A CRÍTICA DE ALEXIS PHILONENKO AO “MAL-ESTAR” SARTRIANO: EM DEFESA DO HUMANISMO

Malcom G. Rodrigues[1]

RESUMO: O objetivo do artigo é discutir a crítica de Philonenko (1981) aos conceitos sartrianos de “má-fé” e “liberdade”. Um dos pilares dessa crítica é a defesa da noção de “coerência do estilo”, elemento indispensável para resguardar a autenticidade tão prezada por Sartre, segundo Philonenko. Contudo, continua este último, ao afirmar “eu não sou jamais nenhuma de minhas condutas, nenhuma de minhas atitudes”, Sartre limita a liberdade por ele defendida ao horizonte de uma maliciosa dissimulação, quer dizer, da má-fé. Nós constatamos três imprecisões nessa crítica. Em primeiro lugar, a citada afirmação de Sartre foi mal interpretada. Mas, em segundo, se essa interpretação está correta, supondo que o estilo seja indispensável à autenticidade, ainda assim a liberdade sartriana não pode ser “para o mal”, pois ela se caracteriza, em termos ontológicos, como o próprio ser da realidade humana “em situação”, e não em termos morais, como uma propriedade dessa realidade, cristalizada por um olhar atento sobre si ou sobre o outro, e julgada como boa ou má. Por fim, queremos concluir que, numa possível conduta autêntica, a derrocada da má-fé não apenas prescinde do amparo a uma coerência do estilo como também pressupõe o reconhecimento angustiante de sua gratuidade. PALAVRAS-CHAVE: Ontologia da subjetividade. Responsabilidade. Reflexão ética. Má-fé. Liberdade.

Como é possível a conduta de má-fé, tal como definida por Sartre em L’être et le néant (1943)? Como é possível a tentativa de automentira que a constitui, se, ao filósofo, a consciência é “translúcida” a si mesma? Como preservar algum tipo de autenticidade, se a antítese lógica da má-fé, a sinceridade, pode ser ela mesma de má-fé? Como, enfim, falar de liberdade e de engajamento, se a má-fé, como afirma o filósofo, se acerca de qualquer ideal de boa-fé? A dificuldade em responder a tais questões, cuja imbricação aos propósitos fundamentais de L’être et le néant é patente, pode ser atribuída à própria pena sartriana que, frequentemente, as incita sem lhes rematar simples e diretamente. Mas, a pena sartriana nos inquieta não apenas por seu hermetismo: ela também parece deixar propositadamente reticências para nós dirigirmos, de “mãos sujas”, a sua errante trajetória.

Este parece ser o diagnóstico retumbante (que completará três décadas aparentemente incólume) de Alexis Philonenko, o qual, em seu artigo, Liberté et mauvaise foi chez Sartre (1981), tratando das questões há pouco levantadas, está disposto a levar até as últimas consequências o “ardil” sartriano. O desfecho do referido artigo é sintomático: um longo elogio da obra e, sobretudo, da vida de Sartre, em gesto deferente, como que se remindo da crítica implacável que lhe imputara há algumas páginas atrás. A nós, nem é preciso abordar em detalhe todos os seus argumentos; alguns deles já possuem, aos nossos propósitos, um “potencial destrutivo” suficiente.

Tal potencial está localizado na “parte IV” de seu artigo, na qual Philonenko retoma uma palavra bastante usada por Sartre, para aludir ao modo como se pode dar a conduta de má-fé: “jeu”. O termo, que pode ser traduzido por jogo ou brincadeira, quando utilizado por Sartre significa a arte de representar, em situação, aquilo que queremos ser. Assim, afirma Sartre (1943, p. 98), o garçom do café “brinca” de ser garçom e esse jogo o faz ser aquilo que ele pretende ser: um garçom. Porém, continua Sartre, enquanto “brinca” de ser garçom, seus gestos são um tanto precisos demais (“un peu trop”), sua presteza é um pouco demasiadamente exagerada: de fato, nos termos da “ek-sistência[2]” do para-si, o garçom tão-somente representa um sujeito que deve ser e, de fato, não é.

A reação de Philonenko a esse jogo de palavras e significados, que, tal como usadas por Sartre, expressam a condição inconsistente de nosso ser, beira o inconformismo: somos amaldiçoados, afirma Philonenko, por essa comédia “un peu trop” trágica na qual estamos condenados a viver. É esta vida – pergunta-se ele, indignado – na qual não apenas os doentes (tal como aqueles analisados por Stekel e citados por Sartre [1943, p. 93]) estão brincando, como igualmente nós “brincamos” seriamente de ser outra coisa que já somos, é isso que fazemos até a morte?

Todavia, a questão não se opõe tanto ao jogo de palavras de Sartre, e sim ao que esse jogo de palavras parece implicar: a ausência de uma “marca” pessoal dos indivíduos, a qual Philonenko chamará de “estilo”, cuja evidência é preservada por um dado empírico e se opõe à indeterminação absoluta que Sartre pretende imprimir ao humano, quando declara que “não sou nenhuma de minhas condutas”. É àquela intransponível distância de si que a condição humana expressa em sua eterna tentativa lúdica de ser o que não é; a essa vida incontornavelmente “mascarada”: é a esse destino tragicamente irônico da realidade humana que o crítico de Sartre parece se opor, inicialmente.

O ponto nevrálgico dessa crítica é a polêmica sobre a ideia de sinceridade. Comecemos pelo lado mais brando da crítica: se a má-fé desliza até a boa-fé e faz do projeto de qualquer sinceridade uma conduta de má-fé, por conseguinte, de duas, uma: ou toda fé é uma fé má e, nesse caso, a liberdade de que tanto fala Sartre é, como afirma Philonenko (1981, p. 157), uma “liberdade para o mal”; ou não há mais lugar para uma fé “má”, afinal, uma vez que a boa fé é, também, má-fé, não faz sentido falarmos no mal de uma fé. Nas palavras de Philonenko (1981, p. 158): “Se o Pólo Sul não existe, não há nenhum sentido em falar do Pólo Norte”. Por fim, a má-fé, abolindo as noções de bem e de mal, opor-se-á à própria bandeira humanista de Sartre, em nome de uma filosofia angustiante:

Perante o problema do mal radical a filosofia sartriana, que não pode mais usar a palavra “mal” a não ser de uma forma elíptica, porque o bem não tem sentido, está acuada, desde suas primeiras páginas, a declarar-se ela mesma como uma filosofia do mal-estar. (ibid.).

No entanto, isso não é tudo. Para Philonenko, ao colocar no mesmo plano o ideal de identidade e a objetividade das coisas, Sartre fará de qualquer tentativa de estabelecer uma “coerência moral”, no plano da conduta humana, uma tentativa fadada ao fracasso. Como leitor de Fichte, insinua Philonenko, Sartre deveria saber que a identidade que se revela no “eu” não pode e nem deve ser a identidade das coisas; contudo, o conceito (de identidade) seria salvo, se falássemos de uma justificação plenamente leal da coesão do estilo de um sujeito no plano de suas ações. Assim, enfatiza Philonenko (1981, p. 157):

É estranho que Sartre não tenha visto que a identidade que se revela na unidade do Eu puro visa menos a unidade inerte da coisa do que a conceito ético fundamental de coerência (cohérence). A unidade ética não é de forma alguma o A=A que nos reconduz às coisas, mas esta coerência que, em sua coesão, é a raiz da evidência irrecusável do estilo [...] se Sartre, ao menos em L’être et le néant, não desvendou o conceito de coesão, ele foi em sua vida o homem da coerência.

Estas últimas palavras deferem o golpe de misericórdia na argumentação de base da má-fé e, ao fim e ao cabo, na própria postura de Sartre como um filósofo da liberdade absoluta. Se não há algo que restabeleça uma unidade ética do “eu”; se “eu não sou livre para existir, mas somente para jogar”; em suma, se (como sublinha Philonenko, citando incansavelmente as palavras sartrianas) “eu não sou jamais nenhuma de minhas atitudes, nenhuma de minhas condutas”, então, só haverá espaço para uma liberdade total e, ao mesmo tempo, inautêntica. Segundo Philonenko (1981, p. 158, parênteses nosso): “Sem dúvida nós diremos que o ato é livre e, para Sartre, injustificável na mesma medida onde, livre, ele é grundlos (do alemão: infundado)”.

Ora, questionará o crítico de Sartre, se esse filósofo assumiu para si a postura do engajamento, como pode ele sustentá-la a não ser de má-fé? De fato, o próprio Philonenko (1981, p. 157) já havia respondido: “Entre a impossível sinceridade e a por demais real má-fé se revela o abismo insondável da vida ou, se preferirmos, sua obstinação absurda”. Nesses termos, não haveria nada o que fazer com essa liberdade da qual fala Sartre, e no fim das contas com um projeto de resistência que sua vida parece refletir, pois somos livres apenas para agir de má-fé e nossa improvável pretensão de resistir se torna absurda, num mundo de máscaras. Encerra, pois, Philonenko (1981, p. 159, parênteses nosso):

Nós descobrimos aqui a dualidade imanente ao pensamento de Sartre. De um lado ele se vê humanista e o é, com efeito, na medida em que só quer falar do homem e nada compreender que não seja humano. Mas, por outro lado, ele não pode se impedir de realizar um julgamento severo que, no fim, se volta para atingir a ele mesmo [...]. Eu sou, se isto é inteligível, uma liberdade cujo destino e a finalidade é a máscara [...]. A liberdade é a liberdade-para-a-máscara e aqui se funda a filosofia do mal-estar (la philosophie du malaise).

Paremos por aqui, porquanto tais palavras não demandam mais comentários: trata-se, a despeito dos elogios que seu autor tecerá a Sartre ao fim de seu artigo, de um ataque maciço e feroz sobre a filosofia sartriana. Caberia notar, por último, uma interpretação desse termo “malaise”, usado para definir tal filosofia. Trata-se, ao que nos parece, de conferir-lha um caráter de inconformismo, de gratuidade moral: tanto faz ser de boa ou má-fé, porque não há nada a se fazer com a liberdade (sartriana) a não ser negá-la pela má-fé; em resumo, porque, ao fim e ao cabo, a ontologia de Sartre, a despeito de seu comentado engajamento, parece nos conduzir à recusa dos valores e, nesse sentido, a um niilismo.

Concluindo, se, para além das críticas, perscrutarmos a motivação de Philonenko, esbarraremos em sua tentativa de recuperar não tanto as ideias de “identidade” ou de “sinceridade”, porém, essencialmente, a intuição, que geralmente acompanha tais ideias, de que pode haver algo no humano além da estrutura instável da má-fé. Philonenko nomeia-o de “coerência do estilo”, e o próprio engajamento de que fala Sartre deveria pressupor uma coerência dos atos, à revelia da teoria da má-fé. De resto, não é somente para preservar uma sinceridade sustentada na noção de “coerência” que a má-fé é recusada, mas, também, porque esta última parece não nos deixar escapatória, fazendo da liberdade sartriana um conceito, no mínimo, vazio e inautêntico e, dessa maneira, obnubilando a visão de um caminho seguro para a fundamentação de uma ética.

Quanto a nós, podemos dar início a uma discussão tomando como referência a afirmação sartriana, segundo a qual “eu não sou jamais nenhuma de minhas condutas, nenhuma de minhas atitudes”, a partir da qual a crítica de Philonenko igualmente se inicia. Decerto, uma afirmação tipicamente sartriana. Porém, ao recorrermos às palavras de Sartre, constatamos que tal frase está incompleta. Aliás, é curioso que o olhar criterioso de um historiador da filosofia, como Philonenko, tenha destacado uma afirmação que, para dizer a verdade, não condiz com um contexto no qual ela pode ser compreendida. Tomemos o exemplo do rotulado homossexual cuja conduta, num primeiro momento, não seria de má-fé. Assim, observem-se as palavras de Sartre (1943, p. 104, parênteses nosso) acerca do homossexual:

Teria razão (isso é, não estaria de má-fé) realmente se entendesse a frase “não sou pederasta” no sentido de que “não sou o que sou”, ou seja, se declarasse: “Na medida em que uma série de condutas se define como condutas de pederasta e que assumi tais condutas, sou pederasta. Na medida em que a realidade humana escapa a toda definição por condutas, não o sou”.

Ora, a afirmação “a realidade humana escapa a toda definição por condutas” só possui sentido nesta cadeia argumentativa de Sartre, se precedida pela outra “uma série de condutas se define...”, o que significa que, respeitando o contexto da citação, se “eu não sou nenhuma de minhas condutas”, ao mesmo tempo, eu também “devo me definir por uma série de condutas”. Ao contrário, afirmar apenas “eu sou este ato” ou “eu não sou nenhum destes atos” significa encerrar a liberdade, na identidade ou na relatividade absolutas, respectivamente. Entretanto, como Philonenko bem sabe, para Sartre, o ser da realidade humana é um fazer-se: donde, se Sartre tivesse relevado como baluarte de sua filosofia a afirmação citada pelo seu crítico, ele estaria incorrendo no erro denunciado por sua própria arguição, inclusive porque, como veremos, essa afirmação abre precedentes à má-fé. Não obstante, subestimar as críticas de Philonenko não nos faz avançar além da imprudência. Como este último insiste, declarar “eu sou...” não pode implicar, por si só, uma liberdade que, nos limites de uma identidade coisificante, só existe para se fazer de má-fé.

Todavia, o fato é que, até esse ponto, não há discordância com Sartre: este não sustenta que a liberdade de afirmar “eu sou...” só pode ser de má-fé, mas sim que esta liberdade pode ser negada para si mesma se, com tal afirmação, o sujeito se esquiva da responsabilidade pela escolha que ele imputa a esse “eu”. O indivíduo que, pelo ato do matrimônio, converteu-se no marido fiel “até que a morte o separe” encerra a sua liberdade no momento em que afirma: “eu sou este ato, eu sou casado”. Porém, mais do que encerrar sua liberdade, ele a negará para si mesmo, se tentar se convencer de que seus atos fluirão naturalmente da sua essência de “homem de família”. Está aí a brecha à má-fé: quando, desprevenido, talvez diante do olhar de uma linda mulher, ele sente culpa por não ser em-si o homem fiel que ele jurou ser; ou quando ignora a amarga constatação de que a fidelidade não percorrerá seu corpo inerte após o “sim” matrimonial e, para escapar de sua culpa, se ressente com sua esposa e se justifica com mil desculpas. Doravante, ele até poderá afirmar ser esse ato (de traição), contudo, na verdade, sentir-se-á bem com sua sinceridade, já que, depois da confissão, tudo lhe é permitido. Por outro lado, se a culpa por não cumprir o “dever da verdade”, ou o medo em assumir o que é “em-si”, forem insuportáveis, ele poderá negar essa determinação imposta pelo ideal de sinceridade. Não obstante, a necessidade dessa negação impor-se-á diante de sua sombra, diante dessa sentença perpétua que ele já deu a si próprio (“devo assumir: sou um mal-caráter”), para, no fim, tentar escapar ileso, afirmando não ser nenhum de seus atos.

Ora, a má-fé só se consuma nas afirmações “eu sou...” ou “eu não sou”, porquanto o sujeito procura se livrar da culpa que acossa esse “eu”. Assim, a partir de tais cristalizações do ser da realidade humana, isto é, a partir do momento em que se desvia do sentido da palavra “ser”, entendendoa como “ser em si” ou “ser e não ser em si”, e tenta imprimir a passividade das coisas ao humano, cujas ações deixam de ser escolhidas e passam a ser determinadas, o sujeito pode tentar convencer a si de que a responsabilidade pelas consequências de tais escolhas não lhe cabe: eis a tentativa de mentira da má-fé.

Este parece ser o segundo ponto que passou despercebido por Philonenko: a má-fé não se efetiva na liberdade do ato, embora essa liberdade seja a sua condição, mas, pela não assunção das implicações desse ato. A finalidade da má-fé é escapar da responsabilidade pela compreensão “préjudicativa”, como diria Sartre, daquelas implicações. Se há um mal nesse ato, não será na liberdade que o encontraremos: no que concerne ao julgamento moral da má-fé, de uma “liberdade que só existe para o mal”, o primordial é a responsabilidade, e não a liberdade. A má-fé se concretiza depois que os dados foram lançados, quando a responsabilidade pelas consequências de participar do jogo é ignorada: não se trata de julgar uma liberdade que existe para o mal, e sim de julgar uma responsabilidade que deve ser assumida quando aquela liberdade já se encerrou a si própria.

De todo modo, a suposta imprecisão de Philonenko não ofusca a pertinência da questão subjacente a sua crítica, em relação à maldade de um ato de má-fé. Tal questão nos faz pensar em que sentido podemos atribuir uma má intenção a tal ato, dada a condição paradoxal de sua ocorrência estipulada por Sartre: não se trata de um ato hipócrita ou cínico, não obstante o agente deva estar plenamente consciente de sua conduta. Sejamos diretos: lidamos aqui com a complexa relação entre o conhecimento e a consciência, ou melhor, entre a reflexão e o chamado plano irrefletido, uma vez que, não sendo pura dissimulação, a má-fé parece ser um problema cuja solução só pode ser encontrada na análise da consciência irrefletida; ao passo que, hipoteticamente, uma má intenção (de agir de má-fé) só pode ser concebida no plano da reflexão. Trata-se, portanto, de um ponto de tensão que não podemos ignorar.

Primeiramente, é preciso ter em mente que a má-fé não pode ser entendida apenas como uma formulação teórica: deve ser contextualizada “em situação”. Tomando um exemplo tipicamente sartriano, a má-fé ocorrerá quando eu me capte apreensivo e, após uma introspecção, assuma que “sou um covarde” e, por fim, queira fugir dessa covardia em-si que determinei a meu ser, através de certas justificativas. Mas, em segundo lugar, não sou em-si covarde ou corajoso porque esse modo de ser de forma “exteriorizada” pertence ao ser dos objetos; ao passo que meu ser está em questão para si mesmo, a título de uma negação interna de si. Quer dizer, a coragem que eu quero ser só “aparecerá” depois de um ato. Logo, em terceiro lugar, antes de agir, não sou essa coragem da qual eu espero o porvir de minha conduta. Por fim, angustiado perante minha incapacidade de “ser-em-si” corajoso, preciso eliminar a negatividade que a constitui, para me deixar sorver pela positividade e a determinação do em-si: eis o “processo” da má-fé. Donde, se em determinada situação sinto que o outro espera que eu seja corajoso, poderei responder “afirmo de boa fé: não o sou”. Aqui, um “Eu” e seu mundo petrificado podem coagular a indeterminação que transborda de meu ser, para que eu possa, afinal, “ser-em-si” alguma coisa além dessa indeterminação. Em seguida, posso dissimular de mim mesmo aquela covardia, que imprimi a meu ser, ao buscar razões para justificar por que tais circunstâncias me “transformaram” neste covarde que eu sou e do qual quero fugir sendo-o à maneira de não ser. Direi, por exemplo: “não sou covarde, mas, minha mãe nunca me incentivou a ser corajoso”. Estarei, por conseguinte, fugindo da covardia, sendo e não sendo corajoso, quer dizer, fugindo do ser e refugiando-me no eterno não-ser-o-que-sou para, novamente, pairar sobre essa plasticidade que imprimi ao meu ser.

Todavia, reparemos: a estrutura da automentira já estava presente na afirmação de boa-fé – e é por isso que a má-fé desliza pela boa-fé e corrompe o ideal de sinceridade. Isso porque, de imediato, embora não possuindo qualquer evidência para afirmar (sinceramente) que não sou corajoso, já estava tentando mentir a mim mesmo, quando me determinei “ser covarde”, enfim, enquanto tentava me convencer de que a essência de meu ser era a covardia, em meio àquela situação em particular, em que me sentia apreensivo, situação na qual eu evitei a questão: “sou covarde?” Ora, trata-se de uma consciência “irrefletida”, tomada pelo transcendente, e que evita o questionamento de si através de uma “verdade” imediata. Nesse sentido, a má-fé não se constitui apenas quando tento escapar do ser-em-si da covardia, mas, antes, quando “sem pensar” já me encerrava nessa covardia em-si, da qual depois eu tentaria escapar, pois também nesse encerramento urge negar aquilo que, de fato, sou: uma questão para-si.

Entretanto, isso não significa que tal negação não seja consciência “de ponta a ponta”: não se trata de uma tentativa inconsciente de automentira. De imediato, sendo pré-reflexiva, minha consciência não pode conhecer o seu ato de má-fé, visto que está implicada no objeto transcendente; no entanto, ela está em questão para si e pode angustiar-se em seu questionamento ou ignorá-lo. O conhecimento virá em seguida, e será “impuro”, como chama Sartre, se perpetuar aquele ato ignorando este “fazer-se-questão-a-si”. Porém, se a má-fé já se anuncia naquele mundo imediato, é igualmente nele que deveremos defrontá-la, ainda que essa defrontação não seja possível sem certo incômodo proveniente da incerteza dada no questionamento: eis a conveniência de uma verdade imediata, o modo mais fácil de negar essa questão-para-si. É o que acontece quando, em situações inusitadas de dor, medo ou súbita melancolia, nós nos entregamos ao sofrimento, ao desespero ou à tristeza, respectivamente. Tais reações “irrefletidas” visam, na má-fé, à persuasão imediata de que somos passivos em relação ao encontro com o mundo. Embora essa persuasão permita, enquanto consciência emotiva, “abandono da responsabilidade”, nas palavras de Sartre (1965, p. 69), ela não é vivida como persuasão para si: não é uma dissimulação, pois, na emoção, a consciência é “refém” de si mesma enquanto projetada no transcendente.

Assim, se existe um projeto de negar a responsabilidade, ainda que tal projeto esteja sendo escolhido num “estou triste”, ele não estará sendo conhecido para si, porque aí nada há além desse entregar-se à situação melancólica, por exemplo. Reparemos: não há circularidade aqui, pois a máfé não causa um projeto de fuga o qual, por sua vez, é a causa da má-fé. Em tese, a conduta (de má-fé) precede a escolha que a reitera. Porém, nos termos sartrianos, entre o projeto e uma atitude particular no imediato não há, de fato, uma diferença ontológica, uma precedência temporal; e tampouco uma causalidade ou um ponto de origem dado num instante infinitesimal. Há, sim, pulsando em cada detalhe de uma vida, a aparição de uma escolha original que, enquanto não questionada para si, se reafirma nesses detalhes, entre os quais, é claro, suas emoções. Ocorre que, na emoção, o abandono da responsabilidade não é premeditado, mas contemporâneo da escolha que o reitera, através de uma postura vacilante, à qual poderei recorrer, quando a compreensão do projeto implicado nessa escolha tornar-se angustiante. Assim, choro e compreendo que, nessa situação, escapo das exigências constituintes do mundo que meu projeto faz aparecer. Ora, compreensão é consciência, questão, angústia: na unidade de um mesmo ato (emotivo), posso escapar daquilo que me faço ser. “Aqui” – como diria Sartre (1965, p. 62) – “a crise emocional é o abandono da responsabilidade”. Por conseguinte, aceito uma passividade a qual descubro por atos que, após essa aceitação, podem ser ditos de má-fé: no momento em que tenho efetivamente a chance de abandonar esta passividade, enquanto uma reflexão “impura” ainda não cristalizou a determinação de meu mundo imediato, ainda não enumerou as “causas” de meu sofrimento, enfim, enquanto meu ser está em questão para si, enquanto implica outro ser que não ele mesmo, eu ignoro tal questão.

Mas, afinal, o que significa ignorar a questão que somos? Significa, no fim das contas, escolher tentar ignorar a própria ignorância e, sem embargo, esta é a escolha da má-fé. Ademais, não é sem razão que usamos esse termo (“tentar”) aqui e sempre: trata-se certamente de uma tentativa, diga-se, fadada ao fracasso, já que a consciência não obtém sucesso em fazer-se em-si. Desse modo, é este o fracasso do qual, ao fim e ao cabo, a má-fé pretende se esquivar. Entretanto, como bem lembra Silva (2003, p. 51), comentando um texto de Sartre[3]: “Ignorar significa saber que tudo está por saber, e isto nos faz responsáveis pela nossa ignorância”. Portanto, podemos “não saber”, mas, não podemos “não saber que não sabemos”: a ignorância ignorada não é passividade não-consciente, só pode ser escolha. Por exemplo, é cabível e bem frequente que desconheçamos as razões pelas quais não mudamos nossos hábitos, porém, incabível que não constatemos esse desconhecimento, porque, uma vez dado, pelo erro, pelo vício, pela carência, pelo outro, por nosso lugar, em suma, por um projeto que, em situação, constitui a facticidade que é a condição de sua liberdade, todo desconhecimento já é vivido como tal e, por isso, impossível de ser ignorado, a não ser por uma escolha. Não uma escolha premeditada qualquer, tal como quando se diz “escolhi mudar de vida”, mas original, espelhada em cada ato e não conhecida nesse ato, embora absolutamente consciente.

Se há, destarte, uma maldade na má-fé, ela não se diz enquanto tal: vem antes da moralidade, por assim dizer, pois está no fato de ignorar o questionamento angustiante da escolha de certos valores, por exemplo, e não no fato de que esta foi uma escolha perversa. Sem embargo, o problema em delimitar a “maldade” da má-fé reside no fato de que, enquanto fuga de si mesma, a má-fé se caracteriza como um tipo de automentira, e não por uma intenção fingida de dizer a verdade, uma dissimulação ou um cinismo; dessa maneira, fica difícil afirmarmos que se trata de uma má intenção. Em certo sentido, a má-fé não poderia ser julgada como má à luz de uma verdade ou um estilo, contudo, como uma “má predisposição” (contanto que esta não seja inconsciente), na medida em que o sujeito da má-fé está predisposto a assumir verdades, estilos etc., para justificar seus atos: predisposto a assumir uma essência para justificar sua existência. Sendo assim, se todo julgamento de conduta depende de um valor preestabelecido, tomado como essência que precede a existência daquele que é julgado, toda crítica à conduta de má-fé corre o risco de tornar-se ela mesma de má-fé, se essa crítica, fundando-se naquele valor, livrar o sujeito da responsabilidade inerente à escolha de um estilo, por exemplo.

Portanto, podemos julgar um homem afirmando sua conduta de máfé, apontando a responsabilidade que ele não quer assumir por sua ignorância ignorada; mas, reprovar sua atitude e apontar o caminho (o valor, o estilo, o saber etc.) “correto” a ser escolhido abriria precedentes à sua confissão, à sua absolvição, enfim, à isenção de sua responsabilidade. Eis, pois, uma conclusão inevitável: nada nos impede de questionar os valores, verdades ou estilos que seguimos, ainda que como autômatos: mesmo que não saibamos o porquê, sabemos que não abandonamos certos hábitos, por exemplo. Ignorar esse saber é uma escolha de má-fé. Assim, se há na conduta de má-fé uma “maldade”, esta só pode ser apreendida na ignorância ignorada, e este é, precisamente, o único julgamento que a ela podemos interpor: não podemos julgar tal conduta por negar uma tábua de valores ou assumir outra, escrita há dois mil anos atrás, por exemplo; todavia, tãosomente, por negar a constatação de que a significação desses valores se reduz ao nada de ser do sujeito.

Com efeito, se a má-fé é a ignorância ignorada, e se somente dessa forma apreendemos a sua maldade em “estado puro”, por sua vez, a liberdade será a ausência de uma determinação que impeça o sujeito de reconhecer que ignora a sua ignorância acerca de si. Segue-se que, se podemos escolher e julgar a má-fé nos termos em que acabamos de delimitar, em contrapartida, não podemos escolher se seremos ou não livres, ou julgar a liberdade: a liberdade não pode ser para o mal ou para o bem, porque ela é a condição da escolha do que é o mal ou o bem, por exemplo. Entretanto, se quisermos partir de uma fé má, ou boa, precisamos de um valor preestabelecido servindo de fundamento à realidade humana, uma essência precedendo a existência. Ora, ao cobrar de Sartre uma “coerência do estilo”, Philonenko cobra um parâmetro de avaliação moral, limitando-se a esse plano das essências, solidificando o ser da realidade humana no “estilo”. Aqui, temos já uma cristalização e, por conseguinte, um meio sutil de driblarmos a angústia de nossa responsabilidade; basta que se diga: “Agi em conformidade com meu estilo”. Nesses termos, a decisão, a partir de uma definição preestabelecida acerca do que é uma fé “boa”, sobre quando poderá e quando não poderá haver uma “coerência do estilo”, será, na esteira do pensamento sartriano, uma decisão de má-fé, uma vez que, justificando-se pelo que já estava dado, pode isentar-se da responsabilidade pelas consequências de si mesma.

Donde a terceira imprecisão da crítica de Philonenko a Sartre: considerando o que fora afirmado por este último, a coerência de um estilo deve, em situação, ser reconhecida como gratuita, pois não pode oferecer justificação dos atos ou garantia de sinceridade, a não ser pela má-fé. Parecenos que Philonenko toma o conceito ontológico de liberdade em perspectiva moral e, dessa forma, julga a filosofia sartriana incapaz de mostrar-se “engajada”, já que esta liberdade só existiria para o mal, para fazer-se de má-fé. Ocorre que, a rigor, não podemos cobrar engajamento ou julgamento moral da ontologia sartriana; no limite, buscar nela uma reflexão ética cujo vislumbre é a liberdade à qual estamos condenados. Assim, ao exigir de Sartre que nos revele o que é “ser autêntico”, por exemplo, talvez pretendamos nos resguardar de uma inevitável aguilhoada angustiante, isentando-nos (da liberdade) de reinventar nossa autenticidade e por ela nos responsabilizarmos. O problema, portanto, não está em haver ou não um estilo, mas, em haver, através dele, a justificação de palavras sinceras ou insinceras, saberes verdadeiros ou falsos, atos bons ou maus, valores certos ou errados etc.

Caberia lembrar, em caráter conclusivo, um caso narrado por Sartre (1973, p. 10) acerca de um de seus alunos que, angustiado em certa situação, viera perguntar-lhe se deveria partir à guerra ou ficar e dar atenção à sua mãe enferma; e que, por fim, esperou que seus sentimentos guiassem sua escolha. Ora, pergunta Sartre (1973, p. 11): “O que é que constitui o valor do sentimento que ele tinha por sua mãe? Precisamente o fato de que ele permanecera, por ela”. Ou seja, o jovem esperou que o valor de seus sentimentos o levasse a agir, porém, essa espera foi a sua escolha, e foi somente depois desse ato que o valor surgiu. Eis aí as reticências, das quais falávamos no início, da pena sartriana: esta transcende um plano moral puramente prescritivo e nos deixa, no plano ontológico, à beira de uma ética, o encargo da responsabilidade. Desse ponto de vista, o mais importante não é se vamos seguir ou não um estilo, e sim que o façamos cientes de que nossa existência não se reduz a essa essência. Entende-se, por fim, como algumas das melhores intenções, daqueles que negam a ideia de liberdade sartriana (talvez por se decepcionarem perante a situação injustificável à qual essa ideia nos conduz), podem se realizar na má-fé. É frequentemente alegando uma “boa vontade” que exigimos de nós e do outro a sinceridade, e é de boa fé que buscamos seguir certos valores “inquestionáveis”, mesmo – e sobretudo – aqueles que nos dizem que “todos devem ser livres”; mas, sem dúvida, os atos mais perversos já se justificaram em nome de tais valores. Quando estes são tomados como preeminentes em relação à realidade humana, uma essência vem preceder a existência, e a vida é subjugada em nome de um valor, de uma verdade ou mesmo de um estilo. Eis contra o que se coloca o humanismo sartriano: como, afinal, conceber nisso algum malestar? Essa é a questão que, se nos fosse permitido, dirigiríamos respeitosamente a Philonenko.

ABSTRACT: The aim of this paper is to discuss the Philonenko’s criticism (1981) to the sartrian‘s concepts of “bad-faith” and “freedom”. One of the pillars of this criticism is to defend the notion of “coherence of style”, an indispensable element to safeguard the authenticity so relevant for Sartre, according Philonenko. However, when Sartre says “I’m not ever any of my conduct, none of my actions”, limits the freedom advocated by himself on the horizon of a malicious deception, that is, the horizon of bad- faith. We found three inaccuracies in this criticism. First, the statement aforementioned of Sartre was misinterpreted. But secondly, if this interpretation is correct, assuming that the style is essential to the authenticity, nevertheless the sartrian’s freedom cannot be “for the evil” because it is characterized, in ontological terms, as the very being of human reality “in situation”, not in moral terms, as a property of this reality, crystallized by a watchful eye on itself or on the other, and judged as good or bad. Finally, we conclude that, in a possible conduct authentic, the collapse of the bad faith dispenses not only the support of a coherence of style but also presupposes the anxious acknowledgment of his gratuity.

KEYWORDS: Ontology of the subjectivity. Responsibility. Ethical reflection. Bad-faith.  Freedom.

Referências

PHILONENKO, A. Liberté et mauvaise foi chez Sartre. Revue de

Métaphiysique et de Morale, Paris, n. 2, p. 145-63, 1981.

SARTRE, J-P. L’être et lê néant. Paris: Gallimard, 1943.

SARTRE, J-P. Esboço de uma teoria das emoções. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1965.

SARTRE, J-P O existencialismo é um humanismo. São Paulo: Abril Cultural, 1973.

SARTRE, J-P. A transcendência do ego. Lisboa: Colibri, 1994.

SARTRE, J. P. O imaginário. São Paulo: Ática, 1996.

SILVA, F. L. Conhecimento e identidade histórica em Sartre. Trans/form/ação, São Paulo, v. 26, n. 2, p. 43-64, 2003.



[1] Doutorando (CNPq) do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar. E-mail: malcomrodrigues@yahoo.com.br

[2] O termo “ek-sistência” denomina, nas palavras de Leopoldo e Silva (2003, p. 45), “o ente que tem o seu ser fora de si, o ente que caminha na direção de sua entidade, sempre separado dela e sempre tendendo para ela sem nunca alcançá-la. O ente que existe sem ser, no sentido de viver a ausência de sua plenitude [...]”.

[3] Verdad y Existencia. México: Paidos, 1996.