As políticas de inclusão escolar e as narrativas docentes Artigos
Revista Diálogos e Perspectivas em Educação Especial, v. 10, n. 2, p. 123-142, Jul.-Dez, 2023 123
https://doi.org/10.36311/2358-8845.2023.v10n2.p123-142
is is an open-access article distributed under the terms of the Creative Commons Attribution License.
As políticAs de inclusão escolAr e As nArrAtivAs docentes: umA Análise
A pArtir dos modelos de deficiênciA
School incluSion policieS and teacher narrativeS: an analySiS baSed on
diSability modelS
Nadine Silva dos SANTOS
1
Kamila LOCKMANN
2
Rejane Ramos KLEIN
3
Resumo: este artigo analisa as concepções de deficiência materializadas em documentos oficiais referentes às políticas de inclusão
escolar do Brasil, entre a década 1990 até a atualidade, assim como em narrativas de duas docentes que atuam junto ao público
da Educação Especial em escola comum. Discute-se sobre três modelos de deficiência: 1. Modelo médico da deficiência; 2.
Modelo social da deficiência; 3. Modelo biopsicossocial da deficiência. A analítica desenvolvida e ancorada na perspectiva pós-
estruturalista, especialmente dos estudos de Michel Foucault, evidenciou a necessidade de problematização sobre o conceito de
norma, o qual explicita a ocorrência de um processo de normalização dos sujeitos, intensificado pela constância em nomear,
classificar e diagnosticar as condutas que fogem aos “padrões” escolares. Ações essas, que demonstram a ênfase e a permanência do
modelo médico da deficiência, tanto nos documentos, quanto nas narrativas docentes analisadas, expressando para além disso, a
ocorrência de intensificação do trabalho docente.
Palavras-Chave: Inclusão. Modelos da deficiência. Políticas inclusivas. Docência.
Abstract: this article analyzes the conceptions of disability materialized in official documents referring to school inclusion policies
in Brazil, between the 1990s and the present, as well as in narratives of two teachers who work with the public of Special Education
in common school. ree models of disability are discussed: 1. medical model of disability; 2. social model of disability; 3.
biopsychosocial model of disability. e analysis developed and anchored in the post-structuralist perspective, especially the studies
of Michel Foucault, showed the need for problematization on the concept of norm, which explains the occurrence of a process of
normalization of subjects, intensified by the constancy in naming, classifying and diagnosing the conducts that escape the school
standards”. ese actions demonstrate the emphasis and permanence of the medical model of disability, both in the documents
and in the teacher narratives analyzed, expressing, in addition, the occurrence of intensification of teaching work.
Keywords: Inclusion. Disability models. Inclusive policies. Teaching.
Mestra em Educação. Universidade Federal do Rio Grande – FURG.E-mail: nadinesilvarg@gmail.com. ORCID: https://orcid.
org/0000-0002-5440-3839
Doutora em Educação. Professora do Instituto de Educação da Universidade Federal do Rio Grande – FURG. E-mail: kamila.
furg@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1993-8088
Doutora em Educação. Professora do Departamento Interdisciplinar da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS,
campus Litoral Norte. E-mail: rrklein1@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7136-466X
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SANTOS, Nadine Silva dos; LOCKMANN, Kamila; KLEIN, Rejane Ramos
introdução
Este artigo é fruto de uma pesquisa cujo objetivo foi analisar os deslocamentos nas
concepções de deficiência que se encontram materializadas em algumas políticas e normativas
educacionais sobre a inclusão, assim como em narrativas docentes de professoras de uma escola
comum do Estado do Rio Grande do Sul.
Para desenvolver tal objetivo, partimos da problematização do conceito de norma, em
articulação com a formulação dos modelos de deficiência, amplamente debatidos, quais sejam:
1. Modelo médico da deficiência; 2. Modelo social da deficiência; 3. Modelo biopsicossocial da
deficiência Ancoradas na perspectiva pós-estruturalista, especialmente nos estudos do filósofo francês
Michel Foucault, discutimos a produção de desses três modelos de deficiência, seus deslocamentos
e as ênfases que se fazem presentes, sejam nos documentos oficiais ou em narrativas docentes,
denotando um panorama inclusivo que produz efeitos não só na vida dos sujeitos com deficiência,
como também no contexto da prática docente.
O desenvolvimento do estudo foi constituído a partir de três movimentos metodológicos:
No primeiro, apresentamos um panorama histórico no qual a noção de norma é apresentada a partir
de uma inspiração genealógica, que evidencia sua constituição e seu funcionamento a partir das
sociedades disciplinar e de seguridade.
No segundo movimento, contextualizamos o panorama histórico apresentando alguns
documentos oficiais produzidos a partir da década de 1990 até a atualidade. A escolha por esse
recorte temporal ocorre devido a década de 1990 demarcar o período do aparecimento das primeiras
ações políticas destinadas a inclusão escolar no Brasil (RECH, 2010), estendendo a discussão até as
políticas atuais criadas após os anos 2000, momento em que acontecem importantes transformações
históricas na política brasileira, refletindo mudanças pontuais no panorama de inclusão escolar.
Dentre os documentos selecionadas situamos: Lei de Diretrizes e Bases – LDB/1996
(BRASIL,1996); Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva
(BRASIL, 2008a); Decreto nº 6.571 de 7 de Setembro de 2008 (BRASIL, 2008b), que dispõe
sobre o Atendimento Educacional Especializado; Diretrizes Operacionais para o Atendimento
Educacional Especializado na Educação básica, modalidade Educação Especial (Resolução
CNE/ CEB nº4 de 2 de Outubro de 2009); Decreto nº 7.611 de 17 de Novembro de 2011
(BRASIL, 2011), que revoga o Decreto nº 6.571/2008 dispondo sobre a Educação Especial,
o Atendimento Educacional Especializado e dando outras providências; Nota Técnica nº 4 de
23 de Janeiro de 2014 (BRASIL, 2014) e a Lei Brasileira de Inclusão, nº 13.146 de 06 de Julho
de 2015 (BRASIL, 2015).
Justificamos a escolha em trabalhar com tais documentos por considerá-los, assim como
Le Goff (1990), uma oportunidade de explorar da percepção histórica de uma época, da sociedade
que os constituíram consciente ou inconscientemente. Desse modo, compreendemos que cada
documento destacado neste estudo se apresenta como algo que não é “qualquer coisa que fica por
conta do passado”, fazendo-se produto da sociedade que o fabricou, a partir de “relações de forças
detentoras de poder (LE GOFF, 1990, p. 470).
Visto isso, percebendo que os discursos advindos das políticas de inclusão atuam
diretamente no funcionamento da escola, produzindo verdades que conduzem o processo de inclusão
escolar, destacamos como terceiro movimento metodológico, a apresentação de algumas narrativas
produzidas a partir de entrevistas realizadas com duas professoras do Ensino Fundamental que
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atuam em classes inclusivas em uma escola Estadual, localizada em uma cidade do Estado do Rio
Grande do Sul/RS. Como critérios adotados para a seleção das docentes, pontuamos a aproximação
das mesmas com o tema da inclusão, visto que ambas atuam em uma escola conhecida por receber
grande número de alunos incluídos e também por possuírem em sala de aula vários estudantes
com deficiência. Cabe salientar, que as narrativas apresentadas repercutem o que as professoras se
autorizam a dizer sobre a inclusão e o que é compreendido como verdadeiro no espaço da escola.
Sendo assim, apresentados os passos percorridos, iniciamos no item seguinte a
apresentação das discussões e resultados produzidos pelo estudo.
movimentAções históricAs: A constituíção dA normA e do processo de
normAlizAção dA pessoA com deficiênciA
Ao nos aproximarmos da teorização foucaultiana, deixamos claro que Michel Foucault,
em sua obra, não se dispunha a responder aos impasses dos cenários educacionais. Seu interesse,
estava mais precisamente direcionado em perceber a constituição do sujeito e como as instituições
disciplinares ou coercitivas agiam sobre ele, a partir do exercício de técnicas afinadas às relações de
poder. Entre as instituições alvo dos estudos de Foucault estavam as casas de detenção, os hospitais,
os manicômios, mas não precisamente a instituição escolar. No entanto, as discussões realizadas
pelo filósofo contribuem para pensarmos a escola como mais uma dessas instituições disciplinares,
visto que a mesma promove um ambiente docilizador e formativo, adequado à preparação do
sujeito habilidoso e útil.
Mas, qual a relação desse entendimento com o modelo educacional inclusivo conhecido
hoje? A partir de Foucault, Veiga-Neto (2001, p 112) explica que a Modernidade se destacou como
o período onde o caos e a ordem passaram a ser compreendidos como “condições de possibilidade”
para o exercício de novas técnicas de poder. Visando atingir interesses econômicos e políticos
provocados pelo evento da Revolução Industrial, forte marco histórico da época, buscava-se
corrigir e solucionar os problemas existentes no tecido social provocados pelos sujeitos. Para isso, a
articulação de novos mecanismos de poder que não mais fossem simbolizados pelo gládio – exercido
no período da soberania – se fazia necessário.
Dessa forma, o desejo pela ordem e pela organização da sociedade emergem a partir da
consolidação de um poder político, estabelecendo uma gestão pautada na administração da vida,
que incitava os sujeitos à produção de novos saberes. Fundamentados a partir do campo científico
da época, os novos conhecimentos objetivavam tornar os indivíduos explicáveis e caracterizáveis
diante dos processos sociais (LOCKMANN, 2013). Com isso, a exposição dos sujeitos até então
desconhecidos ao campo do conhecimento, fazia-se condição imprescindível para atingir os
interesses do ideal moderno, pois ao torná-los conhecidos aos olhos sociais, se oferecia ao Estado a
possibilidade de governá-los.
Nesse contexto, as instituições disciplinares ou de coerção funcionavam como eficientes
mecanismos de enquadramento, para que aqueles que anteriormente ocupavam o espaço do estranho
e do desconhecido começassem a serem posicionados como alvos dos conhecimentos e dos saberes
produzidos sobre eles. Marca-se, com isso, um importante deslocamento na condição dos sujeitos,
que passam de estranhos excluídos, a conhecidos anormais
4
. No entanto, esse deslocamento só se
Veiga-Neto (2001, p.105) define como anormais “os sindrômicos, deficientes, monstros e psicopatas (em todas as suas variadas
tipologias), os surdos, os cegos, os alienados, os rebeldes, os pouco inteligentes, os estranhos, os GLS, os “outros”, os miseráveis,
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tornou possível devido a produção de saberes sobre esses sujeitos, permitindo “desestranhá-los” e ao
mesmo tempo posicioná-los como anormais. Além disso, cabe destacar que essa movimentação na
forma como passaram a serem conduzidos, foi viabilizada a partir da operação da noção de norma.
De forma geral, a norma é entendida por Foucault (2005) como um elemento que atua
entre a disciplina e a regulamentação, exercendo ação tanto sobre os corpos individuais, como sobre
o corpo social. Ewald (2000, p.86) complementa, apontando que a norma atua como um “princípio
de comparação, de comparabilidade, uma medida comum que se institui na pura referência de um
grupo a si próprio, a partir do momento em que só se relaciona consigo mesmo, sem exterioridade,
sem verticalidade”. Diante disso, pode-se considerar que a norma age conduzindo os sujeitos a
partir de uma conduta de classificação que se baseia em um modelo único e ideal, criado como
parâmetro determinante e de identificação daquilo que é considerado como normal ou anormal
(FOUCAULT, 2008).
Lopes e Fabris (2013, p.42) afirmam que a norma atua sempre de forma prescritiva,
[...] provocando ações que homogeneízem as pessoas, ou provocando ações que exaltem as
diferenças, a partir de referenciais comunitários. Então, a norma age tanto na definição de um
modelo tornando apriori os próprios sujeitos quanto na pluralização dos modos que devem ser
referência para que todos possam se posicionar dentro de limites locais, e uns em relação aos
outros.
Com isso, evidencia-se que absolutamente ninguém escapa da norma, tudo está ao seu
alcance e todos são interpelados por ela. Isso acontece, porque na sua definição “o normal depende
do anormal para sua própria satisfação, tranquilidade e singularidade” e “o anormal depende do
normal para sua própria segurança e sobrevivência” (VEIGA-NETO, 2001, p. 113). Dessa forma, a
norma “torna cada indivíduo comparável a outro e também permite que os sujeitos se reconheçam
diferentes uns dos outros” (CORRÊA, 2017, p. 51), transitando duplamente entre a comparação e
a individualização dos sujeitos.
Apontar tais características que definem a norma de forma mais ampla, possibilita a
visualização de suas formas de atuação. Entretanto, para entendê-la em sua especificidade, é preciso
enxergá-la operando diante das artes de governar e das relações de poder, em dois períodos históricos
específicos. Primeiro, entre os séculos XVI e XVII, com a constituição da sociedade disciplinar
pautada sob as vestes de controle e disciplinamento dos corpos. E em segundo, a partir do início
do século XVIII, com a edificação da sociedade de seguridade, que tem como estratégia “governar a
população a partir do jogo entre liberdade e segurança” (LOCKMANN, 2013, p. 135)
5
.
Para compreender a norma na sociedade disciplinar, retomamos a ênfase na produção
dos saberes científicos sobre os sujeitos e o surgimento das instituições disciplinares ou de coerção
do período da Modernidade. Como o nome já diz, a disciplina é o aparato que compõe a técnica
principal neste tipo de sociedade. Consolidada como a primeira face de um poder que faz viver –
biopoder – distribuía-se “os vivos em um domínio de valor e utilidade” (FOUCAULT, 2020, p.
156), a partir de uma anátomo-política do corpo humano. Nesse contexto, o corpo individual é
o refugo enfim”. É importante ressaltar que no período de produção do texto, o autor utiliza o termo GLS para designar Gays,
Lésbicas e Simpatizantes. Porém, atualmente a sigla LGBTQIAPN+ substitui esse termo e possui muitas variações dependendo
dos indivíduos que quer representar. Esta, corresponde a Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Travestis, Queer, Intersexo,
Assexuais, Pansexuais, Não-Binário e mais orientações sexuais e variações de gênero.
Vale lembrar que o funcionamento da norma só se efetivou a partir do aparecimento da sociedade disciplinar, pois foi o momento
em que os primeiros saberes que constituíram os sujeitos como anormais surgiram.
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o principal alvo das estratégias disciplinares, sendo compreendido como uma máquina ajustável e
adestrável, docilizada para que suas forças, habilidades e utilidades possam ser geridas com eficiência
para atendimento dos fins econômicos (FOUCAULT, 2019).
Nesse contexto, o funcionamento da norma ocorre de forma fixa e previamente estabelecida,
definida enquanto condição permanente” (CORRÊA, 2017, p.51), a partir dos conhecimentos
científicos produzidos sobre os sujeitos. Assim, sua ação “consiste em primeiro colocar um modelo,
um modelo ótimo que é constituído em função de certo resultado” (FOUCAULT, 2008, p. 75),
para comparar os sujeitos e assim classificá-los na condição de normal ou anormal.
Desse modo, a sociedade disciplinar funciona executando técnicas de normação, fundadas
no objetivo de “tornar as pessoas, os gestos, os atos, conformes a esse modelo, sendo normal precisamente
quem é capaz de se conformar a essa norma e o anormal quem não é capaz” (FOUCAULT, 2008, p.75).
Assim, “o indivíduo além de ser ‘tratado’ a partir de um referencial de normalidade, oriundo da norma
(normação), é qualificado e mostrado como mais um enquadrado em uma zona de normalidade,
determinada pela noção de inclusão” (LOPES; FABRIS, 2013, p. 46).
Como vemos, essa anátomo-política do corpo humano, desenvolvida pela sociedade
disciplinar, age por meio de poderes e saberes, intensificando forças, produtividade e a utilidades
dos corpos, sejam eles normais ou anormais. Assim, corresponde a primeira face de um poder que
tem a intenção de fazer viver, mas ainda atuante em um âmbito individual – o corpo humano.
Apesar disso, com o passar do tempo outra face do biopoder foi ganhando espaço, trazendo consigo
a necessidade de promover deslocamentos cada vez incisivos no desenvolvimento e no crescimento
econômico dos Estados.
Na denominada sociedade de seguridade, no século XVIII, a consolidação de um
novo cenário político marcado pelo fenômeno do aparecimento da noção de população, formou
interesses vinculados a produção de um novo tipo de corpo. Um corpo coletivo, composto por
múltiplas cabeças” e que deveria ser conduzido para o cumprimento de “uma sociedade disciplinar
generalizada” (FOUCAULT, 2008, p. 514). Para Corrêa (2017), o aparecimento da noção de
população produziu sujeitos não mais considerados somente para além do nível do detalhe, mas
compostos por processos biológicos, característicos de um corpo-espécie. Tal acontecimento, fez
com que a “vida e seus mecanismos entrassem no domínio dos cálculos explícitos, e fez do poder-
saber um agente de transformação da vida humana” (FOUCAULT, 2020, p. 154), característico
de uma tecnologia denominada de biopolítca da espécie humana. Nesse contexto, a produção de
outros saberes científicos sobre os sujeitos emerge, principalmente, no campo da medicina social e
da estatística.
Agindo sob o corpo coletivo, calculando riscos, “estimativas e probabilidades” (CORRÊA,
2017, p. 57), o controle preciso da população se fez em nível demográfico, calculando suas taxas de
proliferação, nascimentos e mortalidades, seus níveis de saúde, de duração da vida, etc. Capaz de
calcular os eventos da vida coletiva, as estratégias de poder passaram gerenciar e articular a forma
como esse corpo-espécie poderia ser conduzido. Nesse sentido, o novo modo de gerenciamento
dos indivíduos, agora compreendido como massa populacional, faz com que apontar, nomear e
compreender as peculiaridades de cada um se torne um exercício cada vez mais complexo. Assim,
se na sociedade disciplinar a norma se define pelo padrão de normalidade aceitável pelo campo dos
saberes científicos da época, na sociedade de seguridade a noção de norma se sustenta a partir de um
processo denominado de normalização.
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Neste processo, norma se estabelece de forma flexível, definida, primeiramente, a partir
das divergências dentro dos grupos de indivíduos. Partindo das diferentes curvas de normalidade
criadas a partir do estudo das regularidades da população, ao observar as peculiaridades de
cada sujeito a operação da norma vai “fazer interagir as diferentes atribuições de normalidade e
procurar que as mais desfavoráveis se assemelhem às mais favoráveis” (FOUCAULT, 2004, p.83).
Dessa forma, na sociedade de seguridade a definição do normal vem sempre em primeiro lugar
e a norma se deduz dele, sendo criada em um jogo onde as diferenças são exaltadas e os sujeitos
comparados entre si.
Com isso, vemos o fortalecimento de um cenário onde as ações exercidas sobre os sujeitos
se justificam na forma de gerenciamento dos possíveis riscos futuros oferecidos à população pelos
indivíduos “fora da ordem”. Nesse sentido, o papel do Estado efetiva-se como gestor da grande
coletividade, garantindo a proteção do corpo-espécie contra as ameaças oferecidas pelos agentes de
risco. A partir disso, compreendemos os dois polos apresentados como faces de um mesmo tipo de
poder, que não são excludentes entre si, pois agindo de forma distinta, mas interligada, ao longo do
tempo, consolidaram a organização das estratégias de poder-saber que passaram a atuar sobre vida.
Administrando os corpos de forma disciplinar e a população de forma calculista, as
estratégias do biopoder o constituíram como elemento fundamental e indispensável para governar a
vida. Embora no decorrer dos séculos XVI, XVII e XVIII não se projetasse a noção de inclusão tal
como a vemos hoje, é preciso considerar que os acontecimentos históricos oriundos de tais períodos,
permitiram que ao longo do tempo diferentes grupos de sujeitos fossem introduzidos na esfera
social. Assim, mesmo apontados como alvos das diferentes formas de governamento da população e
de normalização, sua inserção nos permite pensar sobre as primeiras noções de cidadania admitidas
à pessoa com deficiência.
Pontuamos que as movimentações históricas destacadas até aqui, articuladas a operação
da norma tanto na sociedade disciplinar, quanto na sociedade de seguridade, evidenciam como a
vida dos sujeitos, suas características e modos de ser foram, pouco a pouco, se tornando objeto dos
mais distintos saberes científicos: médicos, sociais, demográficos, estatísticos, etc. Diante disso, a
produção de saberes sobre os sujeitos e suas formas de ser estabelece relação com o que no campo
da Educação Especial vem sendo denominado de modelos de deficiência, os quais abordamos na
próxima seção.
verdAdes sobre A inclusão escolAr A pArtir dos três modelos de deficiênciA:
médico, sociAl e biopsicossociAl
Produto das estratégias biopolíticas que constituíram as sociedades disciplinares e de
seguridade, no decorrer dos séculos XVI, XVII e XVIII, a produção contínua de saberes científicos
sobre a vida dos sujeitos, ainda hoje pode ser vista atuando com propriedade. Seja de forma
disciplinar, na busca por corpos individuais dóceis, úteis e submissos. Seja na relação estabelecida
dos indivíduos como corpo-espécie a ser regulado, conforme a exigência da sociedade.
A intensa proliferação de ênfases discursivas voltadas à atribuição de nomenclaturas que
sirvam para identificar e classificar as particularidades dos sujeitos escolares é uma questão a qual vem
assumido proporções consideráveis nos últimos anos. De acordo com Freitas (2013), a demasiada
invasão de discursos próprios das áreas clínicas na escola, como condição para definir o público-alvo
das ações inclusivas, tem surtido efeitos nem sempre tão positivos para campo educacional. Salvo a
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importância da área médica para a melhoria da qualidade de vida de muitas pessoas com deficiência,
vista por outro ângulo, a recorrência excessiva ao campo desses saberes tem produzido na escola,
uma considerável proliferação de diagnósticos buscando justificar todos os desvios apresentados
pelos indivíduos escolares (RODRIGUES, 2020).
Como produto dessa ação, temos a circulação dos famosos laudos médicos, conhecidos
como documentos que descrevem as anormalidades, materializando, perante as condutas individuais,
a identificação de um eu patológico que contribui fortemente para a consolidação das estratégias de
normalização da vida (RAMOS, 2014). Isso nos leva a considerar que os discursos provenientes das
áreas que compõem esses documentos posicionam os indivíduos não só dentro dos saberes médicos,
mas também dentro dos aspectos relativos à sociedade.
Sendo assim, para explorar a constituição das estratégias de poder-saber, exercidas na
ação de nomear e classificar os indivíduos clinicamente, destacamos três modelos discursivos que
ajudam a compor o entendimento sobre a constituição das ações reguladoras instituídas sobre
as deficiências: 1. Modelo médico da deficiência, 2. Modelo social da deficiência e 3. Modelo
biopsicossocial da deficiência (NOZU, 2014; RODRIGUES, 2020).
Partindo das contribuições de Bisol, Pegorini e Valentini (2017, p. 90), pode-se dizer
que o modelo médico da deficiência teve seu início demarcado a partir do momento em que as
concepções “religiosas de mundo cederam espaço para concepções científicas”, no período da
modernidade. Gestado no contexto da sociedade disciplinar, onde os saberes científicos passaram
a exercer influência sob o corpo individual dos sujeitos, os saberes médicos produzidos sob as
deficiências foram os responsáveis pela criação de marcas biologicistas sobre as condutas. Isso quer
dizer que todas as questões inerentes às capacidades e às incapacidades dos sujeitos passaram a
corresponder às características biológicas de cada um, produzindo ações que visavam a reclusão dos
sujeitos vistos como anormais pela sociedade.
Conforme Nozu (2014), fundamentado dentro de um discurso hegemônico na sociedade,
o modelo médico foi sendo naturalizado ao longo do tempo, criando importantes proporções de
ajustamento dentro de diversos cenários institucionais, como é o caso da escola. Foucault (2005,
p. 302) explica a atuação da medicina como “um saber-poder que incide ao mesmo tempo sobre o
corpo e sobre a população, sobre o organismo e sobre os processos biológicos e que vai, portanto,
ter efeitos disciplinares e efeitos regulamentadores”. Logo, sem se limitar à apenas um produto
das estratégias disciplinares, o modelo médico passou a executar na sociedade de seguridade suas
estratégias de regulação sobre os riscos inerentes aos sujeitos, fazendo da escola um ambiente
propício para tal ação.
Segundo Rodrigues (2020) e Nozu (2014), nesse modelo discursivo a deficiência tornou-
se uma questão associada às dificuldades de convívio social, apresentadas pelas condições biológicas
dos indivíduos. Dessa forma, passou-se a acreditar que tratando os comportamentos desajustados
como patologias, as transformações nas condutas dos indivíduos aconteceriam, tornando-os capazes
de acessar os espaços dos ditos normais de forma ativa e produtiva.
Tem-se, com isso, no âmbito da educação, o peso do discurso médico como um
instrumento regulador, o qual além de disciplinar os corpos individuais, também assume a condução
das práticas pedagógicas escolares. Para Aranha (2005), essa questão torna o caráter estritamente
educativo da escola substituível à necessidade de reabilitar e recuperar os sujeitos fora de ordem, já
que inseridos dentro dos diagnósticos médicos, suas capacidades e incapacidades de aprendizagem
e desenvolvimento passam a ser definidas.
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Nesse sentido, Rodrigues (2020) afirma que embora a medicina execute uma importante
função no tratamento de diversas patologias, é preciso considerar que a atuação dos discursos
médicos, principalmente no âmbito escolar, pode acarretar, por vezes, riscos à vida desses sujeitos
na sociedade. Queremos dizer com isso que os saberes médicos, ao serem acionados como estratégia
de normalização e regulação dos sujeitos, ao mesmo tempo em que se destinam a manter a vida,
também podem produzir a exclusão e a eliminação social dos sujeitos que são, por ele, considerados
incapazes.
Em contraponto ao modelo médico, temos no modelo social da deficiência a proliferação
de outro discurso. Neste, compreende-se de que as dificuldades de acesso da pessoa com deficiência
na sociedade não estão atreladas a suas condições biológicas, vinculadas propriamente ao sujeito
individual, mas aos aspectos de cunho social e ambiental (DINIZ; MEDEIROS; SQUINCA,
2007). Nozu (2014) explica que a constituição desse modelo discursivo teve seu marco na década
de 1960, como crítica aos discursos médicos que enfatizam a dimensão biológica da deficiência.
Nesse contexto, Bampi, Guilhem e Alvez (2010, p.6) apontam que:
[...] a deficiência deixa de ser um problema trágico, de ocorrência isolada de alguns indivíduos
menos afortunados, para os quais a única resposta social apropriada é o tratamento médico
(modelo médico), para ser abordada como uma situação de discriminação coletiva e de opressão
social para a qual a única resposta apropriada é a ação política.
Diante disso, no modelo social da deficiência vemos que o objetivo se centra em
resinificar a “compreensão de deficiência e diversidade” (BISOL; PEGORINI; VALENTINI,
2017, p. 93). Para Canguilhem (2009), visto pelo ângulo social, a deficiência no contexto desse
modelo corresponde à concepção de que as diferenças físicas, sensoriais e intelectuais não são e não
devem ser observadas apenas como representação de doenças. Embora leve-se em consideração
os aspectos biológicos e psicológicos dos sujeitos, nesse modelo discursivo, a deficiência é
compreendida a partir dos elementos que fazem parte da esfera social, política e econômica. Tem-
se, com isso, as limitações da pessoa com deficiência como fruto de ações externas e não internas
ao sujeito (RODRIGUES, 2020).
Assim, o discurso do modelo social emprega que a transformação do eu deveria ocorrer
primeiro pela reestruturação social e política e não diretamente sobre o quesito biológico e físico do
indivíduo (RODRIGUES, 2020). Diante desse destaque, sob o campo da Educação, esses discursos
começaram a produzir efeitos não mais direcionados à responsabilização apenas dos sujeitos com
deficiência. No lugar disso, o campo educacional situa-se como o ambiente que necessariamente
teria o dever de promover “acessibilidade e criação de novos métodos, técnicas e práticas de ensino
que se atentem ao ambiente social e suas relações com o aluno com deficiência” (RODRIGUES,
2020, p. 50).
Assim, com vistas à superação das barreiras que podem ocasionar o baixo desempenho
dos sujeitos e o fracasso da inclusão, no modelo social da deficiência a análise correspondente às
dificuldades vivenciadas pela pessoa com deficiência passa a corresponder aos aspectos sociais que
interferem e dificultam a constituição das suas capacidades (RODRIGUES, 2020). Descentralizam-
se, assim, as análises direcionadas somente ao corpo dos indivíduos.
O modelo social permitiu a apreensão da deficiência como uma experiência de desigualdade
e exclusão que pode ser compartilhada por um grupo de pessoas independentes dos seus
diferentes tipos de particularidades corporais, podendo uma pessoa com impedimento corporal
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não experimentar a deficiência se a sociedade acomodar sua diferença, já que para este modelo a
causa da deficiência são as desigualdades e restrições de participação impostas pela organização
social, que desconsidera (ou pouco comporta) a diversidade humana ( BAMPI; GUILHEM;
ALVES, 2010 apud RODRIGUES, 2020, p. 51).
Contudo, embora esses dois modelos (médico e social) tenham apresentado narrativas
diferentes sobre as causas da deficiência, em outro modelo discursivo chamado de modelo
biopsicossocial da deficiência, as estratégias de ambos podem ser encontradas agindo mutuamente,
embora a compreensão sobre as causas da deficiência não esteja especificamente centralizada nos
processos biológicos e/ou somente nos processos sociais.
De acordo com Diniz, Barbosa e Santos (2009, p. 72), no terceiro modelo, os
“impedimentos corporais e a avaliação das barreiras sociais de socialização” passam a ser descritos
como condições que conjuntamente dificultam a participação dos sujeitos na sociedade. A partir
disso, visualizamos a constituição de outro discurso sobre a deficiência, no qual se destacam as
capacidades dos indivíduos associadas a suas condições biológicas e as suas possibilidades de
desenvolvimento consideradas a partir da interação com os fatores de origem social e ambiental
(ARAÚJO, 2013).
Na correspondência desse modelo, a deficiência passa então a ser tratada duplamente como
uma questão social e política, no que tange às oportunidades oferecidas para o desenvolvimento dos
sujeitos, sem desconsiderar seus aspectos físicos e individuais frente a suas capacidades biológicas
para o aprendizado (SANTOS, 2018; RODRIGUES, 2020). A noção de responsabilidade, nessa
situação, anteriormente atribuída aos indivíduos pela lógica do modelo médico ou aos espaços
sociais e ambientais, propagada pelo modelo social, encontra-se direcionada a um rumo que não
dissocia tais questões.
É preciso compreender, no entanto, que tais modelos não funcionam isoladamente
e nem atuam de forma dissociada sobre os indivíduos e sobre as práticas escolares. Mesmo que
tenhamos obtido avanços nas discussões correspondentes a tais modelos, especialmente no que
concerne aos questionamentos travados em relação ao modelo médico, ainda encontramos, nos
discursos atuais, uma centralidade atribuída aos saberes médicos na definição e no enquadramento
dos sujeitos com deficiência.
Essa centralidade pode ser evidenciada, em um primeiro momento, através do que é
chamado pelas políticas educacionais inclusivas com público-alvo na Educação Especial. Tal público
aparece de forma recorrente em diversos textos oficiais, desde a LDB, passando pela Política Nacional
de Educação Especial na perspectiva da educação inclusiva (2008) até chegar a documentos mais
atuais que dispõem sobre educação especial e atendimento educacional especializado. Destacamos
a seguir alguns exemplos extraídos dos documentos analisados:
Art. 59. Os sistemas de ensino assegurarão aos educandos com deficiência, transtornos globais
do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação. (BRASIL, 1996, n.p).
A Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva tem como
objetivo assegurar a inclusão escolar de alunos com deficiência, transtornos globais do
desenvolvimento e altas habilidades/superdotação (BRASIL, 2008a, p.14).
Art1 - § 1º Para fins deste Decreto, considera-se público-alvo da educação especial as pessoas
com deficiência, com transtornos globais do desenvolvimento e com altas habilidades ou
superdotação (BRASIL, 2011, n.p).
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SANTOS, Nadine Silva dos; LOCKMANN, Kamila; KLEIN, Rejane Ramos
Conforme os trechos expostos, fica evidente que as definições impostas pelo olhar mais
clínico demarcam, no contexto das políticas, quem compõe o público-alvo da educação especial.
Dessa forma, conforme destaca Lockmann (2013, p. 136), a ação dos saberes médicos, incumbida
pelo dever de “nomear um desvio, uma anormalidade, que o sujeito vem apresentando dentro da
escola”, cria “categorias e subcategorias, cada vez mais minuciosas e numerosas” para descrever as
anormalidades. Assim, os sujeitos analisados tornam-se suficientemente conhecidos e capturáveis
no sentido de virem a ser normalizados e governados dentro desse espaço (LOCKMANN, 2013).
Através disso, vemos que o processo de medicalização assume a função de regulador
social, exercendo “influência na realidade, não através da violência ou da repressão, mas pela força
que forma saber e produz um discurso, induzindo os indivíduos a agir conforme os desejos da
norma” (LUENGO, 2010, p. 67). Como reprodução, destacamos os seguintes excertos, extraídos
de entrevistas realizadas com as duas professoras do ciclo de alfabetização, de uma escola Estadual
de uma cidade do Rio Grande do Sul/RS, os quais representam a visualização desses sujeitos dentro
da escola, a partir da identificação classificatória que recebem com o apontamento do laudo médico.
Incluídos com laudo, três. Fora aqueles que a gente recebe que não tem laudo. Estão em estudo,
foram encaminhados para a médica (PROFESSORA A, 2020).
Incluídos, que o Estado vê como incluídos, oito. Mas, aí eu tenho mais três alunos com
déficit de atenção e hiperatividade, que para o Estado não entra nessa lista dos ‘especiais’.
(PROFESSORA B, 2020).
Nós temos uma médica aqui na escola que é do CIAE. Então, nós temos um acordo com elas.
A gente cedeu uma sala e elas atendem nossos alunos que precisam de encaminhamento, mas
esse processo para quem não tem um convênio demora muito, porque até conseguir a consulta
médica... E aí ele (o aluno) vai ser atendido, vai ser medicado ou não. Então desses medicados
ou não, sem laudo, a gente deve de ter uns oito (PROFESSORA A, 2020).
Os discursos apresentados denotam uma marca de identificação produzida a partir
dos laudos diagnósticos, tornando os sujeitos da educação especial conhecidos na escola como
“laudados. O uso desse termo aparece recorrentemente na fala das professoras entrevistadas, dando-
nos a compreensão de corresponder a uma identificação do eu, apontada pelo nome de uma doença.
Aliado a essa forma de definição e classificação dos sujeitos, também aparecem nos relatos que
o apontamento produzido pelos saberes médicos funciona, muitas vezes, como condição para a
garantia dos direitos educacionais da pessoa com deficiência na escola comum. Vejamos o que diz
uma das professoras quando questionada sobre o atendimento dos sujeitos pelo AEE:
Alguns, sim. Os que são laudados, sim. Os com laudo com transtornos relacionados à deficiência
intelectual, por exemplo. O disléxico não tem direito, só os com DM mesmo (PROFESSORA
A, 2020).
Nessa condição, a categorização dos sujeitos expõe a existência de uma exclusão vivenciada
por alguns alunos, que, embora apresentem dificuldades na sua aprendizagem, devido à ausência
do documento clínico, são impedidos de acessar o AEE. Dessa forma, observamos que os rótulos
diagnósticos definem não só quem são os sujeitos da educação especial, mas também produzem,
no processo de inclusão escolar, ações seletivas que condicionam o atendimento. Sabemos que esse
processo seletivo no atendimento dos sujeitos via produção diagnóstica é algo que deveria estar
superado pelas políticas na atualidade, pois conforme a Nota técnica nº 4 de 23 de janeiro de 2014,
essa seletividade não deveria ocorrer:
As políticas de inclusão escolar e as narrativas docentes Artigos
Revista Diálogos e Perspectivas em Educação Especial, v. 10, n. 2, p. 123-142, Jul.-Dez, 2023 133
Neste liame não se pode considerar imprescindível a apresentação de laudo médico (diagnóstico
clínico) por parte do aluno com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento ou altas
habilidades/superdotação, uma vez que o AEE caracteriza-se por atendimento pedagógico e
não clínico. Durante o estudo de caso, primeira etapa da elaboração do Plano de AEE, se
for necessário, o professor do AEE, poderá articular-se com profissionais da área da saúde,
tornando-se o laudo médico, neste caso, um documento anexo ao Plano de AEE. Por isso, não
se trata de documento obrigatório, mas, complementar, quando a escola julgar necessário. O
importante é que o direito das pessoas com deficiência à educação não poderá ser cerceado pela
exigência de laudo médico (BRASIL, 2014, p. 3).
A exigência de diagnóstico clínico dos estudantes com deficiência, transtornos globais
do desenvolvimento, altas habilidades/superdotação, para declará-lo, no Censo Escolar,
público-alvo da educação especial e, por conseguinte, garantir-lhes o atendimento de suas
especificidades educacionais, denotaria imposição de barreiras ao seu acesso aos sistemas de
ensino, configurando-se em discriminação e cerceamento de direito (BRASIL, 2014, p. 3).
Ressalte-se, por imperioso, que a elaboração desse estudo de caso, não está condicionada a
existência de laudo médico do aluno, pois, é de cunho estritamente, educacional, a fim de que
as estratégias pedagógicas e de acessibilidade possam ser adotadas pela escola, favorecendo as
condições de participação e de aprendizagem (BRASIL, 2014, p. 4).
No entanto, embora seja percebido no documento um importante deslocamento no
âmbito das políticas educacionais inclusivas, estendendo e garantindo a todos os sujeitos escolares
com dificuldades de aprendizagem e desenvolvimento o pleno acesso ao espaço do AEE, o que
se observa no contexto escolar é o desconhecimento desse direito. Nesse sentido, encontramos
uma justificativa para o crescimento cada vez mais expressivo de encaminhamentos pelas escolas a
profissionais clínicos da área da saúde, exteriorizando um movimento que atribui às ações médicas
como mantenedoras dos direitos sociais.
Ora, se vigora a compreensão de que é necessário ter laudo para garantir o atendimento
no AEE das escolas, é compreensível que os encaminhamentos e a busca por produção diagnóstica
se tornem cada vez mais necessários. Entretanto, se analisamos as compreensões materializadas nas
políticas destacadas acima, percebemos um deslocamento importante da centralidade atribuída ao
saber médico, que pode denotar um deslocamento do modelo médico da deficiência para o modelo
social ou biopsicossocial. Tal entendimento parece ser reforçado pelas políticas atuais que destacam
o conceito de deficiência, o qual não se centra mais apenas no sujeito. Quando recorremos a Lei
Brasileira de Inclusão, essa compreensão se torna bastante explícita:
Art. 2º Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de
natureza física, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode
obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais
pessoas. (BRASIL, 2015).
Dessa forma, parece ficar claro a ocorrência de um deslocamento importante produzido
pelas políticas direcionadas às pessoas com deficiência, o qual não mais compreende a deficiência
como uma consequência natural da lesão de um corpo que necessita ser objeto de cuidados médicos,
mas como uma questão de justiça social, como um conceito político, da ordem dos direitos, da
cidadania e das políticas de bem-estar. Nesse sentido, concordamos com Diniz (2012) quando
diz que o desafio, encontra-se em compreender a deficiência como um modo de vida. Afirmar
a deficiência como um modo de vida é reconhecer seu caráter trivial para a vida humana. Ser
deficiente é apenas uma das muitas formas corporais de estar no mundo. Mas, como qualquer estilo
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SANTOS, Nadine Silva dos; LOCKMANN, Kamila; KLEIN, Rejane Ramos
de vida, uma pessoa com deficiência necessita de condições sociais favoráveis para levar adiante o
seu modo de viver a vida.
É nesse sentido que precisamos organizar social e educacionalmente algumas ações que
possam ofertar condições favoráveis ao desenvolvimento dos sujeitos. O atendimento educacional
especializado pauta-se nessa compreensão de ofertar recursos pedagógicos e de acessibilidade que
possam contribuir na eliminação de barreiras que impedem a participação dos sujeitos na escola e
na sociedade. Nesse sentido, para discutir as disposições legais que apresentam essa concepção do
AEE, destacamos os excertos abaixo extraídos dos documentos analisados.
O atendimento educacional especializado identifica, elabora e organiza recursos pedagógicos e
de acessibilidade que eliminem as barreiras para a plena participação dos alunos, considerando
as suas necessidades específicas. As atividades desenvolvidas no atendimento educacional
especializado diferenciam-se daquelas realizadas na sala de aula comum, não sendo substitutivas
à escolarização. Esse atendimento complementa e/ou suplementa a formação dos alunos com
vistas à autonomia e independência na escola e fora dela (BRASIL, 2008a, p.16).
Art. 9º A elaboração e a execução do plano de AEE são de competência dos professores que
atuam na sala de recursos multifuncionais ou centros de AEE, em articulação com os demais
professores do ensino regular, com a participação das famílias e em interface com os demais
serviços setoriais da saúde, da assistência social, entre outros necessários ao atendimento
(BRASIL, 2009, p. 2)
Art. 13. São atribuições do professor do Atendimento Educacional Especializado:
I – identificar, elaborar, produzir e organizar serviços, recursos pedagógicos, de acessibilidade
e estratégias considerando as necessidades específicas dos alunos público-alvo da Educação
Especial;
II – elaborar e executar plano de Atendimento Educacional Especializado, avaliando a
funcionalidade e a aplicabilidade dos recursos pedagógicos e de acessibilidade;
III – organizar o tipo e o número de atendimentos aos alunos na sala de recursos multifuncionais;
IV – acompanhar a funcionalidade e a aplicabilidade dos recursos pedagógicos e de acessibilidade
na sala de aula comum do ensino regular, bem como em outros ambientes da escola;
V – estabelecer parcerias com as áreas intersetoriais na elaboração de estratégias e na
disponibilização de recursos de acessibilidade;
VI – orientar professores e famílias sobre os recursos pedagógicos e de acessibilidade utilizados
pelo aluno;
VII – ensinar e usar a tecnologia assistiva de forma a ampliar habilidades funcionais dos alunos,
promovendo autonomia e participação;
VIII – estabelecer articulação com os professores da sala de aula comum, visando à
disponibilização dos serviços, dos recursos pedagógicos e de acessibilidade e das estratégias que
promovem a participação dos alunos nas atividades escolares (BRASIL, 2009, p. 3).
Diante dos destaques, duas questões nos parecem centrais. A primeira refere-se ao AEE
como este serviço que visa garantir recursos pedagógicos que possam promover a participação do
público-alvo da educação especial nas diferentes propostas educativas. Nesse sentido, parece-nos
que as disposições legais que falam sobre este atendimento, materializam a compreensão de um
modelo social ou biopsicossocial da deficiência, o qual preocupa-se em construir estratégias para
garantir a participação plena e efetiva desses sujeitos na escola, compreendendo que as dificuldades
de acesso e participação não estão localizadas nele, mas em seu entorno.
As políticas de inclusão escolar e as narrativas docentes Artigos
Revista Diálogos e Perspectivas em Educação Especial, v. 10, n. 2, p. 123-142, Jul.-Dez, 2023 135
A segunda questão, trata da compreensão de que o AEE não pode ser, sozinho, o
setor responsável por fazer a inclusão na escola, mas deve trabalhar de forma colaborativa com
os professores da sala de aula comum. Nessa representação, as ações educativas e inclusivas de
acesso à proposta pedagógica e curricular da escola são formalizadas como atribuição inicial dessa
modalidade de ensino, cabendo aos profissionais que nela atuam o oferecimento de orientações e
estratégias que contribuam com a prática desenvolvida na sala de aula comum (BRASIL, 2009).
Desse modo, espera-se que esse serviço de apoio complemente de forma colaborativa
os processos de ensino, promovendo uma parceria entre os profissionais da educação comum e
da educação especial para o desenvolvimento de planejamentos, atividades e intervenções que
contribuam para o funcionamento do processo de inclusão escolar (RABELO, 2012). Entretanto,
confrontando tais disposições, segundo às entrevistadas, o que ocorre na prática das ações escolares é
a desarticulação entre as duas modalidades, exposta pela falta de encontro entre os profissionais para
o planejamento de ações mais coletivas junto aos alunos. Isso fica expresso na fala das professoras
a seguir:
Adaptação de nível é o professor que faz dentro do que pode e do tempo que tem, é assim
que acontece a adaptação. Normalmente, quando a gente tem reunião pedagógica, entre nós
mesmos, a gente já monta essa adaptação. “Ah, esse ainda não tem condições”. “Essa turma ainda
não está pronta para ver esse conteúdo...”. “Tem uns que ainda estão engatinhando, precisam
ver mais adiante esse conteúdo”, mas aí é um diálogo entre nós (professoras) (PROFESSORA
B, 2020).
[...] as gurias aqui trabalham com a máquina braile, trabalham com o notebook com o pessoal
que tem deficiência visual, tem cadeiras de rodas, tem alguns materiais. É obvio que não tem
todos, até porque a tecnologia assistiva tem que adaptar para cada aluno né, em especial cada
coisa. Então, tipo, esses que ainda não escrevem o próprio nome, a gente tem que fazer. Não
dá tempo para a sala de recursos, até porque eu nunca me encontro com a minha colega que é
do turno inverso. Aí eu tenho que deixar. A escola fez uma caixinha que eu tenho que deixar
tudo que a gente precisa, tudo que a gente precisa, deixa ali para a colega (professora da sala de
recursos), só que é um tempo que a gente não tem. Eu sento semanalmente para planejar, só
que às vezes, de um dia para o outro acontece uma emergência e eu preciso daquele material
para o dia seguinte. Eu não posso enviar para a sala de recursos e esperar que a colega faça, até
porque ela tem os atendimentos dela, para depois ela me mandar de volta. Então eu tenho que
adaptar (PROFESSORA B, 2020).
Percebemos diante dos relatos, que no âmbito da escola ocorre a existência de um vácuo
na comunicação entre AEE e sala de aula comum, dificultando o desempenho do trabalho coletivo e
colaborativo desenvolvido pelas professoras. Isso demonstra que o vínculo destinado ao atendimento
educacional da pessoa com deficiência, se estabelece realmente sob a ênfase do trabalho pedagógico
realizado pelo AEE. Assim, no contexto da sala de aula comum, as professoras regentes trabalham
praticamente sozinhas, planejando e realizando suas práticas sem um suporte incisivo e colaborativo
do serviço de apoio. Nesse sentido, Zerbato e Mendes (2018, p. 148) complementam:
As modificações no ato de ensinar não são tarefas fáceis e simples de serem executadas, nem ao
menos é possível que o professor do ensino comum, sozinho, as realize. É necessário que ele
conte com uma rede de profissionais de apoio, recursos suficientes, formação e outros aspectos
necessários para a execução de um bom ensino (ZERBATO; MENDES, 2018, p.148).
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SANTOS, Nadine Silva dos; LOCKMANN, Kamila; KLEIN, Rejane Ramos
A solidão docente fica evidenciada nas narrativas das professoras quando destacam
como desenvolvem o trabalho pedagógico, envolvendo a produção dos planejamentos, adaptações,
atendimentos realizados e os processos de avaliação aos quais esses sujeitos são submetidos.
Bom, o planejamento. Eu faço um planejamento geral né, e aí para eles na hora que eu vou
transcrever a atividade, que eu faço de uma forma mais simples, mas é baseado no meu
planejamento, na minha estrutura de aula. O que eu do para os ditos como normais numa
forma mais difícil, para eles eu do numa forma de mais fácil compreensão, na visualização de
imagens... Como eu te disse né?! Se tiver que acrescentar um jogo um jogo diferente que eu não
vou acrescentar para os outros eu acrescento para eles, mais ou menos isso (PROFESSORA A,
2020).
[...] Como a turma é grande e é uma turma bem agitada, eu os coloquei nas minhas proximidades.
Faço trabalhos diferenciados, desde a atividade diária até o trabalho avaliado mesmo, para que
consigam fazer. Em primeiro lugar sozinho, se ele não conseguir fazer sozinho, num grau de
dificuldade muito fácil, aí eu auxilio. A gente usa muito o material concreto. Nós não temos
disponível pelo Estado, então a gente produz um dado, um jogo, que às vezes não se faz devido
ao tempo (PROFESSORA A, 2020).
Normalmente, eu tento sentar uma vez por semana na minha casa, depois de uma semana
pensando, porque a gente vai montando ideias: “ah, eu vou fazer isso, ah eu vou fazer aquilo
outro”. Quando eu sento e eu digo assim “planejei a minha semana”. Eu chego na sala de aula
e eu me surpreendo a cada dia, porque as vezes são coisas poucas né, mas a gente se surpreende.
Eu tenho crianças, como é que eu vou organizar? Os alunos que estão alfabetizados, eu trago
uma “leiturinha” e trago questões, os alunos que não estão alfabetizados eu procuro trazer
imagens do texto que foi trabalhado, para que eles consigam escrever palavras ou frases, faço
cruzadinha. E é assim que a gente organiza, só que a gente não tem nenhum tempo para isso.
(PROFESSORA B, 2020).
Frente aos relatos, percebemos o que às práticas de adaptação são pensadas e elaboradas
pelas professoras regentes, as quais não mencionam suportes ou apoios recebidos pelo AEE ou outros
profissionais da escola. Nessa circunstância, entre a atribuição das políticas e as práticas produzidas
na escola, há a ocorrência de um ensino fragmentado pela ausência de um trabalho pensado de
forma coletiva e colaborativa entre as duas modalidades educativas. Isso exprime um cenário de
responsabilização dos profissionais que atuam no âmbito da sala de aula comum, individualizando
a prática docente e os demais serviços de apoio presentes na escola.
Desse modo, ramificando os efeitos dessa responsabilização, as entrevistadas também
falam sobre os desafios enfrentados por elas no processo de inclusão.
Eu acho que os desafios são muitos, né? Não sei te dizer se mais deles ou nossos. Do professor,
porque [...] a gente não tem estrutura, a gente não tem formação, a gente não tem um apoio,
a gente não tem alguém para nos auxiliar. E deles, nessa inclusão, no meu ponto de vista, ela
não veio para auxiliar, ela não veio para incluir, ela veio para excluir, né?! [...] eles aqui, se
sentem como diferentes dos outros, porque a “tia” faz um trabalho diferente do outro. [...] eles
perguntam ás vezes: “Tia, porque o trabalho do “fulaninho” é diferente do nosso? ”. Ai um vai
lá e responde: “porque ele é especial”. Eles têm esse conhecimento, né?!. E acaba que muitas
vezes, eles (alunos com deficiência) são excluídos, porque eles se sentem diferentes. Eu acho
que essa inclusão, ela deveria até acontecer, deveria não, ela tem que acontecer na escola, mas
de uma forma diferenciada. Que eles estivessem no espaço escolar, mas que a sala de aula fosse
específica do grau de aprendizagem deles, da capacidade deles, com o ritmo todo igual. Uma
ilusão nossa, pois a gente sabe que isso não tem como mudar, mas... (PROFESSORA A, 2020).
E o tempo realmente para pensar em atividades para cada um deles? Uma pessoa que trabalha
40 horas semanais, não ter uma hora atividade, não ter assim, 50 minutos por semana para
As políticas de inclusão escolar e as narrativas docentes Artigos
Revista Diálogos e Perspectivas em Educação Especial, v. 10, n. 2, p. 123-142, Jul.-Dez, 2023 137
organizar um planejamento... Figurinha colorida é da impressora da minha casa... Porque se não
é preto e branco, quando não sai os borrões da máquina de Xerox, que é o que o Estado oferece.
Então, né?!... (risos). A gente tem deixado de estar com a nossa família para organizar atividades
para eles e se eu tivesse mesmo que realizar atividades adaptadas para cada um deles, com
certeza não seria só duas acontecendo na sala de aula, seriam sei lá, quatro, cinco diferentes... E
que o tempo muitas vezes impede que a gente faça mais (PROFESSORA B, 2020).
Eu acho que quando me apresentaram essa turma com oito, a primeira coisa que eu disse foi
assim: “Impossível! ” Uma pessoa sozinha não dá conta de dezessete alunos com oito incluídos.
“Vai ter monitor? ”. Mas nenhum entrou com processo judicial... É impossível, a pessoa não
dá conta, alguém vai ter que ajudar. Ai a sala de recursos se coloca à disposição para ti, para
no próprio turno de aula pegar alguns alunos por vezes, para levar até lá, só que esse ano
infelizmente, a colega se aposentou e justamente no ano de oito alunos incluídos no terceiro.
Então é a realidade. Quando a gente pensa em uma alternativa, acontece um fato, tipo uma
aposentadoria, que não vem ninguém para substituir (PROFESSORA B, 2020).
De acordo com as discussões de Garcia e Anadon (2009), as situações vivenciadas pelas
professoras podem ser relacionadas ao que chamam de intensificação e autointensificação do
trabalho docente, consistindo na intensa sobrecarga de trabalho atribuída às professoras, com a
conjunção do sentimento de autoresponsabilidade sobre a prática que exercem (HARGREAVES,
1998; GARCIA; ANADON, 2009).
Para as autoras, a considerável demanda de atribuições e a falta de tempo para realização
das atividades têm produzido um sentimento de cansaço crônico aos profissionais docentes,
devido à “sobrecarga de tarefas e [...] prestação de contas do ensino e da aprendizagem” (GARCIA;
ANADON, 2009, p. 70). Nesse contexto, o aumento da responsabilidade atribuída às professoras
em seu cotidiano faz com que alarguem o seu papel na escola, assumindo outras demandas escolares
que não necessariamente fariam parte da sua função, mas são assumidas pelo intenso compromisso
com a profissão.
Dessa forma,
[...] a intensificação do trabalho docente nos tempos contemporâneos é também resultado de
uma crescente colonização administrativa das subjetividades das professoras das emoções no
ensino, sendo indícios desse fenômeno a escalada de pressões, expectativas, culpas, frustrações,
impelidas burocraticamente e/ou discursivamente, relativamente àquilo que as professoras são
ou deveriam ser profissionalmente, àquilo que as professoras fazem ou deveriam fazer, seja no
ambiente escolar ou mesmo fora da escola. (GARCIA; ANADON, 2009, p. 71).
Com isso, vemos que na decorrência do processo de inclusão escolar, a grande proliferação
de diagnósticos clínicos dentro da escola tem resultado não só em efeitos que atingem o sujeito
aluno, mas também na produção de um trabalho pedagógico sobrecarregado. Isso corre, pois, no
entorno do atendimento dos sujeitos com deficiência, espera-se também, e principalmente, que o
professor da sala comum corresponda a todas as demandas e as expectativas no sentido de produzir
o bom desenvolvimento cognitivo dos sujeitos incluídos.
No entanto, conforme destacado nos trechos extraídos das entrevistas, essa tarefa se torna
difícil e até mesmo impossível, pois, além da falta de tempo hábil para a realização dos planejamentos
e atividades, a ausência do trabalho colaborativo entre as modalidades de ensino resulta em uma
excessiva jornada de trabalho. Extrapolando, inclusive, os limites de suas vidas privadas, em prol da
garantia de direitos educacionais dos sujeitos público-alvo da educação especial.
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Percebemos assim, que a intensificação e a auto intensificação do trabalho docente se
coadunam com o exercício de uma sociedade chamada, por Crary (2016) de “24/7”, vinte e quatro
horas e sete dias por semana. Uma sociedade que não dorme, não para e precisa produzir,
[...] o regime 24/7 expõe a inscrição generalizada da vida humana em uma rotina de
funcionamento contínuo. Tal regime torna plausível, e até mesmo normal, a ideia do trabalho
sem pausa, da produtividade sem limites e de uma disponibilidade quase absoluta às demandas
do tempo presente, sejam elas vinculadas ao trabalho profissional ou ao trabalho doméstico
(SARAIVA; TRAVERSINI; LOCKMANN, 2020, p.13).
Nesse sentido, no bojo das determinações postas pelas políticas educacionais de inclusão,
os processos de individualização e de medicalização resultam no fortalecimento do movimento in/
exclusão, produzindo a intensificação do trabalho docente, como mais um efeito desse cenário.
Portanto, entendemos os discursos sobre a inclusão escolar, neste tempo, não se apresenta
apenas como um processo de governamento e normalização para os sujeitos com deficiência, mas
constituem-se como verdades também se articulando ao governo dos sujeitos escolares como
um todo. Agindo desde a identificação e a classificação do indivíduo-aluno patológico, até a
produção de práticas pedagógicas que tornam o professor um agente responsável por si e pelo bom
funcionamento do ensino inclusivo.
considerAções finAis
Diante do exposto, visualizamos nas concepções de deficiência materializadas em
documentos oficiais referentes às políticas de inclusão escolar do Brasil, especialmente a partir da
década 1990, assim como nas narrativas das docentes entrevistadas que atuam junto ao público
da Educação Especial em escola comum, que há deslocamentos entre os modelos da deficiência,
fazendo com que a concepção de inclusão transite, por vezes, tanto entre os modelos médico, quanto
pelo modelo social e biopsicossocial da deficiência. Porém, entendemos que ainda há um forte
predomínio sobre o modelo médico, que segue ditando os padrões biológicos nos quais os sujeitos
precisam estar inseridos para encontrarem-se dentro da zona de normalidade. Quando afastados
disso, vemos tal modelo exercendo o ajustamento das condutas, seja pela ênfase aos diagnósticos
clínicos que nomeiam esses sujeitos escolares, seja pela evocação de estratégias de medicalização e
tantas outras que se mostrem eficientes para no ajustamento dos mesmos à norma escolar e social.
Nesse contexto, observamos que a busca por estratégias eficientes para o atendimento
dos sujeitos considerados alvo da inclusão, para além dos casos benéficos, também apresenta a
existência de uma desarticulação entre o trabalho realizado pelas professoras da sala de aula comum
com as professoras do atendimento educacional especializado. Essa desarticulação, expressa além de
uma ênfase na proposta pedagógica a ser realizada de forma individual, uma sobrecarga de trabalho
vivenciada pelas professoras do ensino comum, que a partir das narrativas apresentadas, destacam a
presença de um isolamento do trabalho docente.
Entretanto, para além das problematizações tecidas nessas análises, percebemos que
ocorrem deslocamentos importantes nas concepções de deficiência expressas em documentos
oficiais como na Lei Brasileira de Inclusão. Tal materialidade, pode produzir impactos no contexto
social, construindo outras formas de avaliação da deficiência como as recentes investidas numa
concepção de avaliação biopsicossocial. Os desafios nos parecem grandes, mas quem sabe estejamos
As políticas de inclusão escolar e as narrativas docentes Artigos
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diante da possibilidade de deslocar a hegemonia do saber médico para definir quem são os sujeitos
e quais suas possibilidades de ser, aprender e viver em sociedade.
referênciAs
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