A VERDADE COMO UM PROBLEMA FUNDAMENTAL EM KANT

Adriano PERIN[1]

RESUMO: O principal ponto de desacordo sobre a abordagem kantiana do problema da verdade é se ela pode ser compreendida nos moldes da filosofia contemporânea como coerentista ou como correspondentista. Primando por uma consideração sistemática da argumentação de Kant em confronto com a literatura existente sobre o problema, este trabalho defende a segunda alternativa. Sustentase a tese de que a definição da verdade como a “concordância do conhecimento com o seu objeto” é cogente em todo o percurso do pensamento kantiano e que, nessa acepção, a verdade culmina por ser abordada não a partir de uma teoria estabelecida, mas como um problema cuja solução não pode ser dada nos limites da filosofia crítico-transcendental. Pondera-se, primeiramente, a literatura que situa Kant quer como coerentista quer como correspondentista e sistematiza-se a segunda alternativa em quatro grupos: a leitura ontológica, a leitura isomórfica, a leitura “consequencialista” e a leitura regulativa. Num segundo momento, em atenção ao período pré-crítico, argumenta-se que a alternativa coerentista deixa de se confirmar já nessa mesma época e que, na década de 1750, Kant descarta uma suposta teoria correspondentista isomórfica. Num último momento, considera-se a argumentação crítica e defende-se que a mesma concebe a verdade como um problema fundamental que não cabe ao tratamento de uma teoria correspondentista concebida de modo “consequencialista” ou regulativo.

PALAVRAS-CHAVE: Teoria coerentista. Teoria correspondentista. Representação. Objeto. Refutação do idealismo.

Introdução

Dentre os revides à pergunta “o que é a verdade?”, encontram-se sistematizadas, na filosofia contemporânea, duas respostas distintas e, em boa medida, contrapostas: (i.) de acordo com as teorias correspondentistas, a verdade consiste na correspondência de um elemento portador de verdade (conhecimento, juízo, proposição ou conceito) a um elemento gerador de verdade (objeto, fato ou evento), que torna o portador verdadeiro; (ii.) conforme as teorias coerentistas, por outro lado, a verdade consiste na relação dos próprios portadores de verdade em um conjunto coerente dos mesmos.

Nas obras publicadas, nas Vorlesungen e nas Reflexionen que compõem o corpus da filosofia kantiana, é possível encontrar passagens que prima facie favoreceriam ambas as respostas. Isso justifica como não vã a imensa discordância – tanto por parte de pensadores contemporâneos que edificam a sua concepção com ou contra o idealismo kantiano, como de intérpretes dispostos a uma reconstrução nos limites do próprio pensamento críticotranscendental – sobre qual é de fato a resposta de Kant para o problema da verdade.

Dar conta dessa “discordância”, imensa não somente pela generalidade de autores, como também de argumentos, seria uma empreitada no mínimo suspeita e desafortunada ao máximo. No que procede neste trabalho, tomase por tarefa, contudo, a consideração das principais posições da literatura diretamente referidas a Kant, a fim de defender a tese de que ele concebe o problema da verdade a partir da justificação da “concordância do conhecimento com seu objeto”. Essa tese é amparada por três partes da argumentação do trabalho.

A primeira parte se detém especificamente na análise da literatura que procura situar Kant quer como coerentista quer como correspondentista. É apresentado o percurso da defesa da leitura coerentista desde a década de 1910 até a década de 1980. Outrossim, são fornecidos os argumentos da literatura recente que procura desmentir a leitura coerentista e justificar o modo como Kant garante uma resposta ao problema da verdade, através da via correspondentista. Quanto ao segundo ponto, são sistematizadas quatro posições: (i.) a leitura ontológica; (ii.) a leitura isomórfica; (iii.) a leitura “consequencialista”; (iv.) a leitura regulativa. Procura-se desfazer a “leitura ontológica” ainda no final desta parte do trabalho, a “leitura isomórfica” na segunda parte, com a consideração do percurso pré-crítico do pensamento kantiano, e as leituras “consequencialista” e regulativa na terceira e última parte, com a análise do problema da verdade no período crítico.

A segunda parte apresenta o percurso pré-crítico da consideração do problema da verdade. Parte-se por garantir que, se ainda cogente, a “leitura isomórfica” seria defendida por Kant muito sumariamente no início da década de 1750. No que segue, apresenta-se a impossibilidade dessa leitura já a partir da Nova dilucidatio, de 1755. Nessa parte do trabalho, procura-se ainda contrapor a tese corrente na literatura atual de que, se não correspondentista isomórfica, a posição kantiana no período pré-crítico se configura como coerentista. Este último propósito é empreendido em atenção à Nova dilucidatio de 1755, às Reflexionen da década de 1760, e às Vorlesungen e à Dissertação inaugural da década de 1770. Conclui-se a defesa da consideração correspondentista da verdade no período pré-crítico com a questão da carta a Herz de 1772, acerca da relação da “representação” com o “objeto”. Sustenta-se que, na década de 1770, Kant chega à necessidade da justificação da “correspondência” entre representação e objeto em dois domínios, i.e., o sensível e o intelectual, e que a abordagem crítica procuraria superar essa dualidade com o tratamento do problema da verdade como a correspondência do conhecimento justificado mediante a correlação das faculdades da sensibilidade e do entendimento e o seu objeto.

A última parte do trabalho leva em conta o problema da verdade no período crítico. De início, são apontados os dois trechos da Crítica da razão pura, onde Kant aborda sistematicamente o problema da verdade. Em atenção ao trecho de B 350-51, no qual Kant sustenta que a verdade se situa no juízo sobre o objeto, defende-se que o mesmo não serve de apoio para uma leitura coerentista e também desmente essa leitura, no contexto da teoria kantiana do juízo. Em atenção ao trecho de B 82, no qual Kant apresenta a definição de verdade como a “concordância do conhecimento com seu objeto”, sustenta-se que o mesmo serve de base para se ponderar a posição kantiana sobre o problema da verdade como correspondentista, não num plano “regulativo” ou “consequencialista”, mas fundamental de sua filosofia teórica. Para tal, argumenta-se que o problema da verdade deve ser situado no contexto da refutação do idealismo e que Kant procura dar conta do mesmo de modo consideravelmente diferente nas duas edições da Crítica. Culminase a defesa da posição kantiana como correspondentista e situada num plano fundamental da sua filosofia teórica, com as Reflexionen posteriores a 1787, nas quais Kant manifesta as dificuldades presentes na justificação do objeto implicado na definição de verdade, em face da premissa-base da sua filosofia de que o objeto em si mesmo é incognoscível e indeterminado teoricamente.

1  Kant entre coerentistas e correspondentistas

Por parte dos intérpretes que buscam uma reconstrução do problema da verdade nos limites do idealismo kantiano, encontram-se, já no final da década de 1910, as alegações de Kemp Smith de que “Kant esboça a posição que agora é intitulada a teoria Coerentista da verdade”[2] e de que “[a] tese fundamental da teoria Coerentista encontra formulações explícitas na teoria do juízo de Kant”.[3]  Kemp Smith admite que “[...] o próprio Kant nunca empregou o termo Coerentista, e ele constantemente adota posições que estão mais em harmonia com a visão Correspondentista da natureza e das condições do conhecimento”.[4]  Contudo, ele acaba por concluir que “Kant foi o verdadeiro fundador da teoria Coerentista da verdade”.[5] Essa posição de Kemp Smith é confirmada, no mesmo ano de 1918, por Ernest Cassirer. Esse autor relega a possibilidade de uma teoria correspondentista no pensamento de Kant, porque entende que, “[...] no sentido crítico, a verdade do objeto é sempre apreendida e substanciada através da verdade do juízo”.[6]Quer dizer, “[...] não é porque há um mundo de objetos que há para nós, como sua impressão e imagem, um mundo de conhecimentos e verdades; pelo contrário, porque há juízos incondicionalmente certos [...] há para nós uma ordem que é designada não apenas como uma ordem de impressões e representações, mas também como uma ordem de objetos”.6 As posições de Kemp Smith e Cassirer são amparadas, na década de 1980, por Gerold Prauss, o qual garante empreender uma Deutungstheorie que visa a apresentar a posição kantiana numa versão mais clara e consistente da maneira que Kant o poderia fazer. Segundo Prauss, “[...] nos moldes dessa Deutungstheorie a lograda ‘Korrespondenztheorie’ da verdade deve então se transformar numa ‘Kohärenztheorie’ mesma, através da qual nós obtemos todos os critérios para a verdade unicamente do princípio de contradição”.[7]

Recentemente, uma reconstrução mais cuidadosa da argumentação kantiana objetiva não apenas revelar a interpretação coerentista como errônea, mas também justificar como Kant de fato apresenta uma resposta para o problema da verdade, mediante a alternativa correspondentista.

Quanto ao primeiro cuidado, Tom Nenon se preocupa em desfazer a aparente legitimidade de três premissas que poderiam ser adotadas em um argumento a favor da interpretação de que a filosofia de Kant envolve um abandono da teoria correspondentista da verdade: (i.) Kant rejeita explicitamente a teoria correspondentista da verdade; (ii.) Kant nunca rejeitou declaradamente a teoria correspondentista e continuou a usar a terminologia da tradição a respeito dela, mas ele ainda sustentaria que a sua filosofia implica pelo menos um abandono implícito da mesma; (iii.) Kant nunca rejeitou – explicita ou implicitamente – a teoria correspondentista, mas, a partir dos argumentos de sua posição na Crítica da razão pura, é possível dizer que ele deveria ter feito isso.[8]

No mesmo intuito, Alberto Vanzo propõe uma abordagem do idealismo kantiano de modo a desmentir a concepção segundo a qual a sua teoria da verdade compreende uma posição coerentista expressa pela “verdade do juízo” num todo coerente de juízos. Esse autor considera a impossibilidade de uma teoria coerentista da verdade em Kant em três níveis da argumentação do pensamento crítico-transcendental: (i.) a coerência com as leis da lógica formal; (ii.) a coerência com as leis da lógica formal, da analítica transcendental e da estética transcendental; (iii.) a coerência com as leis da lógica formal, da analítica transcendental e da estética transcendental e os dados dos sentidos.[9]

Quanto ao aspecto positivo do modo como Kant apresenta efetivamente uma resposta ao problema da verdade, são encontradas na literatura pelo menos quatro propostas que visam a justificar a definição de verdade como “concordância do conhecimento com o objeto”, no panorama do idealismo kantiano:

(i.) A LEITURA ONTOLÓGICA.  A “concordância do conhecimento com o objeto” significa “a concordância do entendimento com o objeto que é apreendido por ele, a saber, o fenômeno”. Com isso, a definição kantiana é eficaz, se compreendida no sentido da fórmula “adaequatio rei et intellectus” de Tomás de Aquino, sendo que, “[n]esse sentido, a teoria de Kant da verdade transcendental que implica a veracidade do conhecimento transcendental no final das contas é uma ontologia, a teoria do ser dos seres,  ou  do domínio objetual dos objetos”;[10]

(ii.) A LEITURA ISOMÓRFICA. “Kant é comprometido com uma versão fraca da teoria correspondentista, uma versão que tem fortes similaridades com a teoria da verdade como ‘imagem’ tractariana de Wittgenstein, e com a concepção de verdade ‘semântica’ de Alfred Tarski”. Nessa perspectiva, “Kant compreende que ‘a concordância do conhecimento com o objeto’ é uma explicação do conceito de verdade estrita e analiticamente correta, ainda que metafísica e epistemologicamente neutra”. Segundo essa interpretação, a definição kantiana de verdade se faz legítima, “[...] por construir o acordo ou a correspondência como uma projeção semântica isomórfica por um sujeito que julga a partir do conteúdo proposicional do juízo sobre um objeto real ou efetivo”, sendo que, “[n]essa visão kantiana, então, um juízo concorda com seu objeto, ou  possui uma relação de correspondência com um objeto, se e somente se cada constituinte semântico do conteúdo proposicional do juízo é sistematicamente pareado por um sujeito que julga um-a-um com uma característica de um objeto real ou efetivo, exatamente na mesma ordem em que ele ocorre naquela do conteúdo proposicional”;[11]

(iii.) A LEITURA “CONSEQUENCIALISTA”. A “correspondência” não deve ser situada no nível fundamental da argumentação, mas num nível consequente da justificação de juízos sintéticos a posteriori ou do conhecimento empírico, porque “[s]e é ou não possível comparar conhecimentos com os seus objetos é irrelevante para a justificação de juízos analíticos a priori” e “[s]e é ou não possível comparar conhecimentos  com os seus objetos é irrelevante também para a justificação de juízos sintéticos a priori”. Nesse caso, “[n]os resta juízos sintéticos a posteriori”, sendo que, “[a]o considerar intuições empíricas, poder-se-ia esperar ser capaz de comparar juízos sintéticos a posteriori com os objetos a que elas se referem”.[12]

Em outras palavras, se “[...] a solução de Kant  [...] não é uma teoria coerentista da verdade [...], ela é uma teoria redutível dos objetos do conhecimento empírico”.[13] A legitimidade de um teoria correspondentista da verdade em Kant fica, assim, garantida na medida em que “[...] para comparar um juízo sintético a posteriori com o seu objeto se deve averiguar se o juízo é um juízo testável empiricamente ou se ele pode ser inferido a partir de juízos empiricamente testáveis”;[14]

(iv.) A LEITURA REGULATIVA. É possível “[...] creditar Kant como vendo a necessidade de uma concepção mais sofisticada de correspondência”.[15] E essa “concepção mais sofisticada” deve agora ser entendida, assim como as ideias ou conceitos da razão, como um “ideal regulativo de investigação”.[16]Quer dizer, a posição kantiana “[...] poderia ser compreendida como correspondência, não enquanto uma definição nominal ou puramente formal da verdade, mas como um ideal regulativo de investigação”.[17]

O resultado último da leitura ontológica – qual seja, a pressuposição ontológica do objeto ou mesmo de um conjunto ou domínio objetual de objetos – é o elemento seminal para a consideração do idealismo kantiano ou como desprovido de originalidade frente à tradição ou como defensor de uma teoria coerentista da verdade. Que não a segunda alternativa fica prima facie dito na intenção dessa leitura de situar a posição kantiana como correspondentista. Agora, que também não a primeira alternativa parece ficar já dito por Kant na conhecida apresentação da especificidade do seu idealismo como não instituindo um domínio ontológico de objetos, mas apenas a possibilidade de que estes sejam determinados pelo nosso modo de conhecimento. Em outras palavras, um idealismo que tem presente a necessidade de “[...] o soberbo nome de ontologia [...] ceder lugar ao modesto nome de uma analítica do entendimento puro”.[18]

Que a posição de Kant, ainda que correspondentista, não pode também ser compreendida como isomórfica,consequencialista ou regulativa caberá avaliar nas duas últimas partes deste trabalho. Que a leitura isomórfica não representa a posição kantiana considera-se na próxima seção, na apresentação do problema da verdade no período pré-crítico. Que as leituras “consequencialista” e regulativa também não configuram a mesma posição verifica-se na terceira seção, na justificação de uma leitura que pretende representar o empreendimento crítico sobre o problema da verdade.

2  O percurso pré-crítico da consideração do problema da verdade

Uma reflexão de lógica de Kant, datada do início da década de 1750, parece certificar de forma particular a leitura isomórfica da sua posição sobre o problema da verdade. Nessa reflexão, apresentada como um comentário ao Auszug aus der Vernunftlehre, de Georg Friedrich Meier, Kant afirma o seguinte:

Repraesentatio est determinatio mentis (interna), quatenus ad res quasdam ab ipsa (nempe repraesentatione) diversas refertur. [A representação é a determinação (interna) da mente desde que ela se refere a algo que está fora dela (não uma representação)]. É aquela determinação da alma que está relacionada a outras coisas. Mas eu a chamo relacionada se a sua constituição é apropriada para a constituição de outras coisas, sive si rebus externis conformis est [ou se ela está em conformidade com coisas externas]. [...].

O que há então na representação que está em concordância com as coisas representadas? Desde que a representação toma o seu fundamento da coisa representada, ela concorda com esta última no sentido de que ela é composta a partir dos seus conceitos parciais do mesmo modo que o todo da coisa é composto a partir de suas partes.[19]

Ora, os autores que sustentam uma leitura isomórfica não apresentam referência a essa reflexão nem a qualquer outro texto do corpus da filosofia kantiana como base para sua interpretação. A preocupação poderia ser, sim, a de garantir uma compreensão da teoria kantiana de uma perspectiva externa. Contudo, o que cabe ter presente é se essa perspectiva condiz com o projeto kantiano. A partir das palavras de Kant, no trecho citado, a resposta é afirmativa. Uma determinada representação, enquanto determinação interna da mente, está em conformidade com uma coisa externa, ou é apropriada para a constituição da mesma, desde que cada um dos seus conceitos parciais (Theilbegriffen) concorde isomorficamente com cada uma das partes (Theilen) da coisa.

Mas, como é possível saber que isso é assim? Qual a garantia de que esse processo isomórfico é realizado segundo um critério seguro, de modo a garantir a exata correlação de cada conceito parcial da representação com cada parte da coisa representada?

Muito cedo Kant parece ter chegado à impossibilidade de oferecer uma resposta a essas questões, partindo de uma posição isomórfica que é “analiticamente correta, ainda que metafísica e epistemologicamente neutra”. E isso porque a determinação dos conceitos parciais não pode ser equivalente à determinação das partes da coisa, no sentido de que esta última seja “metafísica e epistemologicamente neutra”. O resultado da argumentação da obra Nova dilucidatio de 1755 é exatamente esse. Quer dizer, ao passo que, no caso dos conceitos parciais da representação, tratase de uma determinação “[...] realizada pela identidade entre o predicado e as noções do sujeito”, no caso da determinação das partes da coisa, “[...] se ela é tomada como existindo de modo contingente, deve haver outras coisas que, determinando-a desta maneira e não de outra qualquer, excluiriam já antecedentemente o oposto de sua existência”.[20]

Com efeito, dado que na Nova dilucidatio Kant define a primeira determinação como representada por uma ratio veritatis, poder-se-ia pensar que, no início do período pré-crítico, a sua posição sobre o problema da verdade, se não representada por uma leitura correspondentista isomórfica, se configura propriamente como uma posição coerentista. E, de fato, é corrente na literatura a tese de que a disputa entre uma leitura coerentista e uma leitura correspondentista da posição kantiana sobre o problema da verdade fica resolvida, na medida em que se toma a primeira como representando o percurso pré-crítico e a segunda como configurando a proposta crítica do pensamento de Kant.[21]

Vale dizer que, já em Georg Friedrich Meier, em cujo livro-texto Kant escreve a Reflexion supracitada, e também em Christian Wolff, a quem ele procura dar uma resposta para a justificação do princípio de razão suficiente na Nova dilucidatio, uma teoria coerentista da verdade não era propriamente considerada. Ambos esses autores procuram o fundamento do conceito de verdade não no princípio de contradição, mas no princípio de razão suficiente.

Desse modo, Wolff garante que “[...] sem o princípio de razão suficiente não haveria verdade alguma”,[22] enquanto Meier observa que “[...] um conhecimento é destarte verdadeiro se ele não é impossível, e então concorda com o princípio de razão suficiente”.[23] No entanto, se não a título de propósito, pelo menos a título de consequência, a filosofia de Wolff culmina numa teoria coerentista da verdade, devido a sua intenção última de fundamentar o princípio de razão suficiente no princípio de contradição. Entretanto, contrapor esse empreendimento de derivação ou dedução do principio de razão suficiente do princípio de contradição é justamente a intenção seminal de Kant, na Nova dilucidatio. Isso poderia ser tomado como um motivo para descodificar que, já em 1755, Kant pelo menos não desconsidera uma teoria correspondentista da verdade. Duas de suas reflexões da década de 1750 confirmam a suspeita: (i.) “Veritas est convenientia ideae vel cognitionis cum objecto”;[24] (ii.) “Verdade é convenientia cognitionis cum objecto”.[25]

Uma coisa bem diferente, todavia, é dizer que Kant consegue dar conta da justificação de uma teoria correspondentista da verdade, no final da década de 1750 e na década de 1760. E é nesse sentido que devem ser lidas as suas Reflexionen, na década de 1760, e pronunciamentos nas Vorlesungen, no início da década de 1770.[26] Quer dizer, não como a defesa de uma teoria coerentista, porém, como manifestação da incapacidade de justificar uma teoria correspondentista. Assim, num trecho da Logik Blomberg parecem ficar particularmente caracterizadas a retomada da posição isomórfica do início da década de 1750 e a incapacidade de oferecer outra justificação correspondentista para o problema da verdade:

O que é uma representação não pode de fato ser explicado. É um dos conceitos simples que nós devemos necessariamente ter. Todo homem sabe imediatamente o que é uma representação. [...]. Toda representação é algo em nós que é relacionado com algo outro, que é o objeto.[27]

O que não pode ser explicado é o que compreende aquele algo em nós resultante da relação com o objeto. O que também significa que a relação em si não pode ser determinada. Mas, o que significa dizer que, embora não se possa explicar, pode-se sempre saber o que é uma representação? Como garantir que, mesmo sem o recurso à explicação, se sabe então que ela se relaciona com objeto?

Na Dissertação inaugural, escrita pouco antes da preleção transcrita no trecho supracitado, Kant não precisava contar com a necessidade de resposta a essas questões, porque ele momentaneamente acreditou ter encontrado uma justificação bem peculiar para uma teoria correspondentista da verdade. Assim, ele afirma o seguinte:

Ainda que os fenômenos [Phaenomena] sejam propriamente aspectos das coisas [rerum species], não ideias delas, e não exprimam a qualidade interna e absoluta dos objetos [obiectorum qualitatem], o conhecimento deles, no entanto, é muito verdadeiro, pois, em primeiro lugar, na medida em que são conceitos sensoriais ou apreensões, como causados testemunham a presença de um objeto [obiecto], o que vai contra o idealismo; considera-se, porém, juízos acerca do que é sensitivamente conhecido: a verdade no julgar consiste na concordância do predicado com o sujeito dado, mas o conceito do sujeito, na medida em que é fenômeno, não é dado senão por sua relação com a faculdade sensitiva de conhecer, e também os predicados sensitivamente observáveis são dados segundo essa mesma faculdade,  então é manifesto que as representações do sujeito e do predicado se produzem segundo leis comuns e, por conseqüência, dão ocasião a um conhecimento muito verdadeiro.[28]

Cabe reconstruir o argumento:

(i.)               Os fenômenos são aspectos das coisas e não ideias delas;

(ii.) Os fenômenos não exprimem a qualidade interna e absoluta dos objetos;

(iii.) Os fenômenos são conceitos sensoriais e causados;

(iv.) Os fenômenos testemunham a presença de um objeto, o que vai contra o idealismo. (de (iii.));

(v.) O conhecimento dos fenômenos é muito verdadeiro. (de (iii.) e (iv.));

(vi.) A verdade no julgar consiste na concordância do predicado com o sujeito dado;

(vii.) No que é sensitivamente conhecido, tanto o conceito do sujeito enquanto fenômeno, como os predicados observáveis do mesmo são dados pela faculdade sensitiva de conhecer;

(viii.) Tanto sujeito quanto predicado são dados de acordo com leis comuns da faculdade sensível, garantindo um conhecimento muito verdadeiro.

Poder-se-ia cogitar que de (i.) a (v.) Kant oferece um argumento correspondentista, enquanto de (vi.) a (viii.), um argumento coerentista a favor da justificação da verdade. Em termos de exposição até poderia ser assim, mas não em termos de implicação. Há de ser levado em conta que renegar a aparente contraditoriedade entre a afirmação, em (ii.), de que “os fenômenos não exprimem a qualidade interna e absoluta dos objetos” e a afirmação, em (vi.), de que eles “testemunham a presença de um objeto” e garantir a conjunção do sujeito e do predicado, em (viii.), requer igualmente, em (iii.) e (vii.), a justificação do objeto do conhecimento verdadeiro como fenômeno, ou como dado pela faculdade sensível. Assim, o conhecimento verdadeiro requer, em ambos os casos, a correspondência com o objeto dado enquanto fenômeno.

Ora, que na forma de exposição Kant possa até equiparar uma argumentação correspondentista e uma argumentação coerentista se deve ao modo como as premissas (iii.) e (vii.) são justificadas no contexto da Dissertação inaugural. Quer dizer, o modo como é apresentada a justificação do objeto de conhecimento verdadeiro enquanto fenômeno.

Na Dissertação, Kant defende a tese de que o objeto enquanto fenômeno é justificado apenas pelos conceitos básicos da sensibilidade,[29] sendo que um conceito universal ou um conceito puro do entendimento não apresenta qualquer determinação em relação a esse domínio.[30] De acordo com essa posição, o único recurso para se chegar à limitação do conhecimento sensível

é a própria faculdade sensível, a qual fornece sozinha os princípios da forma do mundo sensível. Ou seja, espaço e tempo, enquanto condições da sensibilidade, estabelecem por si só a determinação dos fenômenos e garantem, assim, os princípios da forma do mundo sensível e a sua distinção em relação ao mundo inteligível.[31] Em uma palavra, “os fenômenos testemunham a presença de um objeto” ou o seu conceito e os seus predicados observáveis são relacionados, garantindo “um conhecimento muito verdadeiro”, porque a sua caracterização como objeto é dada única e exclusivamente pela faculdade da sensibilidade.

Essa maneira de conceber o objeto na definição do “conhecimento verdadeiro” pelo mesmo motivo que permite a equiparação de uma posição correspondentista e uma posição coerentista também coloca em dúvida a certeza de tal definição. Qual a garantia de que os fenômenos testemunham a presença de um objeto além da sua mera configuração subjetiva? Em que medida a relação do objeto enquanto fenômeno e os predicados sensoriais apenas no domínio da sensibilidade garante a objetividade do conhecimento dito verdadeiro?

Com essas questões volta-se ao problema da preleção transcrita acima, a saber, a incapacidade de determinar, a partir da relação com o objeto de conhecimento, em que consiste a representação do objeto. Na Carta a Marcus Herz de 1772, Kant coloca esse problema na questão que, segundo ele, “constitui a chave de todo o mistério da metafísica, que até então estava escondida de si mesma”: “Qual é o fundamento da relação daquilo que em nós chamamos ‘representação’ com o objeto?”[32]

Curioso é que, ao colocar essa questão em 1772 na carta a Herz, Kant não tenciona o que é apresentado como problema nas questões acima. Pelo contrário, ele diz que

[...] [s]e a representação só contém a maneira pela qual o sujeito é afetado pelo objeto é fácil verificar como ela lhe corresponde da mesma maneira que um efeito à causa e como esta determinação do nosso espírito [Gemüth] pode representar qualquer coisa, ou seja, ter uma causa. Assim, as representações passivas ou sensíveis têm uma relação concebível com os objetos [Gegenstande] e os princípios que derivam da natureza da nossa mente [Seele] possuem validade concebível para todas as coisas

[Ursache], na medida em que são objetos dos sentidos.[33]

Kant não toma como problema explicar como é dada a relação de uma representação sensível ou passiva com o objeto. Outrossim, do mesmo modo que na Dissertação, aqui também fica por justificar (i.) como o “objeto” em questão afeta o sujeito e (ii.) que “os princípios que derivam da natureza da nossa mente possuem validade concebível para todas as coisas, na medida em que são objetos dos sentidos”.

O que se apresenta como problema, na carta de 1772, é a correspondência da representação intelectual ao objeto:

[...] o nosso entendimento não é, pelas suas representações, a causa do objeto [...] nem é o objeto a causa das nossas representações intelectuais em sentido real (in sensu reali). [...]. Na Dissertação contentei-me em exprimir a natureza das representações intelectuais de maneira puramente negativa afirmando que elas não eram modificações do espírito provocadas pelo objeto. Mas, como era então possível que uma representação se referisse a um objeto sem ser de maneira nenhuma afetada por ele? Eis a questão que deixei totalmente de lado.[34]

No que tange à garantia do “conhecimento verdadeiro”, vale dizer que essa posição de 1772, além de ingenuamente manter por justificar a correspondência do objeto e da representação sensível, ainda suscita o problema ulterior da correspondência da representação intelectual e do objeto. Em vez da solução para um problema, é apresentado outro problema.

Como ficaria a posição kantiana sobre o problema da verdade, a partir de 1772? Continuaria Kant a restringir a definição de conhecimento verdadeiro a um domínio que é correspondido por objetos justificados unicamente pela faculdade sensível? Ou passaria ele agora a um empreendimento de justificação de uma teoria correspondentista em dois domínios distintos de objetos?

A resposta negativa às últimas duas perguntas se deve a que, no período posterior a 1772, Kant cinde os problemas da correspondência da representação sensível e o objeto e da representação intelectual e o objeto no único problema da justificação do objeto dito verdadeiro através da relação dos domínios das faculdades sensível e intelectual de conhecer. Desde então, o problema da verdade passaria a ser tratado como a correspondência do conhecimento justificado mediante a correlação das faculdades da sensibilidade e do entendimento e o seu objeto.

3  O problema da verdade no período crítico

Em dois momentos da Crítica da razão pura, Kant aborda de modo sistemático o problema da verdade. Cabe primeiramente considerar um trecho que poderia ser usado como apoio para uma leitura coerentista:

Com efeito, verdade e ilusão não estão no objeto, enquanto é intuído, mas no juízo sobre ele, enquanto é pensado. Portanto, pode-se em verdade dizer corretamente que os sentidos não erram, não, porém, porque eles sempre julguem corretamente, mas porque não julgam de modo algum. Consequentemente, tanto a verdade quanto o erro, portanto, também a ilusão, enquanto induz ao último, podem encontrar-se somente no juízo, isto é, na relação do objeto com o nosso entendimento. Num conhecimento que concorda universalmente com as leis do entendimento, não há erro algum. Tampouco há algum erro numa representação dos sentidos (porque ela não contém nenhum juízo). [...] Ora, visto que além dessas duas fontes de conhecimento não possuímos nenhuma outra, segue-se que o erro somente atua sobre o entendimento mediante a influência despercebida da sensibilidade, pela qual ocorre que os fundamentos subjetivos do juízo confundem-se com os fundamentos objetivos, fazendo estes desviaremse da sua destinação.[35]

A primeira coisa a considerar é que o erro não pode ser localizado nem no domínio da representação sensível apenas – contra a posição defendida na Dissertação de 1770 –, nem também unicamente no domínio que é universalmente concorde com as a leis do entendimento – contra a posição cogitada na carta a Hertz de 1772. O erro, diz Kant agora, consiste na “influência despercebida” da sensibilidade sobre o entendimento. E, em contraponto a essa “influência despercebida”, apresenta-se a definição de verdade como não localizada no objeto e sim no juízo.

Ora, ainda que sem referência a essa passagem decisiva e muito favorável como suporte a uma teoria coerentista da verdade, muitos autores encontram na definição kantiana de juízo o elemento-chave para a compreensão da sua posição como coerentista. É nesse sentido que, por exemplo, um recente trabalho, que analisa o problema da verdade em Kant com base na modalidade do juízo como relacionada não à realidade objetiva, mas ao pensamento em geral,  traz como conclusão que “a concepção de verdade de Kant é coerentista e construtivista”.[36]

Cabe dizer que, mesmo a partir da passagem citada, a defesa de uma leitura coerentista da posição crítica kantiana parece encontrar problemas. Primeiro, a tese de que, ao estabelecer um juízo como verdadeiro, estamos determinando a sua relação com o pensamento em geral e não com a realidade objetiva não parece ser confirmada por Kant. Kant inicia a passagem em questão, salientando que o juízo é um juízo sobre o objeto. Ele define juízo, nesse contexto, como “a relação do objeto com o nosso entendimento”. Na nota da passagem citada, Kant precisamente especifica que “[a] sensibilidade, posta sob o entendimento como o objeto ao qual este aplica a sua função, é a fonte de conhecimentos reais. Mas a mesma, na medida em que influi sobre a ação própria do entendimento e o determina a julgar, é o fundamento do erro”.[37] Segundo, e a partir disso, a tese de que julgar em Kant compreende um ato de comparação de ideias e não de atribuição de verdade também não parece ser o caso. Kant também inicia a passagem supracitada, destacando que somente no juízo pode ser encontrada a verdade e, na ausência desta, a ilusão como fonte de erro. Isso se deve a que, na concepção de juízo envolvida na definição de verdade, “[...] o entendimento deve necessariamente estar combinado com a sensibilidade para ser capaz de julgar”.[38] Em outras palavras, ao apresentar a concepção de juízo em questão, Kant certifica que “[...] a sensibilidade é a faculdade que é sempre requerida para julgar; o entendimento [sendo] a outra; ambas realizam o movimento oblíquo mediante a diagonal, no qual há sempre o verdadeiro e também sempre o falso”.[39]

Num segundo trecho da Crítica da razão pura, bem mais problemático – e, em decorrência, geralmente ignorado – do ponto de vista de uma leitura coerentista, lê-se o seguinte:

A antiga e famosa pergunta, com a qual se supunha colocar os lógicos em apuros e procurava-se levá-los ao ponto ou de terem que deixar-se surpreender num mísero dialelo ou de confessarem a sua ignorância e por conseguinte a vaidade de toda a sua arte é esta: Que é verdade? A definição nominal da verdade, a saber, que consiste na concordância do conhecimento com o seu objeto, é aqui concedida e pressuposta; desejase, contudo, saber qual é o critério geral e seguro da verdade de cada conhecimento.[40]

É com fundamento nesse trecho que deve ser justificada ou desfeita uma teoria correspondentista da verdade em Kant. Outrossim, é também por essa passagem que deve ser ponderado o (in)sucesso das alternativas correspondentistas apresentadas na primeira parte do trabalho, as quais consideram a “concordância do conhecimento com seu objeto” como justificada não num plano fundamental da argumentação de Kant e, sim, “consequencialista” ou regulativo.

O trecho inegavelmente apresenta uma definição correspondentista da verdade, “que consiste na concordância do conhecimento com o seu objeto”. Contudo, essa definição é apenas “concedida e pressuposta” pelos lógicos ou é também tomada como requerendo justificação no pensamento crítico-transcendental? O que significa dizer que o que se quer com a referida definição é um critério geral e seguro da verdade de cada conhecimento?

Que a definição em questão é cogente no pensamento críticotranscendental é dito por Kant em diversos momentos. Logo em seguida, Kant concede que “[s]e a verdade consiste na concordância com seu objeto, então através disso esse objeto tem que ser distinguido dos outros”.[41] Kant não diz “se a verdade consistisse”. Mais adiante, ele também afirma que “[...] a concordância do conhecimento com o objeto é a verdade”.[42] Aqui também não é dito que a verdade “seria ou “poderia ser”, mas precisamente que ela “é” a concordância do conhecimento com o objeto. Por fim, Kant ainda precisamente garante que “as categorias [...] levam à verdade, isto é, à concordância dos nossos conceitos com o objeto”.[43]

Ao asseverar que a definição de verdade como “a concordância do conhecimento com seu objeto” era “concedida e pressuposta” pelos lógicos e, então, que estes eram sempre surpreendidos num dialelo, porque não consideravam que ela implica que se distinga entre um critério geral e seguro de verdade e a especificação de cada conhecimento dito verdadeiro, Kant propriamente coloca o problema a ser enfrentado na justificação da mesma definição.

Kant concebe que o mesmo problema deve ser tratado tendo-se em mente a divisão da lógica em lógica geral e lógica transcendental. A lógica geral contém apenas as regras do pensamento, sem as quais não ocorreria uso algum da faculdade do entendimento. Embora estabelecendo as condições universais do uso do entendimento, a lógica geral não leva em conta a diversidade dos objetos à qual o entendimento está dirigido, ou seja, o conteúdo do seu conhecimento. Cabe à lógica geral a função de apresentar um critério geral da verdade que, sem a distinção dos objetos, fosse válido para todos os conhecimentos. Kant compreende esse critério como critério formal da verdade e o define como a concordância do conhecimento com as leis gerais do entendimento. É a lógica transcendental que tem por incumbência apresentar o critério da verdade que considera o modo como os objetos nos são dados.

Com a colocação da questão da verdade a partir da distinção entre lógica geral e lógica transcendental, Kant estabelece um importante parâmetro para o seu tratamento adequado. Segundo o tratamento dessa questão, na tradição, apenas no domínio da lógica geral tanto uma justificação mediante uma teoria coerentista como uma justificação mediante uma teoria correspondentista são apresentadas como inadequadas. Uma opção coerentista, que toma a verdade como a explicação da relação das leis do entendimento entre si, é muito restritiva, sendo que ela contempla apenas o critério formal da verdade, mas nunca o critério suficiente. Por sua vez, segundo a via correspondentista, a determinação de objetos da experiência mediante um critério meramente formal resulta como absurda.

Como consequência, a alegação da teoria da verdade enquanto “concordância do conhecimento com o seu objeto” e, assim, a apresentação de um “critério geral e seguro da verdade de cada conhecimento”, é uma tarefa da lógica transcendental. Nas palavras de Kant:

[...] já que a simples forma do conhecimento, por mais que concorde com as leis lógicas, é de longe insuficiente para perfazer por isso uma verdade material (objetiva), ninguém pode apenas com a Lógica ousar julgar sobre objetos e afirmar algo sem ter colhido antes, fora da Lógica, uma fundada informação sobre os objetos para tentar em seguida simplesmente a sua utilização e conexão num todo coerente segundo leis lógicas, ou, melhor ainda, apenas para examiná-los segundo essas leis.[44]

Kant garante ainda que

[a] parte da lógica transcendental [...] que expõe os elementos do conhecimento puro do entendimento e os princípios sem os quais um objeto de maneira alguma pode ser pensado, é a analítica transcendental, e ao mesmo tempo uma lógica da verdade. Com efeito, nenhum conhecimento pode contradizê-la sem que ao mesmo tempo perca seu conteúdo, isto é, a referência a qualquer objeto, por conseguinte toda a verdade.[45]

O que significa dizer que a apresentação de um critério suficiente da verdade implica que se “colha” fora do domínio da lógica geral “uma fundada informação sobre os objetos”? Como é garantida a referência do conhecimento ao objeto no domínio da lógica transcendental?

A resposta a essas perguntas permite observar que Kant concebe a alegação da definição de verdade enquanto a “concordância do conhecimento com seu objeto” num plano fundamental da sua filosofia teórica. Para tal, vale ter presente que Kant pretende responder às referidas questões de modo consideravelmente diferente nas edições de 1781 e 1787 da Crítica da razão pura.

Nos trechos da “Dedução das categorias”, do capítulo “da distinção de todos os objetos em geral em phaenomena e noumena” e dos “Paralogismos”, que são suprimidos na edição de 1787 da Crítica, Kant defende duas teses que são peculiares da edição de 1781:

 (i.) O “objeto” da referência, enquanto dado “fora de nós” no espaço, só poderia ser determinado como coisa em si mesma, o que, nos limites do idealismo kantiano, não compreende determinação alguma. Nesse sentido, a conclusão do Paralogismo da Idealidade de que “a existência de todos os objetos de sentido externo é duvidosa”.[46] E, por conseguinte, que

[...] mesmo que houvesse um tal objeto [da referência], esse objeto não poderia ser representado e percepcionado como exterior a nós, porque isso pressupõe espaço, e a realidade no espaço, que é apenas uma simples representação, outra coisa não é que a percepção. O real dos fenômenos externos é, portanto, apenas real na percepção e não pode sê-lo de nenhuma outra maneira;[47]

(ii.) O “colher” algo fora do domínio da lógica geral, a fim de estabelecer a determinação de um objeto, que é concomitantemente distinto e correspondente ao conhecimento, tem como referência apenas o que Kant denomina “objeto transcendental= X”. Nos termos da Dedução A:

O que se entende, pois, quando se fala de um objeto correspondente ao conhecimento e, por conseqüência, também distinto deste? É fácil ver que este objeto apenas deve ser como algo em geral = X, porque nós, fora do nosso conhecimento, nada temos que possamos contrapor a esse conhecimento, como algo que lhe corresponda.[48]

Como também confirma um trecho da edição A do capítulo da distinção dos objetos em phaenomena e noumena:

Todas as nossas representações estão, de fato, reportadas pelo entendimento a qualquer objeto e, uma vez que os fenômenos não são outra coisa que representações, o entendimento refere-as a algo como objeto da intuição sensível; porém esse algo é, nesta medida, apenas o objeto transcendental. Este significa, porém, um algo = X [...]. Não há, portanto, nenhum objeto do conhecimento em si, mas apenas a representação dos fenômenos subordinada ao conceito de um objeto em geral, que é determinável pelo diverso dos fenômenos.[49]

O abandono dessas duas teses, juntamente com as suas consequências sistemáticas, pode ser tomado como o principal motivo de substituição e reelaborarão da argumentação da Crítica na edição de 1787. Kant agora passaria a tratar a definição de verdade como “a concordância do conhecimento com o seu objeto” em face do problema que, segundo ele, “permanece [... como] um escândalo da Filosofia e da razão humana em geral”, a saber, “[...] ter que admitir a existência das coisas fora de nós (das quais recebemos todo o material dos conhecimentos mesmo para o nosso sentido interno) com base apenas na e, ao ocorrer a alguém colocar essa existência em dúvida, não lhe poder contrapor nenhuma prova satisfatória”.[50]

Não há como reconstruir aqui o argumento da Refutação do Idealismo na segunda edição da Crítica.[51] Cabe apenas dizer que Kant concebe a “prova” em questão como a garantia de que algo externo e permanente no espaço é imediatamente pressuposto na consciência da determinação no tempo enquanto intuição interna. Com essa prova, ou mais precisamente, com a percepção da sua necessidade, Kant retoma consideravelmente as teses defendidas em 1781 de que “a existência de todos os objetos do sentido externo é duvidosa” e, assim, que o “objeto” implicado na definição de verdade como “a correspondência do conhecimento com seu objeto” pode apenas ser determinado como algo em geral = X, que é o correlato da síntese das representações do sujeito.

A posição de 1781 implicava três instâncias: (i.) os fenômenos, representações internas do sujeito; (ii.) as coisas em si, incognoscíveis para este; (iii.) o objeto transcendental, o correlato indeterminado do fenômeno.[52]Na posição de 1787, a justificação do fenômeno, não como mera representação do sujeito, mas como objeto efetivo do conhecimento, implica a pressuposição de algo permanente no espaço. Contudo, Kant mantém a premissa básica de que essa pressuposição não pode ser apoiada no que é incognoscível para o sujeito.

O que cabe ter presente, todavia, é que uma “prova satisfatória” da existência das coisas fora de nós ou – o que é o mesmo – de que um objeto corresponde ao nosso conhecimento, parece exigir mais do que a imediata pressuposição da permanência no espaço. O fato de que são conservadas, em não menos que 20 páginas do volume XVIII da edição da academia, extensas Reflexionen do período posterior à segunda edição da Crítica até a década de 1790, nas quais Kant continuamente se dedica à reestruturação da referida prova, confirma essa suspeita.53 Nessas reflexões, assim como no argumento da Refutação do Idealismo de 1787, Kant se mostra sempre preocupado com a tarefa de garantir que, diante da impossibilidade de se apresentar a causa de uma representação, quer mediante a consciência empírica quer a consciência transcendental, a realidade de um objeto fora do sujeito não pode ser apenas inferida. Diferentemente do texto publicado, porém, Kant é bem mais explícito acerca das dificuldades inerentes à consumação dessa tarefa, partindo da premissa básica da sua teoria do conhecimento de que o objeto em si mesmo é incognoscível e indeterminado teoricamente.[53]53 Refl. 5653-4, AA 18: 305-313; Refl. 5709, AA 18: 332; Refl.6311-17, AA 18: 606-29. A esse respeito vale conferir o comentário de Klotz (2008, p. 133): "A diferença entre o conceito de existência externa e uma regra da síntese teve por conseqüência que o pensamento de Kant finalmente transcendeu o projeto de provar a imediatez da experiência externa. Pode-se dizer sobre os princípios do entendimento puro que são verdadeiros se eles são condições que tornam possível a nossa experiência. Pois 'fenômenos, sendo simples representações, não estão sob nenhuma lei de conexão a não ser aquela que a faculdade conectante prescreve' [KrV, B 164]. No entanto, a pressuposição da 'existência de algo fora de mim' - visto que ela se refere a um fundamento das aparências, e não à unidade sintética delas - pode ser errada mesmo que ela esteja operante em nossa experiência, i.e., que a tese da imediatez seja verdadeira. Por isso, nas reflexões sobre a 'Refutação do Idealismo' ressalta uma segunda intenção que vai além da tese da imediatez: Tem-se que mostrar, diz Kant, que 'nós estamos de fato passivos', e com isso, que 'nossa experiência refere-se a coisas que estão realmente fora de nós' [Refl. 5653, AA 18: 317; Refl. 6315, AA 18: 618]. Então, Kant não intencionou apenas mostrar que a pressuposição de um fundamento não-fenomenal de aparências está operante na percepção consciente, mas também que ela é verdadeira. Esta intenção confronta a argumentação kantiana com problemas que transcendem o quadro da sua teoria da experiência".

O problema é especificado na seguinte Reflexion:

O ânimo deve então ser imediatamente consciente de uma representação do sentido externo enquanto tal, quer dizer, não através de uma inferência da representação como um efeito a algo exterior como um causa, que, por ser válida somente como uma hipótese, não contém certeza alguma.

Mas, como pode a consciência de uma representação dos sentidos ocorrer como uma determinação meramente passiva e assim nós sermos conscientes do seu objeto como externo, mas ao mesmo tempo ser consciente dele ou do seu fenômeno como persistindo?55

O problema reside no impasse resultante da necessidade, por um lado, da espontaneidade do sujeito para a garantia do objeto de conhecimento enquanto fenômeno e, por outro, da “determinação meramente passiva” do mesmo para a consciência do “objeto como externo”.

Em outro trecho, Kant especifica o “único fundamento possível para a prova” da segunda necessidade:

A intuição de uma coisa enquanto fora de mim pressupõe a consciência de uma determinabilidade do meu sujeito, na qual eu não sou

   ii. Allison, sem atender à argumentação da edição de 1781 e as passagens das Reflexionen que são relevantes para a tese de Guyer, sustenta que "[n]essas passagens Kant afirma que a experiência interna e externa possui o mesmo status epistêmico. Uma tese similar já era sustentada na primeira edição, aonde Kant insistiu que elas são ambas 'imediatas' no sentido que nenhuma delas envolve uma inferência da representação a objetos externos como causa (A 37-371)". (p. 295). Itálico adicionado. Como conseqüência, Allison chega à seguinte conclusão, que segundo ele se aplica a todo o percurso da argumentação de Kant: "[...] apenas se nós assumimos que conhecemos as coisas como elas aparecem para nós em virtude das formas da nossa sensibilidade ao invés de como elas são em si mesmas nós podemos ter alguma esperança de estabelecer a realidade das coisas que são ontologicamente distintas do sujeito". Sobre essas posições cabe apenas dizer que:  Allison deixa de considerar (i.) que em 1781 Kant de fato pareceu pensar que a "realidade das coisas que são ontologicamente distintas do sujeito", se ainda dada, só o poderia ser "como elas são em si memas" e (ii.) que depois de 1787 Kant diversas vezes apresenta a insuficiência da consideração das "coisas como elas aparecem para nós" para a garantia da "realidade das coisas que são ontologicamente distintas do sujeito". Guyer não atenta para o fato de que a argumentação de Kant nas Reflexionen posteriores a 1787 não parece ter pretendido "justificar as nossas afirmações acerca de objetos ontologicamente independentes" e sim - o que é bem menos comprometedor - confessar a impossibilidade de tais afirmações a partir da premissa da incognoscibilidade das coisas como elas são em si mesmas.

55 Refl. 5654, AA 18: 312.

determinante, a qual então não pertence à espontaneidade, desde que o que é determinante não está em mim. E de fato eu não posso pensar qualquer espaço como em mim. Então, a possibilidade de representar uma coisa no espaço é fundamentada meramente na consciência de uma determinação através de outras coisas, o que não significa nada a não ser a minha passividade original, na qual eu não sou absolutamente ativo. [...]. Ter adquirido originalmente uma representação de algo enquanto fora de mim sem ser de fato passivo é impossível.[54]

Nesse caso, “[...] o fundamento da possibilidade [...] deve residir na relação das representações a algo fora de nós, e de fato algo que não é por sua vez mera representação interna, quer dizer, forma do fenômeno [Form der Erscheinung], que é pois algo em si [sache an sich].”[55]

Com efeito, a confissão dessa exigência traz, sim, presente o que seria eminentemente necessário para a justificação da definição de verdade como a “concordância do conhecimento com seu objeto”. Entretanto, ela também carrega consigo a consciência de Kant de que a mesma exigência é imediatamente contraposta à estrutura fundamental da sua teoria do conhecimento, abonada na assertiva de que “[...] o que possam ser os objetos em si mesmos jamais se nos tornaria conhecido nem mesmo pelo conhecimento mais esclarecido do seu fenômeno, o qual unicamente nos é dado”.[56] Eis por que, logo depois das palavras do trecho supracitado, que revela a necessidade da determinação de “algo em si” para a determinação da concordância implicada na definição de verdade, Kant prontamente assegura que “[a] possibilidade disso não pode ser explicada”.[57] Se a exigência é expressa, a sua consecução não é passível de efetividade.

Conclusão

Ao apresentar a definição de verdade como a “concordância do conhecimento com seu objeto” no livro-texto da Logik Jäsche – publicado em 1800 e presumivelmente editado a partir das suas preleções na década de 1790 –, Kant faz alusão a dois problemas inerentes à mesma definição: (i.) se o “objeto” implicado é algo intrínseco ao sujeito cognoscente, a definição resulta tautológica; (ii.) se o “objeto” implicado é algo “fora” do sujeito cognoscente e o conhecimento algo que está no sujeito, a definição resulta impossível. E ele associa a tentativa de confrontar esses problemas com a de alguém que, em “[...] uma declaração em juízo [...], apela a uma testemunha que ninguém conhece, mas que pretende tornar-se digna de fé afirmando que quem a citou como testemunha é um homem honesto”. Segundo Kant, “[a] acusação, sem dúvida tinha fundamento. Só que a solução do problema em questão é, para qualquer um, absolutamente, impossível” (Log, AA 09: 70).

Com esse diagnóstico, e as afirmações das Reflexionen suprarreferidas, pode-se chegar à conclusão de que, se ainda se quer rotular Kant como um coerentista ou um correspondentista, parece ser necessário dizer que a sua filosofia considera, sim, a verdade enquanto “concordância do conhecimento com seu objeto”. Isso, todavia, não como uma teoria justificada – quer de modo ontológico, quer isomórfico, “consequencialista” ou regulativo –, mas como um problema fundamental cuja solução não pode ser abarcada pela estrutura sistemática da sua teoria do conhecimento.

ABSTRACT: The main point of disagreement about Kant’s approach of the problem of truth is whether it can be understood within the apparatus of contemporary philosophy as a coherence or a correspondence theory. By favoring a systematic consideration of Kant’s argumentation in light of the available literature on the problem, this paper argues toward the latter alternative. It is sustained that the definition of truth as “the agreement of cognition with its object” is cogent throughout Kant’s thought and that it is finally approached not from an established theory, but as a problem to which a solution cannot be given within the boundaries of the critical-transcendental philosophy. Initially, the literature which locates Kant either as coherentist or correspondentist is taken into account. The latter is systematized into four groups: the ontological reading; the isomorphic reading; the “consequentialist” reading; the regulative reading. Secondly, the argumentation in the pre-critical period is approached. It is argued that a coherence theory lacks its confirmation already within it and that in the decade of 1750 Kant disposes of the isomorphic correspondence reading. Finally, the critical argumentation is considered. It is sustained that the critical approach takes truth as a fundamental problem which cannot be held by a “consequencialist” or regulative correspondence theory.

KEYWORDS: Coherence theory. Correspondence theory. Representation. Object. Refutation of idealism.

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[1] Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina e bolsista da CAPES.

[2] Smith (1918, p. xxxvii).

[3] Smith (1918, p. xxviii).

[4]  Smith (1918, p. 36).

[5]  Smith, 1918, p. 36).

[6] Cassirer (1918, p. 274). 6 Cassirer (1918, p. 148).

[7] Prauss (1980, p. 168). A defesa da posição kantiana como uma teoria coerentista da verdade já era apresentada em Prauss (1969) e foi confirmada também por Esterhueyse (1972) e Hofmeister (1972).

[8] Ver Nenon (1986, p. 207-211); (1994, p. 164).

[9] Ver Vanzo (2008, p. 77-95).

[10] Paek (2005, p. 152-153, 158).

[11] Hanna (2006, p. 254, 264). No mesmo sentido dessa proposta de Hanna, que toma a posição kantiana como "analiticamente correta, ainda que metafísica e epistemologicamente neutra", vale a leitura de Predrag Cicovacki. Cicovacki considera que Kant "[...] sustenta uma versão da teoria correspondentista da verdade", sendo que "[u]ma das contribuições mais importantes de Kant para a filosofia é indubitavelmente a visão de que a possibilidade de uma correspondência dos nossos conhecimentos com os seus objetos não requer que as coisas existentes  sejam 'originais' e os nossos conhecimentos as suas 'cópias', a relação é, de fato, totalmente oposta". Cicovacki garante que a posição correspondentista kantiana é legítima porque "[o]s objetos que afetam nossos sentidos são cognoscíveis apenas porque as instanciações das suas propriedades inconstrutíveis são conhecidas como instâncias ou ocorrências de tipos naturais construídos. É nisso, então, em termos da identidade de ocorrências, que nós podemos explicar como a verdade consiste na concordância dos nossos conhecimentos com os seus objetos, com esses objetos conformando-se aos nossos conhecimentos e não o contrário. Mediante a mesma identidade de ocorrências nós podemos explicar porque os objetos do conhecimento são completamente internos às teorias as quais eles representam." (CICOVACKI, 1995, p. 202- 204). Em uma palavra, "a idéia básica é que a verdade pressupõe nem uma dominação do sujeito e nem do objeto, mas a sua relação interativa dinâmica e recíproca. A ausência de interações próprias leva a várias formas de autoprojeções e ilusões. A verdade, ao contrário, consiste na interação harmoniosa dos seus elementos subjetivos e objetivos." (CICOVACKI, 2002, p. ix).

[12] Vanzo (2009, p. 11-12).

[13] Van Cleve (2003, p. 216).

[14] Vanzo (2009, p. 21).

[15] McDermid (1998b, p. 27).

[16] McDermid (1998a, p. 798).

[17] McDermid (2006, p. 40).

[18] KrV, A 247/ B 303. As citações das obras de Kant são sempre feitas de acordo com a Edição da Academia - Gesammelte Schriften. Berlin: Walter de Gruyter, 1902-1997 - (AA). As referências procedem do seguinte modo: sigla do texto (indicado respectivamente na bibliografia e em conformidade com o que foi estabelecido pela Academia), AA número do volume: número da página. Exclusivamente para a Crítica da razão pura, as citações seguem a indicação alfanumérica tradicional: "A" para a primeira edição e "B" para a segunda, sucedendo em cada caso o número da página.

[19] Refl. 1676, AA 16: 076-078. Adickes estabelece como certa a datação entre 1752 e 1755.

[20] PND, AA 02: 398.

[21] Ver Nenon (1986, p. 167-171; 1994, p. 40) e Vanzo (2009, p. 5).

[22] Wolff (1719, § 144).

[23] Meier (1752, § 96).

[24]  Refl. 1765, AA 16: 106/107.

[25]  Refl. 2224, AA 16: 277.

[26]  Veja-se, por exemplo, Refl 3977, AA 17: 373 [1769]: "Toda verdade consiste na necessária concordância do conhecimento consigo mesmo. Se o conhecimento que deve concordar consigo mesmo constitui a forma dos fenômenos, por exemplo, espaço e tempo, então todo juízo é objetivo e ou verdadeiro ou falso. Mas, se o conhecimento compreende apenas uma lei da razão humana mediante a qual nós comparamos conceitos, então ele não é de fato objetivo, conseqüentemente nem verdadeiro nem falso".

[27] V-Lo/Blomberg, AA 24: 040.

[28] MSI, AA 2: 397. Tradução modificada.  Itálicos adicionados.

[29]  Assim como também confirma uma Reflexion do início da década de 1770: "Aquilo através do qual um objeto da experiência é dado é chamado de fenômeno. No que concerne ao ânimo humano [Menschlichen Gemüths] a possibilidade dos fenômenos é a sensibilidade". Refl 4634, AA17: 618. Itálico adicionado.

[30] Ver Guyer (1987, p. 18): "[…] a idéia de uma faculdade do entendimento que usa conceitos puros no conhecimento empírico está simplesmente faltando na dissertação inaugural. [...] A suposição de Kant parece ser de que as formas do conhecimento sensível precisam ser suplementadas apenas pelo uso lógico do intelecto para chegar até mesmo aos mais gerais tipos de conhecimento empírico; a distinção que inicia a dissertação entre intuir e conceber em análise e síntese não é seguida de um argumento de que cada uma dessas funções é necessária e apenas as duas juntas suficientes para o conhecimento empírico. Essencialmente, a dissertação não possui em absoluto uma teoria acerca da função dos conceitos no conhecimento empírico".

[31] Ver Laywine (2003, p. 444-446): "O desenvolvimento da filosofia de Kant [...] se deu sobre uma questão que começou na década de 1750 como cosmológica, a saber, quais condições são suficientes para formar um mundo a partir da organização das criaturas. Depois Kant dá um giro epistemológico para esta questão: quais condições nos são suficientes para representar os fenômenos como pertencendo a um e mesmo mundo sensível? A resposta na Dissertação inaugural dependeu inteiramente da nova história de Kant sobre as intuições do espaço e do tempo [...] A importância da Dissertação [...] é que ela não tinha outro recurso para resolver este problema a não ser a sensibilidade".

[32] Br, AA 10: 130.

[33] Br, AA 10: 130. Tradução modificada. Itálicos adicionados.

[34] Br, AA 10: 130/131. Itálico adicionado.

[35] KrV, B350/A293-B351/A294. Também vale conferir: V-Lo/Blomberg, AA 24: 086/087: "O entendimento sozinho não erra. Os sentidos sozinhos também não erram [porque] eles são passivos e não julgam de modo algum. [...]. [Só a] conexão e junção do entendimento com a sensibilidade é o fundamento de erros, a saber, os efeitos do entendimento são tomados como efeitos da sensibilidade. Como nós vemos, então, o entendimento e a sensibilidade não podem errar sozinhos"; Refl. 2142, AA 16: 250: "O entendimento por si mesmo não erra (porque ele não pode contradizer as suas próprias leis). Também os sentidos não erram (porque eles não fazem qualquer juízo)".

[36] Greimann (2008, p. 584). Greimann defende que há duas diferenças fundamentais entre as concepções de Frege e Kant: "A primeira diz respeito à natureza da verdade, considerada como a medida de juízos assertóricos. De acordo com Kant, quando nós julgamos uma proposição como verdadeira ou real, nós estamos determinando o seu status epistêmico, ou seja, a sua relação com um pensamento em geral, enquanto que, de acordo com Frege, nós estamos determinando o status semântico da proposição, ou seja, a sua relação com a realidade objetiva. A diferença se fundamenta em duas concepções distintas de verdade: enquanto que a concepção de Frege é realista, a concepção de Kant parece ser coerentista"; "A segunda diferença se refere ao próprio ato de julgar: o que nós estamos fazendo quando estamos empreendendo um juízo. De acordo com Kant, julgar é comparar idéias, enquanto que, de acordo com Frege, julgar é atribuir verdade ao pensamento".

[37] KrV, B351/A294. Itálico adicionado.

[38] V-Lo/Blomberg, AA 24: 086.

[39] Refl. 2142, AA 16: 251.

[40] Krv, B 82.

[41] KrV, B 83. Itálico adicionado.

[42] KrV, B 236. Itálico adicionado.

[43] KrV, B 670. Ver Mohanty (1999, p. 202).

[44] KrV, B 85.

[45] KrV, B 87.

[46] KrV, A 367.

[47] KrV, A 376.

[48] KrV, A 109.

[49] KrV, A 250/251.

[50] KrV, B XL.

[51] KrV, B 274-279.

[52] Cf. KrV, A 109: "Ora esses fenômenos não são coisas em si, somente representações que, por sua vez,  têm o seu objeto, o qual, por conseqüência, não pode ser já intuído por nós e, por isso, é designado por objeto não empírico, isto é, transcendental= X".

[53] No que concerne os desdobramentos da argumentação kantiana desde 1781 na primeira edição da Crítica até os apontamentos das reflexões posteriores à segunda edição da obra vale considerar as posições de Guyer (1987) e Allison (2004):

   i. Guyer sustenta que na edição de 1781 "[...] Kant deve defender ou a redução dos objetos externos a estados subjetivos da mente ou permitir o conhecimento das coisas em si memas", sendo que o "[...] que Kant argumenta em 1787 é que, por motivos próprios da determinação subjetiva do tempo, nós devemos empregar a intuição do espaço como representando objetos que nós concebemos como existindo independentemente de nós mesmos, mesmo que por razões independentes ele também insista que nós devemos admitir adicionalmente que a intuição do espaço (e para o propósito até o tempo) não representa aqueles objetos independentes como eles são em si mesmos" (p. 282). Por fim, Guyer argumenta que nas "[...] suas versões posteriores a 1787 [...] a refutação do idealismo pretendia justificar as nossas afirmações acerca de objetos ontologicamente independentes, e não apenas fenomenologicamente espaciais" (p. 289). Dois últimos itálicos adicionados.

[54] Refl. 5653, AA 18: 307/308. Itálicos adicionados e tachados indicam termos riscados no texto original.

[55] Refl. 6312, AA 18: 612. Itálicos adicionados.

[56] KrV,  A 43/ B 60.

[57] Refl. 6312, AA 18: 612. Itálico adicionado.