O FUNDAMENTO EPISTEMOLÓGICO DA METAFÍSICA DA VONTADE DE ARTHUR SCHOPENHAUER

Jarlee Oliveira Silva SALVIANO[1]

RESUMO: Analisamos neste artigo a teoria do conhecimento de Arthur Schopenhauer com base em sua dissertação Sobre a quádrupla raiz do princípio de razão suficiente (1813), seu ensaio Sobre a visão e as cores (1816), os dois primeiros livros de O mundo como vontade e representação (1819), bem como o apêndice a esta obra intitulado Crítica da filosofia kantiana. Aqui temos em mente a relação de Schopenhauer com as filosofias anteriores (em especial a de Kant) e a fundamentação de sua intuição do mundo como Vontade baseada em uma epistemologia de raízes kantianas.

PALAVRAS-CHAVE: Schopenhauer, conhecimento, intuição, Razão, Vontade.

A despeito das interpretações que veem na metafísica da Vontade de Schopenhauer e sua proposta de um acesso do conhecimento à coisa-em-si uma volta à filosofia pré-crítica, pretendemos fundamentar nossa análise de seu pensamento numa outra postura diante do estatuto ontológico que poderia caracterizar a Vontade schopenhaueriana, a saber, naquela que vê a metafísica imanente do filósofo como um ultrapassamento dos problemas suscitados pela Crítica de Kant e retomados pelo idealismo alemão. Como bem nos mostra Maria Lúcia Cacciola, “se houve infidelidade na leitura que ele faz da filosofia crítica, ela não significa um volta atrás, ou seja, uma retomada do dogmatismo pré-crítico, mas uma verdadeira ruptura que abre um novo campo de investigações sobre a questão da finitude do saber humano, posta por Kant” (Cacciola, 1, p. 22). Podem-se verificar os primeiros traços desta ruptura já na dissertação Sobre a quádrupla raiz do princípio de razão suficiente e no ensaio Sobre a visão e as cores, publicações que antecedem sua obra-mestra.

O modo com que Schopenhauer trata da relação entre conhecimento intuitivo e abstrato, entre o conhecimento intelectual e o racional, põe-no à frente de todas as teorias do conhecimento que o antecedem, ainda que ele vá tomar aí de empréstimo sua pesada carga conceitual. Desde os gregos até Kant, diz Schopenhauer, o princípio lógico (formal) do conhecimento fora confundido com o princípio transcendental (material), motivo pelo qual não se chegou a uma distinção clara entre o que é lógico e o que é ontológico. Todos os erros da metafísica clássica, dentre os quais se destaca a prova ontológica, teriam sido gerados com base nesta confusão.

Em Platão e Aristóteles – apesar da tentativa aristotélica de estabelecer uma teoria das causas – confundia-se princípio do conhecimento com princípio de causa e efeito (lei lógica/lei natural): “os antigos”, diz Schopenhauer em sua Dissertação, “não chegaram a distinguir claramente a necessidade de um princípio do conhecimento para fundar um julgamento, da necessidade de uma causa para a produção de um acontecimento real” (Schopenhauer, 11, p. 21; idem, 9, p. 24). Os escolásticos teriam incorrido no mesmo erro.

A mesma confusão estende-se à filosofia moderna, quando Descartes afirma que “Deus é um princípio de conhecimento, do que se conclui que Deus não tem necessidade de causa” (Schopenhauer, 11, p. 22; idem, 9, p. 24). O panteísmo espinosano nada mais é, para Schopenhauer, que a realização da prova ontológica cartesiana. Espinosa, o “discípulo de Descartes”, funda a relação entre Deus e o mundo (substância/acidente) na relação formal entre um conceito e os julgamentos (juízos) analíticos extraídos dele, ou seja, entre o princípio de conhecimento e sua consequência. Kant fora então o primeiro a propor uma distinção entre o princípio transcendental, isto é, a faculdade pela qual o sujeito conhece os fenômenos ou o objeto de todo conhecimento possível, no qual o modo de existência já está sempre determinado a priori pelas leis pertencentes à própria faculdade do conhecimento, e o princípio lógico, que pertence à Razão e tem como objeto os conceitos extraídos da experiência, ou seja, do conhecimento do fenômeno.

É nesse ponto que deve entrar a distinção schopenhaueriana entre conhecimento abstrato e conhecimento intuitivo. Para Kant, como para Schopenhauer, o espaço e o tempo não são princípios extraídos da experiência sensível, como queria o empirismo, mas formas a priori do conhecimento: são como lentes unicamente pelas quais os objetos nos são dados. Na crítica kantiana, entretanto, elas apresentam-se como formas da sensibilidade: faculdade em que aquilo que nos é dado, o conteúdo do conhecimento (que para o idealismo é gerado no sujeito cognoscente),[2] a coisa-em-si, ganha as marcas da temporalidade e da espacialidade. Esta será então, em Kant, a faculdade da intuição. O entendimento é a faculdade do juízo: o conjunto das doze categorias extraídas da tábua dos juízos que Kant foi buscar na lógica aristotélica. Estas categorias (quantidade, qualidade, relação e modalidade) seriam a segunda lente pela qual o entendimento imprimiria novas formas nas representações intuitivas dadas pela sensibilidade, nos objetos da experiência já sob as formas do espaço e do tempo. Portanto, na filosofia kantiana a intuição empírica (dados dos sentidos) e a intuição pura (formas a priori da sensibilidade) são funções da sensibilidade. Aqui o discípulo distancia-se do mestre e toma outro rumo: para Schopenhauer, pela mera sensibilidade não se obtém nenhuma intuição, ela apenas oferece a matéria (Stoff) que servirá para a aquisição das representações intuitivas (tarefa do entendimento), nas quais se encontram as formas a priori do espaço e do tempo, que serão regidas pelo princípio de causalidade.

O princípio de causa e efeito é então o único que resta no entendimento do conjunto de doze categorias kantianas. As onze demais categorias só existem como conhecimento abstrato, da Razão, e não intuitivo, do entendimento. Enquanto juízos, as categorias não têm no entendimento uma função correlativa a cada uma delas: “eu exijo”, diz Schopenhauer, na Crítica da filosofia kantiana, “que, das categorias, atiremos onze pela janela e só conservemos a da causalidade” (Schopenhauer, 10, p. 112; idem, 8, p. 531). De acordo com Schopenhauer, Kant acaba confundindo, no final das contas, o princípio lógico de causalidade (razão/consequência) com o princípio ontológico (causa/efeito), fazendo com que este seja extraído daquele, enquanto na teoria schopenhaueriana dá-se o contrário: na razão não existe nada que não tenha sido extraído do entendimento, ou seja, é na representação intuitiva que a representação abstrata encontra seu fundamento. Destarte, operando este contrabando de princípios lógicos para a faculdade intuitiva por excelência (o entendimento) é que, segundo Schopenhauer, Kant cai nas malhas dos dogmas da tradição.[3]

Verifiquemos então como esse parricídio apresenta-se já na Dissertação de 1813, com a teoria da quádrupla raiz do princípio de razão.

Nesse tratado, Schopenhauer pretende estabelecer “as diferentes leis de nossa faculdade de conhecer, das quais a expressão comum é o princípio de razão suficiente” (Schopenhauer, 11, p. 34; idem, 9, p. 39). Toda a sua teoria do conhecimento, traçada nessa tese de doutorado, composta no vilarejo de Rodollstadt, que lhe garantiu o título pela Universidade de Iena, fora edificada com o material teórico da Crítica kantiana. O ponto de partida não só da epistemologia ou da ontologia, mas de toda a filosofia schopenhaueriana, é a distinção kantiana entre fenômeno e coisa-em-si (Ding an sich). A faculdade do conhecimento tem certos limites que não nos permitem conhecer o mundo como ele é em si mesmo. É porque só conhecemos por meio das formas a priori do espaço e do tempo, e sob a categoria da causalidade, que não podemos apreender nada que não esteja inscrito nestas formas, que não seja objeto da experiência. Portanto, do mundo conhecemos apenas seu fenômeno, ou, para falar mais schopenhauerianamente, a representação.[4]Para o filósofo de Danzig, se as representações têm sua fonte no entendimento, elas são intuitivas; se, de outro modo, elas são extraídas de outras representações por meio da faculdade da razão, elas são abstratas: são os conceitos. Das primeiras segue-se uma tríplice divisão, que, juntamente com as representações abstratas, forma um total de quatro classes de representações. Para cada classe existem certas normas determináveis a priori, que Schopenhauer reuniu sob a rubrica de princípio de razão suficiente.

A discussão sobre esse princípio não é uma novidade trazida pela filosofia do autor de O mundo. Desde Leibniz ocorreram várias tentativas de estabelecer-se uma distinção entre princípios lógicos do conhecimento (representações abstratas) e princípios ontológicos (representações intuitivas), mas nenhuma delas concorda plenamente com a classificação de Schopenhauer, como ele procura demonstrar no início de sua Dissertação. Dentre elas, citamos a de Wolff, que terá uma particular importância neste primeiro momento da teoria do conhecimento schopenhaueriana. Wolff – segundo Schopenhauer, o primeiro a operar expressamente esta distinção – propõe um princípio lógico do conhecimento, o principium cognoscende, que se ramifica em três outros princípios, que teriam como correlatos as causas reais: principium fiendi, principium essendi e causa impulsiva. Conquanto não concorde com a conceitualização dos princípios wolffiana, Schopenhauer, no entanto, se servirá desta nomenclatura ao apresentar sua classificação, com exceção do último princípio, que ganhará o título de causa agendi.[5]

As representações intuitivas, completas, empíricas formam a primeira classe de objetos para o sujeito, e a elas aplica-se o princípio de razão suficiente do devir (rationum fiendi). Nestas representações, o espaço (sentido externo) e o tempo (sentido interno), formas da representação empírica, são unidos pelo entendimento. O produto desta união é a matéria (conceito que substitui, em Schopenhauer, o de substância) e que nada mais é que a perceptibilidade da causalidade. Portanto, todo objeto do conhecimento encontra seu fundamento nas formas a priori do entendimento ou, o que é o mesmo, do intelecto (Intellekt): o que faz com que toda intuição empírica seja mera representação, ou seja, “toda a realidade apenas existe pelo entendimento, para o entendimento, no entendimento” (Schopenhauer, 13, p. 19; idem, 8, p. 13). O mundo como ele é em si, “a ordem eterna existente por si no universo” (Schopenhauer, 11, p. 99; idem, 9, p. 112), escapa a todo tipo de representação. Tentar conhecê-lo como fazemos com esta mesa ou aquela árvore ali fora, por meio das formas do entendimento, é como estar diante de um sereno riacho de águas cristalinas, do qual o úmido frescor pode ser sentido prazerosamente pelas baforadas de ar que tocam nosso rosto, e quando tentamos experimentar de sua água percebemos que só dispomos de uma caneca (Schoppen, em alemão) furada, da qual o puro líquido esvai-se antes mesmo que possamos fixar nele nosso olhar. A visão deste mundo em si como Vontade só será apresentada no segundo livro de O mundo como vontade e representação. No terceiro livro, será mostrada ainda a forma do conhecimento que nos dá acesso, mesmo que mediato, a esse mundo.

Em sua Dissertação, e no ensaio Sobre a visão e as cores, o Filósofo da Vontade contenta-se em criticar a teoria kantiana do conhecimento, apontando a insuficiência da ideia de coisa-em-si da Crítica: para Kant, o objeto independente do conhecimento é aquilo que me é dado (Data). E não se vai além disto. Quando Schopenhauer fala, nestes primeiros escritos, em “objetos externos”, “agente estranho” (Fremden Agens) (Schopenhauer, 14, p. 41; idem, 9, p. 689), que fornecem a matéria (Stoff) que o entendimento transforma em intuição, chegamos a pensar que, se for dado mais um passo, estaremos em contato com esta matéria, o que não é muito diferente da embriaguez empirista, para a qual quase podemos sentir nossos lábios tocarem naquela água fresca: frustrada esperança! O fabricante de canecas (Schoppen-hauer) não se esquece de furá-las cuidadosamente. A compensação pela sede, à qual somos abandonados, está na fuga dos dogmas do

5 silogismos...); 3) Matemática (“princípio do ser no espaço e no tempo”); e 4) Prática (“determinação de um caráter empírico de acordo com os motivos presentes”) (Schopenhauer, 9, p. 124; idem, 7, v. 2, p. 549).

materialismo: “como o rei Midas, a representação transforma em ideal tudo aquilo que toca, mas, se quiser o real, terá de contentar-se com sua fome” (Torres Filho, 15, p. 106).

Assim, Schopenhauer mostra-nos que por meio do entendimento, conjunto das funções cerebrais, o objeto nos é dado apenas numa cadeia de causalidade sem começo (In infinitum). Isto quer dizer que para todo efeito há uma determinada causa que o precede, e esta causa, por sua vez, é o efeito de uma outra causa, e assim indefinidamente.[6] Tendo isto em vista e lembrando que “só se pode admitir como causa o estado total, que produziu o estado subsequente” (Schopenhauer, 11, p. 45; idem, 9, p. 50), observa-se que este estado total, ao modo de uma causa primeira (causa prima), é impensável, o que demonstra este vazio substancial que perpassa a representação e a torna absolutamente dependente do entendimento: “o sujeito não é capaz de conferir ao termo que lhe é oposto a objetividade que ele próprio não tem” (Cacciola, 1, p. 56). Schopenhauer mostra assim a nulidade (Nichtigkeit) da prova cosmológica: “afirmação que o princípio de razão do devir, ou lei da causalidade, conduz necessariamente a uma ideia pela qual ele se encontra suprimido e que o considera como nulo” (Schopenhauer, 11, p. 50; idem, 9, p. 56). Na Crítica da filosofia kantiana Schopenhauer declara: a ideia da causa prima é fruto da “preguiça do indivíduo especulante” (Schopenhauer, 10, p. 152; idem, 8, p. 591).

Esse princípio de causalidade, que fundamenta a classe de representações aqui tratada, pode apresentar-se em três formas diferentes: como causa propriamente dita, que se manifesta no inorgânico; como excitação, no orgânico (plantas e o lado inconsciente do animal); e como motivo, na vida consciente do animal. Em qualquer destas manifestações do mundo fenomênico, o sujeito cognoscente, por meio do entendimento, extrai as intuições empíricas que servirão à razão como a matéria de onde se formam os conceitos, ou representações abstratas: a segunda classe de representações. Antes de passarmos ao exame desta classe de objetos, é preciso notar a importância do parágrafo 21 da Dissertação, no qual Schopenhauer fala da intelectualidade da intuição empírica. Já expusemos mais acima, em linhas gerais, seu significado. É aí, a nosso ver, que se encontra a pedra fundamental do edifício da filosofia schopenhaueriana e que a faz distinguir-se da metafísica clássica e até mesmo da crítica kantiana. Como queria a tradição (e, em certa medida, Kant), as intuições empíricas são as meras afecções corporais, fonte de todo erro, que turvam a limpidez dos possíveis conhecimentos inatos e intocáveis de um cogito reflexionante ou de uma razão todo-poderosa. Para Schopenhauer, entretanto, o entendimento ou intelecto não é uma entidade suprassensível, ele localiza-se no cérebro de uma cabeça animal[7] e encontra aí toda a sua razão de ser. A sensibilidade oferece a matéria com a qual o entendimento produz as representações. A razão, com base nestas intuições empíricas, forma os conceitos, intuições abstratas, de segunda mão.

Portanto, só no intelecto produzem-se as intuições. A fórmula schopenhaueriana Alle Anschauung ist eine intellektuale, com a qual ele abre seu ensaio Sobre a visão e as cores e que aparece em toda a sua obra, tem assim muito mais peso que a sentença de inspiração berkeleiana Die Welt ist meine Vorstellung, pois esta pressupõe aquela e tem ali sua fundamentação. O problema clássico daquela identificação do entendimento com o cérebro é: se este órgão é representação, pois é de natureza corporal, como entender que as representações nascem de algo que é, ele próprio, representação?[8] Schopenhauer percebeu esta circularidade, nomeando-a, no limiar do primeiro livro d’O mundo, a antinomia da faculdade de conhecer (Schopenhauer, 13, p. 45; idem, 8, p. 36). O filósofo tentará encontrar uma solução na distinção kantiana entre fenômeno e coisa-em-si: de fato, no mundo como representação o sujeito do conhecimento aparece ao mesmo tempo como o iniciador desta realidade fenomênica e também como o resultado de um encadeamento causal no tempo e no espaço. No mundo como Vontade, entretanto, mundo do qual sujeito e objeto são apenas suas objetivações e em que não fazem sentido as formas da temporalidade e espacialidade, a antinomia perde o sentido, ou seja, a coisa-em-si não é “tocada por essa primitiva, radical, e também insolúvel, contradição” (Schopenhauer, 13, p. 46; idem, 8, p. 37).

O princípio que rege a segunda classe de objetos, as representações abstratas ou conceitos, é o princípio de razão do conhecimento (rationis cognoscendi). Podemos dizer, com Schopenhauer, que a razão apenas pressente (ahndungen) o mundo: suas representações são sempre extraídas de representações intuitivas, ou da relação entre aquelas, analiticamente, como no silogismo. A faculdade de julgar, que em Kant aparece ora no entendimento, ora na razão, em Schopenhauer serve de intermediário entre o conhecimento intuitivo e o abstrato, discursivo. É o juízo, faculdade de expressar a causalidade in abstracto, que leva a matéria do entendimento (a intuição) para a razão – e neste caso temos um juízo sintético; há aí um acréscimo de conteúdo (que tenhamos aqui em mente o sentido dado por Kant aos conceitos de síntese e análise). Na passagem dos conceitos da razão para a intuição, temos um juízo analítico, e não sintético, como poderia pretender a filosofia hegeliana.9

A terceira classe de representações é formada pelo modo de ser do espaço e do tempo como objetos da intuição pura, isolados de seu conteúdo. São regidos pelo princípio de razão do ser (rationum essendi). O espaço como pura intuição, em que não há ainda a sucessão temporal, é o objeto da geometria; e o tempo, isento de toda permanência do espaço, representa o sentido interno e torna a aritmética possível. Só com a união destas duas formas (feita pelo entendimento) surge a matéria, em que a causalidade expressa-se como intuição empírica (primeira classe de representações). No entanto, ainda aqui, no reino do conhecimento matemático, o princípio de causalidade apresenta-se como intuição pura.

A quarta classe é representada pelo objeto imediato do sentido interno, o sujeito do querer. As volições e ações humanas serão então regidas pelo princípio de razão suficiente do agir, ou lei da motivação (rationis agendi). Na senda cartesiana do autoconhecimento, o sujeito do conhecer não pode, diz Schopenhauer, encontrar a si mesmo, mas tão somente o querer; não um cogito, mas um velle. O que teria levado toda a tradição filosófica ao mesmo erro de Descartes é o fato de que neste conhecimento interno o sujeito que conhece misteriosamente tende a identificar-se com o sujeito do querer (o milagre, κατ  εξοχην). O Eu nada mais é do que a tentativa de substancialização desta identidade: portanto, um vazio, uma ilusão. É preciso ter em mente que na Dissertação de 1813 Schopenhauer ainda não tivera a visão do mundo como Vontade, tampouco se pode pensar ali na vontade individual como caráter inteligível, a Ideia platônica; trata-se neste caso apenas do querer fenomênico, a vontade já travestida sob a forma do tempo, que ganhará o nome de caráter empírico. Portanto, esta classe de representações deverá ser repensada no segundo livro d’O mundo visando a relação com aquela outra classe: a das Ideias. Sabemos que, no conhecimento dos objetos da primeira classe de representações, sujeito que conhece e objeto são correlatos, ou seja, só com base na relação entre ambos é que surge o mundo como representação – nunca de um dos polos apenas, como o que-

9          O hegelianismo, dirá ele, é a “cidade dos cucos nas nuvens” (νεφελοχοχχυγια) (Schopenhauer,

10, § 34, p. 117; idem, 8, v. 3, p. 132). É esta confusão que, segundo Schopenhauer, leva ao pensamento de um objeto totalmente independente do sujeito, um objeto em si (Objekt an sich), que na Crítica da filosofia kantiana é denunciado na forma das Ideias da razão kantianas (Schopenhauer, 9, p. 108; idem, 7, v. 2, p. 526). Para Schopenhauer, a razão não oferece à intuição nada que já não esteja contido nesta (análise). Enquanto todo o conteúdo da razão advém da intuição empírica (síntese).

riam o idealismo e o materialismo –, não podendo, assim, haver uma relação de causa e efeito entre os dois. Com o querer, no entanto, isto deve necessariamente ocorrer, pois, sendo ele uma representação, um objeto, estará infalivelmente em relação de causalidade com um outro objeto, o motivo. A motivação é “a causalidade vista do interior” (Schopenhauer, 11, p. 149; idem, 9, p. 165).

Isso nos conduzirá, inevitavelmente, ao determinismo da ética schopenhaueriana e à questão da negação da vontade (o niilismo), em que aquela relação é quebrada.

Frauenstädt, citado por Hübscher em sua introdução às Obras Completas de Schopenhauer, refere-se à dissertação Sobre o princípio de razão e ao ensaio Sobre a visão e as cores como precursores de sua concepção idealista do mundo. Quanto a este último texto, apesar de ser apresentado no prefácio à segunda edição de 1854 como um assunto secundário, ainda é, para Schopenhauer, uma “propedêutica filosófica totalmente apropriada” (Schopenhauer, 14, p. 31; idem, 9, p. 677) e leitura prévia obrigatória para o melhor entendimento d’O mundo. Assim, a temática desse ensaio não deixa de ser relevante para nossa abordagem (se é que existe algum tema em Schopenhauer, o filósofo do pensamento único, que possa ser absolutamente isolado e que não permita a referência aos outros temas). Ademais, seu conteúdo evidencia a constante preocupação em ligar sua metafísica ao movimento científico da época (o que mostra a importância inusitada dada à experiência em seu sistema), preocupação esta que perpassará toda a sua obra – mas que se nota principalmente a partir da publicação de Sobre a vontade na natureza, de 1836.

Qual o objetivo desse pequeno escrito? Palavras de Schopenhauer: demostrar que “as cores das quais os objetos parecem revestidos encontramse no olho” (Schopenhauer, 14, p. 37; idem, 9, p. 686). O que isto significa? Significa que o jovem recentemente doutorado pretende engrossar as fileiras do movimento contra a teoria das cores de Isaac Newton, do qual o principal representante é o ilustre frequentador dos salões de Frau Johana Schopenhauer: Goethe, que notara no filho desta dama um grande talento, depois de ter lido sua Dissertação de Iena. O ensaio é escrito, portanto, sob o incentivo do poeta de Weimar.

A teoria antinewtoniana de Schopenhauer sobre as cores, que até certo ponto concorda com o Tratado das cores goethiano, propõe como origem das cores não o fenômeno da luz, como pregava Newton, mas as ações da retina. Ademais, este estudo serve também, para usar uma expressão do filósofo, como propedêutica para a compreensão de sua teoria do conhecimento e como demonstração de sua tese sobre a intelectualidade da intuição empírica. Esta tese, na forma de uma divisa (Alle Anschauung ist eine intellektuale), é repetida nos primeiros e nos últimos caracteres do primeiro capítulo, “Sobre a visão” (“Vom Sehn”), dos dois que compõem o ensaio. Ali seu estudo sobre a raiz do princípio de razão é posto em revista.

Assim como o entendimento sozinho não engendra nenhum conhecimento sem o conteúdo fornecido pelos dados dos sentidos,[9] a mera sensibilidade, a afecção dos sentidos, não é suficiente para que o sujeito que conhece tenha qualquer intuição sobre o mundo. Por ela somente não é possível nenhuma representação, pois o entendimento é a condição sem a qual não se chegaria jamais à intuição, à percepção e à apreensão objetiva. O sentimento, portanto, aquilo que não cai sob a alçada da razão (dirá Schopenhauer no § 11 d’O mundo) e que, antes do intelecto, tem o primeiro contato com as coisas como elas são em si (despidas das formas do entendimento) –, permanece impenetrável para o conhecimento, o qual só pode pronunciar-se negativamente sobre o conteúdo advindo daquele contato.[10]

Pensar que a sensibilidade por si só nos dá o mundo pronto e acabado, tal como ele existe em si, é recair no empirismo, que Schopenhauer rejeita: é como acreditar que esta mesa com todo o seu conteúdo pulasse para dentro de minha consciência no momento mesmo em que a vejo. Os sentidos são excitados pelo objeto externo (luz, som, odor) oferecendo a sensação: “a modificação que os sentidos recebem de uma tal impressão não é ainda uma intuição, mas apenas a matéria [Stoff] que o entendimento transforma em intuição” (Schopenhauer, 14, p. 41; idem, 9, p. 689). O entendimento ou inteligência – faculdade comum a toda a animalidade – tem como função relacionar o efeito (impressões corporais) à causa (representação),

projetando-a no espaço intuicionado a priori, donde provém o efeito, e reconhecendo assim a causa como ativa, como real, ou seja, como uma representação do mesmo gênero e da mesma classe que aquela à qual pertence o corpo. (Schopenhauer, 14, p. 39; idem, 9, p. 687)

Depreende-se daí que o corpo ganha uma importância fundamental no ato do conhecimento. O corpo é a “representação que serve de ponto de partida para o sujeito do conhecimento” (Schopenhauer, 13, p. 29; idem, 8, p. 22). É através desta forma particular de fenômeno que se chega a toda intuição – e consequentemente a todos os conceitos e leis lógicas da razão (privilégio do homem).

Vejamos como se dá essa operação do intelecto no sentido da visão. Para Schopenhauer, a claridade, a obscuridade e a cor “são estados de modificação do olho” (Schopenhauer, 14, p. 53; idem, 9, p. 702). A cor que envolve os objetos é constituída pela ação da retina (fina membrana nervosa situada no fundo do globo ocular) provocada pela impressão da luz no olho. Para Newton, a luz é composta, e a cor é simples. Esta resultaria da decomposição da luz. Goethe já mostrara que a luz é simples e a cor surge da composição dinâmica entre a luz e sombra. Maurice Elie, em sua introdução à tradução francesa do Ensaio, nos diz que, “segundo Goethe, as cores resultam de deslocamentos, de recobrimentos de imagens e de limites entre partes claras e escuras” (Schopenhauer, 14, p. 17).

É importante destacar aqui a diferença estabelecida por Schopenhauer entre erro e aparência. A aparência é um problema do entendimento, do conhecimento intuitivo (in concreto), em que o mesmo objeto pode promover uma intuição falsa, se posto em determinados estados, ou relações com outros objetos, como, por exemplo, a percepção da lua no zênite e no horizonte. O erro, por outro lado, diz respeito somente aos conceitos da razão (in abstrato) e deve, segundo Schopenhauer, ser severamente combatido:

“O mundo da intuição”, diz-nos, no primeiro livro de O mundo, “enquanto não tentamos ultrapassá-lo, não provoca, naquele que o observa, nem dúvida nem inquietude; não há aqui lugar nem para o erro nem para a verdade, ambos relegados para o domínio do abstrato, da reflexão”. (Schopenhauer, 13, p. 25; idem, 8, p. 18)

Nos dois casos, procede-se concluindo do efeito para a causa, enquanto só no sentido inverso é possível a apreensão de uma realidade (entendimento) ou de uma verdade (Razão).

Essas teses de sua teoria do conhecimento (a intelectualidade da intuição e a distinção entre conhecimento intuitivo e abstrato) trarão como consequência ontológica a visão do mundo como Vontade na primeira edição de O mundo como vontade e representação (convém observar que já nos manuscritos póstumos de 1814 esta ideia fazia sua primeira aparição). No apêndice a esta obra, Schopenhauer apresenta o rompimento definitivo com a crítica kantiana e mostra o momento em que sua filosofia caminha com as próprias pernas:

“está aqui o ponto”, proclama ele, “onde a filosofia de Kant conduz à minha, ou onde esta provém a partir daquela, como de seu tronco [...] Transportei o que Kant diz unicamente do fenômeno humano para todo fenômeno em geral, como aquilo que se diferencia daquele, apenas, segundo o grau, a saber, que a sua essência em si é algo absolutamente livre, quer dizer, uma Vontade [Wille]”. (Schopenhauer, 10, p. 155; idem, 8, p. 595)[11]

Tão importante quanto esta transposição, assim nos parece, é o acesso do conhecimento ao mundo em si, que é apresentado no terceiro livro d’O mundo.

Tratar-se-á então nessa obra de retornar aos princípios epistemológicos da Dissertação e do Ensaio que a precederam, para fundamentar, de forma sistemática, sua nova visão de mundo, sua ontologia.[12] Aqui verificamos o surgimento de duas outras doutrinas que juntamente com a filosofia kantiana formarão as três colunas de sustentação do edifício filosófico schopenhaueriano: a filosofia platônica e o hinduísmo. A distinção platônica entre mundo ideal e mundo fenomênico será identificada com a distinção kantiana entre o númeno e o fenômeno; e as Ideias platônicas servirão para representar as “objetividades imediatas da Vontade”.[13] São três os tipos de Ideias, segundo Schopenhauer: a força (peso, gravidade, impenetrabilidade, etc.), presente na natureza desprovida de conhecimento; a espécie, predominante no reino animal, com a exceção do homem, que possui uma Ideia particular, sua vontade individual ou caráter inteligível (o terceiro tipo).

Quanto à influência das doutrinas religiosas do Oriente, em especial, o budismo, que lhe garante o título inusitado de “budista extraviado no Ocidente” (Ribot, 5, p. 12), Schopenhauer acredita que a verdade inscrita nos textos védicos sobre o mundo de Maya aplica-se perfeitamente ao princípio do mundo como representação. Mas é importante lembrar que o contato de Schopenhauer com o budismo só se deu depois que a primeira edição de O mundo já havia seguido o caminho da publicação, como nos mostra o próprio filósofo no Suplemento ao primeiro livro da segunda edição de 1844:

eu me alegro em constatar um acordo tão profundo entre minha doutrina e uma religião que, sobre a terra, conta com mais adeptos que qualquer outra. Este acordo me é tão mais agradável por meu pensamento filosófico ter sido certamente independente de toda influência budista, pois, até 1818, data da aparição de minha obra, só possuíamos na Europa raros relatos, insuficientes e imperfeitos, sobre o budismo. (Schopenhauer, 12, p. 303; idem, 8, p. 888)

Roger-Pol Droit valoriza esta influência oriental afirmando que “não é Schopenhauer que é budista, mas, a seus olhos, [é] o budismo que é préschopenhaueriano” (Droit, 2, p. 206).

Em relação a Kant, Schopenhauer reconhece três méritos em sua filosofia como um todo: a distinção entre fenômeno e coisa-em-si (Schopenhauer, 10, p. 87; idem, 8, p. 494); o deslocamento do significado moral do agir humano para além das fronteiras fenomênicas, em que ele “toca imediatamente na coisa-em-si”; e “a subversão da filosofia escolástica” (Schopenhauer, 10, p. 91; idem, 8, p. 500). Por outro lado, Schopenhauer denuncia o amor pela simetria do filósofo de Königsberg, em que ele é comparado com a complexa arquitetura gótica: gosto pelo simétrico que o levaria a não considerar a verdadeira importância do conhecimento intuitivo.

Depois que ele toma em consideração o conhecimento intuitivo apenas na matemática, negligencia completamente o conhecimento intuitivo restante, no qual o mundo se coloca diante de nós, e atém-se apenas ao pensamento abstrato que, entretanto, recebe todo o sentido e valor somente do mundo intuitivo, que é infinitamente mais significativo, universal e mais rico de conteúdo, do que a parte abstrata de nosso conhecimento. (Schopenhauer, 10, p. 98; idem, 8, p. 511)

Segundo Schopenhauer, a metafísica tradicional não conseguira desvendar o segredo da essência do universo porque empreendeu o caminho errado. Pôs como essencial aquilo que é acidental, e escolheu uma determinada classe de representações e absolutizou-a: Tales e os jônios, Demócrito, Epicuro, Giordano Bruno e os materialistas franceses ativeram-se à primeira classe de representações (rationum fiendi); os eleatas e Espinosa elegeram a segunda (rationum cognoscendi); os pitagóricos e a filosofia chinesa do Y-king, a terceira classe (rationum essendi); e a quarta classe de representações (rationis agendi) tem como representantes os escolásticos. A estas classes de objetos do conhecimento, corresponderiam, respectivamente, a ciência da natureza, a lógica, a matemática (geometria e aritmética) e a história.

A visão do mundo como Vontade, como já aludimos acima, nasce com base no conhecimento interno do próprio sujeito. O que é o mundo em si, pergunta Schopenhauer kantianamente, para além do fenômeno? Ora, se sou eu mesmo, como corpo, fenômeno, então este em-si tem que me ser dado imediatamente em minha intuição interna:

o sujeito do conhecimento, pela sua identidade com o corpo, torna-se um indivíduo; desde aí, esse corpo lhe é dado de duas maneiras completamente diferentes: por um lado, como representação no conhecimento fenomenal, como objeto entre outros objetos e submetido às suas leis; e, por outro lado, ao mesmo tempo, como este princípio imediatamente conhecido por cada um, que a palavra vontade designa. (Schopenhauer, 13, p. 133-4; idem, 8, p. 119-20)

Assim, conclui o filósofo, “a vontade é o conhecimento a priori do corpo, e o corpo é o conhecimento a posteriori da vontade” (Schopenhauer, 13, p. 134; idem, 8, p. 120). Significa dizer que a diferença entre a vontade e o corpo, entre o querer e o fazer, só pode ser pensada in abstracto, pela reflexão. Em Sobre a vontade na natureza – ensaio escrito em 1836, no qual ele procura mostrar que seu idealismo está assentado no firme solo das ciências empíricas – afirma Schopenhauer que “as ações do corpo não são mais que os atos da Vontade que se pintam [abbildenden] na representação” (Schopenhauer, 14, p. 63; idem, 8, p. 20). Daí decorre o que o filósofo chamou de procedimento analógico: se enquanto corpos somos representação assim como toda a realidade objetiva – e se enquanto essência, ser em si, somos vontade, sendo esta conhecida sem esforço na intuição interna, pensa Schopenhauer, os outros objetos também devem ter a mesma essência, a Vontade. Esta Vontade é assim a tão polêmica coisa-em-si kantiana.[14] O mundo numênico, portanto, que escapa às formas da representação, é um ímpeto cego, irracional, sem nenhum objetivo ou finalidade, um puro querer. O mundo da representação nada mais é que a Vontade objetivada, tornada objeto.

Se quiséssemos empreender uma analogia entre esse processo de objetivação da Vontade e os fenômenos da evaporação, liquefação e condensação, diríamos que a Vontade representa o estado gasoso, as Ideias representam o líquido, e o mundo fenomênico, o sólido. A objetivação é a passagem da Vontade como coisa-em-si aos graus mais ínfimos de objetividade na natureza inorgânica, a qual, como naqueles fenômenos citados, atravessa diferentes formas intermediárias. O motivo que leva a Vontade a objetivar-se é seu querer insaciável. Imaginemos que não existisse ainda o mundo como representação: a Vontade, como é um querer que precisa ser saciado, dirige-se então a si mesma, objetivando-se em parte para ali poder saciar-se. Esta imagem assaz simplória, no entanto, é problemática. Isto porque não é possível, de acordo com Schopenhauer, pensar a objetivação como uma espécie de big bang da Vontade, senão in abstracto. Não existiu um momento no tempo em que a Vontade, antes recolhida em si, objetivase por um milagre qualquer ou sob uma determinação divina. Não existe um antes ou um depois na Vontade.[15] Enfim, o mundo em si é Vontade, e o fenômeno, o mundo objetivo, real, acessível ao conhecimento, é representação, e “fora da Vontade e da representação nós não podemos pensar nada” (Schopenhauer, 13, p. 140; idem, 8, p. 125). E, para ser pensada objetivamente, conclui o filósofo, a Vontade toma de empréstimo o nome de um de seus fenômenos mais perfeitos. Esta insaciabilidade da Vontade revela uma característica funesta de sua natureza: trata-se do conflito interno desta coisa-em-si e a consequente luta entre si de suas formas objetivadas. “Em toda a parte na natureza”, diz-nos Schopenhauer, “nós vemos luta, combate, e alternativas de vitória, e deste modo nós chegamos a compreender mais claramente o divórcio essencial da Vontade com ela mesma” (Schopenhauer, 13, p. 191; idem, 8, 174). E qual a finalidade desta luta? Nenhuma: “o universo está em luta por nada” (Philonenko, 3, p. 102).

A metafísica da Vontade de Schopenhauer representa uma ruptura profunda em relação à história da filosofia: desde a Antiguidade helênica, o mundo Ideal, a essência da qual tudo brota, que engendra o aparente, seja ele o Logos, ou o Nous de Anaxágoras, é essencialmente racional, e seu correlato no homem é a razão, por isto o acesso a este mundo deveria seguir as vias impostas por esta faculdade. Para Platão e Aristóteles, a única parte da tríplice divisão da alma (ψιχε) que é imortal é a parte racional. E é por ela que se tem acesso ao mundo Ideal (Platão) ou formal (Aristóteles). No mundo da doxa, da opinião, do erro, o conhecimento encontra-se extraviado de sua senda natural, pois está emaranhado ao sentimento, aos impulsos inconscientes, meras afecções corporais. Na Idade Média e na filosofia moderna, as paixões, os sentimentos, tudo o que não tem o conhecimento lógico-racional como fundamento, deviam ser relegados ao segundo plano (mesmo a fé, verdade revelada, no pensamento filosófico-cristão medieval, só se apresenta como verdade in concreto, se amparada pela razão, a marca da divindade no homem). Schopenhauer subverte toda a metafísica clássica e mostra que a essência do mundo é um impulso cego (blinder Drang), um ímpeto inconsciente, que no homem mostra-se como tudo o que há de irracional, que escapa às formas do conhecimento lógico e intuitivo. “Não há ordem nem razão do ser”, comenta Didier Raymond, “toda existência repousa sobre um princípio obscuro e irracional” (Raymond, 4, p. 40). A razão e o intelecto são apenas uma fachada para a vontade, a verdadeira essência humana. A Vontade é a monarca no reino em que o cérebro é apenas o ministro de Estado (Schopenhauer, 14, p. 67; idem, 8, p. 23). O sistema nervoso simpático (cerebrum abdominale) cuidaria então, para continuar a analogia, do governo interno.

O que é consciente no homem é sempre determinado por esta força inconsciente: o conhecimento é um mero instrumento que a vontade usa para saciar-se. A consciência, dirá ele nos Suplementos ao Livro I, é como um lago profundo no qual os pensamentos conscientes são apenas a superfície: “a consciência é apenas a superfície do nosso espírito; do mesmo modo que em relação à terra nós só conhecemos a crosta, não o interior” (Schopenhauer, 12, p. 270; idem, 9, p. 848). Esta intuição schopenhaueriana tem uma importância singular na história do pensamento, principalmente por ter ocorrido na mente do jovem filósofo de Danzig muitos anos antes de o senhor Jakob conhecer a futura senhora Freud.

Pois bem, a Vontade é um puro querer, mas, poder-se-ia perguntar, o que quer a Vontade? Quer a si mesma, diria Schopenhauer. E, como ela é tudo o que existe, podemos dizer que Vontade e vida são a mesma coisa: Vontade de viver (Wille zum Leben) (Schopenhauer, 13, p. 192; idem, 8, p. 175).[16] A Vontade não está numa relação de causalidade com um mundo, ela não é um princípio absoluto, transcendente, mas sim imanente. Por isso é que, diz Schopenhauer no apêndice de sua principal obra, “a solução do enigma do mundo tem de provir do próprio mundo; que, portanto, a tarefa da metafísica não é sobrevoar a experiência na qual o mundo se apresenta, mas entendê-la a partir de seu fundamento, pois a experiência externa e interna é, sem dúvida nenhuma, a fonte principal de todo conhecimento” (Schopenhauer, 10, p. 95; idem, 8, p. 507). Em Schopenhauer a fonte da filosofia será então

deslocada do suprassensível para a experiência interior que cada um tem de seu próprio corpo em ação, surgindo, da impossibilidade mesma de uma metafísica transcendente, a metafísica imanente que decreta a ausência de Deus e a presença do homem como ser corporal finito. (Cacciola, 1, p. 23)

ABSTRACT: We analyse in this article the theory of knowledge by Arthur Schopenhauer included in his dissertation On the Fourfold Root of the Principle of Sufficient Reason (1813), his essay On Vision and Colours (1816), the two first books of The World as Will and Representation (1819), and the appendix at this work, intitled Criticism of the Kantian Philosophy. We have here in mind the relation of Schopenhauer with the previous philosophies (especially that by Kant) and the establishment of his intuition of world as Will based in an epistemology of Kantian sources.

KEYWORDS: Schopenhauer, knowledge, intuition, Reason, Will.

Referências bibliográficas

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[1] Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e professor adjunto da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Artigo recebido em 07/2009 e aprovado em 10/2009.

[2] Contra este tipo de idealismo, que tem em Fichte o principal representante, Schopenhauer sentencia, n’O mundo: “Todo o conceito existe e tem valor apenas enquanto está em relação, tão longínqua quanto se queira, com uma representação” (Schopenhauer, 12, p. 92; idem, 7, v. 2, p. 78).*

* Quando este artigo foi produzido, não contávamos ainda com a excelente tradução de Jair Barboza pela Editora Unesp.

[3] “A filosofia é, para ele, uma ciência a partir de conceitos, para mim uma ciência em direção a conceitos” (Schopenhauer, 9, p. 115; idem, 7, v. 2, p. 537).

[4] A partir do terceiro livro d’O Mundo será apresentada uma distinção entre fenômeno e representação que perpassará todo o restante da obra.

[5] Na Crítica da filosofia kantiana aparece a seguinte classificação das quatro modalidades do princípio de razão: 1) Necessidade física (causa-efeito); 2) Lógica (razão do conhecer – juízos analíticos,

[6] “A ideia de causalidade é uma miragem, que promete sem cessar mais do que ela pode, na realidade, ocasionar” (Rosset, 5, p. 11).

[7] É a partir de Sobre a vontade na natureza (e já em alguns manuscritos de antes de 1836) e principalmente nos Suplementos de 1844 que a teoria do conhecimento schopenhaueriana ganha um caráter cada vez mais fisiologicista.

[8] Este paradoxo ganhará o nome de paradoxo de Zeller (cf. Cacciola, 1, p. 77).

[9] Dirá Schopenhauer, numa expressão que lembra muito a teoria do ato-potência aristotélica, no Livro I de O mundo: “nunca o entendimento entraria em atividade se não encontrasse um ponto de partida noutra coisa que não ele mesmo” (Schopenhauer, 12, p. 30; idem, 7, v. 2, p. 23).

[10] A palavra “sentimento” (Gefühl) é usada por Schopenhauer para designar os estados da vontade no homem, com a advertência de que a extensão do significado normalmente dada a este termo é, segundo ele, um erro da razão, que procura incluir sob um só conceito tudo aquilo que escapa de seu modo de representação, como os gregos em relação aos bárbaros: “Aliás, pode haver não importa o quê sob o conceito de sentimento cuja extensão excessivamente grande abarca as coisas mais heterogêneas. Não se veria por que motivo elas se mantêm sob um mesmo conceito se não se reconhecesse que elas se reconciliam sob um ponto de vista negativo: não são conceitos abstratos” (Schopenhauer, 12, p. 74; idem, 7, v. 2, p. 62).

[11] Procuramos diferenciar o conceito de Vontade como coisa-em-si, com V maiúsculo, da vontade individual, a Ideia ou caráter inteligível, que ganhará v minúsculo; a vontade empírica ou caráter empírico será grafada como querer. Cabe observar que o próprio Schopenhauer não teve uma preocupação rigorosa em fazer esta diferenciação, ficando tal tarefa a cargo do leitor. A propósito, alguns comentadores também não tiveram esta preocupação, talvez ancorados na ideia de que algumas afirmações feitas à Vontade aplicam-se igualmente aos três aspectos dela; Edouard Sans justifica o uso da maiúscula para Vontade explicando que este é “o único conceito que pede uma definição em uma filosofia tão límpida” (Sans, 6, p. 23).

[12] Na Crítica da filosofia kantiana, a distinção entre conhecimento abstrato e intuitivo e a intelectualidade da intuição ganha a seguinte explicação: “Os objetos [Objekte] são diretamente objetos [Gegenstände] da intuição, não do pensamento, e todo conhecimento de objetos [Gegenstände] é, originariamente, e em si mesmo, intuição” (Schopenhauer, 9, p. 133; idem, 7, v. 2, p. 564-5).

[13] Schopenhauer justifica a adoção do conceito platônico mostrando que as Ideias designavam “as formas imperecíveis, que, multiplicadas através do tempo e do espaço, tornam-se imperfeitamente visíveis nas coisas incontáveis, individuais e perecíveis. Em consequência disso, as ideias de Platão são inteiramente intuitivas, como designa, tão precisamente, também, a palavra que ele escolheu, a qual apenas poderia ser traduzida adequadamente por ‘intuitibilidades’ ou ‘visibilidades’. E Kant apropriou-se dela para designar algo que está situado longe de toda possibilidade da intuição, que, até mesmo, o pensamento abstrato só pode alcançá-lo pela metade. A palavra Ideia, que Platão foi o primeiro a introduzir, conservou sempre, desde então, através de 22 séculos, o significado no qual Platão a empregou” (Schopenhauer, 9, p. 144; idem, 7, v. 2, p. 579).

[14] A este ponto crucial da ontologia schopenhaueriana erguem-se duas críticas que se tornaram clássicas entre seus comentadores: para Théodule Ribot, “conservar a palavra vontade é perpetuar a ilusão do ponto de partida; é se ater a uma noção subjetiva em vez de visar o método objetivo que é próprio da ciência [...] Tocamos aqui no vício ordinário de toda metafísica, que consiste em dizer: isto pode ser, portanto, isto é” (Ribot, 4, p. 153). Este comentário de Ribot, e outros sobre a falta de verificação da metafísica de Schopenhauer, nos leva a indagar se ele teria realmente lido algum escrito do filósofo posterior à primeira edição de O mundo, de 1819... No mesmo caminho, M. Guéroult afirma que “essa analogia é puramente gratuita. Sua justificação repousa num apelo ao bom senso, à verossimilhança”. E conclui ele: “Mas esse apelo ao bom senso, à razão sadia, não nos reporta aos procedimentos dos filósofos do senso comum?” (Guéroult, Schopenhauer e Fichte, citado em Alain Roger, Pref. à trad. francesa de Sobre o fundamento da moral. Trad. de M. L. Cacciola. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p. XXXVII). Por outro lado, Alexis Philonenko defende a ideia de que Schopenhauer “por uma legítima indução deduz que a totalidade do ser é representação e vontade” (Philonenko, 3, p. 73).

[15] A respeito da passagem da Vontade una para a multiplicidade do fenômeno, “esta é uma questão a que Schopenhauer se recusa a responder, alegando a sua transcendência em relação ao nosso conhecimento ‘submetido ao princípio de razão, que só encontra aplicabilidade no fenômeno, e não na essência em si das coisas’” (Cacciola, 1, p. 66).

[16] “A vontade deve alimentar-se dela mesma, visto que, fora dela, não existe nada, e ela é uma vontade esfomeada. Daí essa ansiedade [Jagd], [essa angústia (die Angst)]*, esse sofrimento [Leiden] que a caracteriza” (Schopenhauer, 12, p. 201; idem, 7, v. 2, p. 183).

      *    A tradução da Rés suprimiu este trecho.