RESENHA/REVIEW
MENDONÇA, Sueli Guadalupe de Lima; SILVA, Vandeí Pinto da; MILLER, Stela (Orgs.). Marx, Gramsci e Vigotski: aproximações. Araraquara: Junqueira & Marin; Marília: Cultura Acadêmica, 2009.
Giovani Ferreira BEZERRA[1]
Doracina Aparecida de Castro ARAUJO[2]
Organizada por docentes do Núcleo de Ensino da Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP, câmpus de Marília, do qual sempre esperamos produções de qualidade ímpar, a coletânea Marx, Gramsci e Vigotski: aproximações reúne, num trabalho de fôlego, artigo de vários autores que, em comum, dialogam com a base teórica marxista, promovendo um encontro bastante oportuno entre questões políticas, filosóficas, pedagógicas e psicológicas.
O livro é estruturado em quatro partes temáticas. Na primeira delas, encontram-se textos que discutem o tema Contribuições de Marx, Gramsci e Vigotski para a compreensão da realidade social, isto é, de suas contradições e determinações histórico-dialéticas. É marcante, nesta parte, a análise esmiuçada que alguns autores levam a termo em relação a categorias presentes na obra gramsciana, tais como hegemonia, revolução passiva contra revolução permanente e americanismo. Ainda é notável o empenho desses mesmos autores em evidenciar os esforços de Gramsci para superar, já no começo do século XX, por meio de sua filosofia da práxis, os reducionismos positivistas a que fora subjugado o pensamento marxiano, pelos próprios intelectuais socialistas.
Na segunda parte, intitulada Educação e Trabalho, priorizam-se as discussões em torno da pauta pedagógica. Um dos assuntos de extrema relevância aí apontados é o questionamento acerca das recentes políticas educacionais de caráter focal e paliativo que vêm ocorrendo em alguns países latino-americanos, com o intuito de “incluir” na escola e no mercado de trabalho jovens das classes populares. Nesse sentido, o caso brasileiro é emblemático e reflete claramente o avanço nefasto do social-liberalismo na América Latina. Em tom de denúncia, um dos articulistas deixa claro que tais políticas em nada têm colaborado para a superação da exploração econômica e da precarização da escola pública, que continua classista e universal apenas na aparência. Na verdade, as concessões que elas permitem às camadas sociais marginalizadas e expropriadas de seus direitos mais fundamentais intentam apenas manter o atual padrão de acumulação capitalista da base material vigente, sem quaisquer mudanças radicais em sua estrutura orgânica.
Outro ponto nevrálgico abordado ainda nesta parte é a problematização que se faz sobre os limites e possibilidades de se aplicar, nos moldes da sociedade neoliberal em que vivemos o trabalho enquanto princípio pedagógico, de forma a se preparar os estudantes não apenas para o exercício embrutecedor de uma técnica, mas também para a práxis política revolucionária, conforme as diretrizes da pedagogia soviética. Quanto a isso, é interessante conferir a explanação que se faz, em um dos artigos, sobre a experiência pedagógica de cunho socialista vivenciada em algumas escolas brasileiras sob a égide do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).
Na terceira parte, Educação e Cultura, chama-se a atenção para um fato polêmico que Gramsci apontou como decisivo para a transformação social: a necessidade de engajamento e liderança política dos intelectuais críticos nas lutas das classes dirigidas, para assegurar-lhes maior coerência e unidade na organização do seu projeto socialista, visto que, sozinhas, elas não lograriam o êxito esperado. Polêmicas à parte, o importante é observar que, diante disso, o educador ganha um papel de destaque: ele é também um intelectual que precisa constantemente estudar, a fim de analisar e confrontar de forma consciente as ideologias dominantes, propondo uma nova cultura, em que as massas sejam dirigentes de sua própria História.
Todavia, as discussões não param por aí. À luz da teoria histórico-cultural, cujas origens remontam à atuação do psicólogo soviético L. S. Vigotski, são polemizados conceitos como mediação, atividade e cultura, vistos em sua relação dialética com o desenvolvimento do psiquismo humano e com a práxis pedagógica, a qual conserva intrinsecamente, nessa perspectiva, uma dimensão humanizante que não pode ser negligenciada. Além disso, apresentam-se também algumas reflexões sobre as dimensões ontológica e teleológica da arte em nossa sociedade, num flagrante contraste com a concepção estética marxista.
Por fim, na quarta parte, Implicações para a formação de professores, o leitor pode se surpreender com a presença do único texto da coletânea escrito em espanhol. Nele se discute sobre a mudança necessária no papel do professor, ainda fundamentado na simples transmissão de conhecimentos, sugerindo-se, para tanto, uma proposta metodológica de formação docente que prioriza a elaboração conjunta da reflexão crítica. Em outro artigo, que parece complementar o primeiro, alerta-se para que esta formação de professores, inicial ou continuada, esteja à altura de combater as seduções pós-modernas das pedagogias neoliberais do aprender a aprender, responsáveis, de um lado, por descaracterizar o papel do professor e, de outro, por refutar a própria existência e transmissão do saber objetivo, historicamente produzido e acumulado pela humanidade.
Na contrapartida, advoga-se, então, uma sólida formação docente, embasada em três eixos temáticos: ser gente, ser professor e ser capaz. Em sua totalidade, estes princípios têm por objetivo a “[...] emancipação humana das condições de exploração em que vive a grande maioria de indivíduos, nas quais se incluem, muitas vezes, os próprios professores” (Martins, 2009, p. 470).[3] Esta parte ainda abre espaço, na sequência, para uma última e breve reflexão acerca do trabalho docente, tomando-se por base as contribuições de Bakhtin sobre o estudo da língua na perspectiva marxista de linguagem. Suas contribuições apontam para a configuração de uma metodologia interativo-dialógica, centrada na experiência do fazer coletivo, que não precisa se limitar às aulas de língua materna, mas pode confortavelmente ser estendida ao trabalho com os demais componentes curriculares.
Assim, em linhas gerais, é este o conteúdo substancial dessa publicação. A única ressalva a se fazer talvez seja, com exceção de um artigo assinado por Suely Amaral Mello, a abordagem um tanto quanto limitada e secundária das ideias de Vigotski. Este é, por exemplo, o caso do artigo que Newton Duarte disponibiliza à coletânea. Sem se perder de vista o respeito acadêmico que lhe é devido, é preciso objetar que, já pelo título de seu artigo: A filosofia da práxis em Gramsci e Vigotski, tem-se a impressão de que Duarte pretende discutir as aproximações entre os princípios marxistas adotados por um e outro. No entanto, o autor limita quase todas as suas reflexões em torno da filosofia gramsciana, sem articulá-la à filosofia da práxis (marxista) presente também na obra de Vigotski.
Esta terefa, de fato, fica a cabo do leitor, conforme transparece na pergunta que o próprio Duarte formula, ao final de seu texto: “Não seria essa relação dialética entre a luta da humanidade para ser dona da sociedade e a luta dos indivíduos por serem donos de sua própria personalidade, um ótimo ponto de partida para refletirmos sobre a filosofia da práxis em Vigotski?” (Duarte, 2009, p. 135).[4] Evidentemente, para um leitor com pouco conhecimento teórico da obra vigotskiana, mesmo com a brilhante exposição precedente que o articulista conduz acerca da filosofia da práxis em Gramsci, isso não será tarefa tão fácil. Contudo, aqui também é preciso considerar que o próprio autor afirma literalmente, na apresentação de seu texto, que a intenção maior deste não é debater a relação entre o marxismo e a produção intelectual de Vigotski, pois deste assunto ele já teria se ocupado em diversos trabalhos anteriores. Nisso não se lhe tira a razão. Porém, Duarte poderia considerar que, como se trata de um livro de circulação nacional, e sabendo-se das apropriações mais esdrúxulas e corrompidas que a academia e alguns educadores têm feito sistematicamente da obra do eminente psicólogo soviético, na maioria das vezes por total desconhecimento de causa, talvez esta fosse mais uma excelente oportunidade para se contestá-las e, assim, desvincular (outra vez!) os conceitos vigotskianos da roupagem neoliberal e escolanovista que os tem falseado e negado ao autor o próprio status de teórico marxista.
Rosemary Dore, outra articulista, tenta, por sua vez, aprofundar esse debate com o artigo Marx, Gramsci e Vigotski: aproximações?. No entanto, sua reflexão acerca das concepções filosóficas de Vigotski não se sustenta num exaustivo estudo da obra vigotskiana, como ela mesma se apressa em esclarecer. Em vez disso, a autora toma de empréstimo interpretações realizadas por Sirgado (2000)[5] quanto à tendência materialista supostamente adotada e defendida por Vigotski. Essa tendência, diferentemente daquela encontrada em Gramsci, na qual o marxismo assumiria plenamente sua condição de unidade orgânica (práxis) entre questões históricas e filosóficas, teria como traço distintivo seu enfoque dual, isto é, a percepção do materialismo dialético e do materialismo histórico como duas disciplinas separadas do marxismo. Longe de se questionar a validade ou não de tais considerações, pois, antes de qualquer crítica mais contundente, seria necessária uma leitura rigorosa do trabalho de Sirgado (2000), ao menos há que se ressaltar que a opção por compreender a aplicação teórico-metodológica dos princípios marxianos em Vigotski, quase exclusivamente por meio de uma fonte bibliográfica secundária, soa no mínimo incômoda, senão suspeita, para o leitor e para os estudiosos desse autor.
Além disso, alguns articulistas poderiam enriquecer sobremaneira as discussões sobre a vinculação entre escola e trabalho, bem como sobre os princípios marxistas norteadores da formação política, pedagógica e psicológica de educandos e educadores para a vivência da práxis socialista, se tivessem recorrido às valiosas contribuições que Vigotski pode também e oportunamente oferecer a respeito dessas questões.[6] No entanto, especulase que esta ausência se justifique pelo próprio desconhecimento de alguns autores da coletânea Marx, Gramsci e Vigotski: aproximações quanto à amplitude das temáticas abordadas por este último autor.
Contudo, nada disso chega a apagar a vitalidade desta publicação ou sua relevância para o cenário acadêmico atual, nem tampouco o mérito de seus articulistas, cujo esforço coletivo é louvável em tempos de hegemonia malévola do capital. De fato, ao trazer à tona polêmicas que ainda persistem insolúveis em nossa sociedade, assolada pelas investidas neoliberais nos mais diversos setores, tais como a política, a economia, a educação, a cultura etc., e analisá-las criticamente à luz do referencial teórico marxista, a coletânea diz a que veio e deve se converter numa leitura imprescindível para educadores (formados ou em formação), cientistas sociais, filósofos e para todos aqueles comprometidos como a causa socialista. Nessa direção, faz todo sentido explicitar que seu ponto forte é justamente a denúncia corajosa das lutas de classe e da exploração econômica que, engendradas pela sistemática de acumulação capitalista, continuam como um dos grandes desafios hodiernos.
A saída para reverter esse quadro histórico como deixam nitidamente transparecer os vários autores, não é outra senão o marxismo. In totum, da leitura deste livro, o leitor pode realmente sair convencido de que o materialismo histórico e dialético, depurado de suas interpretações mecanicistas ou ingênuas, continua atualíssimo como forma de luta e resistência nos mais diversos campos da práxis social humana, seja enquanto método de estudo e análise críticos da sociedade que aí está posta, seja enquanto forma de embate decididamente revolucionário contra o poder instituído. Talvez seja precisamente essa a maior e a mais esperançosa contribuição que essa coletânea tenha a deixar na vida de cada um de seus leitores.
[1] Bacharel em Pedagogia pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS) e bolsista de iniciação científica pelo CNPQ.
[2] Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), professora do curso de Graduação e Pós-Graduação em Pedagogia da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS).
[3] MARTINS, Lígia Márcia. Formação de professores: desafios contemporâneos e alternativas necessárias. In: MENDONÇA, Sueli Guadalupe de Lima; SILVA, Vandeí Pinto da; MILLER, Stela (Orgs.). Marx, Gramsci e Vigotski: aproximações. Araraquara: Junqueira & Marin; Marília: Cultura Acadêmica, 2009.
[4] DUARTE, Newton. A filosofia da práxis em Gramsci e Vigotski. In: MENDONÇA, Sueli Guadalupe de Lima; SILVA, Vandeí Pinto da; MILLER, Stela (Orgs.). Marx, Gramsci e Vigotski: aproximações.
Araraquara: Junqueira & Marin;Marília: Cultura Acadêmica, 2009.
[5] Cf. SIRGADO, Angel Pino. O social e o cultural na obra de Vygosky. Revista Educação e Sociedade, n. 71, VXXII, f. IX, jul. 2000, Campinas: CEDES, 2000. p. 45-78.
[6] Nesse sentido, é válido conferir dentre outros trabalhos, VIGOTSKI, Lev Semenovich. Enfoque psicológico da educação pelo trabalho. In: ____. Psicologia pedagógica. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004 e VIGOTSKY, Lev. A transformação socialista do homem (1930). Tradução de Nilson Dória a partir da versão em inglês The socialist alteration of man, do site Marxists Internet Archive.
Disponível em: <http://www.marxists.org/portugues/vygotsky/1930/mes/transformacao. htm>.