COMENTÁRIOS SOBRE DRONES, IMAGEM-TEMPO E O FIM DO PODER SOBERANO: A ANOMALIA DO POLÍTICO EM CARL SCHMITT
Deyvison Rodrigues Lima[1]
Se fosse possível traçar um bestiário schmittiano, as figuras mais importantes seriam, sem dúvidas, o Leviathan e o Behemoth. É bem sabido que estas são metáforas utilizadas para se referir à luta entre potências marítimas e potências terrestres. Todavia, no livro Land und Meer (Terra e mar), surgem outras figuras do peculiar bestiário: a baleia – de modo literal, cuja caça fora responsável pela expansão das navegações – e um pássaro, que insere outro elemento não apenas na zoologia, mas também na bárbara geopolítica de Schmitt, pois
[...] irrompe um terceiro elemento, o ar [die Luft] como novo âmbito elementar da existência humana. Aos animais míticos Leviathan e Behemoth, viria a somar-se um terceiro, um grande pássaro [...] se se pensa nos meios e energias técnico-mecânicas com que o homem exerceu seu senhorio no espaço aéreo [Luftraum], parece ser o fogo o novo elemento em que tem irrompido” (SCHMITT, 2001, p. 105, grifos do autor).
No entanto, apesar de pressentir o niilismo insuportável do racionalismo moderno, Schmitt (2001, p. 107) sustenta que “[...] aquilo que vem [das Kommende] não é, porém, uma falta de medida [Maßlosigkeit] ou hostilidade niilista ao nomos [nomosfeindliches Nichts] [pois] mesmo na luta mais encarniçada das forças novas e antigas, surgem medidas adequadas [gerechte Maße] e proporções razoáveis são formadas.” Nesse caso, o niilismo se traduz como ausência de espaço, isto é, a ausência de nomos. O termo nomos significa, a rigor, a plena “imediatidade de uma força jurídica não mediada por leis [Unmittelbarkeit einer nicht durch Gesetze vermittelten Rechtskraft]”, ou, ainda, “[...] um acontecimento histórico constitutivo [ein konstituierendes geschichtliches Ereignis]” (SCHMITT, 1997, p. 42), que articula Ortung e Ordnung como medida contra a desterritorialização (Entlandung), a desorientação (Entortung) ou a dissolução (Auflösung) do próprio espaço, sobretudo a partir das mudanças ocorridas no século XX: enquanto as guerras de ocupação (terra) ou de bloqueio (mar), entre Behemoth e Leviathan, ainda preservavam uma reordenação e um novo nomos, a guerra aérea se caracterizaria como a própria destruição do espaço. Eis o perigo que Schmitt antecipa, afinal, quando desenvolve sua obsessão e sustenta que “onde há espaço, há ser [Wo Raum ist, ist Sein]” (SCHMITT, 1991, p. 317). Nessa abertura entre espaço e política, movem-se os argumentos deste comentário.
O texto de Pinheiro parte da premissa schmittiana da transposição semântica em relação à instauração de campos ou instâncias, empregando como paradigma a relação entre teologia e política. Nessa relação, haveria uma assimetria das instâncias em jogo, com primazia do teológico, do qual o político seria uma mediação. Após a exposição da premissa, o argumento principal surge, qual seja, de que haveria uma nova instauração do campo político marcada, dessa vez, pela tecnologia, mais precisamente, pelo domínio dos céus. Todavia, ao contrário da teologia política, desenvolve-se uma perspectiva mais literal da relação entre céu e terra, através dos dispositivos tecnológico-militares dos drones. Estes assumiriam a posição de olho de Deus e, por conseguinte, os atributos e suas implicações políticas. Perspicazmente, Pinheiro (p. XX) sustenta que a “[...] era dos drones representa de fato uma nova realidade política, ou, pelo menos, realiza a completude da metamorfose em curso desde o fim do nomos da Terra europeu”. Após a referência aos drones como prótese do poder soberano, o autor analisa os signos visuais produzidos, utilizando-se da obra de Gilles Deleuze, sobretudo a distinção entre imagem-movimento e imagem-tempo, e estabelece o ponto fundamental do debate: os drones – e as imagens elaboradas – como um objeto metafísico, a nova figura maquínica do atroz bestiário.
Nesse contexto, numa formulação sofisticada, Pinheiro (p. XX) argumenta que “[...] a imagem-tempo produzida pelos drones constitui a vida espiritual do império.” Ora, tal afirmação reverbera um trecho bastante conhecido da Politische Theologie, na qual é ressaltada a articulação entre imanência e transcendência: “imagem metafísica que se faz uma determinada era do mundo tem a mesma estrutura [...] como forma da sua organização política” (SCHMITT, 2004, 50-51) ou, então, de que “[...] a metafísica é a mais clara e intensa expressão de uma época.” (SCHMITT, 2004, p. 51). Tal leitura é, ainda, mais evidente quando assume as passagens de um “âmbito central [Zentralgebiet]” (SCHMITT, 1996, p. 81) para outro, sucessivamente, entre teologia, metafísica, moral, economia e, por fim, a técnica como a procura de um âmbito neutro para a racionalidade ocidental. No entanto, nessa busca obsediada, a conjuração do espectro faz com que aquilo que é exorcizado retorne, qual seja, a contingência e o conflito como a Gefärhlichkeit ineliminável da condição humana, uma vez que “[...] o político é não objetivo [unsachlich].” (SCHMITT, 2008, 27).
Dessa maneira, é importante a constatação schmittiana de que “[...] nenhum sistema político pode sobreviver, mesmo por uma geração, através da mera técnica de manutenção do poder.” (SCHMITT, 2008, p. 28). Em outros termos, o teorema da secularização evidencia a incapacidade do racionalismo moderno em providenciar uma forma política à realidade, visto que tanto a economia quanto a técnica almejam uma presença imanente do mundo (FERREIRA, 2004). Entre a autoridade da decisão suprema (soberania) e a máquina administrativa estatal (governo), cresce uma racionalização burocrática na qual a soberania perde espaço diante dos procedimentos técnicos e impessoais da atividade governamental, resultando na impossibilidade de fundamentação da ordem política, já que, no liberalismo, a imagem central da modernidade é a de um mundo autogovernado pelo funcionamento das leis naturais imanentes, isto é, a imunização do conflito e a segurança e certeza na ordem jurídico-política. Entretanto, o dado mais característico dessa metafísica da imanência seria o controle pretensamente neutro e técnico por meio da lógica autônoma de uma “legalidade [Gesetzmäßigkeit] imanente” (SCHMITT, 2008, p. 60), revelando-se uma hiperpolitização imediatista e fanática. Assim, essa nova formação social, o Estado sob a máquina do liberalismo (mas também do capitalismo), torna a exceção onipresente (sem o lastro estruturante da relação entre teologia e política) e, por isso, totalitário, sobretudo em seus dispositivos mais recentes.
Seja por sustentar que o Estado moderno (e a categoria de soberania) entra em decadência com a identificação imanente entre o Estado e suas leis, seja ao perceber que o fim do poder soberano transforma o poder estatal em poder totalitário (sobretudo com as próteses-drones e a dissolução da bipolaridade imanência-transcendência), um problema nos assedia, qual seja, há algo que escape da imanência da racionalidade moderna? Em contraposição à absoluta imanência, o jurista move sua máquina e bestiário numa genealogia da desconstrução da política, ao lançar luzes em direção à origem inconfessável da ordem. Nesse sentido, desde o mecanismo da decisão soberana, da relação de conflito entre amigo e inimigo ou ainda através da apropriação originária da terra/espaço, Schmitt (2004) propõe a exceção, o político ou o nomos como modos disruptivos contra o sistema de normas imanente. O argumento da exceção como negatividade irreconciliável, por exemplo, expõe-se como fundamento irracional da ordem. Isso porque, segundo Schmitt (2004, p. 37-38), “[...] do ponto de vista normativo, a decisão surge do nada”, irrecuperável em termos dialéticos. Desse modo, Schmitt ressignifica o sentido da transcendência, ao pensá-la não como transcendência para além da imanência, mas sim como transcendência na imanência (cf. OJAKANGAS, 2005). Assim, a perda da transcendência como característica da modernidade implica uma realocação desta (e do princípio irracional que ela traz consigo) na própria imanência, caracterizando uma abertura na nervura imanente do real. Em suma, aquilo que institucionaliza a ordem é ininstitucionalizável, exterior aos cálculos e procedimentos. Uma instância de contingência como momento de transcendência, isto é, de abertura na imanência do mundo que, porém, é constitutivo da própria ordem, mesmo que seja ex-posição da ordem e retraição dos esquemas racionalistas.
Nesse momento, surge uma inesperada aliança entre Schmitt e Espinosa acerca da potência constituinte como dispositivo disruptivo-constitutivo, da diferença irredutível como conflito ininstitucionalizável ou ato originário (NEGRI, 2002). Ao pressagiar a falência do mecanismo estatal – de fato, encontramo-nos no limiar do jus publicum Europaeum e de suas consequências niilistas – Schmitt conserva uma linha de resistência que demonstra o cerne da questão do político: “[...] o turbilhão do vazio, do abismo da ausência de determinações, como uma necessidade aberta.” (NEGRI, 2002, p. 26). Propõe-se, por meio de uma genealogia herética – de Nietzsche a Espinosa, a anomalia do político contra a transcendência da ordem. Afinal, não seria outra a postura do realismo político schmittiano.[2] A tentativa de Schmitt, ao romper com a imanência (totalitária) do racionalismo e do sequestro liberal da forma-estado implica o político – ou o poder constituinte – como o dispositivo ontológico da “[...] impossibilidade de conter a potência natural na ilusória racionalidade.” (CASTRUCCI, 1999, p. 246). Em outras palavras, o irredutível dispositivo ontológico dos antagonismos e das forças como o único modo de escapar – caso Pinheiro tenha razão – do Argos Panoptes. A saída, por mais bárbara que pareça, seria atravessar o niilismo da metafísica, aquilo que Schmitt nos apresenta como herança e dívida.
REFERÊNCIAS
CASTRUCCI, Emanuele. Genealogie della Potenza Costituente. Schmitt, Nietzsche, Spinoza. Filosofia Política, Minas Gerais, n. 2, p. 245-251, ago. 1999.
FERREIRA, Bernardo. Schmitt, representação e forma política. Lua Nova, São Paulo, n. 61, p. 25-51, 2004.
NEGRI, Antonio. O poder constituinte: Ensaios sobre as alternativas da modernidade. Tradução de Adriano Pilatti. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
OJAKANGAS, Mika. Philosophies of “Concrete” Life: From Carl Schmitt to Jean-Luc Nancy. Telos, Spain, v. 132, p. 25-45, 2005.
SCHMITT, Carl. Das Zeitalter der Neutralisierungen und Entpolitisierungen. In: SCHMITT, Carl. Der Begriff des Politischen. 6. ed. Berlim: Duncker & Humblot, 1996.
SCHMITT, Carl. Der Nomos der Erde. 4. ed. Berlim: Duncker & Humblot, 1997.
SCHMITT, Carl. Glossarium. Aufzeichnungen der Jahre 1947-1951. Eberhard Freiherr von Medem (org). Berlim: Duncker & Humblot, 1991.
SCHMITT, Carl. Land und Meer. 4. ed. Stuttgart: Klett-Cotta, 2001.
SCHMITT, Carl. Politische Theologie. Vier Kapitel zur Lehre von der Souveränität. 8. ed. Berlim: Duncker & Humblot, 2004.
SCHMITT, Carl. Römischer Katholizismus und politische Form. 5. ed. Stuttgart: Klett-Cotta, 2008.
[1] Professor no Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Piauí (UFPI). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7879-8388. Email: deyvisonrodrigues@yahoo.com.br
[2] Mesmo na teologia política schmittiana, transcendência não se refere a um deslocamento a-histórico em busca de uma fundamentação universalista. Ferreira (2004, p. 36), mais uma vez, é lúcido quando afirma que “[...] a presentificação política, até certo ponto, remete a si mesma e não a um referente externo. Ainda que implique uma dimensão transcendente, esta não está dada fora da representação, mas é pressuposta e, em última análise, ‘posta’ por ela, distinguindo-se, assim, da natureza substancial da transcendência divina.”