Eu também sou poesia Artigos
Revista Diálogos e Perspectivas em Educação Especial, v. 9, n. 2, p. 99-112, Jul.-Dez., 2022 99
https://doi.org/10.36311/2358-8845.2022.v9n2.p99-112
is is an open-access article distributed under the terms of the Creative Commons Attribution License.
Eu também sou poEsia: práticas dE lEtramEntos litErários para
EstudantEs com dEficiência visual
I am also poetry: lIterary practIces for vIsually ImpaIred students
Marcia de Oliveira GOMES
1
RESUMO: o presente artigo visa a compartilhar práticas de letramentos literários desenvolvidas com estudantes com deciência
visual no Instituto Benjamin Constant, assim como a análise dos poemas produzidos em decorrência das atividades propostas. A
perspectiva do ensino de literatura se fundamenta em autores, como Candido (2004), para o qual a literatura exerce importante
papel no processo de humanização e formação de uma consciência sociopolítica, e Cosson (2018), que reete sobre a escola en-
quanto espaço para a apropriação sistematizada da linguagem literária. Este estudo tem como metodologia a pesquisa-ação, que diz
respeito à resolução de um problema coletivo de forma colaborativa entre pesquisadores e sujeitos participantes (THIOLLENT,
1986) e a Análise Dialógica do Discurso como embasamento para a observação do corpus, constituído a partir da seleção de escritos
da turma. Desse modo, procuro por meio desta discussão e das experiências relatadas apontar caminhos para um trabalho signi-
cativo a partir das vivências dos aprendizes tanto na leitura quanto na escritura, enquanto construção e expressão de pensamentos
e emoções, assim como na descoberta de si e do mundo por meio da relação com a literatura, contribuindo para a formação leitora
e cidadã de pessoas com deciência visual.
PALAVRASCHAVE: Letramentos literários. Deciência visual. Literatura. Ensino médio.
ABSTRACT: this article aims to share literary literacy practices developed with visually impaired students at the Benjamin Con-
stant Institute, as well as the analysis of the poems produced as a result of the proposed activities. e perspective of teaching liter-
ature is based on authors such as Candido (2004), for whom literature plays an important role in the process of humanization and
formation of a sociopolitical conscience, and Cosson (2018), who reects on the school as a space for systematized appropriation
of literary language. is study uses action-research as a methodology, which concerns the resolution of a collective problem in
a collaborative way between researchers and participating subjects (THIOLLENT, 1986) and Dialogical Discourse Analysis as a
basis for the observation of the corpus, constituted from the selection of class writings. us, through this discussion and reported
experiences, I seek to point out ways for meaningful work based on the experiences of learners both in reading and writing, while
building and expressing thoughts and emotions, as well as in discovering themselves and the world through through the relation-
ship with literature, contributing to the formation of readers and citizens of visually impaired people.
KEYWORDS: Literary literacies. Visual impairment. Literature. High school.
Doutora em Letras pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professora do Instituto Benjamin Constant (IBC).
E-mail: marciagomes@ibc.gov.br. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-3243-2206
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GOMES, M. O.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS: PALAVRA MORDIDA
Quando eu morder
a palavra,
por favor,
não me apressem,
quero mascar,
rasgar entre os dentes,
a pele, os ossos, o tutano
do verbo,
para assim versejar
o âmago das coisas.
(Conceição Evaristo)
Inicio este texto com os versos de Conceição Evaristo, porque eles carregam consigo
um dos principais temperos do cozer-sorver literatura: o de se redescobrir na palavra. É preciso
sensibilidade para abocanhar uma palavra e saboreá-la com o corpo inteiro, desvelando sem pressa
sua essência, (re)criando memórias, signicados, impressões, enquanto se abrem caminhos para o
conhecimento e a percepção sensível de uma innidade de mundos.
Apreciar essa experiência, vivenciá-la de forma consciente e apropriar-se dela exigem
aprendizado. E desse processo de aprendizado, que gesta o pensamento crítico perante os textos-
vida, é que se formam o gosto pela leitura literária e o próprio leitor. Para Candido (2004, p. 174),
a literatura se constitui de “todas as criações de toque poético, ccional ou dramático em todos os
níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura”. Assim, a canção que nina o bebê, o conto de
fadas que inspira o casamento dos sonhos, a poesia que desperta, indigna, acalanta, o romance que
faz sentir, que faz pensar, a novela de televisão, o causo, a conversa, enm, tudo o que nos cerca, não
só o que lemos/ vemos/ escutamos, mas o que pensamos, o que sonhamos é atravessado por todo
um universo de cção e poesia, o que me leva a armar que a literatura é parte integrante de quem
somos. Ademais, “a literatura é pensamento e conhecimento do mundo psíquico e social em que
vivemos. A realidade que a literatura aspira compreender é, simplesmente (mas, ao mesmo tempo,
nada é assim tão complexo), a experiência humana” (TODOROV, 2009, p.77).
Trabalhar, portanto, com literatura na escola é proporcionar experiências com os mundos
materializados em textos, lendo-os sob diversos prismas, compreendendo-os (e se compreendendo),
(re)criando-os (e se recriando) à medida que se toma consciência crítica de si e do outro. Nesse sentido,
a formação de leitores se congura um desao, que vai da aprendizagem sistematizada das competências
e habilidades de leitura e escrita ao fortalecimento da educação literária, a m de se propiciar uma
experiência plena de leitura e um maior domínio sobre a linguagem e seus recursos expressivos.
No que tange a estudantes com deciência visual, esse desao se intensica, pois se faz
necessário oportunizar o acesso e a acessibilidade ao mundo letrado em toda a sua dimensão artística,
verbal e visual, além de pensar atividades signicativas de experimentação, fruição e posicionamento
crítico em relação ao texto. Incluir é, portanto, mais que uma palavra, trata-se de um ato contínuo
que deve conduzir todo o processo pedagógico: do planejamento à atuação em sala de aula.
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O presente artigo se propõe a compartilhar práticas desenvolvidas em aulas de Literatura
para discentes do 1º ano do ensino técnico em Instrumento Musical do Instituto Benjamin Constant,
especializado em deciência visual. Tal compartilhamento se dá com o intuito de contribuir com
professores-pesquisadores quanto a métodos e recursos para letramentos literários utilizados com
esse público como ponto de partida, mas aplicáveis a outros contextos, com as devidas adaptações
exigidas pelas subjetividades dos sujeitos envolvidos e os cotidianos distintos. Outrossim, também
se intenta, por meio da análise do corpus, constituído por poemas produzidos pelos estudantes em
resposta às práticas de sala de aula, reetir sobre como eles se constituem discursivamente enquanto
sujeitos, expressando-se por meio da literatura em diálogo consigo e com o mundo.
1. POR ORA, SEM PRESSA: ALGUMAS PALAVRAS SOBRE DEFICIÊNCIA
VISUAL
O escritor britânico H. G. Wells (2008), em seu conto Em terra de cego, narra a história
de um vale isolado, nos Andes Equatoriais, no qual todos os habitantes são cegos. Certo dia, um
montanhês sofre um acidente e cai em um precipício que o leva ao povoado. Ao perceber que
a população é cega, ele imagina que, por enxergar, será tratado como rei, mas aquelas pessoas
desconheciam não só o sentido da visão, mas toda a carga cultural por ele criado e tinham
reinventado sua própria história, crenças e costumes, solidicados ao longo de quinze gerações
de pessoas cegas. Desse modo, o montanhês é tratado como louco, por armar possuir a insólita
capacidade de enxergar, e inepto, por se mostrar incapaz de se locomover na escuridão, uma vez que,
ali, trocava-se o dia pela noite.
O estranhamento produzido por essa narrativa decorre da inversão da lógica vigente,
apresentando uma sociedade alicerçada na ausência da visão e suas implicações. Tal conjuntura
nos leva a reetir sobre como os processos culturais são construídos, ao longo do tempo e das
civilizações, em torno de uma compreensão visual do mundo, que exclui e desqualica quem não
enxerga. Para Vigotski (2022, p. 117): “A cegueira é um estado normal e não patológico para a
criança cega, e é sentida por ela apenas indiretamente, secundariamente, como resultado de sua
experiência social reetida sobre si mesma”. Podemos estender essa reexão à criança com baixa
visão que só consegue perceber o quanto enxerga e como enxerga na medida em que tem contato
com o meio e com os obstáculos físicos, atitudinais e comunicacionais com os quais se depara.
As barreiras que se estabelecem sócio-histórico-culturalmente podem impedir ou
dicultar na criança cega ou com baixa visão o desenvolvimento pleno e a participação no meio em
que se inserem, desse modo, deve ser também social a compensação à deciência. Nuemberg (2008)
em leitura crítica aos estudos do autor arma que:
A compensação social a que se refere Vigotski consiste, sobretudo, numa reação do sujeito diante
da deciência, no sentido de superar as limitações com base em instrumentos articiais, como
a mediação simbólica. Por isso, sua concepção instiga a educação a criar oportunidades para
que a compensação social efetivamente se realize de modo planejado e objetivo, promovendo o
processo de apropriação cultural por parte do educando com deciência (NUEMBERG, 2008,
p. 309).
No âmbito educacional, é preciso considerar estratégias e recursos pedagógicos para
auxiliar estudantes com deciência visual, sempre pensados a partir de cada sujeito, que é único e
que precisa ter suas subjetividades conhecidas, compreendidas e respeitadas. Por exemplo, é inegável
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GOMES, M. O.
a contribuição comunicacional do Sistema Braille para pessoas cegas, enquanto tecnologia, que
propicia autonomia no processo de escrita e de leitura; nesta última, possibilitando, ainda, que
se trilhem os próprios caminhos pela compreensão e fruição do texto, cada qual a seu ritmo e
voz. Tal aprendizado não se encontra em oposição aos usos das Novas Tecnologias de Informação
e Comunicação (NTICs), indispensáveis hodiernamente, para a inclusão digital; um não exclui,
nem desvaloriza o outro. Cabe ressaltar, porém, que, em alguns casos, quando comprometimentos
motores, intelectuais ou ainda a perda recente de visão dicultem ou impeçam o acesso ao Sistema
Braille, é necessário recorrer a computadores ou dispositivos móveis como únicas ferramentas de
escrita e leitura/ escuta de forma temporária ou mesmo permanente no trabalho em sala de aula.
No tocante a pessoas com baixa visão, além dos aparelhos eletrônicos já citados, podem
ser empregados recursos ópticos, que dizem respeito a mecanismos com lentes de uso especial
para proporcionar um melhor desempenho visual, e não ópticos, que se referem tanto a materiais
impressos com fonte ampliada e contraste, quanto a acessórios, como lápis 4B ou 6B, canetas
de ponta porosa, suporte para livros, cadernos com pautas pretas espaçadas, tiposcópios (guia de
leitura) e mesmo chapéus e bonés para diminuir o reexo da luz em sala de aula. Também estão
incluídas alterações no ambiente, na iluminação e no mobiliário para facilitar o processo de leitura
(SÁ; CAMPOS; SILVA, 2007).
Ademais, deve-se considerar que ler envolve para além de meramente decodicar a
combinação de símbolos do alfabeto, sendo necessário construir signicados a partir do conhecimento
linguístico e extralinguístico, de modo que as atividades de leitura e escrita se articulem com o
efetivo letramento, entendido como “o conjunto de práticas sociais nas quais a escrita tem um papel
relevante no processo de interpretação e compreensão dos textos orais ou escritos circulantes na vida
social” (KLEIMAN, 2002, p. 377).
Assim, essas práticas precisam ser tanto acessíveis quanto signicativas, oportunizando-
se que se vivenciem os textos e seus sentidos e fugindo-se ao ensino pautado em uma abordagem
historiográca e tecnicista, pois, conforme adverte Todorov (2009, p. 33), um ensino assim disposto
dicilmente poderá ter como consequência o amor pela literatura”, levando ao fracasso da formação
do leitor literário.
2 RASGAR, MASCAR, DEGUSTAR O VERBO: LETRAMENTOS LITERÁRIOS
Enquanto manifestação cultural, a literatura desempenha dois valorosos papeis no
desenvolvimento humano. O primeiro diz respeito à ampliação e apuramento de nosso conhecimento
e percepção acerca de nós mesmos e do mundo, por meio da palavra em suas dimensões artísticas,
desenvolvendo nossa “quota de humanidade na medida em que nos torna mais compreensivos e
abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante.” (CANDIDO, 2004, p.180).
Já o segundo refere-se à consciência das condições e incondições do mundo em que
nos inserimos, convidando-nos a um engajamento social face às iniquidades que o permeiam.
Assim, “a preocupação com o que hoje chamamos direitos humanos pode dar à literatura uma força
insuspeitada. E reciprocamente, que a literatura pode incutir em cada um de nós o sentimento de
urgência de tais problemas” (CANDIDO, p.184).
Tal perspectiva é corroborada por Cosson (2018) ao tratar da formação leitora:
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Ser leitor de literatura na escola é mais do que fruir um livro de cção ou se deliciar com
as palavras exatas da poesia. É também posicionar-se diante da obra literária, identicando e
questionando protocolos de leitura, armando ou reticando valores culturais, elaborando e
expandindo sentidos. Esse aprendizado crítico da leitura literária, que não se faz sem o encontro
pessoal com o texto enquanto princípio de toda experiência estética, é o que temos denominado
aqui de letramento literário (COSSON, 2018, p. 120).
É desse rasgar, mascar o verbo, explorando suas potencialidades, degustando sua
expressividade em um processo de apropriação da linguagem literária que se constituem os
letramentos literários. Opto por, neste artigo, empregar esse conceito no plural, em consonância
com Neves e Bunzen Júnior (2021) que ampliam o conceito para incorporar a diversidade de
eventos e práticas literárias dentro e fora do ambiente escolar, e com Soares (2005, p. 30), para
quem a leitura “é um processo complexo e multifacetado, que exige diferentes protocolos de leitura,
depende da natureza, do tipo, do gênero daquilo que se lê, e depende do objetivo que se tem ao
ler”. Em relação ao texto literário não é diferente, os modos de ler dependem também do estilo
do autor, da estética, do distanciamento entre o contexto de produção da obra e as condições de
circulação e recepção do texto. Não se lê um conto do século XIX, em uma antologia, da mesma
maneira que se lê um poema contemporâneo nas redes sociais, por exemplo.
A importância dos letramentos literários é corroborada por diretrizes norteadoras da
prática docente. Em 2006, os Parâmetros Curriculares para o ensino médio já indicavam: “faz-se
necessário e urgente o letramento literário: empreender esforços no sentido de dotar o educando da
capacidade de se apropriar da literatura, tendo dela a experiência literária” (BRASIL, 2006, p. 55)
E mais recentemente a Base Nacional Curricular Comum (BRASIL, 2018) reete sobre
a formação de leitores/as fruidores/as e críticos/as com fundamento nesses pressupostos:
Para que a função utilitária da literatura – e da arte em geral – possa dar lugar à sua dimensão
humanizadora, transformadora e mobilizadora, é preciso supor – e, portanto, garantir a
formação de – um leitor-fruidor, ou seja, de um sujeito que seja capaz de se implicar na leitura
dos textos, de “desvendar” suas múltiplas camadas de sentido, de responder às suas demandas e
de rmar pactos de leitura (BRASIL, 2018, p. 138).
Mas se ao ingressar na escola, o contato com o universo poético e ccional ocorre de
forma lúdica para se fazer conhecer e encantar, conforme as crianças vão avançando nos anos
escolares, muitas vezes, o exercício de leitura literária ora se transgura em pretexto para os estudos
gramaticais; ora deixa de ter um objetivo para além do preenchimento de chas de vericação de
leitura e o livro passa de fruição à mera obrigação. No ensino médio, quando uma disciplina inteira
é (ou deveria ser) dedicada à leitura literária, muitos docentes acabam se pautando tão-somente em
um estudo historiográco, deixando de lado a apreciação da obra em todas as suas dimensões. Para
Cosson (2018):
é fundamental que se coloque como centro das práticas literárias na escola a leitura efetiva
dos textos, e não as informações das disciplinas que ajudam a constituir essas leituras, tais
como a crítica, a teoria ou a história literária. Essa leitura também não pode ser feita de forma
assistemática e em nome de um prazer absoluto de ler. Ao contrário, é fundamental que seja
organizada segundo os objetivos da formação do aluno, compreendendo que a literatura tem
um papel a cumprir no âmbito escolar (COSSON, 2018, p.23).
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Assim, para se trabalhar literatura na escola, cabe amalgamar prazer e conhecimento, que
se completam e se alicerçam. É preciso sensibilizar estudantes para a linguagem literária, construir
com eles/elas conhecimentos acerca do contexto sócio-histórico e cultural das obras, de modo que
sejam capazes de rasgar, mascar, degustar o verbo e ressignicá-lo a partir da experienciação da arte.
3 PARA ASSIM VERSEJAR: PRÁTICAS EM SALA DE AULA
3.1 método: caminhos pErcorridos
O desenvolvimento de uma pesquisa pressupõe a delimitação da conjuntura e das escolhas
pertinentes à sua realização, no que diz respeito às bases metodológicas, objetivos, procedimentos
e instrumentos utilizados, a m de que se possa compreender o processo de investigação cientíca.
Explicitar a metodologia utilizada, portanto, permite que se compartilhem caminhos para que
outros pesquisadores possam reproduzi-los e aperfeiçoá-los a partir de sua própria perspectiva e
objeto de pesquisa.
No tocante à presente proposta, os pressupostos metodológicos têm como base a
pesquisa-ação:
um tipo de pesquisa social com base empírica que é concebida e realizada em estreita associação
com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo e no qual os pesquisadores e os
participantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos de modo cooperativo
ou participativo. (THIOLLENT, 1986, p. 14)
Tal escolha se fundamenta no fato de que o processo de construção de conhecimento
acerca de leitura literária para pessoas com deciência visual se deu, nesta pesquisa, a partir da
prática docente em sala de aula em caráter colaborativo pesquisadora/ estudantes, alicerçado na
participação ativa nas atividades pedagógicas. Desse modo, é possível investigar as possibilidades
e diculdades nesse processo de ensino-aprendizagem, propiciando-me, enquanto professora e
pesquisadora, reetir sobre minhas práticas e transformá-las e, a partir da difusão dos resultados da
pesquisa, estender tal oportunidade aos demais prossionais.
Os dados coletados, a partir das produções textuais realizadas em sala pelos estudantes,
foram investigados sob a luz da Análise Dialógica do Discurso, que se assenta na concepção
bakhtiniana de linguagem sob um viés sócio-histórico-cultural, constituída discursivamente sempre
em diálogo com outros enunciados, pois:
A orientação dialógica é naturalmente um fenômeno próprio a todo discurso. Trata-se da
orientação natural de qualquer discurso vivo. Em todos os seus caminhos até o objeto, em
todas as direções, o discurso se encontra com o discurso de outrem e não pode deixar de
participar, com ele, de uma interação viva e tensa. Apenas o Adão mítico que chegou com
a primeira palavra num mundo virgem, ainda não desacreditado, somente este Adão podia
realmente evitar por completo esta mútua orientação dialógica do discurso alheio para o objeto
(BAKHTIN, 1998b, p.88).
Assim, tudo o que existe no mundo está impregnado de concepções prévias, de discursos
outros e é com esses discursos que interagimos, respondendo, refutando, resgatando, corroborando,
de modo que toda palavra, ainda que original, vincula-se a outras tantas vozes que circulam
socialmente. Logo é possível por meio dessa perspectiva averiguar tanto a eciência dos letramentos
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literários, vericando-se o diálogo que os textos dos estudantes estabelecem com o gênero poema e
com o estilo de época estudado, quanto com os discursos que afetam e constituem cada sujeito, na
expressão de suas emoções e pensamentos.
3.2 Em vErsos mE (rE)faço
Em 2019, período pré-pandêmico, fui designada para lecionar a disciplina de Literatura
para uma turma de 1 ano do Ensino técnico em Instrumento Musical. As turmas especializadas
costumam ter um número reduzido de alunos em razão da maior atenção que solicitam. Isso, somado
ao fato de o curso ser recém-criado, resultara em uma turma com apenas cinco estudantes, todos
adultos, que denominarei por pseudônimos inspirados em compositores brasileiros para preservar-
lhes a identidade. Trata-se, pois, de Chiquinha Gonzaga, uma jovem cega, jogadora de goalball, que
possuía resíduo visual para locomoção; Heitor Villa-Lobos, jovem cego, com comprometimento
cognitivo, multi-instrumentista, ex-estudante do IBC e o único do grupo a dominar o Sistema
Braille; Pixinguinha, homem cego com cerca de 40 anos, que perdera a visão recentemente; Luiz
Gonzaga, um senhor de cerca de 70 anos, com baixa visão, e Noel Rosa, um rapaz de 18 anos, que
se encontrava em um rápido processo de perda da visão.
No decorrer do ano letivo, trabalhei os conteúdos da disciplina, que diziam respeito
aos gêneros literários e estilos de época da era medieval e clássica (Portugal) e colonial (Brasil),
explorando a estética dos textos, assim como as condições de produção, circulação e recepção,
sempre em uma perspectiva de letramentos, proporcionando a vivência do texto pela leitura,
apreciação, reexão e escrita, pois, conforme Cosson (2018):
A prática da literatura, seja pela leitura, seja pela escritura, consiste exatamente em uma
exploração das potencialidades da linguagem, da palavra e da escrita, que não tem paralelo em
outra atividade humana. Por essa exploração, o dizer do mundo (re)construído pela força da
palavra, que é a literatura, revela-se como uma prática fundamental para a constituição de um
sujeito da escrita (COSSON, 2018, p. 16).
Desse modo, em minhas aulas, estabeleci como objetivos apreciar e compreender o texto
literário em suas diferentes estéticas e dimensões; ressignicar o ensino dos estilos de época por meio
do diálogo entre leitura e produção literária, assim como explorar as diferentes linguagens como
parte do tecido literário.
No primeiro contato com a turma, constatei que dentre os estudantes cegos, apenas
Heitor Villa-Lobos dominava o Sistema Braille, os demais estavam iniciando o processo de
aprendizagem. Já em relação aos alunos com baixa visão, Luiz Gonzaga fazia uso do notebook em
sala e Noel Rosa utilizava como instrumentos de escrita caderno e caneta, mas não enxergava o que
escrevia e tão pouco conseguia ler a apostila com fonte ampliada. Ambos também se encontravam
nas aulas de Braille.
Assim, para que pudessem produzir os textos de forma autônoma, optei por transferir
as aulas para o laboratório de Informática, a m de, naquele momento, facilitar o acesso ao texto
tanto na escuta quanto na escrita, por meio do Dosvox, sistema computacional que utiliza síntese
de voz para que o/a usuário/a com deciência visual possa editar textos e navegar na internet. Para
as tarefas de casa, eu disponibilizava todos os materiais (apostilas e livros paradidáticos) em Braille e
em tinta no formato ampliado, conforme a demanda de cada um/a, e em arquivos no formato txt,
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GOMES, M. O.
para serem lidos pelo Dosvox no computador, em pdf para leitura pelo celular e em mp3, formato de
áudio que eu obtinha por meio do aplicativo Balabolka, que converte texto escrito em falado, tendo
como diferencial uma voz humana e, portanto, mais agradável que a sintética dos leitores de tela.
As aulas de Literatura, alicerçadas no texto enquanto arte, tiveram como estrutura-
base uma sequência didática exível que abrangia atividades para o aprendizado de estratégias
de leitura e de apropriação da linguagem literária. Para Solé (1998, p.70), estratégias de leitura
são “procedimentos de caráter elevado, que envolvem a presença de objetivos a serem realizados,
o planejamento das ações que desencadeiam para atingi-los, assim como sua avaliação e possível
mudança”. Seu conhecimento é necessário para que os/as estudantes encontrem em si motivação e
adquiram controle sobre a própria leitura. Nesse sentido, cada tópico trabalhado se dividia em três
momentos: pré-leitura, durante a leitura e pós-leitura.
O momento pré-leitura envolvia estímulos que pudessem constituir uma motivação
interna para a realização da atividade, como estabelecer objetivos claros para a leitura; apresentar
textos que ofereçam desaos e sejam adequados à faixa etária e ao nível de domínio linguístico
do/a estudante, estabelecendo relações com seu conhecimento prévio; incentivá-los a estabelecer
previsões sobre o texto a partir de elementos pré-textuais, como título e capa do livro (esta quando
se tratava da leitura de uma obra na íntegra) e introduzir informações a respeito do/a autor/a e da
obra estudados. Para tornar a capa ou outra imagem acessível para estudantes cegos, eu fazia uso da
técnica de audiodescrição, tradução intersemiótica da imagem para a palavra.
A leitura procedia de duas formas. Em classe, em voz alta, lida, inicialmente por mim,
e no decorrer do ano, compartilhada, conforme o avanço na aprendizagem do Sistema Braille, e
extraclasse, de forma prévia, principalmente no tocante a obras na íntegra. Esse momento, conforme
as estratégias propostas por Solé (1998), envolvia variações de “ler, resumir, perguntar, prever”;
perguntar, esclarecer, recapitular, prever”; considerando que “prever” se justica em um processo
de leitura continuada de obras longas. Nessas ações, incluíam-se a interpretação com a apreensão
global da obra e a contextualização. Cosson (2018) prevê sete possibilidades para a contextualização
no trabalho com a literatura:
teórica, que explora as ideias centrais e os conceitos que alicerçam a obra;
histórica, que busca estabelecer uma relação entre o texto literário e o meio social em
que ele se insere ou que pretende espelhar;
estilística, baseada nos estilos de época ou períodos literários, indo, porém, além
da mera identicação de características dos movimentos, analisando-se o diálogo
peculiar entre obra e período;
poética, atinente à tessitura verbal, à observação dos recursos linguístico-expressivos
empregados e seus efeitos;
crítica, referente à recepção do texto literário, a partir da revisão crítica do que já foi
publicado a respeito;
presenticadora, que procura estabelecer um paralelo da obra com o presente da
leitura, mostrando a atualidade do texto;
temática, dedicada ao desenvolvimento do assunto tratado na obra.
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Tais contextualizações não precisam se realizar todas simultaneamente, podendo ainda
condensar-se ou ampliar-se, conforme a proposta de trabalho.
O momento pós-leitura se dedicava a atividades orais ou escritas de compreensão,
contextualização e interpretação, assim como à produção de textos literários em diálogo com o
estilo estudado, no intuito de experienciarem a literatura de forma signicativa tanto nos processos
de leitura quanto de escrita, fazendo-se arte, fazendo-se poesia.
Para tal, articulados aos diferentes momentos dessa sequência, conforme meu objetivo,
eu realizava, ainda, exercícios de criação estética, como os que exemplico a seguir:
Exercício 1: Cada um no seu quadrado
Objetivo: introduzir a noção de linguagem literária e seus recursos estilísticos.
Procedimento: leitura, compreensão e interpretação de textos com temática semelhante,
porém, com gêneros textuais e linguagens diferentes, comparando-se os usos e seus efeitos.
Recursos: Material impresso em tinta ampliada e em Braille; arquivo em txt, contendo o
anúncio de venda de uma casa, o poema “Classicados poéticos”, de Roseana Murray, uma notícia
sobre violência psicológica contra mulheres e o conto “Para que ninguém a quisesse”, de Marina
Colasanti.
Exercício 2: Fora do lugar
Objetivo: compreender o uso de metáforas; construir as próprias metáforas; perceber
como se constitui a linguagem poética.
Procedimento: substituir os substantivos concretos por abstratos nas frases dadas e
comentar a mudança de sentido.
Exemplo: Guardei a carta na gaveta.
Guardei a saudade na gaveta.
Recursos: Arquivo em txt para uso no Dosvox.
Exercício 3: Faça-se poesia
Objetivo: possibilitar a experiência de criação literária de forma lúdica, colaborativa e
prazerosa.
Procedimento: Após a leitura em voz alta, procede-se, oralmente, com perguntas que
propiciem a compreensão e interpretação do poema “Socorro”, de Alice Ruiz. Em seguida, realiza-
se uma construção poética, oral, coletiva, na qual cada estudante inicia com um verso que deve ser
complementado pelo/a colega seguinte, tendo como mote aquilo que se deseja sentir.
Recursos: Texto impresso em fonte ampliada e em Braille.
Esses e outros exercícios, assim como a exploração dos recursos linguístico-expressivos
dos textos estudados no trabalho com os estilos de época, propiciaram, paulatinamente, não só a
familiaridade com a linguagem poética, como a percepção por parte dos aprendizes de que também
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GOMES, M. O.
eram capazes de se expressar por meio da arte literária. Desse processo, resultaram diversas produções
coletivas, dentre as quais destaco duas. A primeira, “Ferida não curada”, resultou da proposta para
a turma produzir um poema com inspiração no Classicismo em sua amplitude, mas sem qualquer
rigidez que atropelasse a criação.
O planejamento do poema foi realizado coletivamente e optou-se pela construção de
um soneto petrarquiano (dois quartetos e dois tercetos). Como eram cinco estudantes, dividiram
entre si as estrofes, combinaram a temática do poema e iam se comunicando em sala, conforme
escreviam, para estabelecer coesão e coerência entre as estrofes. A primeira foi escrita por Chiquinha
Gonzaga, a segunda por Pixinguinha, a terceira por Noel Rosa e a derradeira, em dupla, por Luiz
Gonzaga e Heitor Villa-Lobos.
Ferida não curada
O Amor é um sentimento lindo,
Quero esquecer que um dia amei.
Eu já não contenho as minhas lágrimas,
Como gostaria que me amasse!
E é nessa angústia que eu sinto...
Só me dá vontade de me matar,
porque não para de me perturbar,
mas não tenho coragem, vou sumir.
As angústias e aições me cercam,
Sem você não sou nada além de mim.
Eu sem ti não saberia viver.
Fico triste, com tal situação.
Eu morro de saudades de você.
Há chance para a gente se entender?
O poema trata do sofrimento que o eu lírico vivencia em consequência de um amor
não correspondido. São empregados muitos recursos estilísticos na constituição de uma linguagem
poética, sensível e multissignicativa. Para Proença (2007, p.31): “O texto literário veicula uma
forma especíca de comunicação que evidencia um uso especial do discurso, colocado a serviço da
criação artística reveladora”, sendo sua linguagem eminentemente conotativa.
Assim, o soneto elaborado se constitui de uma linguagem literária, a começar pelo título
“Ferida não curada”, que apresenta uma metáfora para a dor emocional que perdura. Destacam-
se, ainda, a construção paradoxal: “O Amor é um sentimento lindo,/ Quero esquecer que um
dia amei”, expressando uma contradição entre a exaltação do amor e o desejo de esquecê-lo; as
construções hiperbólicas: “E é nessa angústia que eu sinto.../ Só me dá vontade de me matar”/ “Eu
morro de saudades de você”, demonstrando a profundidade das dores sentidas; e a prosopopeia: “As
angústias e aições me cercam”, que dão vida ao sofrimento explicitado. O verso “Sem você não sou
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nada além de mim” agrega uma expressividade singular, enfatizando a pequenez do eu lírico sem a
pessoa amada.
Para além da linguagem gurada, é possível perceber no poema alguns dos valores clássicos
estudados, como o uso do soneto, enquanto forma xa (dois quartetos e dois tercetos), assim como
o amor platônico, que remete à ideia de um amor sublime, idealizado, percebido em “O Amor é
um sentimento lindo” e inalcançável: “Como gostaria que me amasse!”. É interessante vericar que
a chave de ouro do soneto “Há chance para a gente se entender?” rompe com o amor platônico, ao
sinalizar uma esperança por parte do eu lírico para a concretização da relação. Enquanto mediadora
da produção, levei a turma a reetir a respeito dessa ruptura, mas deixei-a livre para decidir. Assim,
embora reconhecessem a desconstrução desse valor clássico, optaram por manter o verso original
em respeito ao que havia sido proposto pelos responsáveis pela estrofe e pela narrativa que então se
desenhara com essa conclusão.
Outro aspecto que saliento na produção é a graa da palavra “Amor” com inicial maiúscula
que busca dialogar com a mitologia romana, na qual o lho dos deuses Marte e Vênus, é nomeado
como Cupido ou Amor. Cabe ressaltar que, embora a perfeição estética seja um importante valor
clássico, valendo-se de rimas e rigor métrico e a despeito de o grupo ter estudado e compreendido
as noções de versicação, optou-se por manter os versos brancos (sem rima) e livres, para que não
se sacricasse o conteúdo em razão da forma, uma vez que essa transformação acarretaria em muitas
mudanças no poema.
Os estudantes caram tão animados com a produção que levaram a letra para a aula de
Arranjo. Com o auxílio do professor, compuseram uma melodia para o poema e a apresentaram,
orgulhosos, em um show de talentos, o que demonstra que a experiência foi de fato signicativa
para se reconhecerem capazes de produzir Arte.
O segundo poema que evidencio entre as produções é “Faço aqui um poema sobre as
minhas dores”, de inspiração barroca, composto como conclusão da apreciação crítica dos textos
desse estilo de época.
Faço aqui um poema sobre as minhas dores
Faço aqui um poema sobre as minhas dores,
Pensando no tempo que já vivi,
Tive a ilusão que jamais sofri,
Tentando analisar,
Percebi que é muito cruel sonhar.
Se o amanhã chegar,
Terei condição de caminhar?
Além das circunstâncias, além do mar,
Guardo este pensamento
Do meu falar.
Eu penso que a noite não tem ilusão,
Eu penso que os meus dedos
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GOMES, M. O.
Não tocam os versos da loucura.
Mas o amanhã não consegue tocar
As pontas dos meus dedos,
E os meus olhos não conseguem enxergar
A luz da manhã e nem a luz do amor.
Mas a minha cabeça consegue tocar
As pontas dos meus sonhos.
O poema imerge no conito existencial próprio do estilo barroco, expressando sofrimento
e incerteza diante de si e da vida. Essa produção, ao contrário da anterior, partiu de uma proposta de
escrita individual de um poema curto, que expressasse suas aições, questionamentos, contradições,
tendo o estilo de época aprendido não como corrente, mas como horizonte para o qual cada um
faria seu próprio caminho. Nesse dia, estavam presentes apenas Luiz Gonzaga, Noel Rosa e Heitor
Villa-lobos, cujos poemas unimos em um único texto, ao nal da aula, pelo diálogo que estabelecem
entre si.
A primeira estrofe foi escrita por Luiz Gonzaga. O estudante, um senhor com então
74 anos, sempre alegre em sala de aula, buscou fazer um resgate das ânsias e pesares que precisava
expressar para a atividade e o eu lírico testemunha esse deslocamento para dentro de si, referendando
o longo tempo vivido, a redescoberta de suas dores e um sentimento de desilusão sobre aquilo que
foi sonhado e talvez não realizado.
A segunda estrofe foi produzida por Noel Rosa, jovem que estava perdendo
progressivamente a visão. Assim, a incerteza é marcada textualmente tanto pelo uso da conjunção
condicional “se” quanto pela interrogação. Diante do contexto, o amanhã pode ser interpretado
como uma metáfora para a cegueira iminente, que o faz questionar a possibilidade de caminhar
tanto no sentido concreto, uma vez que teria que reaprender a caminhar, orientando-se com a
bengala, quanto metafórico, representando a condição de prosseguir, de superar as circunstâncias e
alcançar seu objetivo: caminhar “além das circunstâncias, além do mar”.
A simbologia do mar, empregada pelo eu lírico, evoca muitas representações, como
horizonte, mistério, busca, transformação. Para Chevalier e Gheerbrant (2015):
o mar simboliza um estado transitório entre as possibilidades ainda informes as realidade
conguradas, uma situação de ambivalência, que é a de incerteza, de dúvida, de indecisão, e
que pode se concluir bem ou mal. Vem daí que o mar é ao mesmo tempo a imagem da vida e a
imagem da morte (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2015, p.592).
Nesse sentido, caminhar além do mar remete a essa transição do ver para o não ver e as
incertezas que advêm com ela. Os últimos versos dessa estrofe “Guardo este pensamento/ do meu
falar” demonstram a reserva em falar sobre o assunto, pois dizer é concretizar, tornar real. Mas se o
sujeito real se cala, o eu lírico se permite expressar as emoções pela arte em um movimento catártico.
Já a terceira estrofe, escrita por Heitor Villa-lobos, inicia contradizendo a relação da
noite com a ilusão. A origem dessa contradição não se encontra, entretanto, nas estrofes anteriores,
mas nos discursos que circulam culturalmente, atribuindo à noite traços dos sonhos e dos engodos
que as sombras e o breu podem causar. Segundo Bakhtin (2003a), todo enunciado dialoga com
outros antecedentes, seja pela interação entre sujeitos, seja na relação entre os discursos da tessitura
sociocultural, pois “cada enunciado é um elo da cadeia muito complexa de outros enunciados
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(BAKHTIN, p. 291). Nesse mesmo sentido, percebo na segunda negação “Eu penso que os
meus dedos/ Não tocam os versos da loucura” uma refutação ao estigma que carregava por seu
comprometimento cognitivo.
Ademais, a anáfora, gura que se caracteriza pela repetição expressiva de uma mesma
palavra ou expressão no princípio de versos, reforça as subjetividades e o posicionamento do eu
lírico, ao reiterar a construção “eu penso”. As guras de linguagem estão muito presentes em todo
o poema, o que é próprio do cultismo (jogo de palavras). Assim, para além da anáfora, destaca-se
a linguagem metafórica no fragmento, “Eu penso que os meus dedos/ Não tocam os versos da
loucura./ Mas o amanhã não consegue tocar/ As pontas dos meus dedos./ E os meus olhos não
conseguem enxergar/ A luz da manhã e nem a luz do amor”. Existe, nesses versos, um campo
semântico de cegueira: olhos, não enxergar, luz, que expressam traços característicos do eu lírico e de
seu mundo. Ainda nesse fragmento, percebemos uma referência à música: versos, dedos que (não)
tocam, uma vez que o locutor é multi-instrumentista. Uma última propriedade barroca que vale
salientar é o conceptismo (jogo de ideias), constituído pela seguinte estrutura: Os dedos não tocam
os versos da loucura (negação do estigma). O amanhã não toca as pontas dos dedos (negação de um
futuro). A cabeça toca as pontas dos sonhos (a salvação pelo sonho), expressando uma construção
lógica bastante sensível e engenhosa.
Cabe salientar, por m, que os poemas elaborados demonstram uma apropriação dos
saberes acerca do estilo de época estudado, assim como a apropriação da linguagem literária tanto
no tocante ao reconhecimento de seus recursos linguístico-expressivos quanto de seu uso para
reetir pensamentos e emoções, em um processo de desenvolvimento humano e formação cultural.
CONSIDERAÇÕES FINAIS: O ÂMAGO DAS COISAS
Por meio desse recorte das atividades desenvolvidas em sala de aula, procurei demonstrar
a importância de se trabalhar a literatura enquanto arte, uma vez que ela provoca, instiga e estimula
os nossos sentidos, descondicionando-os para, então, suscitar possibilidades várias de se pensar o
mundo, de se repensar a si mesmo/a.
Com a análise dos poemas, foi possível perceber como os estudantes vivenciaram os
estilos de época estudados, cozendo-sorvendo a literatura e relacionando-a à sua realidade, o que
cou palpável, principalmente no último poema, ao experienciar as angústias barrocas foram
capazes de também expressar as suas.
Destaco que o foco na experiência artística enquanto apreciação crítica e produção
subjetiva não exclui o conhecimento dos contextos de produção e recepção da obra, assim
como a compreensão do estilo de época e individual. Pelo contrário, a escola é o espaço para o
aprofundamento desses saberes conjuntos, sem o detrimento de um pelo outro.
Cabe ressaltar, ainda, que para que a formação do leitor se dê em uma perspectiva de
educação para todos, deve-se atentar para as demandas de cada estudante, a m de tornar os textos
acessíveis, o que para pessoas com deciência visual pode ocorrer, de forma prioritária, por meio de
material impresso em fonte ampliada ou em Braille. E, quando necessário, com o uso de NTICs,
envolvendo leitores de tela tanto no computador quanto dispositivos móveis.
Desse modo, as práticas em aula devem proporcionar a apropriação da linguagem literária
e o (re)conhecimento de suas contribuições para a formação do ser enquanto humano, crítico,
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GOMES, M. O.
empático, valorizando-se a estética dessa arte e os saberes dos estudantes com deciência visual, suas
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