FATTAL, Michel. Image, mythe, logos et raison. Paris: L’Harmatttan, 2009.

Pedro Paulo A. FUNARI[1]

Michel Fattal, da Sociedade Platônica Internacional, é professor na Universidade de Grenoble, França, autor de uma dezena de livros sobre o tema do logos, tanto na Filosofia grega, como na sua recepção medieval. Neste novo livro, propõe-se a refletir sobre as diferentes formas de racionalidade, entre a Antiguidade e a Idade Média, com estudos sobre Luciano de Samósata, Parmênides, Platão, Plotino e Santo Anselmo. O volume está dividido em duas partes, com a primeira dedicada à imagem e imaginário e a segunda ao mito e à fé, em todos os casos em suas interações com a razão. O livro congrega estudos apresentados na forma de conferência em diversos países, alguns deles publicados, em versões preliminares, em diversas línguas, apresentados agora revisados e como parte de uma reflexão unitária.

O primeiro capítulo, dedicado à imagem e ao imaginário, na figura de Heráclito que chora em Luciano de Samósata, havia sido publicado, em versão portuguesa preliminar, em livro publicado pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, em tradução do Professor Glaydson José da Silva, hoje na Unifesp. Procura mostrar como o texto de Luciano escapava tanto do gênero histórico como filosófico, pois aspirava à imaginação. Por isso, Heráclito aparece como o pensador que chorava, pois tudo é luta, combate e tragédia. A imagem reaparece em Plotino, como produção do mundo, em uma concepção otimista do universo, caracterizado como belo, por oposição ao gnosticismo, com sua avaliação pessimista de um mundo dominado pelos logoi spermatikoi (razões seminais), prenhes de vida. Sustenta que a noção de imagem em Plotino apresenta um forte teor ontológico, ao ter papel capital na produção do mundo sensível. A imagem possui valor dinâmico e poético, à diferença daquela ineficaz e estática dos gnósticos. Fattal relaciona a espiritualidade da imagem em Plotino aos retratos do Fayoum, no Egito, uma representação da interioridade, conhecida pelo filósofo e que o deve ter influenciado.

O autor retorna, então, a alguns conceitos capitais em Platão: mimesis, onoma, logos. Em diversos passos, Platão sugere que o nome (onoma) é uma forma abreviada de uma frase (logos). Platão prioriza a coisa e a verdade, em relação à imagem e ao nome, em contraposição à sofística. No Crátilo, antes que o estudo linguístico, o filósofo grego busca a ontologia. Com isso, Fattal pode retornar a mythos (narrativa) e logos em Parmênides. O logos de Parmênides parece inaugurar a idéia de uma razão pessoal crítica, capaz de julgar uma refutação, a partir de critérios lógicos (krinai logoi). O conceito essencial, krisis, pode ser vertido como uma razão crítica. Para Fattal, é com Parmênides que se encontra a emergência do conceito de razão. O logos não é uma consequência de uma krisis, mas está na sua origem. De fato, krisis, um substantivo em –sis designa o resultado de uma ação, resultante, precisamente, da reflexão ou da razão. De certa forma, pode sustentar-se que o diakrinein kata genos do Sofista de Platão (253 e) é o herdeiro fiel dos krinai logoi de Parmênides. Graças a esse conceito, assim como à sua gnome, surgem as bases para uma reflexão sobre o método de divisão e reunião que será posteriormente elaborado e desenvolvido por Platão.

O último capítulo do volume talvez seja o mais polêmico, ao voltar-se para a fé, inteligência e razão e ao reunir Santo Anselmo e o Cardeal Ratzinger e lembrar que foi o Iluminismo a associar a fé ao erro e à conjectura sem inteligência. Inicia seu estudo do Cur Deus homo (Porque um Deus homem) pela passagem tomada de Isaias 7, 9, segundo a tradução de Santo Agostinho, a partir da Septuaginta: nisi credideritis, non intelligetis (se não acreditais, não entendereis). A tradução da Vulgata, contudo, si non credideritis, non permanebitis (se não acreditais, não permanecereis) foi interpretada por oposição à grega. Fattal considera que Ratzinger e outros estão corretos, ao associarem intelecção e adesão como significados imanentes ao original hebraico (amen). Para o autor, Santo Anselmo contrapõe-se a Tomás de Aquino e não separa crer e saber. Ao contrário, a inteligência da fé (intellectus fidei) é um segundo conhecimento que pode ser considerado como uma meditação, como uma reflexão racional, sobre os dados da fé. Em outros termos, a inteligência propõe-se a reler e reconhecer interiormente aquilo que foi lido e dito no exterior, no Credo e nas Escrituras. A verdade serve de critério e de princípio regulador às razões que se movem no seio da fé. A abordagem de Santo Anselmo vai da fé à fé pela inteligência. À diferença de Santo Agostinho, que propunha compreender para crer (intelligere ut credas), o arcebispo de Canterbury não separa crença e inteligência, pois ambas são fruto do desejo da fé. A ratio humana é concebida à imagem da ratio divina, lugar da manifestação do sentido. Esta faculdade superior tem por função repensar e reencontrar o sentido descoberto no ato de fé, por meio do amor.

No conjunto, o livro permite observar como os conceitos filosóficos, ancorados cada um em seu contexto histórico, são re-apropriados e recriados. O conceito central de racionalidade surge ligado à narrativa, à imagem e mesmo à fé e ao amor, em reiteradas reinterpretações. Esta obra da prestigiosa coleção Ouverture Philosophique contribui, de forma significativa, para uma melhor discussão da historicidade dos conceitos filosóficos. Em momentos específicos, fundam-se certas conceituações, assim como se delineiam antinomias e oposições. Este livro de Michel Fattal constitui uma leitura recomendada não apenas para os estudiosos da Filosofia, como para todos os que se interessam pelos contextos históricos e sociais associados aos conceitos mais recorrentes na tradição ocidental.



[1] Professor Titular do Departamento de História e Coordenador do Núcleo de Estudos Estratégicos da Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP.