência de um bem socialmente compartilhado – consiste na elaboração de uma teoria política que tenha condições de aliar o ideal moderno das liberdades individuais e dos direitos subjetivos do homem privado com as qualidades cívicas dos valores políticos e morais da comunidade, constituídas na objetividade do espaço público, e que remontam a uma longa tradição do pensamento político, com raízes na Grécia clássica.
Quando a sociedade adota o ideal ético-político da não-dominação, as consequências serão diferentes daquelas que são produzidas pela escolha do modelo liberal da liberdade negativa. Ela terá uma vida social e política mais razoável e decente, sem deixar de realizar os ideais de uma sociedade liberal moderna e democrática. A liberdade como não-dominação pretende corrigir o juridicismo daquele modelo e assegurar, de maneira mais consistente e democrática, os valores liberais, sobretudo os direitos individuais e o pluralismo. Mas isso somente é possível mediante a realização de determinados pressupostos de ordem intersubjetiva, objetiva e subjetiva.
O republicanismo pretende dar conta do caráter tripartido da liberdade e da conexão dessas três faces para a constituição de uma teoria abrangente da liberdade como não-dominação. Primeiramente, isso é possível pela articulação da dimensão intersubjetiva da liberdade, por meio da qual a liberdade supera o seu solo autorreferencial pela dinâmica do mútuo reconhecimento. Em segundo lugar, pelo lado da criação de leis e instituições políticas que, mediante o autogoverno, objetivam a liberdade e garantem a não-dominação. Em terceiro lugar, essa ordem política deve ser fomentada por cidadãos que, na qualidade de indivíduos voltados para o interesse coletivo, atuam como agentes cívicos para proteger e ampliar essa liberdade e assegurar a autonomia política da comunidade. São essas três faces que, interligadas, sustentam não só a saúde da moderna democracia, bem como o direito subjetivo à liberdade individual.
ABSTRACT: The purpose of this article is presenting two ways of understanding freedom: the negative freedom of liberalism, defined as the sphere of the individual’s freewill by the absence of improper external obstacles, oriented by the juridical paradigm of the individual rights; and the political freedom of republicanism, defined as no-domination and oriented by the paradigm of the citizenship’s civic virtues. Another purpose is to show that opposition between the juridical-liberal point of view and the republicanism is not on the acceptance or in the refuse of freedom and individual rights. The distinction lies on the way which these liberty and rights can be founded: through the way of the individualism and subjectivism that subordinate society and law as instruments for the fulfillment and protection of individual rights, or through the communitarist and civic way. Being thus, the republican concept of freedom, without abandoning the liberal conquer of pluralism and negative freedom, may contribute for an effective enlargement and guarantee of the democratic principles of a modern society.
KEYWORDS: Freedom. Liberalism. Republicanism.
Referências
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[1] Doutor em Filosofia Política pela UNICAMP. Professor do Programa de Pós–Graduação em Filosofia PUCPR. e-mail: cauramos@uol.com.br
[2] Constitui tarefa difícil reunir em uma unidade teórica questões da filosofia política que estão presentes na grande tradição do liberalismo, que compreende tanto o liberalismo clássico, com J. Locke, Montesquieu, B. Constant, Stuart Mill, A. Smith, A. Tocqueville, T. Jefferson, J. Bentham, Lord Acton, Th. H. Green, J. Dewey, como o contemporâneo, chamado de neoliberalismo, de autores como I. Berlin, J. Buchanan, F. A. von Hayek, R. Aron, J. Rawls, W. Kymlicka, B. Ackerman, R. Dworkin e outros. Questões abrangentes são discutidas por essa tradição, tais como: a valorização do indivíduo e das suas liberdades; a limitação do Estado e a legitimidade do poder político subordinado aos interesses da sociedade civil; as vantagens da democracia e a defesa do pluralismo ético-político; e, sobretudo, a natureza, o alcance e as possibilidades da liberdade diante das sociedades modernas plurais. São questões disputadas dentro do próprio liberalismo, e não há para elas um corpo teórico consensual, de tal forma que é preferível falar em liberalismos a liberalismo.
[3] O texto Da liberdade dos antigos comparada com a dos modernos (1819), de B. Constant, já desenvolvera, com força e clareza, a distinção crucial entre a liberdade considerada como esfera garantida de independência pessoal (a liberdade dos modernos) e a liberdade como direito de tomar parte do Governo e de participar na decisão coletiva (a liberdade dos antigos), atribuindo Constant a Rousseau uma tentativa de revivê-la. Para os modernos, a liberdade é um meio para a segurança privada, e as instituições sociais e políticas representam uma garantia para a fruição dessa liberdade. “A independência individual é a primeira das necessidades modernas. Em conseqüência, jamais se deve exigir o seu sacrifício para estabelecer a liberdade política.” (CONSTANT, 1980, p. 506). Quanto mais o indivíduo é livre para cuidar dos seus interesses privados, tanto mais a liberdade lhe será preciosa. Daí a necessidade de “ausência” nos assuntos públicos (políticos) e a consequente necessidade da representação política. “A liberdade individual - insiste Constant - é a verdadeira liberdade moderna. A liberdade política é a sua garantia.” (idem, p. 509).
[4] Para Hobbes, a liberdade é o direito básico (jus naturale) que “cada homem possui de usar seu próprio poder, da maneira que quiser, para a preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua vida; e conseqüentemente de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios adequados a esse fim.” (HOBBES, 1979, cap. XIV, p. 78). A concepção da liberdade negativa foi, de início, representada como um direito racional da natureza humana. Concebê-la como um direito natural significava dizer que todos os homens estão submetidos à lei da liberdade como forma elementar para a preservação da vida. A ideia hobbesiana da liberdade tem por base a concepção mecanicista do movimento de corpos, os quais são livres quando não encontram obstáculos exteriores. Aplicada às ações humanas, ela é definida como a “ausência de impedimentos externos, impedimentos que muitas vezes tiram parte do poder que cada um tem de fazer o que quer.” (HOBBES, 1979, cap. XIV, p. 78). O indivíduo é livre quando está desimpedido de exercer o seu poder e as suas capacidades para alcançar os fins que deseja, realizando, assim, uma ação que tinha intenção de fazer sem intromissão externa.
[5] A razão fundamental da preferência de Berlin pela liberdade negativa está no pressuposto da defesa dos princípios liberais do pluralismo ético e político, consequência inevitável da condição humana definida por escolhas marcadas pelo conflito. “Se, como creio, os objetivos do homem são diversos, e nem todos compatíveis entre si, então a possibilidade de conflito – e de tragédia – nunca pode ser totalmente eliminada da vida humana, quer pessoal quer social.” (BERLIN, 1998, p. 292). Por esse motivo, J. Gray denomina o liberalismo de Berlin de “agonístico” e ressalta que a pedra angular do seu pensamento é “a rejeição do monismo ético: sua insistência de que os valores humanos fundamentais, sendo muitos, estão freqüentemente em conflito e raramente seriam, se algum dia o forem, necessariamente harmoniosos, e que pelo menos alguns desses conflitos são incomensuráveis – conflitos entre valores para os quais não existe um padrão comum de medida ou arbitragem.” (GRAY, 2000, p. 16).
[6] J. G. A. Pocock (The Machiavellian Moment. Florentine Political Thought and the Atlantic Republican Tradition, 1975) interpreta a história da filosofia política (1500/1800) associada a dois modelos vinculados entre si. Um deles é escrito em termos quase exclusivamente jurídicos, e toma a forma do receituário do advento progressivo do liberalismo. Certos autores, como Maquiavel, estimularam a reflexão para um outro modelo interpretativo da filosofia política moderna, o chamado republicanismo, sobretudo no que diz respeito à questão da liberdade. Esse outro modelo, diz Pocock, não opõe a liberdade positiva dos antigos à liberdade negativa dos modernos, mas duas concepções modernas de liberdade: a concepção liberal e a concepção republicana. Outros historiadores da filosofia política moderna (Q. Skinner, P. Pettit, M. Viroli, J. Maynor, F.-J. Spitz, N. Bignotto) dão continuidade ao exame dessa tradição: de inspiração clássica e presente no chamado humanismo cívico que remonta ao ideal aristotélico do homem como animal político e à res publica romana, ela ressurge na modernidade com destaque a Maquiavel. Segundo Pettit, “o republicanismo forneceu um pensamento e uma linguagem que dominaram a política do Ocidente moderno, de maneira particularmente marcada na república holandesa, durante a Guerra Civil Inglesa, e durante o período que precedeu a Guerra da Independência americana e a Revolução Francesa. As grandes figuras que ilustram essa concepção republicana mais moderna são Harrington, Montesquieu e talvez Tocqueville [...] e, nos Estados Unidos, os Federalist Papers. Rousseau e Kant, bem entendido, aproximam-se também da tradição republicana, mas, tendo inscrito as idéias com uma nova visão, não são autores representativos dessa tradição.” (PETTIT, 2003, p. 55-56).
[7] Essa concepção foi explicitada pelas análises de comentadores da tradição republicana, como Q. Skinner (The Foundations of Modern Political Thought e Liberty before Liberalism), P. Pettit (Republicanism. A Theory of Freedom and Government), J. W. Maynor (Republicanism in the Modern World), M. Viroli (Republicanism), e denominada de teoria “neorromana” da liberdade como nãodominação. Este é o modo como o republicanismo moderno pensa a liberdade, diferentemente do republicanismo cívico ou “neoateniense” presente em alguns autores como H. Arendt, A. MacIntyre, M. Sandel, mais perto da concepção positiva de liberdade. A obra de Pettit é exemplar na explicitação e defesa da liberdade como não-dominação. C. Larmore chega a dizer que “a renovação da teoria republicana encontrou em Philip Pettit seu arquiteto mais ambicioso. Reconhecendo sua dívida para com uma tradição de pensamento que remonta, via Maquiavel, a Roma antiga, – tradição essa reconstruída numa série de artigos importantes de Quentin Skinner – Pettit deu ao modelo republicano da vida política um desenvolvimento sistemático jamais visto anteriormente.” (LARMORE, 2000, p. 115). Pettit entende que o republicanismo moderno ou neorromano encontra uma expressão conceitual mais adequada para a liberdade na tese da não-dominação, mesmo reconhecendo que a linguagem da não-dominação remonta à tradição do republicanismo cívico ou neoateniense. O republicanismo neorromano, sem abandonar o apelo ao autogoverno e à condição do homem como animal político, é mais sensível às demandas da moderna individualidade, destacando a criação de mecanismos institucionais que estimulam e preservam a liberdade individual intimamente ligada à liberdade da comunidade.
[8] Em outra passagem, esse autor observa que o poder de dominação ou se subjugação existe quando há “1. um agente pessoal ou corporativo, 2. capaz (realmente capaz) de exercer 3. influência intencional 4. de tipo negativo, danosa, 5. no sentido de contribuir para moldar ou modelar o que as outras pessoas fazem.” (PETTIT, 1997, p. 79).
[9] Pettit observa que os expedientes pelos quais alguém pode ter poder sobre outro são incontáveis: “[...] se dispõem entre os da força física, da vantagem técnica, da esperteza financeira, da autoridade política, dos contatos sociais, da posição na comunidade, do acesso à informações, da posição ideológica, da legitimação cultural, e outros do gênero.” (PETTIT, 1997, p. 59).
[10] Viroli apresenta outros exemplos: “[...] cidadãos que podem ser oprimidos por um tirano ou uma oligarquia que não tem temor em incorrer a sanções legalmente prescritas; a mulher que pode ser abusada pelo seu marido sem ser capaz de resistir ou de exigir reparação pelo dano; trabalhadores que podem ser submetidos a pequenos ou grandes abusos dos seus empregadores ou supervisores; um aposentado que precisa depender do capricho de um funcionário para obter a pensão, da qual ele tem legítimo direito; um inválido que precisa depender da boa vontade de um médico para colocá-lo em boas condições; jovens estudantes que sabem que suas carreiras dependem não só da qualidade dos seus trabalhos mas, também, do capricho de um professor sênior; um cidadão que pode ser posto na prisão pela voz arbitrária de um magistrado.” (VIROLI, 2002, p. 35-36). Nesses exemplos, o autor comenta que o indivíduo não sofre a interferência de outrem, ou impedimentos para o livre exercício de sua ação. Contudo, o indivíduo sente-se sob a ameaça do arbítrio de outrem, que pode gerar uma relação de dependência, mesmo na ausência de impedimentos.
[11] Com o propósito de juntar as diversas concepções de liberdade, D. Miller, por exemplo, sugere uma perspectiva conciliatória bastante ampla, no sentido de obter um todo mais complexo como resultado das contribuições dos diversos significados da liberdade. Da análise que este autor faz do que ele chama das três famílias de ideias sobre a liberdade (a republicana como concepção política, por ele interpretada como a liberdade de autodeterminação coletiva dos sujeitos em uma comunidade; a liberal, definida como ausência de ingerências ou de interferências por outras pessoas; e a idealista, compreendida como direção autônoma da vontade individual) conclui que é preciso, do ponto de vista social e político, juntar estas três famílias. “Para entender as demandas da liberdade humana, devemos promover todas as três tradições de pensamento, a republicana, a liberal e a idealista. Para ser genuinamente livre, uma pessoa deve viver sob uma organização social e política que ele ajudou a formar; ele deve gozar de uma esfera extensiva de atividade dentro da qual ele não está sujeito ao constrangimento; ele mesmo deve decidir como viver, não tomar emprestado suas idéias de outros.” (MILLER, 1991, p. 20).
[12] O tema do reconhecimento e a sua importância na teoria republicana é destacado por Habermas. “Enquanto a interpretação liberal vê o sentido de uma ordem jurídica no fato de ela permitir constatar, no caso concreto, quais direitos competem a quais indivíduos, a visão republicana considera que esses direitos subjetivos resultam de uma ordem jurídica objetiva, a qual não somente torna possível, como também garante a integridade de uma convivência autônoma, com iguais direitos e que repousa no respeito mútuo. No primeiro caso, a ordem jurídica é construída a partir de direitos subjetivos; no segundo, atribui-se um primado a seu conteúdo jurídico objetivo.” (HABERMAS, 1997, p. 335-336). Habermas entende que, na dicotomia – direito subjetivo versus direito objetivo –, deixa de existir o “conteúdo intersubjetivo de um sistema de direitos” da teoria do discurso, na qual os civis se reconhecem reciprocamente. Nessa perspectiva, é possível estabelecer direitos e deveres em relações recíprocas de reconhecimento. O republicanismo possibilita, no julgamento de Habermas, esse conteúdo intersubjetivo. “O republicanismo vem ao encontro desse conceito de direito, uma vez que valoriza tanto a integridade do indivíduo e de suas liberdades subjetivas, como a integridade da sociedade na qual os particulares podem reconhecer-se, ao mesmo tempo, como indivíduos e como membros.” (HABERMAS, 1997, p. 336).
[13] Esse aspecto do autogoverno como condição necessária para a constituição e a manutenção da liberdade como não-dominação deve ser bem compreendido, na advertência de Pettit. Na tentativa de tornar compatível o ideal republicano e as suas implicações comunitárias com o espírito das sociedades modernas e pluralistas, na esperança de defender uma terceira via à alternativa entre liberalismo e comunitarismo, esse autor entende que “a participação democrática pode ser essencial para a república, porém apenas porque ela é necessária para promover o desfrute da liberdade como não-dominação, e não por seus atrativos intrínsecos: não porque a liberdade, como sugere a concepção positiva, seja nada mais nem menos do que o direito de participação democrática.” (PETTIT, 1997, p. 8). A forma de democracia que Pettit defende não é aquela que resulta de um processo eleitoral do consentimento que autoriza a tomada de decisões públicas, mas a de um governo republicano (regime constitucional democrático e deliberativo) baseado na disputa, na contestação. “O povo deve, individual e coletivamente, desfrutar a permanente possibilidade de contestar as decisões do governo.” (PETTIT, 1997, p. 185). Tal perspectiva acarreta, necessariamente, o debate, a disputa, o pluralismo, que devem permear a vida política deliberativa.