COMENTÁRIOS SOBRE DRONES, IMAGEM-TEMPO E O FIM DO PODER SOBERANO: DRONES E A GEOPOLÍTICA CONTEMPORÂNEA
Leonardo Monteiro Crespo de Almeida [1]
O artigo de Ulysses Pinheiro dá continuidade ao tipo de experimentação filosófica que já se mostrara, de maneira célebre, no projeto em comum de Gilles Deleuze e Félix Guattari, Capitalismo e Esquizofrenia: estabelece relações inusitadas, desloca autores para contextos que lhes eram estranhos, revisita campos estabelecidos para propor novas questões, tal como fizeram os dois autores, há algumas décadas. Sua análise dos drones concebidos através de um panorama político preconizado por Carl Schmitt situa-se próxima dos diagnósticos referentes às novas tecnologias realizados por Paul Virilio, cujo conhecido trabalho sobre a guerra e a maneira como as novas tecnologias instauram uma nova percepção sobre o conflito é também citado pelo autor.
Tendo em vista que a tecnologia dos drones introduz consigo uma série de diferenças consideráveis perante as representações usuais dos conflitos bélicos – a guerra dita tradicional ou até mesmo de guerrilha –, assim como também as tecnologias de segurança até então empregadas, uma política dos drones pede a sua própria metafísica, tal como Henri Bergson falara da ciência de sua época. Ainda que as tecnologias de controle dos espaços aéreos, a exemplo de satélites, há muito já estejam assentadas, os drones não impõem apenas uma diferença em termos de graus, modificando também a maneira como se pode discutir e investigar a soberania na teoria e filosofia política contemporâneas. Que a soberania é um conceito no qual a territorialidade fora sempre uma constante, isso não é novo, mas também não é novo – e o autor precisamente assinala essa hipótese – que o desenvolvimento do capitalismo ocorre em meio à sua progressiva desterritorialização.
É por meio de uma análise dessa nova tecnologia que o autor associa a desterritorialização econômica do capitalismo com uma soberania política que, aos poucos, tende a se desarticular da sua fixação espacial. Nesse processo, a imanência política que fora apontada por Schmitt adquire um novo sentido, inclusive bélico e estratégico, instaurando, também, uma modificação na maneira de situar a soberania e a temporalidade. Uma guerra de drones é uma guerra travada sobre uma concepção de temporalidade que, ao menos até a Guerra do Golfo, fora estranha, mas que daquele conflito se torna cada vez mais presente, com a consequente espetacularização apontada por Virilio, em obras como Desert Screen e na citada War and Cinema.
Se, em Desert Screen, uma obra que vê na Guerra do Golfo um divisor de águas, Virilio já havia alertado para a forma como as novas tecnologias podem minar as atividades diplomáticas e os esforços envolvidos nas negociações, os drones consolidam de vez essa hipótese. Diante de uma vigilância constante e de um olhar onipresente, a diplomacia se converte em uma atividade de dissimulação e narrativa que, em sua teatralidade, remete a uma lógica e discurso político extemporâneo. Existe pouca relevância para o diálogo, quando uma tecnologia permite concretizar objetivos de vigilância e destruição à distância, possibilitando, inclusive, o anonimato dos autores das ordens. É claro que esse contínuo deslocamento provocado por esse olhar distinto, que fora trazido pelos drones, não elimina as noções conceituais que servem para representar, e daí também intervir, nos diversos panoramas políticos, como a ideia de soberania política e, mais recentemente no campo da teoria política, o Estado de Exceção.
Ulysses Pinheiro dedica algumas páginas a discutir também o terceiro aspecto do ritornelo estabelecido por Deleuze e Guattari, em Mil Platôs, a saber, a reterritorialização. Os drones não eliminam essas noções, antes as inserem em um conjunto diverso de relações conceituais que, por sua vez, transformam a composição e a consistência interna dos seus elementos usuais. Dito de outro modo, se permanece sendo pertinente falar em estado de exceção na geopolítica contemporânea, considerando já de início o presente aparato tecnológico, assim ocorre porque a reinserção desse conceito é realizada a partir da colocação de problemas novos e questões distintas que emergem nesse panorama político.
Um dos pontos suscitados pelo artigo aqui comentado, que entendo como muito produtivo, reside, então, na ponte entre o estado de exceção, o Estado de Direito (Rule of Law) e a tecnologia dos drones. Não se trata apenas de afirmar que, nas democracias contemporâneas, a exceção tem se tornado cada vez mais contínua e persistente, tal como Agamben já o fizera: enquanto tecnologias de vigilância e monitoramento, os drones trazem consigo um amplo repertório de atividades e intervenções que se desenvolvem, inclusive, em paralelo à aplicação regular das disposições normativas do direito.
Se o invólucro normativo do Estado de Direito, em tese, proporcionaria ao cidadão, antes de mais nada, uma proteção contra a intervenção indevida do Estado ou de um terceiro, os drones introduzem uma forma de intervenção fantasmática, na qual a intervenção efetivamente existe, mas a responsabilização é elusiva, senão inviável. A operação dos drones é impessoal e distante: o pressionar de um botão implica a destruição de pessoas e vilarejos distantes, tão despersonalizados quanto as vítimas dos antigos genocídios, senão ainda mais. O contato humano é substituído por imagens elusivas que prontamente desaparecem, uma vez realizada a atividade.
Nisso também se abre um espaço para outra investigação que perpassa as sucessivas transformações pelas quais passou o conceito de Estado, ao longo do século vinte, e tentar pensá-las ao lado do que Schmitt concebe não apenas nos dois volumes de sua Teologia Política, como no bem citado Nomos da Terra. Uma análise dessas transformações permitiria redefinir a relevância – ou não – de noções como soberania, inclusive para os atuais debates referentes à biopolítica e às novas tecnologias de combate e monitoramento, como os drones. Ao menos, duas considerações podem ser feitas a partir desse ponto.
A primeira delas estaria expressa no seguinte questionamento: ainda existiria algum resquício de centralização do poder, seja ele localizado e difundido pelo Estado-nação, seja por algum organismo supranacional? Se afirmativo, como concebê-lo através de um cenário no qual as fronteiras que outrora atuavam como delimitação territorial da soberania perdem mais e mais o seu sentido e observação? O cerne dessa primeira consideração é a relação entre soberania, território e tecnologia.
A segunda consideração recai sobre a necessidade de se reconsiderar a relação entre norma e exceção, quando o ponto fixo da soberania estatal se torna cada vez mais volátil, principalmente quando pensada em função das difusas e elusivas operações do capitalismo globalizado, das diversas formas de monitoramento presentes nas relações internacionais, da assimilação e comercialização de informações particulares (Big Data) pelos conglomerados empresariais, dentre outros. Trata-se de um ponto que se localiza na interseção entre teoria do direito e teoria política: como desenvolver analiticamente a distinção entre norma e exceção, em meio à dinâmica dos ordenamentos jurídicos contemporâneos, quando o emprego de tecnologias de monitoramento paulatinamente corrói, por vezes em prol de um suposto “bem maior” ou “coletivo”, os valores fundamentais daquele mesmo ordenamento?
Se os conceitos desenvolvidos pelas diversas filosofias e formas de teoria trazem consigo problemas e questões desenvolvidas a partir de planos muito específicos e sempre mutáveis, artigos como esse permitem realizar esse exercício necessário de redefinição e sem o qual a teoria perde a sua relevância. Tomando os drones como seu ponto de partida e eixo central de investigação, Pinheiro pensa a reterritorialização mesma da política contemporânea, em seus múltiplos devires rumo a algo que desconhecemos e que, por isso mesmo, permanece animando a nossa criatividade teórica.
[1] Professor na Faculdade Imaculada Conceição do Recife. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5742-3344. E-mail: leonardoalmeida326@gmail.com