Justiça Social como igualdade de acesso Artigos
Revista Diálogos e Perspectivas em Educação Especial, v. 10, n. 2, p. 11-24, Jul.-Dez, 2023 11
https://doi.org/10.36311/2358-8845.2023.v10n2.p11-24
is is an open-access article distributed under the terms of the Creative Commons Attribution License.
Justiça social como igualdade de acesso: por uma abordagem
anticapacitista dos direitos Humanos
Social JuStice aS equal acceSS: towardS an anti-capacitiSt approach to
human rightS
Gustavo Martins PICCOLO1
Resumo: o presente texto trata-se de ensaio teórico erigido mediante revisão literária, a qual objetiva vincular a produção de
uma sociedade justa como diretamente relacionado à constituição de interações paritárias entre os mais diversos sujeitos nos mais
variados espaços. Referida demanda tem como suposto organizativo a consubstanciação de uma crítica radical ao capacitismo
estrutural, o qual, mediante um processo de naturalização de relações assimétricas, despersonaliza e desprestigia a experiência da
deficiência como de menor valia, fato que acaba por estreitar as possibilidades de desenvolvimento dos sujeitos que vivenciam
esta experiência. Inegavelmente, parte desta marginalização se dá pela exclusão das pessoas com deficiência das arenas políticas/
públicas, sendo justamente sobre este conteúdo que o presente artigo desenvolverá suas teses e antíteses, tomando como suposto
central a ideia de que a justiça social e de acesso se alcançará alterando tanto a forma física do mundo como a maneira pela qual
ele é sentido e percebido.
Palavras-Chave: Direitos Humanos. Acessibilidade. Justiça. Pessoas com Deficiência.
Abstract: the present text is a theoretical essay created through a literary review, which aims to link the production of a fair society
as directly related to the constitution of equal interactions between the most diverse subjects in the most varied spaces. is
demand has as organizational assumption the embodiment of a radical critique of structural capacitism, which, through a process
of naturalization of asymmetrical relationships, depersonalizes and deprives the experience of disability as of lesser value, a fact that
ends up narrowing the development possibilities of subjects who live this experience. Undeniably, part of this marginalization is
due to the exclusion of people with disabilities from political/public arenas, and it is precisely on this content that this article will
develop its theses and antitheses, taking as a central assumption the idea that social justice and access will be achieved altering both
the physical form of the world and the way in which it is sensed and perceived.
Keywords: Human Rights. Accessibility. Justice. People with Disabilies.
introdução
Proclamar a urgência na construção de um arcabouço anticapacitista como marco
fundamental na luta por direitos humanos, vinculando-o a feitura de paisagens acessíveis e
a materialização da igualdade enquanto princípio regulador das interações sociais, implica o
consequente reconhecimento de um conjunto de negações as quais atravancam sistematicamente
o direito de diversas pessoas participarem paritariamente da vida ordinária e ocuparem a totalidade
das geografias sociais. A este fenômeno, em um sistema dito democrático, chamamos de injustiça.
Doutor em Educação Especial. Universidade de Araraquara. E-mail: gupiccolo@yahoo.com.br. ORCID: https://orcid.org/0000-
0002-6078-9176
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O combate radical às injustiças sociais somente se concretiza quando nosso ponto de
partida sobre algum evento ou fenômeno social nos permitem condenar tanto a exclusão como a
inclusão de algo menos do que em iguais termos, tal qual assevera Fraser (2007), atribuindo a este
fato o nome de paridade de participação, uma categoria que nos possibilita pensar para além das
antíteses rígidas do sistema binário inclusão/exclusão.
Se olharmos atentamente pelas lentes da história perceberemos que diversos movimentos
sociais, incluso o de pessoas com deficiência desde os anos de 1970, adotaram este padrão normativo
como central em suas reivindicações ativistas, cuja materialidade requer redistribuição econômica,
reconhecimento cultural e representação política. Não por acaso, a falha na consecução de uma
destas esferas gera gravosas formas de injustiça, posto interferir ativamente na maneira pela qual
nos relacionamos com outras pessoas como pares em sociedade. As três esferas, embora distintas,
se mostram interdependentes, uma vez que progressos ou insucessos na conquista de cada uma
destas dimensões impacta decisoriamente na formatação da outra. Logo, melhorias no campo
distributivo exerce interferência nas questões de reconhecimento, assim como na majoração de
representatividade, e vice-versa (FRASER, 2007).
O empenho ao enfrentamento das barreiras que obstaculizam a consubstanciação destes
mecanismos de redistribuição, reconhecimento e representação objetiva, ao fundo e fim, nada
além da garantia de direitos essenciais a uma vida social digna, por isso, são chamados de direitos
humanos. Tais garantias foram estabelecidas pioneiramente com a promulgação da Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão em 1789, a qual, no fervilhar da Revolução Francesa, celebrou
a liberdade, igualdade, a propriedade, as garantias legais e os direitos políticos como condições
invioláveis dos homens. Dois anos mais tarde, Olympe de Gouges proclama em 1791 sua célebre
Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, cujo teor introduziu as mulheres como atoras/
autoras dos pressupostos já conhecidos do anterior documento.
Com o correr dos tempos e os horrores presenciados nas duas Grandes Guerras Mundiais,
insurge a ONU (Organização das Nações Unidas) como Organização cuja função residiria em
garantir a paz e promover a cooperação entre os povos, missão mediadora que tem falhado com
certa constância. Ainda assim, é das mãos desta Organização que insurge a mais potente Declaração
de Direitos Humanos já produzida: a “Declaração Universal dos Direitos Humanos”. Neste
documento, para além das conquistas já estabelecidas no texto germinal de 1789, acrescenta-se a
garantia ao direito à vida, a não discriminação, ao direito de ser reconhecido como pessoa integral,
à liberdade de locomoção, ao direito de tomar parte do governo como dirigente político, ao direito
de acesso ao serviço público, ao trabalho, a educação, a saúde, as artes, a ciência e de participar da
vida cultural da comunidade.
Ao sentenciar que todas as pessoas, independentemente de suas diferenças, têm direitos
políticos, civis, econômicos e culturais assegurados e protegidos, a Declaração de 1948 percebe,
direta ou indiretamente, as particularidades dos mais diversos coletivos como inerentes a condição
humana. Sob esta perspectiva, tais particularidades não estreitariam os potenciais de alcance social,
muito pelo contrário, pois diversificam e alargam as margens do possível, enriquecendo a maneira
pela qual os seres humanos se relacionam com o meio.
Todavia, como pontua Lindqvist (2002), em Relatório produzido para a Comissão
de Desenvolvimento da ONU, no caso das pessoas com deficiência, tais direitos têm sido
sistematicamente negados, negligenciados ou dificultados, o que atravanca as possibilidades de
desenvolvimento destes sujeitos. Mesmo em um ordenamento que consagrou o entendimento
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das diferenças culturais/humanas como componentes da humanidade, no caso da diferença da
deficiência, esta ainda tem sido vista, no mais das vezes, como infortúnio, tragédia e incapacidade,
uma condição a ser corrigida mais pela medicina do que pela conquista de direitos. Tal consideração,
para Lindqvist (2002), vai na contramão de uma abordagem de direitos humanos ao isentar os
governos das mudanças necessárias que devem ser promovidas com vistas a configuração de uma
sociedade que responda favoravelmente as variações nas características humanas, culpando a própria
vítima pelas opressões vivenciadas. Para Campbell (2009), parte deste suposto, que se apresenta
como natural, é historicamente produzido e desenhado pelas lentes do capacitismo, fenômeno
bastante difundido, porém ainda pouco compreendido, daí a proeminência de o analisarmos de
maneira mais acurada dado seu impacto decisório no conjunto de negações enfrentadas pelas
pessoas com deficiência.
Isto posto, este ensaio teórico, erigido mediante revisão literária, objetiva vincular
a produção de uma sociedade justa como diretamente relacionado à constituição de interações
paritárias entre os mais diversos sujeitos nos mais variados espaços, sendo as arenas políticas um
destes espaços a serem ocupados como ato simbólico e material na confecção de uma cultura
efetivamente inclusiva.
o capacitismo como método, a exclusão como fim
A invenção do termo capacitismo, cuja utilização ativista se fortalece durante os anos
1980, objetivava disponibilizar uma terminologia que se mostrasse coerente para compreender os
insidiosos processos de exclusão sobre as pessoas com deficiência na sociedade contemporânea. Uma
iniciativa que, fincada nos constructos apresentados pelos teóricos do modelo social da deficiência,
buscava politizar uma questão historicamente apropriada sob vértices da medicina mediante
paralelos com o universo literário erigido pelos estudos feministas e sobre o racismo estrutural.
O termo capacitismo, que ganhou larga repercussão com a obra de Campbell (2009),
teve sua definição mais consistente até então pelas mãos de Rauscher e McClintock (1997, p.198),
que o compreenderam como:
[...] um sistema penetrante de discriminação e exclusão que oprime as pessoas com deficiências
mentais, emocionais e físicas. É uma crença profundamente enraizada sobre saúde, produtividade,
beleza e valor da vida humana, perpetuados pela mídia pública e privada, e que se combina para
criar um ambiente muitas vezes hostil àquelas cujas características físicas, mentais, cognitivas e
habilidades sensoriais se mostram desajustadas ao escopo do que é atualmente definido como
socialmente aceitável (RAUSCHER; MCCLINTOCK, 1997, p.198).
Por este desígnio, capacitismo poderia ser resumido como um conjunto de pressupostos,
práticas e gramáticas as quais conjugam um tratamento diferenciado para as pessoas com deficiência
sob alegação de que não se encaixariam no funcionamento normativo típico da espécie, em outros
termos, um sistema de discriminação que marginaliza pessoas pelo único motivo de estas serem
deficientes.
Campbell (2009) contestou este quadro de disposições simbólicas ao asseverar que
o mesmo compreendia parte e não a totalidade da realidade circunscrita sobre a categoria. No
entender de referida autora, os dispositivos que alicerçam e dão forma ao conceito de capacitismo
se estendem para além da população consignada de pessoas com deficiência. Campbell (2001)
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afirma que os vetores do capacitismo, profunda e subliminarmente incorporados à cultura, exercem
interferência sobre uma miríade de processos de exclusão operados contra públicos historicamente
oprimidos. Sua definição clássica conceitua o capacitismo como “uma rede de crenças, processos e
práticas que produz um tipo particular de eu e de corpo (o padrão corpóreo) que é projetado como
o perfeito, típico da espécie e, portanto, essencial e totalmente humano. A deficiência é apresentada
como um estado diminuído do ser humano” (CAMPBELL, 2001, p.44).
Quando analisamos a definição de Campbell (2001), percebemos que o sistema de
significados que a compõe já anuncia a intenção da autora em concentrar-se no desvelar dos
processos que emolduram a ideia de capacidade, colocando como epifenômenico o estudo da
incapacidade. Posteriormente, Campbell (2017, p.287) incorporou novas sentenças a definição
de capacitismo, revisando-o como “um sistema de relações causais sobre a ordem da vida que
produz processos e sistemas de titularidade e exclusão”, em outros termos, um complexo de práticas
divisoras que envolvem diferenciação, classificação, negação e priorização de determinadas formas
de vida e de padrões corpóreo-comportamentais, cuja dessemelhança pode levar tais sujeitos a um
duplo comportamento que abarca afastamento da coletividade e emulação pela norma capacitista.
A definição de Campbell (2017) compreende o capacitismo como uma estrutura abstrata
que permite tratar várias corporalidades como ininteligíveis: corpos femininos, pretos, LGBTQIA+,
indígenas e deficientes, sendo estes últimos tidos como a sinédoque do afastamento à norma,
mas não os únicos desviantes. No universo mental de Campbell (2017), a ideia de deficiência se
materializa como a antítese da capacidade.
Para Campbell (2012), no núcleo de um sistema capacitista se encontram bem apresentados
dois elementos: a noção de normativo e a manifesta divisão entre uma condição humana desejável/
desenvolvida e uma condição desviante/aberrante, logo, não totalmente humana. Sublinhada
divisão é tomada em tons naturalistas e, para além das diferenças corpóreas e comportamentais
mais evidentes, se estendem também no sentido de capturar diferenças de sexo, raça, classes sociais
e origem em relação ao quadro aspirado pelas classes hegemônicas como normativo, qual seja:
homem, branco, heterossexual, saudável, letrado e abastado em termos econômicos.
Nesse sentido, como alerta Campbell (2012), mais que um conjunto de marcadores
negativos à determinadas características humanas, o capacitismo é uma trajetória arbitrária que
sintetiza uma forma narcisista em se pensar os corpos humanos e pela qual determinadas pessoas
são habilitadas e outras excluídas da participação paritária em comunidade. Em suas palavras, o
capacitismo funcionaria para inaugurar a norma (CAMPBELL, 2009), posto projetar um tipo
particular de eu como ser humano típico e perfeito da espécie. Neste quadro imagético, a deficiência
é uma condição inerentemente negativa que precisa de melhoria, cura ou eliminação, suposto que
formata boa parte das discriminações sofridas por este coletivo.
Por consequente, ao mesmo tempo em que o capacitismo desaprova certas corporalidades,
concomitantemente afirma outras formas existenciais em sentido de sobreposição, comportando
relações de poder as quais objetivam asseverar alguns interesses em detrimento de outros.
Pese os elementos originais e produtivos do sistema construído por Campbell (2009;
2017; 2019), os quais apontam para novos desafios e para a necessidade urgente em pensarmos na
formatação do conceito de capacidade e como este interfere no desenrolar da vida ordinária das
pessoas, entendemos que o conceito precisa ser melhor desenvolvido, além de se mostrar errônea a
consideração de que o capacitismo funciona para inaugurar a norma, pois embora o raciocínio seja
sedutor e bem elaborado, trata-se de uma interpretação enviesada da história.
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Não podemos esquecer, tal qual acentua Davis (1995), que o conceito de norma não
existiu desde os primórdios. Muito pelo contrário, sua gênese vincula-se ao sistema capitalista de
produção, desdobrando-se em substituição ao conceito de ideal, o qual se compunha como marco
referencial da Antiguidade e Idade Média no que diz respeito ao corpo aspirado como perfeito.
O sentido de capacidade empregado por Campbell (2009; 2017; 2019) aparece a posteriori ao
conceito de norma, por isso, carece de sentido a afirmação da autora. É a norma que cria a ideia
de capacidade utilizada pela autora e tão cara a sociedade contemporânea, ideia que se mantém
relativamente estável desde a consolidação capitalismo como sistema econômico predominante e
força espiritual hegemônica.
Já no que tange a necessidade de trabalho mais depurado do conceito de capacitismo
de forma a inquirir toda e qualquer opressão social, não podemos esquecer a discriminação e
marginalização das pessoas com deficiência trata-se de fenômeno estrutural em nossa sociedade,
estando integrada nos ritos culturais e interações dialógicas, na organização econômica e política, nos
sistemas de educação, saúde e assistência, assim, se manifestam mesmo quando não existe intenção
individual para tanto. Este sistema estrutural tem nome: capacitismo. Sob seu enlace, as pessoas com
deficiência são objetivadas como incapazes e dependentes pela simples razão de serem deficientes,
escancarando um suposto abstrato vinculante de que tais corpos são de menor valia, inferiores,
frágeis. Que o capacitismo pode ser útil para analisar outras manifestações preconceituosas não
temos dúvida, entretanto, sua origem primeva enquanto categoria tem na deficiência seu campo
dileto e seu objeto cardeal de representação imagética.
Feita esta ponderação, consideramos que a apropriação das disposições contidas em
Campbell (2001; 2009; 2012; 2017; 2019), ofertam contribuições inequívocas ao campo dos
Estudos sobre a Deficiência, dialogando justamente acerca da necessidade em se derrubar as
barreiras que compõem a sociedade de forma a tornar suas geografias mais acessíveis, pedra angular
do modelo social da deficiência. Mas tal tarefa não deve perder de vista que embora o capacitismo
exerça interferência na significação coletiva de todos os grupos identitários, é sobre as pessoas com
deficiência que ele se estabelece com maior vigor discriminatório (raciocínio presente, inclusive, na
própria Campbell (2017;2019)), produzindo marginalizações e desfiliações as quais nada tem de
naturais, pois históricas, intencionais e arbitrárias.
Tal raciocínio é fundamental para pensarmos a deficiência sob a lógica de grupo
minoritário, fator tão caro aos movimentos ativistas na busca por direitos políticos. Citada posição
comporta uma estratégia de resistência cardeal para compreender os próprios processos formadores
do capacitismo e como a estrutura destas práticas impedem as pessoas com deficiência de ascenderem
a totalidade dos espaços sociais, dentre eles, o das arenas políticas responsáveis pela formulação
de políticas públicas. Uma estrutura apoiada pela caracterização médica e que rejeita as variações
existenciais ao vinculá-las sob a lógica de desvios a serem corrigidos. Lastreado nessas disposições, a
deficiência foi sendo interpretada como tragédia pessoal, uma experiência individual, fragmentada
e desprovida de caracteres políticos, premissa contestada somente a partir dos anos 1970 com o
surgimento de movimentos ativistas os quais tomaram esta experiência pelo prisma identitário. Mas
afinal, o que significa isso?
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pessoas com deficiência como grupo minoritário: nada sobre nós sem nós
O entendimento da categoria deficiência sob à perspectiva de grupo minoritário implica
na contestação de sua definição como falha ou déficit derivados de limitações corpóreas e funcionais,
narrativa nominada academicamente de modelo individual da deficiência e cuja concepção vincula
tal experiência como resultado direto da existência de comprometimentos (físicos, sensoriais,
cognitivos ou psicológicos) que desdobram obrigatoriamente em restrições sociais. Sob este
escrutínio, o corrigir precede o participar.
Contra este suposto, pois falso e unilateral, se levantaram movimentos de pessoas com
deficiência no sentido de explicitar tal posição como arbitrária. O objetivo projetado por este
inovador entendimento consistia em vincular a opressão sofrida pelas pessoas com deficiência às
marginalizações experimentadas por negros, mulheres e homossexuais, uma tarefa de largo fôlego,
na medida em que a ideia de deficiência, desde a modernidade, é tida quase como uma sinédoque
para todas as formas de expressão consideradas, cotidianamente, não normativas.
Romper com este lineamento implicava na radical distinção entre comprometimento
e deficiência, posição tornada clássica na definição do grupo ativista UPIAS (1976, p.4), para
quem “a deficiência é algo imposto por sobre nossos comprometimentos pela forma como somos
desnecessariamente isolados e excluídos da plena participação em sociedade. As pessoas com
deficiência são, portanto, um grupo oprimido na sociedade”.
Ao posicionar a deficiência como opressão social, os ativistas sentenciaram o conjunto de
denegações que perpassam sobre seus corpos não apenas como contingentes, mas, também, injustas
e passíveis de superação. A torção analítica operada por este inaugural entendimento partia da
premissa da inexistência de vínculo causal entre corpos com comprometimentos e situação social
de não reconhecimento das pessoas com deficiência.
Destarte, as agruras enfrentadas por estes sujeitos deveriam ser explicadas por fenômenos
como preconceito, discriminação, exclusão econômica e não sobre uma fisicalidade distinta daquela
tida como normativa. Desloca-se, assim, a ação compensatória do individual para o coletivo, do
corpo para a sociedade, das práticas de reabilitação para a luta política, uma vez que a justiça social e
a igualdade de acesso passam a ser entendidas como possíveis somente quando da mudança da forma
do mundo e não da silhueta dos corpos.
No entender de Oliver (1990), a retirada da explicação da deficiência exclusivamente do
campo clínico foi uma guinada teórica revolucionária. Não era mais possível justificar a opressão
das pessoas com deficiência por uma ditadura da natureza, e, sim, pela injustiça social manifesta
em áreas como habitação, emprego, transportes, educação, saúde, arquitetura urbana, etc., uma
afirmação com implicações políticas desconcertantes.
A literatura surgida por sobre este sentimento, nominada modelo social, politizou com
sucesso as iniquidades contidas em dimensões interacionais e físicas erigidas sobre o tempo presente,
chamando a atenção às maneiras pelas quais as gramáticas normativas constituem vastas extensões
de espaços como áreas proibidas em serem ocupadas por pessoas com deficiência, o que configura
um potente artifício segregacionista de uma parcela significativa da população.
Tal entendimento demarca uma inegável contribuição à compreensão de como os
processos de exclusão dispostos através de reprodução e sustentação de práticas incapacitantes se
configuram no tempo, na história e também no espaço. As paisagens urbanas, especialmente após
a Idade Moderna, edificaram uma série de espaços e relações organizadas de forma a marginalizar,
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oprimir e manter as pessoas com deficiência na esfera do privado. Assim, transmitiu-se flagrantemente
uma fotografia de que as mesmas não eram bem-vindas aos espaços comuns.
A constatação de desigualdades e diferenciações que atravessam o tecido social pelos
mais diversos espaços em nosso país é fato inconteste, estejamos nos referindo a educação, a saúde,
a alimentação, ao trabalho, a moradia, ao transporte, ao lazer ou a segurança, tidos como garantias
sociais. A violação destas obrigações a parcela da população nacional golpeia com aríete o conceito
de liberdade e igualdade em direitos, pedra angular da modernidade e de nossa peça constitucional,
e cuja denegação demarca a necessidade candente de transformação social e da consolidação de
políticas públicas que minorem quaisquer injustiças.
Tais injustiças devem ser combatidas no seio da sociedade por políticas de redistribuição,
seja de renda, de trabalho, de decisões diretivas; por políticas de reconhecimento que impeçam a
consubstanciação da diferença como desigualdade e; por políticas de representação que garantam a
presença de todos nas arenas que consolidam os direitos nacionais. No que diz respeito as pessoas
com deficiência, raros se mostram os estudos que analisam as esferas da representação política
e de como vem ocorrendo o processo de ocupação destas arenas no caso do coletivo de pessoas
com deficiência (PICCOLO, 2022). Sublinhada constatação acentua a necessidade urgente em
se analisar estes dados, uma vez que a ideia angular manifestada pelo ativismo de pessoas com
deficiência residia justamente na proclamação de que nenhuma ação, legislação ou decisão geral
sobre tal coletivo poderia ser tomada sem a presença do coletivo ao qual tratam. Nada sobre nós
sem nós (CHARLTON, 2010).
Isto posto, resta evidente que a inteligibilidade de como as pessoas com deficiência se
tornaram marginalizadas e excluídas na sociedade não poder ser arquitetada sem uma apreciação
das configurações espaciais que produziram assimetrias e desigualdades dos mais variados tipos.
Entre as inúmeras paisagens que apartaram as pessoas com deficiência do coletivo uma delas
inquestionavelmente se refere às arenas de representação política.
representação política e pessoas com deficiência
É perceptível a sub-representação de pessoas com deficiência nas arenas políticas da
sociedade, seja em nível municipal, estadual ou federal, fato este que exerce interferência negativa
na criação de mecanismos que combatam discriminações e projetem transformações econômicas e
culturais necessárias a uma sociedade efetivamente acessível. Destacada constatação engenha como
necessária a produção de relações e cenários que rompam o círculo mediante o qual a democracia
política institucionalizada reproduz a desigualdade social como fato natural, idealizando um
processo inclusivo mais alargado que contribua de jure e de facto para a redução de injustiças
estruturais e simbólicas.
Young (2006) destaca como costumazes as queixas de variados grupos sociais acerca do
caráter excludente da ocupação dos espaços de representação nas democracias contemporâneas,
rememorando que muitas das discussões acerca da construção de políticas públicas se estabelecem à
margem dos próprios sujeitos que sofrem o impacto das medidas projetadas. Não por acaso, Miguel
(2005, p.26) acentua a necessidade de reordenar conhecidas relações, uma vez que “a familiaridade
com que a expressão democracia representativa é recebida, não deve obscurecer o fato de que ela
encerra uma contradição. Trata-se de um governo do povo no qual o povo não estará presente no
processo de tomada de decisões”.
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Como é de comum conhecimento, o grupo de governantes em nossa sociedade, via
de regra, é composto majoritariamente por homens, brancos, saudáveis, heterossexuais, oriundos
classes econômicas privilegiadas e com alto grau de escolaridade, materializando um falso quadro
descritivo do povo brasileiro. Esta esquálida composição representacional tende a produzir políticas
públicas que tomam predileções e propensões de um pequeno estrato populacional como se
fossem desígnios universais. Tal qual pontua Young (2000, p.109), “em sociedades com alto grau
de desigualdade, a não diferenciação tem como consequência o fato de que o interesse dos mais
poderosos e ricos tornar-se-ão os interesses comuns”. Contra o caráter ordinário dessa suposição
urge como necessário reconfigurar tal espectro representacional.
Para Phillips (2001), mais do que arquitetar mecanismos a fim de que os representantes
tenham na inclusão dos desfavorecidos uma bandeira de luta, mostra-se essencial a ocupação dos
espaços políticos institucionalizados pelos grupos marginalizados, pois citado empoderamento é
pré-requisito para a promoção de transformações estruturais inclusivas desejadas. Evidente que
a proposta de inserção de grupos minoritários no cenário político não ocorre sem resistência, na
medida em que setores hegemônicos tendem a evitar a redistribuição de poder político e, assim,
preservar seus interesses como únicos dignos de nota, elemento que assevera a necessidade em se
tornar as formas de representação mais inclusivas, rotativas e assemelhadas à sociedade.
A demanda por presença política, portanto, é uma questão que deve também ser vista
sob o prisma da justiça, pois a mesma se mostra cardeal a possiblidade de exercício do poder, cuja
concentração em poucas mãos ou monopolização sob a tutela de alguns grupos retrata injustiça
política. Pautado neste arcabouço, Young (2006) entende como necessário a uma democracia forte
e consolidada que os grupos historicamente marginalizados possam ocupar as arenas do embate
público, alargando o espectro de participação social, pois como assevera Pinto (2004, p.105),
[...] o processo de inclusão provoca mudanças radicais que rearranjam a posição relativa dos
sujeitos que já estavam plenamente inseridos na sociedade. Tomando o poder como uma
equação de soma zero, ver-se-á que para cada sujeito-grupo incluído corresponde alguma perda
de poder para um grupo anteriormente incluído. Isso explica em muitas medidas as dificuldades
das experiências participativas (PINTO, 2004, p. 105).
É angular que os grupos oprimidos tratem e compreendam o ato de representação política
como fundamental em sua luta por reconhecimento na sociedade e peleiem pela implantação de
mecanismos redistributivos que garantam aos mesmos acesso a todas as conquistas sociais, daí a
necessidade em se ampliar as tensões no campo político mediante a incorporação de interesses outros
em relação àqueles perfilhados pelos grupos dominantes de forma a expandir a compreensão sobre a
realidade e mover as proposituras em termos de políticas públicas para além de interesses paroquiais
dos setores hegemônicos da sociedade. Estes novos interesses, para além de diferentes, denotam
uma contraposição marcada pelo signo da subalternidade que tem por função o questionamento
dos mecanismos de acesso e controle do poder, denotando uma ruptura que implica a revisão dos
privilégios aos grupos dominantes. Exatamente devido a estes elementos, nominamos tais conflitos
como sendo de interesses e não de perspectivas, pois envolvem disputa pelo poder.
Poderá se objetar que a simples presença de grupos subalternos nas esferas de representação
política não garante por si só que suas agendas transformem as posições definidas pelos setores
hegemônicos da sociedade, dado o caráter poroso do campo político, o qual “busca enquadrar
as vozes diferentes, forçando adaptações e reduzindo o potencial disruptivo da incorporação de
vozes dissonantes(MIGUEL, 2015, p.198). Entretanto, por mais abrasivo que seja citado campo,
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é impossível que o mesmo coopte na totalidade os interesses, posições e discursos dissonantes
expressos por grupos subalternos de forma a torná-los mais palatáveis ao status quo vigente. Quando
a presença substitui a ausência no palco político, materializam-se efeitos indeléveis os quais não
podem mais ser reprimidos ou sufocados, pois, na política, voz é poder.
Denotada a importância no que diz respeito à presença de grupos minoritários nos palcos
políticos, angular se mostra mapear como têm se materializado esta contenda em diferentes estratos
no tempo presente. No caso aqui analisado, interessa-nos analisar a participação do coletivo de
pessoas com deficiência no processo eleitoral brasileiro. Um coletivo que, de acordo com a Pesquisa
Nacional em Saúde (PNS) ocorrida em 2019 (IBGE, 2021), compreende 17,3 milhões de pessoas
acima de dois anos (8,4% da população nacional, número significativamente abaixo das estimativas
mundiais estipuladas em 15% (WHO, 2011) e também do último censo nacional de 2010, que
estimou a população de pessoas com deficiência como compreendendo 25% dos brasileiros).
Tomaremos a PNS como referência, pois, mesmo que subestimados em termos
quantitativos ao esperado globalmente, seus dados são os mais recentes, além de já estarem
escorados nos pressupostos das Lei Brasileira de Inclusão (BRASIL, 2015), o que o torna o primeiro
censo consubstanciado a partir das definições expressas no Estatuto da Pessoa com Deficiência.
Evidenciado o expressivo número de pessoas com deficiência na sociedade brasileira resta como
necessário, em termos de representação democrática, analisar como vem ocorrendo a ocupação de
cadeiras eletivas por este coletivo. Para tanto, analisaremos os dados referentes às eleições brasileiras
de 2022, primeiro pleito presidencial no qual o Tribunal Superior Eleitoral do Brasil - TSE incluiu
a categoria deficiência em sua estratificação estatística.
As eleições de 2022 no Brasil definiram os ocupantes aos cargos de Presidente da
República, Senadores, Governadores, Deputados Federais, Estaduais e Distritais, possuindo
abrangência nacional. De acordo com TSE (2022), excetuando o cargo de Presidente da República,
foram registradas candidaturas de pessoas com deficiência para todos os outros postos em número
de 476, contudo, somente 08 destes candidatos foram eleitos, o que representa 0,49% das 1627
vagas em disputa, quantitativo significativamente abaixo àquele apresentado nas eleições municipais
de 2020, a qual elegeu 623 (0,9%) pessoas com deficiência como gestores das cidades brasileiras
(TSE, 2020). Independentemente do recorte considerado, cabe frisar que a porcentagem de eleitos
se encontra em muito abaixo a fração deste coletivo populacional no Brasil, que no menor dado
censitário é de 8,4% (IBGE, 2021).
Objetivando fornecer contributos para o aumento destes números, Schur, Adya e Ameri
(2015) apresentaram importantes intervenções no sentido de se aumentar a participação política de
pessoas com deficiência nos pleitos eleitorais, com destaque para o preparo das urnas e dos espaços
de votação com base no conceito de desenho universal, a feitura de campanhas políticas acessíveis
em termos comunicativos, o fornecimento de ajudas quando necessárias para a consecução do voto
da pessoa com deficiência, a utilização de transportes accessíveis, entre outros.
Muitas destas proposições, inclusive, já são adotadas pelo Tribunal Superior Eleitoral do
Brasil (TSE) no intuito de tornar as eleições brasileiras mais acessíveis. Dentre estas podemos citar
o atendimento prioritário e a possibilidade conferida à pessoa com deficiência de alterar seu local de
votação para uma seção dotada de mecanismos que atendam suas necessidades, ademais, cabe frisar
que urnas brasileiras possuem mecanismos avançados de acessibilidade, contendo recursos em braile
que variam desde a identificação do teclado até utilização de artifícios sonoros com voz sintetizada
para deficientes visuais, entre outros.
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PICCOLO, Gustavo Martins
Pese as transformações cardeais promovidas pelos órgãos promotores das eleições
brasileiras, as quais se mostram essenciais sob qualquer prisma analítico, entendemos que as
mesmas versam mais sobre o direito ao voto do que a ser votado propriamente dito. Não por
acaso, ainda presenciamos números reduzidos tanto de candidaturas vinculadas às pessoas com
deficiência (1,63%) como da ocupação de postos eletivos por este coletivo populacional (0,49%).
Cabe assinalar que em nenhum outro coletivo - quando comparado a representação geral de um
grupo populacional - a marginalização na ocupação de assentos políticos (0,49%) se mostrou tão
prenunciada quanto àquela percebida na categoria de pessoas com deficiência, conforme dados do
TSE (2022).
Exemplar, neste sentido, se mostra a análise do processo de composição dos 513
Deputados Federais que constituem à Câmara Federal, responsável pela fiscalização e confecção
das políticas públicas nacionais. Com base nos resultados das eleições de 2022, temos que somente
duas (02) pessoas com deficiência atuarão na principal arena legislativa do país. Para este mesmo
espaço, nos restringindo a apenas grupos historicamente marginalizados, foram eleitas 135 pessoas
negras (27 pretos e 108 pardos), 91 mulheres, 03 pessoas amarelas, 05 pessoas de povos indígenas
e 02 mulheres trans (TSE, 2022). O conjunto destes elementos exaspera empiricamente a sub-
representação na ocupação de postos eletivos pelas pessoas com deficiência no cenário brasileiro,
sinalizando a urgência em aumentarmos a representatividade deste coletivo por três motivos.
O primeiro destes trata-se de justiça axiomática e reside no fato de não ser correto que
as pessoas com deficiência representem 8,4% da população nacional acima de dois anos e nas
estatísticas eleitorais materializarem somente 0,49% do total de eleitos. O segundo motivo está
relacionado ao que nominamos como justiça de alteridade e ocorre quando da produção de novas
relações sociais a partir do contraste com o outro. Seguramente, a eleição de pessoas com deficiência
alterará os espaços físicos e atitudinais dos Congressos e Assembleias nacionais. Já o terceiro motivo
está ligado ao que entendemos como justiça de interesse e diz respeito a atenção genuína e especial
das pessoas com deficiência em transformar a sociedade e ampliar o campo dos direitos destinados
aos deficientes. Tais empenhos devem ser levados em conta, pois se mostram legítimos, quer
estejamos falando de mudança nas estruturas produtivas e barreiras físicas ou nas esferas ligadas ao
reconhecimento e respeito.
Ao defendermos a valorização da presença e a necessidade de se ampliar o número de
pessoas com deficiência eleitas não estamos romantizando a situação, tampouco supondo que todos
atuarão de maneira comprometida às bandeiras dos principais movimentos ativistas, pois se assim
o fosse comungaríamos de um essencialismo que não se sustenta na prática. Entretanto, para nos
valermos de um raciocínio de Young (2006) acerca da necessidade da presença de mais mulheres
na política, destacamos que o acesso das pessoas com deficiência ao palco das deliberações públicas
se mostra necessário não porque as estas compartilhem de interesses e opiniões análogos, mas
fundamentalmente pelo fato de partirem da mesma perspectiva social, vinculada a certos padrões
de experiência de vida.
Ainda que não represente qualquer garantia absoluta, a eleição de pessoas com deficiência
tende a gerar políticas públicas favoráveis e comprometidas com a questão da deficiência2, pois
Para aqueles que vociferam que a criação de instrumentos legais não necessariamente acarretará transformações na prática cabe
ressaltar, nos valendo dos estudos de Quinn et. al (2002), que a experiência mostra que mudanças positivas na área dos direitos
das pessoas com deficiência ocorrem muito mais rapidamente quando há legislação e políticas domésticas eficazes para promover
esses direitos. Não por acaso, a implementação de legislação anticapacitista historicamente se configurou como das principais
lutas promovidas pelo movimento ativista de pessoas com deficiência. Mesmo porque, tal como sentenciara Matin Luther King, a
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Revista Diálogos e Perspectivas em Educação Especial, v. 10, n. 2, p. 11-24, Jul.-Dez, 2023 21
como pontua Phillips (2001, p.3), ao se apropriar de um axioma de John Burnheim, os interesses
são mais bem protegidos quando “(...) representados por quem compartilha nossa experiência e
interesses, e que esta similaridade de condições é um indicador muito mais confiável do que a
eventual comunhão de opiniões que são, na verdade, vacilantes”.
considerações finais
É ilusório e fantasioso falar em inclusão social sem igual participação na vida política,
portanto, as posições que defendem que os interesses das pessoas com deficiência se encontrariam
representadas nas demandas de outros parlamentares ou pela vontade coletiva dos eleitos
testemunham uma atitude paternalista acomodada aos interesses da estrutura capacitista que cerca
nossa cultura e define a vida da pessoa com deficiência como essencialmente dependente. O sentido
de paternalismo aqui adotado baseia-se na descrição de Hahn (1986), para quem:
[o] paternalismo permite que os elementos dominantes de uma sociedade expressem profunda e
sincera simpatia pelos membros de um grupo minoritário, mantendo-os, ao mesmo tempo, em
uma posição de subordinação social e econômica (acrescentaríamos política). Permitiu que os
não-deficientes agissem como protetores, guias, líderes, modelos e intermediários para indivíduos
com deficiência que, como crianças, muitas vezes são considerados menos dependentes,
assexuados, economicamente improdutivos, fisicamente limitados, emocionalmente imaturos e
somente aceitáveis quando discretos (HAHN, 1986, p.130).
Uma sociedade que atravanca as potencialidades de desenvolvimento das pessoas com
deficiência e restringe o acesso destes sujeitos à determinados espaços públicos pela criação de
barreiras e obstáculos gestados pelo capacitismo não pode ser justa, tampouco se autorreferenciar
como respeitadora dos direitos humanos, uma vez que estes pressuponham como corolário orgânico
de sua empiria a vida em igual dignidade. Partindo deste suposto ontológico e tomando como norte
a lapidar frase de Judy Heumann (apud Shapiro, 1993), qual seja: a deficiência só se torna uma
tragédia quando a sociedade falha em fornecer as coisas de que precisamos para levar nossas vidas
- oportunidades de emprego ou edifícios sem barreiras, educação e saúde acessível, etc. - teremos a
certeza que a sociedade atual continua a conspirar para manter o entendimento da deficiência como
vinculado a uma perspectiva trágica que toma a pessoa com deficiência sob a ótica do paciente,
despersonalizando-a como sujeito de direitos.
Os dados aqui retratados quanto a ocupação de postos eletivos por pessoas com
deficiência, ou melhor, de sua quase absoluta ausência nestes espaços, representam, nestes termos,
a violação de um direito: o direito à participação na vida política e pública, cuja garantia compõem
um dos artigos centrais da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência
- CDPD3, o vigésimo nono, o qual assevera que os países signatários “garantirão às pessoas com
deficiência direitos políticos e oportunidade de exercê-los (grifos nossos) em condições de igualdade
com as demais pessoas” (BRASIL, 2009, s/p). Para tanto, deve-se:
a) Assegurar que as pessoas com deficiência possam participar efetiva e plenamente na vida
política e pública, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, diretamente ou por
meio de representantes livremente escolhidos, incluindo o direito e a oportunidade de votarem
moralidade não pode ser legislada, mas o comportamento pode ser regulado. Decretos judiciais podem não mudar o coração, mas
podem restringir aqueles que não o possuem.
Tratado ao qual o Brasil é signatário e cuja pactuação foi promulgada mediante Decreto n.6949, de 25 de agosto de 2009
(BRASIL, 2009).
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e serem votadas [...] b) Promover ativamente um ambiente em que as pessoas com deficiência
possam participar efetiva e plenamente na condução das questões públicas, sem discriminação
e em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, e encorajar sua participação nas
questões públicas (BRASIL, 2009, s/p).
Isto posto, nosso clamor neste espaço textual é para que o documento legal seja cumprido,
um preceito constitucional pelo fato de a CDPD se tratar de tratado de direitos humanos (o
primeiro do século XXI) referendado em cada casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por
três quintos dos votos dos respectivos membros conforme disposto na Emenda Constitucional n.45
de 2004 (BRASIL, 2004). Com a ausência das pessoas com deficiência das arenas políticas o Brasil
descumpre, diretamente, sua própria Carta Magna, tramando contra os ideais nela estabelecidos.
Ademais, cabe frisar que a ausência de pessoas com deficiência das arenas de poder
exerce impacto negativo quanto a confecção de dispositivos legais mais acessíveis/inclusivos,
desempenhando papel danoso também em termos simbólicos e de representação política para este
coletivo, na medida em que a presença destas corporalidades nos espaços de poder nos permitiria,
além de desafiar a opressão internalizada4 vivenciada por tais sujeitos e as concepções de deficiência
que vinculam dita experiência a uma soma de fatos médicos, reformular nossas próprias suposições
sobre o que significa ser um ser humano.
Evidente que o ser humano se configura de maneira dialética e complexa, neste sentido, o
conjunto de marginalizações experimentadas pelas pessoas com deficiência podem transcender posições
capacitistas e contestar o atual estado de coisas, afinal, como pontua Hooks (1990), as margens podem
ser, mais que um local de privação, também o local de possibilidades radicais, um espaço de resistência.
Entretanto, sempre há necessidade de provocação social para que esta situação apareça, mesmo porque,
as injúrias vivenciadas não são elementos fugazes que passam despercebidas pelas pessoas, muito pelo
contrário, pois as palavras que ferem nosso ser adentram em nossos membros, dobram nossa espinha
e emolduram nossos gestos, margeando os espectros do real.
A presença de pessoas com deficiência nas arenas políticas certamente auxiliará no
combate a esta impostura capacitista que deseja confinar a vida deste coletivo a um dique que limita
e empobrece as potencialidades de seu desenvolvimento. Este ato é mais que a ocupação de um
campo. É preenchimento do ser.
Uma presença que contribui para a superação da ideia da deficiência como tragédia e que
pode promover um deslocamento do olhar da análise de uma suposta incapacidade para a crítica
dos regimes de produção, operação e manutenção de estruturas capacitistas, as quais cerceiam
os direitos das pessoas com deficiência em sociedade, premissa essa que consistia, inclusive, na
nuclear preocupação da epistemologia de Campbell (2009), e cuja consecução geraria novos
saberes, conceitos e dizeres sobe este fenômeno. Para além disso, entendemos que a presença
de pessoas com deficiência em altos postos das arenas públicas, pode funcionar como estopim
para que alteremos nosso quadro de referência e encaremos dita experiência por outros ângulos
Por opressão internalizada entendemos a manifestação de uma reação involuntária na qual grupos oprimidos se culpam e
responsabilizam-se pelas marginalizações experimentadas socialmente como se estas fossem um dado natural e não construídas
por sistemas políticos, culturais e econômicos injustos/opressivos. No entender de Marks (1999, p.25) “uma vez internalizada
a opressão, pouca força é necessária para nos manter submissos. Guardamos dentro de nós a dor e as memórias, os medos e as
confusões, as autoimagens negativas e as baixas expectativas, transformando-as em armas para nos ferirmos novamente, todos os
dias das nossas vidas” Para Fanon (2008), quando isso ocorre, os valores arbitrários e hegemônicos passam a ser entendidos como
universais e não uma posição arbitrária. Em suas palavras, isto ocorre quando os oprimidos admitem em voz alta e inteligivelmente
a supremacia dos valores que os marginalizam.
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e perspectivas, engenhando a construção de um novo sentido de mundo. É isto que aspiramos
quando nos referimos a necessidade de criação de uma cultura inclusiva.
Tal constructo nos rememora a Freire (1974), para quem somente o oprimido pode
libertar o opressor. Não por acaso, a construção de uma nova narrativa na história pressupõe o lugar
de fala de coletivos marginalizados ou silenciados pelas estruturas hegemônicas, na medida em que
o processo de luta por reconhecimento demande tanto denúncia do presente como o anúncio do
devir, afinal, nada sobre nós sem nós.
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115, 125, 126, 127, 128, 129, 134 e 168 da Constituição Federal, e acrescenta os arts. 103-A, 103B,
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